Platão e as temporalidades: a questão metodológica – BENOIT (EL)

BENOIT, Hector. Platão e as temporalidades: a questão metodológica. São Paulo: Annablume, 2015. Resenha de: ANTUNES, Jadir. Eleuthería, Campo Grande, v. 1, n. 1, p. 91-97, dez. 2016/mai. 2017.

livro Platão e as temporalidades: a questão metodológica (São Paulo -SP: Annablume, 2015) de Hector Benoit é um livro extremamente claro e didático nos argumentos a favor de uma compreensão de Platão, e de todas as grandes filosofias, a partir de sua lexis imanente, i.é, a partir da narrativa dramática imanente ao texto, a partir do sentido temporal interno e arquitetônico do texto, desconsiderando todas as determinações externas e, por isso, superficiais, como a datação cronológica e a estilometria, na elaboração de determinada grande obra filosófica.

Hector Benoit é extremamente claro e preciso em mostrar os vários níveis e temporalidades do discurso filosófico de Platão, desde seus momentos mais simbólicos e alegóricos até seus níveis mais abstratos e propriamente conceituais, mostrando a ausência de sentido nas leituras dominantes e tradicionais que pretendem encontrar, e revelar, em Platão, a existência de uma teoria ou doutrina pronta, fechada, dogmática, e purificada de toda referência não propriamente conceitual contida no interior dos diálogos. O livro de Hector Benoit não ensina apenas a ler metodológica e corretamente Platão, mas a todos os grandes filósofos. Por isso, seu método parece ter uma aplicação universal –ao menos para as grandes filosofias.

O livro é uma crítica radical ao modo dominante de se fazer filosofia, ou, mais precisamente, ao modo dominante de se entender as grandes filosofias. O modo dominante de se fazer filosofia e se compreender os grandes filósofos tem sido o analítico, em seus vários matizes, tem sido o método de divisão de um texto em suas menores partes, de análise deste texto fatiado e  fragmentado em seus menores detalhes, sem, contudo, relacionar estes fragmentos com o conjunto e o sentido interno da obra, da história de vida do autor e dos grandes conflitos filosóficos e históricos enfrentados por ele.

Os métodos historiográficos, biográficos, estilométricos, e todos os demais métodos externos empregados no entendimento de uma grande filosofia, são a condenação ao esquecimento e à confusão de toda grande obra filosófica e o livro de Hector Benoit deixa isto muito bem claro em relação à grandiosa obra de Platão. Ainda que a prática de se estudar um texto possa querer levar em consideração todos os seus aspectos empíricos, é preciso encontrar nesta leitura a ordem imanente, dramática e conceitual, é preciso encontrar a ordem própria ao discurso filosófico do autor que considere esta obra como a obra de uma vida.

O livro de Hector Benoit nos ensina não apenas a estudar corretamente um texto filosófico, mas a entender corretamente o que seria a filosofia. Seria a filosofia, uma ciência, uma episteme, ou uma arte? Seria a filosofia, uma obra destituída de esforço, de paciência, de tempo, sem relação alguma com a experiência de vida, com a experiência política, com a experiência em geral de seu autor? Seria ela, uma obra produzida exclusivamente pelo intelecto do filósofo, pela genialidade e pureza de sua alma racional, seria a filosofia, por isso, uma obra sem qualquer relação com o universo simbólico das representações de uma época e de seus leitores, sem qualquer relação com a experiência e a vida prática destes mesmos leitores e autores?

O livro de Hector Benoit nos ensina que a filosofia estaria, por este aspecto, muito mais próxima da arte do que da episteme. Neste aspecto, Aristóteles não pareceria ter algo de platonista, porque para ele a filosofia não pareceria possuir qualquer relação com a arte e a experiência de vida de seu autor. A questão fundamental exposta por Hector Benoit parece ser exatamente a crítica ao modo aristotélico de se fazer filosofia, ao modo de se estudar um autor através de recortes despedaçados de sua obra convenientes à construção de sua própria obra.

O modo socrático de exposição, o dialógico poético, parece ser sempre mais complicado politicamente do que a prosa corrida de Aristóteles. Galileu Galilei que o diga. Dizem que a causa da desgraça de Galileu não teria sido tanto as suas concepções heliocêntricas sobre o universo, mas, sim, porque o Papa fora convencido por seus assessores de que o personagem Simplícius, personagem ridicularizado por Galileu como defensor do sistema ptolomaico, representaria no Diálogo sobre os dois mundos a posição do Papa e da Igreja. Por este motivo, Galileu teria sido condenado à prisão. Numa narrativa de tipo aristotélico não há, geralmente, personagens da vida real, não há condenação destes personagens, não há a vida atrapalhando o pensamento. Por isso, a narrativa lógica e linear aristotélica parece ser sempre menos perigosa e ofensiva politicamente que os diálogos vivos e dramáticos platônicos.

De acordo com o livro de Hector Benoit, a filosofia estaria mais próxima da arte do que da episteme, porque uma obra filosófica é construída da mesma maneira que se constrói uma obra de arte, como a obra de um artesão-operário. O importante na análise desta obra não consiste tanto em compreender cada uma de suas peças isoladamente, mas, sim, o conjunto e o sentido interno e vivo desta obra. Numa obra de arte, as diferentes peças do conjunto não precisam necessariamente ser fabricadas na ordem da montagem, do funcionamento e da importância desta peça para o conjunto. Cada peça pode ser fabricada, até certo ponto, de maneira totalmente independente das outras peças. A peça principal, por exemplo, pode ser fabricada por último em relação a todas as outras peças.

O importante no estudo de uma obra de arte, por isso, não é compreender a ordem de fabricação destas peças no tempo, a ordem cronológica desta obra, mas, sim, a posição e o papel de cada peça fabricada no conjunto da obra construída. Já imaginastes montarmos um carro na ordem da fabricação de suas peças no tempo, segundo a ordem do tempo em que cada peça individual foi fabricada? Evidentemente, não teríamos um carro ao final do processo, mas apenas um agregado linear de peças sem sentido algum.

A leitura e interpretação de Hector Benoit sobre os diálogos de Platão possuem como premissa fundamental as mesmas premissas e fundamentos da ordem encontrada nas obras feitas pela mão humana. Não há sentido algum, segundo sua interpretação, querer estudar os diversos diálogos de Platão segundo a ordem cronológica de sua feitura. Não há sentido racional algum querer dispor esta ordem segundo a ordem de sua produção temporal externa, segundo o momento em que esta obra foi redigida empiricamente. Uma disposição dos diálogos platônicos segundo esta ordem alógica corresponderia à disposição, e montagem, de nosso carro segundo a ordem do tempo de fabricação de suas peças.

O entendimento correto da obra platônica, segundo Hector Benoit, é o entendimento que compreende esta obra como uma obra dotada de beleza plástica e poética, como uma obra que só revela seu sentido e direção se seguirmos o sentido e a direção contidos e apontados pelo próprio Platão no interior dos próprios diálogos, no interior de sua sequencia dramática e poética.  O racional, o poético/poiético, consiste, por isso, em compreender estes diálogos segundo sua ordem dramática interna, segundo sua construção conceitual interna, segundo o desenrolar temporal interno à própria trama dramática dos diálogos, e não à suas tramas e tramoias cronológicas externas.

O livro de Hector Benoit, por isso, transmite esta importante lição metodológica: de compreendermos, até certo ponto, uma obra filosófica como a obra de arte de um artesão, de um artesão do pensamento. Digo até certo ponto porque o artesão comum realiza uma obra que desde o princípio já se encontra pronta e acabada no pensamento, somente mais tarde, com a prática, esta obra ganha realidade como coisa feita, enquanto que o filósofo, por sua vez, não possui, desde o começo de sua trajetória filosófica, uma ideia clara e pronta do que quer fazer, de onde quer chegar e quais caminhos irá percorrer. Esta ideia vai sendo iluminada e ganhando sentido na mesma medida em que a obra vai sendo realizada. Por isso, são normais as frequentes idas e vindas do filósofo, as frequentes revisões, correções, reedições e aperfeiçoamento de sua obra. Fato que também geralmente ocorre com os produtos da mão humana. O lançamento, a primeira edição da obra é, por isso, geralmente, inferior à obra lançada nos anos seguintes.

Neste sentido, argumenta Hector Benoit, o que seriam os personagens de Platão, senão diferentes operários-artesãos, diferentes artesãos do pensamento, diferentes artesãos que, em conjunto e de maneira mais ou menos combinada, trabalham em vista de uma obra comum, a obra de uma vida, da vida dos que começaram e morreram durante sua construção, e da vida das novas gerações que surgirão para continuá-la. Quem seria Platão nesta história senão um mero coordenador, um mero condutor e dirigente, um mero engenheiro do pensamento e, como tal, um artesão, um operário qualificado, o operário-chefe de uma obra coletiva.

Como na construção dos grandes templos anônimos da cidade, que não levam o nome do engenheiro chefe, de seu arquiteto, onde cada operário parcial trabalha em vista de uma obra coletiva que ultrapassa o tempo de suas próprias vidas, não seria a obra de Platão semelhante ao Parthenon e todas as obras coletivas da cidade? Não seria, assim, a obra de Platão equivalente à obra de Phidias, uma obra da cidade, de seus operários, de seus arquitetos, uma obra sem autoria definida, uma obra que conta com o esforço, o trabalho e a participação de todos os personagens da cidade, de todos os seus artesãos, cada um com sua ocupação específica, onde alguns participam como soldados, outros como sacerdotisas, adivinhos, jovens, anciãos, anfitriões, sofistas, políticos, filósofos de profissão, visitantes estrangeiros e assim por diante?

O livro metodológico de Hector Benoit é muito útil e instrutivo para todos os estudiosos da filosofia que desejam acordar da sonolência metafísica moderna. A metafísica e a analítica, a pretensão de encontrar a essência e a verdade em um pedaço estilhaçado da realidade, a metafísica em todos os seus múltiplos modos, como o racionalismo, o positivismo e o sociologismo, domina por inteiro nossa filosofia. As diversas “filosofias”, as filosofias da linguagem, do conhecimento, da ciência, da política, da arte, da ética e assim por diante, não passam de formas mascaradas de metafísica, de formas analíticas de se compreender a filosofia e a tarefa do filósofo. Estas diversas “filosofias” não são mais do que epistemes, não são mais do que formas aristotélicas modernizadas de se fazer e se compreender a filosofia.

O livro de Hector Benoit nos leva a pensar que todos estes métodos modernos de se fazer filosofia estariam inteiramente impregnados pelos princípios práticos da época moderna: a negação do trabalho como a forma própria e fundamental da vida humana coletiva, a visão meramente negativa do trabalho, do trabalho como roubo do tempo destinado ao prazer e ao ócio. O hedonismo que domina nossa prática filosófica moderna é inteiramente incompatível com o esforço que vem do trabalho e da arte, com o esforço da leitura lenta, sistemática e total de uma obra filosófica, com o esforço do labor exercido pelo pensamento, por isso, para este hedonismo, é necessário abreviar todo esforço em vista do prazer, é preciso construir atalhos que evitem o desperdício de tempo e esforço do leitor, é preciso construir filosofias fragmentadas, fáceis, superficiais, passageiras, ao gosto do mercado editorial e do senso comum burguês.

A crítica de Hector Benoit a Goldschmidt e ao método estruturalista de interpretação de um grande autor e de uma grande filosofia parece clara em associar este método ao método do estilhaçamento e da confusão, próprio das práticas filosóficas modernas.  Pelo caminho de Goldschmidt parece ter seguido toda a história da filosofia. Para o cristianismo era necessário batizar e cristianizar todos os grandes filósofos, especialmente Platão e Aristóteles, era necessário negar o paganismo filosófico antigo e construir uma filosofia que justificasse as crenças religiosas cristãs. Para o mundo moderno trata-se não mais de construir uma filosofia, não mais de criticar a filosofia, mas de destruir a filosofia, de transformá-la em coisa fácil de ser feita, em coisa feita pelas mãos e cérebro de um único gênio, de transformá-la num ramo da ciência e, como tal, num ramo da indústria do entretenimento, da fantasia e da ideologia.

Se para Hector Benoit, o modo filosófico de se fazer filosofia em Platão deve ser compreendido a partir da compreensão do modo de se fazer as grandes obras coletivas da mão humana, para o mundo moderno, pelo contrário, trata-se de radicalizar a visão aristotélica de filosofia, de separá-la do trabalho, da arte e da vida em geral. Para o mundo moderno, como para Aristóteles, o trabalho é uma coisa negativa, é desperdício de tempo e de vida, é roubo do tempo destinado ao ócio e ao prazer, por isso deve ser erradicado da vida humana e destinado apenas a escravos, a homens inferiores, sem logos e sem episteme.

Por essa visão poiética de Platão, de Platão como um operário do pensamento, operário do logos que é ação de pensar e ação de fazer, a interpretação de Hector Benoit é um alento e sopro de vida sobre nossas almas cansadas desta monotonia e lenga-lenga filosófica moderna, desta filosofia que padece lentamente a cada dia nas teias da lógica e da linguagem, desta filosofia que tem se tornado um agregado mecânico de peças mortas, de peças fatiadas e sem organicidade, de peças isoladas e sem conexão com a totalidade da vida, desta filosofia que já não possui qualquer negatividade e impulso vital criativo.

O livro de Hector Benoit é mais do que um livro de interpretação de Platão, o livro é uma crítica radical deste modo moderno de se fazer filosofia e uma luz para nossas almas românticas e poéticas, presas às cadeias da tradição positivista e da metafísica em todos os seus modos de existência. A filosofia, para ser filosofia, não pode permanecer presa às cadeias da lógica e dos métodos quantitativos e segmentados da ciência. Para ser filosofia, ela tem que ser poesia, tem que ser arte e existir como obra que existe na totalidade da vida e em vista desta mesma vida.

O livro de Hector Benoit é uma crítica destruidora a toda a tradição filosófica que acredita ser o logos uma coisa, uma propriedade, uma substância que pode ser tomada e revelada isoladamente ao gênio individual de cada autor. O logos, como nos diz Hector Benoit lembrando Heráclito, não é substância, não é coisa nem propriedade. O logos é koinonia, é o-que-é-em-comum, é o que se manifesta no ser-em-comum, como nas grandes obras coletivas feitas pelas mãos e cérebros humanos. Nada de grandioso pode ser feito isoladamente – é o que nos ensina o logos heraclitiano e o Platão revelado por Benoit: nem mesmo uma obra filosófica. Os filósofos não constroem nada sozinhos, os filósofos são somente aqueles que sabem que tudo-é-ser-em-comum e querem, com seu intelecto e esforço, juntar-se ao ser-em-comum de sua época.  O filósofo não trabalha nem constrói sua obra isolado em seu gabinete de estudos. Para ser filósofo e fazer filosofia é preciso sair para o mundo e misturar-se com ele: como Sócrates em seus diálogos mundanos e Platão em suas aventuras políticas pelo Mediterrâneo. Nesta construção coletiva são necessários não apenas cérebro e intelecto, são também, e fundamentalmente, necessários braços e energia física humana para fazer do Parthenon da Filosofia uma realidade tal qual foi no passado o Parthenon de Phidias.

O livro de Hector Benoit é uma obra revolucionária que merece, mais do que nunca, ser lido e discutido por todos os amantes das grandes filosofias, destas filosofias que têm como meta a reconstrução completa e impiedosa da realidade segundo o que-é-em-comum. O livro deve ser lido por todos aqueles que se compreendem como operários de uma obra e de um mundo em construção, que se compreendem como membros menores de uma grande obra coletiva que transcende a vida e a vaidade de toda existência idiotizada pela propriedade privada, pelo empilhamento de dinheiro, pela desmedida da ganância e pela metafísica. Nesta obra e projeto coletivo, cada personagem participa de acordo com suas próprias forças e capacidades, alguns com o cérebro, outros com os braços e outros com a poesia e o sonho romântico dos grandes filósofos do passado –como parece ser o caso de Hector Benoit.

Jadir Antunes – Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).

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Argumentação no ensino de ciências: tendências, práticas e  metodologia de análise – VIEIRA; NASCIMENTO (EPEC)

VIEIRA, Rodrigo Drumond; NASCIMENTO, Silvania Sousa do. Argumentação no ensino de ciências: tendências, práticas e  metodologia de análise. Curitiba: Appris, 2013. Resenha de: BERNADO, José Roberto da Rocha. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 277-280, jan./abr., 2015.

Nas duas últimas décadas, as pesquisas em Educação em Ciências vêm recomendando atenção às práticas argumentativas em sala de aula. Nesse sentido, Rodrigo Drumond Vieira e Silvania Sousa do Nascimento apresentam em sua obra Argumentação no ensino de ciências: tendências, práticas e metodologia de análise um texto de leitura obrigatória tanto para pesquisadores interessados em desen­volver trabalhos sobre o tema quanto para estudantes de graduação e professores da educação básica.

Em diálogo com referências consagradas e diversificadas, os autores de­senvolvem um texto de fácil compreensão, que traz uma boa discussão teórica, ao mesmo tempo em que apresenta exemplos de análises de situações argumentativas de salas de aula. As análises apresentadas se baseiam em uma metodologia

bem-fundamentada proposta pelos autores e discutida no texto.

O livro é dividido em oito capítulos. O primeiro é dedicado à apresen­tação do conceito de argumentação. Apoiados, principalmente, nas contribuições de Michael Billig, os autores procuram situar o leitor em relação às especificida­des que envolvem o processo argumentativo, sem deixar de dialogar com outros autores de diferentes nacionalidades. O capítulo avança em relação à discussão sobre “O que é uma argumentação?” identificando e destacando a importância do conceito de orientação discursiva, desenvolvendo uma explicação elucidativa a respeito dos aspectos que caracterizam as orientações discursivas explicativas e as diferenciam das argumentativas.

No segundo capítulo, os autores se dedicam a discutir “como identificar e caracterizar argumentações em sala de aula”. Mais uma vez, as ideias de Michael Billig, articuladas com outras referências que também embasam o primeiro capí­tulo, subsidiam o desenrolar do texto, sobretudo os conceitos de contraposição de ideias e de justificações, para fundamentar a proposição de dois importantes marcadores para identificar argumentações, adaptados dos conceitos anteriores.

São eles a contraposição de ideias (opiniões) e as justificações recíprocas dessas ideias. Os marcadores propostos são o embrião da base analítica para identificação dos aspectos que diferenciam a argumentação de outras orientações discursivas.

O segundo capítulo avança na discussão apresentando as caracterís­ticas de argumentações que são contempladas pelos marcadores, tais como: a persuasão, a disputa, certo grau de simetria entre os interlocutores, verossimi­lhança das declarações (opiniões), presença de mais de uma opinião e justifica­tivas para as opiniões.

Os autores concluem o segundo capítulo ilustrando a aplicabilidade dos marcadores em duas situações de ensino e aprendizado, que correspondem a pesqui­sas desenvolvidas por eles. Em um dos casos identifica-se uma situação argumen­tativa e no outro, uma situação de explicação.

No terceiro capítulo, os autores destacam a importância da multimoda­lidade para as pesquisas sobre os discursos em salas de aula de Ciências, consi­derando as múltiplas modalidades que os sujeitos em situações reais de interação discursiva utilizam para se comunicar, “desde fala, textos, diagramas, imagens, até gestos, variações de proxemia, dentre outros”. Apoiados em autores do cam­po da Sociolinguística, destacam ainda o papel das pistas de contextualização, que incluem pausas, prosódia, variações na proxemia e fixação do olhar, nos proces­sos argumentativos em sala de aula, e o quanto essas pistas sinalizam, para os sujeitos em interação e para os analistas, como interpretar os significados que emergem dessas interações. Mais uma vez, o terceiro capítulo traz exemplos ilustrativos retirados de pesquisas realizadas pelos autores, sobre as pistas de con­textualização discutidas no texto.

No quarto capítulo, os autores destacam a importância do padrão do ar­gumento de Toulmin para analisar argumentações no ensino de Ciências e a sua ampla utilização nos contextos nacional e internacional. Embora reconheçam as críticas em relação ao uso do padrão, defendem que sua associação com o método de análise proposicional por eles desenvolvido pode ser de grande utilidade conside­rando a compatibilidade entre os dois métodos. Assim, o capítulo apresenta uma discussão objetiva sobre o uso do padrão de argumento de Toulmin e introduz o método de análise proposicional de forma cuidadosa, visando deixar o leitor esclarecido sobre o método, que consiste basicamente na segmentação das falas dos parti­cipantes em proposições de acordo com critérios sociolinguísticos. A partir da identificação de “significados convergentes”, as proposições são agrupadas em Pro­cedimentos Discursivos. A aplicação do método ao discurso do professor, segundo os autores, possibilita identificar o que chamam de Procedimentos Discursivos Didá­ticos (PDD). A exemplo do capítulo anterior, o quarto capítulo procura contribuir para a compreensão do método lançando mão de exemplos obtidos de pesquisas realizadas pelos autores em situações reais de sala de aula.

No quinto capítulo, os autores retomam a discussão a respeito das di­ferenças entre orientação discursiva argumentativa e orientação discursiva explicativa para chamar a atenção sobre a necessidade de analisar e repensar os discursos em aulas de ciências. A estrutura analítica proposta possibilita esclarecer a natureza dos procedimentos discursivos dos professores e como eles se relacionam com o cum­primento de objetivos didáticos bem-estabelecidos. Nesse sentido, a metodologia coloca em destaque a importância da tríade “Orientação discursiva – Objetivos didáticos – Procedimentos Discursivos Didáticos (PDD)” nas ações do professor. As ações do professor são mapeadas pelo quadro de narrativas e os procedimentos discursivos, pelo quadro proposicional, ambos instrumentos de análise discutidos e exemplifi­cados ao longo do capítulo. Mais uma vez, os exemplos fazem parte da estratégia de elucidação da discussão trazida pelos autores.

O sexto capítulo é dedicado especialmente à ilustração do uso da meto­dologia proposta, por meio de uma “análise detalhada de uma argumentação” de duas ações: uma com orientação discursiva dialogal e outra com orientação discursiva ar­gumentativa, que se estabeleceram no contexto de uma aula da disciplina de Prática de Ensino de Física. Os autores recorrem ao padrão de argumento de Toulmin eventualmente, ao longo da análise realizada, com o objetivo de indicar a posição dos PDD na estrutura dinâmica discursiva. A partir do detalhamento das análises das duas ações, realizam o fechamento do sexto capítulo apresentando um esquema dinâmico da estrutura procedimental argumentativa do formador, no episódio de ensino analisado.

No sétimo capítulo, os autores apresentam, de forma objetiva, um modelo para a compreensão do “ritmo discursivo” em aulas de Ciências. O texto destaca a importância da análise em níveis como estratégia para lidar com a grande diversidade e densidade dos dados que caracterizam as pesquisas de análise do discurso de sala de aula.

No oitavo capítulo, os autores promovem um fechamento do livro a par­tir de uma discussão sobre a situação atual e as perspectivas futuras com relação à argumentação no ensino de Ciências no contexto brasileiro. Em suas reflexões, apontam as dificuldades dos professores para lidar com a argumentação em sala de aula, já que estas envolvem a associação de diversos campos do conhecimento. Além disso, há a questão da falta de familiaridade deles com práticas argumentati­vas em situações escolares. A resistência da própria escola e o engessamento dos currículos também são apontados pelos autores como mais uma dificuldade. Con­siderando o que essas dificuldades podem representar em termos de demandas por mais estudos, os autores defendem que a proposta metodológica apresentada no livro tem implicações para a pesquisa e para a prática docente, o que inclui os modos pelos quais argumentação e demais orientações discursivas oferecem oportunidades de aprendizagem e como os procedimentos discursivos didáticos dos professores se rela­cionam com o ensino e a aprendizagem de Ciências, sobretudo no que se refere à formação para a democracia e para a prática social.

Assim, a obra se caracteriza como um texto de fácil compreensão que traz a metodologia proposta de forma clara sem que os autores abram mão de uma consistente fundamentação teórica. Nesse sentido, é importante destacar o cuidado dos autores com os exemplos ilustrativos de situações reais que têm papel fundamental na elucidação do que é discutido. Sem dúvida, a metodologia propos­ta pode contribuir para o campo, com implicações para a pesquisa e para a prática docente. Assim, a obra se apresenta como leitura obrigatória para os envolvidos com investigações em argumentações no ensino de Ciências, inclusive estudantes de graduação e professores experientes em serviço interessados em compreender esses processos.

José Roberto da Rocha Bernardo – Professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]  Acessar publicação original

[MLPDB]

Hobbes e a liberdade republicana – SKINNER (HP)

SKINNER, Quentin. Hobbes e a liberdade republicana. São Paulo: Editora Unesp, 2010 (Tradução de Modesto Florenzano), 214 p. Resenha de: CARVALHO JÚNIOR, Eduardo Teixeira. A metodologia de Quentin Skinner e o conceito de liberdade em Hobes. História & Perspectivas, Uberlândia, v. 26, n. 49, 8 mar. 2014.

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Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780 -1860 – MARSON et al (RIHGB)

MARSON, Isabele; OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles. (orgs.). Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780 -1860. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013. 348 p. Resenha de: LYRA, Maria de Lourdes Viana. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, a. 175 (462) p.273-280, jan./mar. 2014.

A coletânea organizada pelas professoras/historiadoras Isabel Marson e Cecília Helena de Salles Oliveira e publicada em livro, sob o título “Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860” – reúne textos voltados à reflexão de uma questão central e necessária à ampliação do conhecimento histórico sobre o Brasil imperial, ou seja, o entrelaçamento entre política e negócios no processo de formação do Estado nacional. Escritos com maestria pelas organizadoras – ambas com larga experiência acadêmica e autoras de obras consagradas referentes ao tema – e por jovens pesquisadores – mestres e doutores por elas orientados nos cursos de pós-graduação em História na Unicamp e na USP –, os artigos representam expressivo subsídio à produção historiográfica do Brasil novecentista.

Pela proveitosa retomada da análise crítica sobre o período em pauta e elaborada com o devido rigor acadêmico sobre os paradigmas teóricos e interpretativos ainda persistentes, com o objetivo de demonstrar como ocorreu o processo de afirmação das práticas liberais nos domínios do Estado e da sociedade imperial.

O aprofundamento da análise sobre circunstâncias específicas à estruturação do Estado nacional brasileiro vem, nos últimos tempos, despertando a atenção dos pesquisadores e ocupando espaço destacado nos estudos da História do Brasil. Sobretudo a partir das décadas finais do século XX, com o incremento da pesquisa histórica nos cursos universitários de pós-graduação e o consequente incentivo à abertura de novos ângulos de reflexão sobre o sentido do Estado brasileiro imperial. Caso singular no contexto das independências coloniais da América e ainda pouco explorado quanto à motivação da luta então empreendida para manter a unidade do vasto território colonial e a consequente implantação do único Estado independente monárquico e imperial no Novo Mundo. Ao mesmo tempo em que a necessidade de outras leituras sobre a história política se impunha, com o surgimento de questões histórico-políticas contemporâneas, então colocadas. Além do interesse na retomada da reflexão pontual sobre a transferência da sede da Corte monárquica portuguesa para a colônia Brasil. Acontecimento extraordinário ocorrido no início do século XIX e recolocado como foco de particular atenção, especialmente no contexto das comemorações do bicentenário, em 2008. Ocasião em que o questionamento sobre o sentido político/ideológico do Império edificado no Brasil, que já vinha sendo atentado, estimulou o aprofundamento da análise sobre as questões estruturais envolvidas no processo histórico decorrente e, consequentemente, à elaboração de estudos articulados sobre aspectos de ordem política, social, cultural e econômica.

É nesse quadro renovador de pesquisa e estudos históricos sobre o processo de formação do Estado e da sociedade brasileira que a coletânea aqui enfocada adquire valor e se destaca, pelo significativo avanço empreendido no estudo do tema. Ao centrar a atenção sobre os “princípios e formas de relacionamento que estruturaram e mediaram monarquia constitucional, liberalismo, mercado e escravidão na sociedade imperial”, apoiada em exaustiva exploração de fontes primárias e em expoentes teóricos “que questionaram metodologias e pressupostos liberais e marxistas ortodoxos”. Além do necessário diálogo empreendido com estudos renovadores elaborados nos últimos anos sobre a política e a sociedade imperiais e, sobretudo, pela consistência da reflexão resultante, ao demonstrar que: “princípios políticos liberais de diverso teor orientaram e estruturaram as relações vigentes na sociedade imperial, nela exteriorizando-se de múltiplas formas (…) desde a crise do Antigo Regime até o Segundo Reinado”.

Dividida em duas partes objetivamente demarcadas – a primeira intitulada: (Re)configuração de pactos e negociação na (re)fundação do Império; a segunda sob o título: Revoluções e conciliação: fluidez do jogo político, dos partidos e dos empreendimentos – a coletânea reúne nove alentados artigos interligados pelo objeto comum de análise: o de aprofundar o conhecimento sobre o processo histórico correspondente, através do estudo de ocorrência em locais diversos e em circunstâncias diversificadas, como: relações de dominação e de subordinação estabelecidas, mobilizações urbanas e/ou agrárias, manifestações na imprensa.

Busca realçar os fortes laços existentes entre os interesses da política e o mundo dos negócios e, principalmente, explicitar como “a disputa entre grupos pelo exercício do poder – frequente matriz de revoluções – resguardava os interesses pelos lucrativos negócios gerenciados por aqueles que comandassem o governo”.

Na primeira parte, encontram-se os artigos centrados na análise do período situado entre a conjuntura final do século XVIII e as décadas iniciais do XIX. E, o primeiro artigo, escrito por Ana Paula Medicci, “Arrematações reais na São Paulo setecentista: contrato e mercês”, analisa o sistema de arrematação dos contratos de arrecadação das rendas reais.

Tomando como referência especial o contrato do imposto dos dízimos – o de maior relevância pelo montante das rendas auferidas. Situa o estudo entre 1765, ano em que a capitania de São Paulo se tornou autônoma da principal (Rio de Janeiro) e 1808, quando a instalação da Corte portuguesa no Rio de Janeiro alterou as relações de poder no contexto interno da Colônia Brasil. Ressalta a relação desse sistema com a concessão de honrarias e cargos na administração colonial e demonstrando quão forte era o enraizamento de interesses dos negociantes que, ao acumularem o encargo de arrecadadores de impostos, também participavam da administração pública. Resulta na imbricação dos interesses públicos e privados, em face da estreita relação político-administrativa então existente, e propiciando a criação de “vínculos que fortaleciam tanto as instituições administrativas quanto a unidade imperial”.

O texto escrito por Emílio Carlos Rodrigues Lopez sob o título “Festejos públicos, política e comércio: a aclamação de D. João VI”, centra o foco de análise na organização dos festejos públicos realizados no Rio de Janeiro, entre 1808 e 1822. Dando especial atenção aos preparativos da festa para celebrar a aclamação do rei D. João VI, em fevereiro de 1818, sobretudo examinando o uso de imagens e símbolos utilizados na decoração das ruas da cidade engalanada e ressaltando o esmero na montagem de suntuosos exemplares de arquitetura efêmera: como o arco do triunfo de inspiração romana, com imagens do Tejo e do Rio de Janeiro apoiando as armas reais e sob a inscrição “Ao libertador do comércio”, que marcou a decoração executada pelos artistas franceses Jean Baptiste Debret e Gran-Jean de Montigny e financiada pelos principais negociantes locais, com o propósito de realçar o “projeto civilizador” do rei ilustrado, que “marcava a vitória da civilização sobre o mundo bárbaro”. Todos engajados no esforço de legitimar a Monarquia instalada nos trópicos, graças à “sabedoria do rei, que promovia a prosperidade do Império, expressa nas figuras das artes, da agricultura e do comércio” e fortalecia o recém -criado Reino Unido luso-brasileiro.

Cecília Helena de Salles Oliveira é a autora do artigo, “Imbricações entre política e negócios: os conflitos na Praça do Comércio no Rio de Janeiro”, em 1821, centrado na análise dos conflitos ocorridos na Praça do Comércio do Rio de Janeiro, local de reunião dos eleitores fluminenses para escolha dos representantes da província às Cortes Gerais e Constitucionais, revolucionariamente convocadas para realizar-se em Lisboa.

Apoiada em apurada pesquisa de fontes históricas, examina particularmente o processo judicial então instaurado, para apurar a razão de tais ocorrências, a autora revela “a matização do quadro político na cidade e Corte do Rio de Janeiro, bem como, a indefinição de alternativas às vésperas da partida de D. João para Portugal”. Argumenta que o confronto do dia 21 de abril de 1821, ocorrido no “edifício luxuoso”, que fora financiado pelos negociantes locais e inaugurado no ano anterior, constitui marco de significativa importância na tomada de posição de: “pessoas e grupos diretamente engajados, naquele momento, na defesa das bases constitucionais propostas pelos revolucionários em Portugal e na Espanha”.

Ao contrário do que é usualmente explicado pela historiografia, ou seja, como um simples choque de interesses entre “portugueses” e “brasileiros”.

Além de salientar o quanto “as vinculações entre política e mercado foram redefinidas e adquiriram outras fundamentações e aparências à medida que hierarquias, monopólios, isenções e privilégios coloniais foram sendo esgarçados e/ou reconstruídos por intermédio do movimento complexo de conflitos sociais, do qual a reunião na Praça do Comércio é emblemática exteriorização”.

O artigo escrito por Vera Lúcia Nagib Bittencourt, “Bases territoriais e ganhos compartilhados: articulações políticas e projeto monárquico -constitucional” analisa a conjuntura imediatamente seguinte ao conflito do Rio de Janeiro (1821), enfocando a ação política desenvolvida pelos agentes apoiadores do projeto de permanência da unidade luso-brasileira.

Aponta a aproximação de interesses políticos e financeiros entre os grandes proprietários e negociantes, militares e membros da alta burocracia da Corte, os quais, articulados com figuras oriundas de tradicionais famílias paulistas e proprietários de terra mineiros, desencadearam a ação de defesa das prerrogativas de Reino do Brasil e, portanto, a permanência de um centro de poder monárquico no Rio de Janeiro. Além da consequente “preservação dos diferentes ganhos obtidos pelos articuladores com a fixação da Corte na América portuguesa”.

O texto de João Eduardo Finardi Álvares Scanavini, “Embates e embustes: a teia do tráfico na Câmara do Império (1826-1827)”, encerra a primeira parte do livro, analisando o debate travado na Câmara de Deputados em torno do Tratado anglo-brasileiro para a Abolição do Tráfico de escravos, assinado em novembro de 1826 e ratificado em março de 1827.

Examinando o posicionamento dos parlamentares sobre a validade do trabalho servil e do tráfico de africanos para o País e no encaminhamento da discussão para a ratificação do Tratado, o autor amplia o quadro de análise.

Ao perscrutar o tom e o modo de negociação pleiteada pela representação parlamentar, ligada direta ou indiretamente ao lucrativo comércio de escravos e, portanto, empenhada em conservar a ordem escravocrata ou no mínimo adiar a abolição por prazo indefinido, ressalta a postura de oposição ao governo assumida pelos deputados, utilizando-se da tática de desqualificar o Tratado de 1826, levando à continuidade da prática ilícita do tráfico até 1850. Ao mesmo tempo em que atacavam as atitudes despóticas do governante, encaminhando o movimento que levaria à abdicação do imperador em 1831, fato que encerrava o tempo de vigência do Primeiro Reinado.

Na segunda parte, encontram-se os textos que analisam a conjuntura posterior à abdicação caracterizada pelo confronto “entre súditos-cidadãos por projetos, espaços de atuação bem colocados e oportunidades de negócios (…) guerras civis e conciliações compulsórias”, iniciada com o texto de Erik Hörner, intitulado “Partir, fazer e seguir: apontamentos sobre a formação dos partidos e a participação política no Brasil da primeira metade do século XIX”. Apoiado nas concepções teóricas do cientista político italiano Giovanni Sartori, o autor analisa o momento propiciador do surgimento de associações que dariam origem aos partidos: conservador e liberal. Demonstra o quanto os princípios do liberalismo e do mercado lastrearam o discurso e orientaram a prática dos políticos, nas décadas de 1830 e 1840; discutindo sobre as expressões utilizadas e a problemática dos esquemas traçados. Além da bipolarização partidária “tida como característica da política imperial” sob a argumentação de que “a complexidade do jogo político e do embate de grupos com interesses mais diversos do que poderia ser contido simplesmente em rótulos como liberais e conservadores”.

Isabel Marson é a autora de “Monarquia, empreendimentos e revolução: entre o laissez-faire e a proteção à ‘industria nacional’ – origens da Revolução Praieira (1842-1848)”, no qual desloca o foco de análise do cenário da Corte e circunvizinhança, centrando a atenção na província de Pernambuco, onde o jogo político-partidário era intenso, traduzido na disputa por cargos no governo local e obtenção de cobiçados contratos em obras públicas, desenrolado entre os que pleiteavam protecionismo à indústria nacional e os defensores do livre-cambismo, aqueles que comandavam a administração provincial desde 1837, ou seja, duas orientações de teor liberal que se confrontavam, expondo a complexidade da sociedade “constituída por grupos de interesses e expectativas de diverso matiz liberal”. Esmiuça as circunstâncias específicas daquela província, a autora aprofunda o estudo sobre as relações sócio-político-econômicas ali estabelecidas e de certa forma determinantes nas diretrizes governamentais do Segundo Reinado. Traçando um quadro esclarecedor sobre a sintonia da província com “a teia de negócios e orientações políticas no âmbito do Império e no quadro internacional”, contribuindo à ampliação do conhecimento sobre o confronto entre grupos políticos locais, que levou à “sangrenta guerra civil, celebrizada como Revolução Praieira”, em 1848. Investiga sobre as motivações que levaram os agentes de diversas colorações a fundar, em 1842, o Partido Nacional de Pernambuco – mais conhecido como Partido da Praia ou Praieiro – e pontuar o desdobramento marcado pelo confronto entre forças liberais: os “praieiros”, propondo maior participação dos setores médios da sociedade, preservação dos engenhos banguês, incremento de novas culturas; e forças conservadoras: os “guabirus”, reivindicando apenas melhorias na produção e no fabrico do açúcar. Além de apontar que a derrota dos “praieiros” resultou no longo afastamento dos liberais do centro de poder das decisões políticas imperiais e, consequentemente, na promoção exclusiva das práticas econômicas livre-cambistas pela administração central.

O texto seguinte, “Autobiografia, ´conciliação` e concessões: a companhia do Mucuri e o projeto de colonização de Theophilo Ottoni”, escrito por Maria Cristina Nunes Ferreira Neto, analisa a trajetória do líder da revolução de 1842 em Minas Gerais, confrontando o percurso de vida privada e pública do renomado “político liberal mineiro” com o relato autobiográfico por ele publicado em 1860, a Circular Dedicada aos Srs.

Eleitores de Senadores pela Província de Minas Gerais. A autora questiona as lacunas encontradas na Circular, sobre o empreendimento do Mucuri e a trajetória coerente e linear do ilustre personagem, traçadas por seus biógrafos; registra a sintonia existente entre o caminho seguido desde o início por Ottoni e o projeto de colonização do Mucuri, além de outros empreendimentos, todos dependentes de concessões do Estado e afinados com as propostas do Partido Liberal; apontando que a obtenção de concessões à fundação da Companhia do Mucuri, bem-sucedida até meados de 1858, se deveu à aproximação de Ottoni com os “progressistas”; sendo no contexto correspondente à perda de apoio político e às consequentes dificuldades financeiras, que a Circular fora escrita.

Encerra a coletânea, o texto de Eide Sandra Azevêdo Abreu “Um pensar a vapor”: Tavares Bastos, divergências na Liga Progressista e negócios ianques, que centra o foco de análise nas discussões parlamentares na década de 1860. Investiga o posicionamento do grupo que formou a Liga Progressista – entre “moderados” do partido conservador e do partido liberal –, com a pretensão de fundar um terceiro, o Partido Progressista.

Destaca a atuação dos agentes de maior projeção e a divergência das diretrizes de governo pretendidas: uma favorável ao investimento estrangeiro; outra defendendo proteção à empresa nacional. Tomando como parâmetro, a atuação de Aureliano Cândido Tavares Bastos na Câmara dos Deputados, pertencente à Liga Progressista, e ardoroso defensor da proposta de subvenção à navegação a vapor entre o Brasil e os Estados Unidos, projeto que encontrou forte resistência tanto de “moderados” conservadores, quanto de liberais “históricos” e, em cujo debate, “sobressai a imbricação da política imperial com o vasto mundo dos negócios”.

Não resta dúvida de que esse é um livro de leitura obrigatória, pela significativa contribuição à histografia brasileira, sobretudo pela abrangência da análise sobre cenários variados e circunstâncias diversas que caracterizam o tempo do Brasil imperial e que tem a virtude de instigar o leitor interessado em explorar aspectos e situações ainda pouco exploradas do nosso passado histórico.

Maria de Lourdes Viana Lyra – Doutora em História pela Universidade de Paris X-Nanterre. Sócia titular do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Como se faz uma tese – ECO (RBHE)

ECO, Umberto. Como se faz uma tese. Tradução de Gilson C. C. Souza. São Paulo: Perspectiva, 1983. Resenha de: AQUINO, Maria Aparecida. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.5, n.7, n.15, p.205-210, set.1986/fev.1987.

Maria Aparecida Aquino – Professora da Escola Prof. Gabriel Ortiz, São Paulo.

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