As diversas faces da pobreza: histórias dos pobres na longa duração | Revista Latino-Americana de História | 2020

A pobreza, enquanto mote de pesquisa, há algum tempo despertou interesse de um público amplo das ciências humanas, dentre eles claro, historiadores e historiadoras. O pioneiro estudo de Stuart Woolf já encarava a pobreza como um tema global, visto que eram os mecanismos que controlavam ou assistiam as camadas pobres da população que variavam conforme o contexto e o local de análise. Desde fins da Idade Média até a consolidação dos Estados modernos, pobres se relacionavam às instituições que promoviam a assistência e a prática cristã da caridade ou, posteriormente, a filantropia governativa. Neste sentido, controlar este setor da população significava controlar a ordem pública, visto que eram essas lógicas que estavam por traz de muitas dessas instituições ou políticas estatais.

Uma das questões centrais em torno da pobreza vieram em mudanças recentes e alteraram as perspectivas em relação à temática, pesquisas em âmbito da história social deixaram de relacionar esse grupo como uma massa amorfa diluída, pura e simplesmente, num contexto de marginalidade. Atualmente, pesquisas têm tratado a esses ou essas como atores ou atoras sociais, que pertencem a um grupo, família, com nome e atribuições, ou seja, que interagem com o sistema social ao qual pertencem através de práticas e estratégias de sobrevivência. Leia Mais

Assistência e pobreza: sentidos e lugares dos pobres no Brasil / História e Cultura / 2017

A caridade e a filantropia no Brasil são, desde tempos coloniais, práticas amplamente devotadas a assistir aos pobres, sobretudo para a salvação de suas almas. Já na passagem do século XIX para o XX, a “modernização da assistência” demandou maior eficiência das ações beneficentes. No que diz respeito às obras voltadas para os cuidados com a saúde, essa melhoria ficou evidenciada na criação e no remodelamento de hospitais, que foram transformados em espaços de assistência médica, ensino e filantropia.

Dessa maneira, refletir sobre como e com quais motivações essas entidades foram fundadas; o modo que agiam frente aos problemas sociais; pensar a respeito de quem era o pobre brasileiro, do significado de ser pobre e de quais lugares eles ocupavam na sociedade; a aliança entre médicos e filantropos na transformação das ações assistenciais, referem-se a questões de longa duração no mundo ocidental e tem sido objeto de grande debate na historiografia sobre o mundo europeu. Com este dossiê pretendemos reunir e divulgar trabalhos que se dediquem à temática pobreza e assistência no contexto brasileiro, do período colonial ao republicano.

Desde a Colônia, o cuidado com os pobres ocupou um lugar de destaque nas iniciativas caritativas no Brasil. A instalação de entidades como as Santas Casas de Misericórdia, por exemplo, carregavam consigo o sentido de abrigar e proteger aos “desprovidos de sorte”. Segundo a noção de caridade cristã, essas ações eram consideradas o “dever” de um bom cristão que, preocupados com a salvação de suas almas, doavam esmolas e / ou legados testamentais para o cuidado dos pobres. É relevante ressaltar que eram os doadores que designavam a obra assistencial a ser prestada com sua doação, portanto, eram privilegiadas obras de apelo moral e religioso. No que diz respeito às crianças, a função dessa entidade limitava-se em batizá-las, o que denota uma maior devoção ao cuidado espiritual do que ao material.

Durante o Império, após a fundação das Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, os hospitais passaram, gradativamente, a se tornar “lugares de cura”, inserindo em suas práticas critérios e conceitos determinados pela higiene, por meio da ação do médico, o que só foi de fato consolidado durante a República. Se na Colônia a assistência aos pobres esteve muito restrita às iniciativas caritativas de ordens leigas ou religiosas, no final do Império e, principalmente, no início da República, novos grupos sociais emergiram nesse cenário, com destaque para os médicos e para os filantropos. Estes últimos, segundo Sanglard e Ferreira (2014, p. 74), eram pessoas que “investia[m] seu capital social e financeiro na abertura de instituições voltadas para o atendimento da população indigente”.

A filantropia era praticada em maior escala pelas elites que, sensibilizadas por motivos políticos, científicos ou morais, se responsabilizaram pelo processo de modernização da nação. Nas ações filantrópicas destaca-se a participação de mulheres pertencentes às elites ou em processo de profissionalização, envolvidas ou não em movimentos feministas. De acordo com Maria Luiza Marcílio (2006, p. 132), a aliança entre médicos e filantropos reorganizou a assistência no país, criando novos modelos institucionais que se baseavam na prestação de serviços de saúde e / ou educacionais por meio de trabalho voluntário, com ações custeadas por doações filantrópicas ou pelo próprio Estado. Uma evidência dessa mudança foi a transformação da mortalidade infantil num entrave ao progresso nacional. Com vistas a corrigir esse problema, as ações médicas identificaram sua causa, a alimentação infantil, e orientaram as ações filantrópicas no sentido de reunir recursos para executar sua estratégia de combate ao flagelo, ou seja, a instrução maternal em puericultura. Na medida em que os princípios da higiene e preceitos pedagógicos norteavam a ação de filantropos e profissionais, podemos dizer que as ações filantrópicas possuíam um apelo científico.

As mudanças socioeconômicas ocorridas no Brasil pós-abolicionista provocaram uma transformação na pobreza característica do país. Desse modo, o lugar da pobreza e sobre quem recaía a responsabilidade de socorrê-la foi modificado. Nesse período, as cidades receberam um grande contingente populacional, com o qual não sabiam como lidar. Essa migração provocou aglomerações urbanas, desemprego, crescimento descontrolado e a demanda por novos cuidados. O retrato da pobreza urbana, até então composto por vadios ociosos, viúvas e órfãos, passou a integrar negros forros, imigrantes que chegavam ao Brasil, e trabalhadores urbanos. Ao mudar o assistido e quem o assistia, mudam-se também as motivações da assistência, a forma de se efetuar a mesma e seu estatuto, transformando-a em uma “questão social”, que passa a demandar ações filantrópicas e estatais, em conjunto ou separadamente.

A necessidade do provimento da assistência em conjunto com o Estado, o qual até então somente realizava ações isoladas, em casos, principalmente, epidêmicos, marcou a delimitação das funções das esferas públicas e privadas. De acordo com Robert Castel (2010), ao Estado caberiam ações gerais e à filantropia ações específicas. Desse modo, as fundações de entidades assistenciais nesse período correspondiam a essa nova ordem que se caracterizava na relação Estado e filantropia para o fornecimento da assistência à pobreza. Sabemos que com relação à assistência materno-infantil, esse modelo foi fundamental para ao desenvolvimento de políticas públicas para a maternidade e infância a partir das décadas de 1920 e 1930.

Através dessa breve contextualização, buscamos levantar algumas questões que irão permear dossiê temático. Com o objetivo de refletir sobre pobreza e assistência, os artigos aqui apresentados buscam compreender quem era o pobre no Brasil durante os períodos colonial, imperial e republicano, e qual o significado de ser pobre nesse espaço, bem como as relações articuladas em prol da pobreza. Relacionada a essa problemática serão discutidas algumas entidades caritativas, filantrópicas e instituições públicas fundadas e mantidas ao longo desse recorte e ações em prol da pobreza. Além disso, os artigos também propõem a reflexão a respeito das ações de sujeitos e instituições, estratégias, cuidado com a pobreza, financiamento da assistência, redes de sociabilidade e cooperação.

Iniciando por “A atenção aos pobres: apontamentos históricos sobre assistência e proteção social no Brasil” e percorrendo os caminhos da história da assistência à pobreza no Brasil desde o período colonial, Gisele Bovolenta discute essa questão perpassando pela importância do papel das Irmandades, especialmente, a Misericórdia, na prestação de serviços nas suas Santas Casa, tais como: distribuição de esmolas e alimentos, recolhimento dos órfãos, atendimento aos doentes, além de administrarem os cemitérios, livrar os presos pobres, fazer enterramentos, entre outros. A autora destaca a presença dessa instituição como pioneira no campo da assistência social no Brasil, ainda antes da existência do Estado e da sua tardia preocupação em implantar medidas efetivas no que diz respeito a assistência à pobreza e aos trabalhadores, as quais deram-se, inicialmente, através da promulgação de leis voltadas à proteção social, datadas do início do século XX. Bovolenta ainda discute e aprofunda tópicos relativos à legislação do serviço social ao longo do último século, chegando até a Constituição de 1988 em que a assistência social efetiva-se enquanto política pública.

Em seguida, no artigo “Caridade, devoção e assistência hospitalar aos pobres: o Hospital de São João de Deus da Vila da Cachoeira (1734-1770)”, há a reflexão sobre práticas de caridade no período colonial, especialmente durante o século XVIII. Tânia de Santana nos apresenta o caso do Hospital de São João de Deus da Vila da Cachoeira, no Recôncavo baiano como um caso interessante para pensarmos a assistência aos pobres em outro contexto que não o dominado pelas Misericórdias. Estudando um personagem que considera fundamental para as obras da instituição, no seu artigo encontramos uma discussão interessante a respeito da diferença entre as práticas de caridade e ao auxílio à pobreza praticado pelas elites.

Ainda abordando questões relacionadas às Misericórdias, no artigo “Assistência aos presos nas cadeias públicas do Rio de Janeiro e de Salvador pela Santa Casa da Misericórdia (séculos XVII-XIX)”, Nayara Luchetti faz uma leitura do Compromisso da Misericórdia no que diz respeito a sua responsabilidade com os presos, destacando que até o século XVIII essa função era cumprida pelas instituições Pias, não sendo dever do Estado arcar com quaisquer custos de seus prisioneiros, ficando estes à mercê da caridade pública. No entanto, a historiadora destaca a dificuldade financeira ultrapassada pelas Misericórdias do Rio de Janeiro e de Salvador, no período compreendido entre os séculos XVII e XIX, e em que medida isso afetou no cumprimento do provimento de recursos aos presos pobres.

Buscando discutir a respeito da institucionalização da criança no Brasil a partir do século XIX, Alan Costa Cerqueira, em “Assistência, pobreza e institucionalização infantil: usos estratégicos da roda dos expostos da Santa Casa da Misericórdia (Salvador, século XIX)”, entende a criação da Roda dos Expostos enquanto meio de combate ao abandono de bebês nas cidades brasileiras. Nesse sentido, o autor utiliza alguns exemplos de exposição de crianças na Roda da Misericórdia de Salvador para demonstrar as estratégias que eram utilizadas pelas famílias. Destaca como três, os principais motivos do enjeitamento: a censura social ao nascimento ilegítimo, a miséria e a morte de pelo menos um dos pais. Sendo assim, Cerqueira defende os usos das Santas Casas como estratégia de sobrevivência das famílias de Salvador.

Já em “Cortejo de miséria: seca, assistência e mortalidade infantil na segunda metade do século XIX no Ceará”, Georgina da Silva Gadelha e Zilda Maria Menezes Lima nos apresentam um olhar a respeito do quanto as migrações do campo para a área urbana ocasionadas pelas grandes secas gerou um novo panorama nas cidades. As historiadoras demonstram o quanto esse contexto transformou o que antes seria apenas um evento climático, em uma questão social, forçando o governo a assumir a gestão da pobreza, através de controle e disciplina. Nesse sentido, focam sua análise no caso das crianças, principais afetadas num cenário de fome e miséria, causando altos índices de mortalidade infantil, compreendendo o quanto essa particularidade influenciou na administração caridade e da pobreza enquanto problema social.

Refletindo a respeito das mudanças urbanas que atravessava a cidade de Natal no início do século XX, Renato Santos reflete sobre os elementos desse contexto, os quais envolviam os desejos da elite de transformar sua urbe. Através disso, discute o que estava por trás do discurso modernizador que pretendia civilizar seus espaços e sua população. Nesse sentido, dedica-se a estudar a Escola de Aprendizes de Natal, inaugurada em 1910, que representava o ideal de disciplinar, normatizar, criar novos hábitos, dentro de uma formação voltada para o trabalho. Além de ser um espaço em que poderiam estar inseridos os “desfavorecidos de fortuna”, membros das “classes perigosas”. Assim, o texto, através da análise dessa instituição e de outras, como presídio, lazareto e dispensário de pobres, nos leva a pensar no pensamento moralizador e civilizatório da Primeira República.

Outro artigo focado neste mesmo período histórico trata-se de “‘O pobre não é vadio’”: uma crítica ao discurso elitista acerca do trabalho na Primeira República”. Utilizando como fontes dois jornais que circulavam na capital paulista, Rose Dayanne de Brito discute através de ideias antagônicas o pensamento da elite brasileira durante a Primeira República que relacionava pobreza à falta de trabalho, ou seja, o que se considerava vadiagem e, em contraposição, a crítica a esse pensamento, apontando para a exploração do trabalho e as faltas de condições sociais e assistência que isso impunha ao trabalhador.

Perpassando também, de alguma maneira, a questão do trabalho e da noção de pobreza, no artigo “Subcidadania, naturalização das desigualdades e jovens em situação de risco: pensando sobre futuro em um presente marginalizado”, Neylton Costa discute o conceito de “subcidadania” a partir do sociólogo Jessé de Souza, através de um olhar mais sociológico a respeito das mudanças que ocorreram a partir do século XIX no Brasil. O foco de sua análise centra-se em entender como o processo de modernização brasileiro formou um grupo de excluídos, tentando entender como um modelo de competição mercadológica naturalizou e reproduziu as desigualdades sociais. Para responder a essa questão, o autor entrevistou um grupo de jovens a fim de compreender se eles se reconhecem como classe desfavorecida e como percebem seus futuros.

Discutindo as diferenças entre a assistência e o assistencialismo, Dayanny Rodrigues em “Assistencialismo, primeiro-damismo e manipulação social: a atuação de Lúcia Braga no estado paraibano na década de 1980” estuda o caso de Lúcia Braga, política paraibana, para entender a relação entre práticas assistencialistas e manipulação social nas suas práticas enquanto primeira-dama. Além disso, destaca seu papel não apenas enquanto meio de legitimação política através de ações governamentais, mas também no âmbito das ações sociais que promoveu e o quanto isso gerou popularidade, garantindo um capital político próprio para além da figura do marido, governador.

Por fim, em “Espiritismo, caridade e assistência: Florina da Silva e Souza e a Sociedade Espírita Feminina Estudo e Caridade em Santa Maria / RS” Felipe Girardi e Beatriz Weber trazem uma outra perspectiva da assistência, mas que não está distante do que já foi apresentado aqui, no que diz respeito as ações de assistência à pobreza. Focalizando na análise das práticas do espiritismo relacionadas a criação e manutenção de obras assistenciais como escolas e abrigos, por exemplo, os autores apresentam a trajetória de uma mulher que colaborou na fundação e atuou numa instituição de caráter assistencial, voltada, sobretudo, ao atendimento de crianças e jovens pobres. Analisando o que consideram peculiaridades da visão espírita, dedicam-se a entender seu olhar sobre a caridade e a assistência, através das visões e abordagens dadas à questão da infância e da juventude.

Desejamos a todos uma boa leitura, esperando contribuir para novas questões e discussões a respeito da historiografia da assistência à saúde e à pobreza.

Referências

CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social. Petrópolis: Vozes, 2010.

MARCÍLIO, Maria Luiza. História social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec, 2006.

SANGLARD, Gisele Porto. FERREIRA, Luiz Otávio. Pobreza e filantropia: Fernandes Figueira e a assistência à infância no Rio de Janeiro (1900-1920). Est. Hist., Rio de Janeiro, v. 27, n. 53, p. 71-91, jan.-jun. 2014.

Daiane Silveira Rossi – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC / FIOCRUZ). Bolsista PDSE / CAPES na Universidade de Évora, Portugal. Membro do Grupo de Pesquisas “História da Assistência à Saúde”, vinculado ao CNPq. E-mail: [email protected]

Lidiane Monteiro Ribeiro – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC / FIOCRUZ). Bolsista FIOCRUZ. Membro do Grupo de Pesquisas “História da Assistência à Saúde”, vinculado ao CNPq. E-mail: [email protected]


ROSSI, Daiane Silveira; RIBEIRO, Lidiane Monteiro. Apresentação. História e Cultura. Franca, v. 6, n. 2, ago. / nov., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Cidadania e Pobreza / Tempo / 2007

Ao apresentarmos a proposta do dossiê “Cidadania e Pobreza” para a revista Tempo nº 22, do Departamento de História da UFF, pretendíamos, àquela altura, montar uma revista que contribuísse para o tema do projeto do CEO (Centro de Estudos do Oitocentos) / PRONEX – CNPq-FAPERJ 2003, intitulado “Nação e cidadania no Império: novos horizontes” (coordenado academicamente por José Murilo de Carvalho e, executivamente, por Gladys Sabina Ribeiro). Os convites foram feitos a colegas que trabalhassem sobre o tema em diferentes latitudes do Brasil e que tivessem igual inserção geográfica variada no meio acadêmico e de pesquisa.

Assim, o dossiê proposto objetiva discutir as relações entre “cidadania e pobreza” em suas múltiplas dimensões e horizontes. Neste sentido, os textos dos autores que compõem este dossiê buscaram, a partir da análise de novas fontes e conceituações da relação do Estado ou de outras agências de poder – tais como os literatos, a justiça, as associações políticas e os movimentos sociais rurais e urbanos –, retratar e estabelecer uma visão específica sobre as estratégias de vida e de sobrevivência de indivíduos ou de grupos sociais que possamos designar como pobres, ou que fossem genericamente designados de povo, tal qual a linguagem do século XIX.

Foi deste modo que eles enfrentaram o desafio de escrever sobre aspectos que conjugassem cidadania e pobreza (os pobres, a plebe, in limine, o povo) a partir de suas pesquisas. Pretendeu-se, então, alargar os horizontes do que se entende por cidadania, ao incluir neste conceito formas de participação externas aos mecanismos previstos pela Constituição, tais como a atuação de intelectuais e a sua função na formação de uma determinada visão e percepções sobre os segmentos mais pobres, bem como os próprios atos desses indivíduos excluídos, que procuraram na lei e na justiça caminhos para garantir direitos que entendiam possuir.

Dentro destas perspectivas, estariam incluídas as revoltas, os protestos, os quebra-quebras e as experiências alternativas de inclusão e de participação nos espaços coletivos, tanto no âmbito social quanto em níveis políticos não formais. Assim, o artigo de Magda Ricci analisa, com rara sensibilidade, a construção da identidade da Amazônia em sua relação com a revolução social dos cabanos. Em um primeiro momento, a autora assume a tarefa de revisitar a historiografia sobre a Cabanagem, na intenção de discutir as leituras consagradas sobre esse movimento social. A partir daí, oferece ao leitor uma rápida e instigante biografia dos líderes para destacar a relação entre eles e a ampliação do foco de luta. Ao operar com o conceito de patriota, a autora ressalta a maneira pela qual a revolução construiu uma identidade comum entre povos de etnias e culturas diferentes. Tal identidade era calcada no ódio pelo branco e na luta por direitos e liberdades.

O artigo de Marcello Basile discute a chamada Revolução de 7 de Abril (Abdicação), entrecruzando-a não somente com as três facções que disputavam o poder – os liberais moderados, os liberais exaltados e os caramurus – como também e, “principalmente, com os vários movimentos de protesto e de revolta ocorridos na Corte entre 1831 e 1833”. O autor nos oferece uma interessante discussão sobre as medidas preventivas adotadas pelo governo para desencorajar as sedições. Ainda nessa conjuntura, analisa a revolta do teatro São Pedro de Alcântara, ponto habitual de reunião dos exaltados, local de agitação política e de pequenos tumultos. Ao apoiar-se num cuidadoso cruzamento de informações oriundas da imprensa, rastreando suas interpretações sobre o ocorrido, destaca o caráter político da ação, desnudando a composição social do movimento e indicando a participação inclusive de cativos.

Como contraponto aos movimentos políticos ensejados pela plebe na cidade, como no caso do Rio de Janeiro, ou que acabaram eclodindo com força na urbe ou aí manifestando a sua face mais violenta, como foi o caso da Cabanagem, do Grão-Pará, temos os que se deram ao redor especificamente da questão da terra e das suas demarcações, bem como a atuação da literatura na criação de uma imagem sobre o campo e sobre o homem do campo, no caso do Ceará, devastado pela seca.

Elione Silva Guimarães aborda a luta pela terra em Benfica, Juiz de Fora (Zona da Mata Mineira), e contempla a discussão do direito de propriedade e do quanto a lei valia ou não para todos. Reconstitui a história de Balbino de Mattos e a trajetória da sua família e dos Sobreira, revelando estratégias de vida, relações parentais e clientelares, cumplicidades e desafetos, reciprocidades e conflitos, que revelam conquistas ou derrotas à luz das demandas judiciais no jogo de poder pelo direito à terra. Ao fazer isto, desnuda as estratégias tanto de proprietários livres e ricos como de cativos e ex-cativos, assim como mostra o quanto a justiça era cara e como, na prática, havia uma dissociação entre direitos, leis e justiça. Revela também a ação dos operadores da lei, o funcionamento do júri, as apelações ao Supremo Tribunal Federal – já na Primeira República – e os acórdãos, com seus arrazoados. Mapeia as ações desses indivíduos e da Justiça e deixa-nos perceber a ficção jurídica da igualdade, quando está em jogo a propriedade. Nas palavras da própria autora,

(…) as questões apresentadas deixam entrever as diversas formas de violência empreendidas no exercício da dominação (física e simbólica); o peso das relações pessoais e de poder, as diferentes versões de cada um dos envolvidos; o “revelado” e o “silenciado” nas argumentações judiciais, as justiças e as injustiças nas relações sociais e legais.

Frederico de Castro Neves brinda-nos com uma exposição sobre a miséria na literatura através do olhar de José do Patrocínio. No seu texto, faz uma arguta análise de como homens da boa sociedade viam a seca e os retirantes, que se espalhavam pelas províncias do Ceará, Pernambuco, Paraíba e Bahia. Mostra que a preocupação do escritor em tela era menos com a fome e a miséria e mais com a vulnerabilidade social dos sertanejos, que viviam a degradação dos costumes tradicionais e dos valores morais, esteios da nacionalidade. Segundo Patrocínio, a desagregação dos valores dos retirantes se dava pelo choque cultural entre o mundo rural tradicional e o mundo urbano moderno, onde imperava a liberdade individual. Articulava, então, uma crítica ao Império e aos seus valores morais a partir de duas linhas de raciocínio: “1. os problemas gerados na estrutura social por um fenômeno climático de intensa gravidade; 2. o aviltamento moral próprio do processo de urbanização”. Nessa crítica que fazia ao Estado, exigia o cumprimento da Constituição, no que tangia ao socorro como um dever e a retomada de mecanismos tradicionais de proteção aos necessitados. Como outros escritores do seu tempo, Patrocínio fez da literatura uma missão. Como outros homens das letras, narrava e envolvia o público em estratégias realistas, pois julgava que o romance tinha a capacidade de convencimento do público e divulgava as idéias modernas do liberalismo, do positivismo e do evolucionismo.

Gladys Sabina Ribeiro – Professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]

Márcia Motta – Professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]


RIBEIRO, Gladys Sabina; MOTTA, Márcia. Apresentação. Tempo. Niterói, v.11, n.22, 2007. Acessar publicação original [DR]

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