Portugal, Brasil e África: história e literatura / História Revista / 2011

O dossiê Portugal, Brasil e África: história e literatura traz para o público uma série de artigos escritos por intelectuais que em suas pesquisas transitam entre dois campos de produção de saberes – a história e a literatura. Não se trata tão somente de buscar os relacionamentos entre países através desses dois campos, mas também de focar questões específicas circunscritas ao passado que unem as três realidades.

A existência de um padrão de língua e relações culturais comuns advindo da colonização e do pós-colonial entrecruzam-se, formando liames que os aproximam e ou afastam. A literatura, na construção de si, criou artefatos culturais, na forma de crônicas, poesias, romances, folhetins e outros, que trouxeram para o leitor suportes imaginários que problematizam sujeitos, nacionalidades, cidades e as condições políticas e sociais, em diferentes tempos e espaços. A nação, a cidade e o povo foram, na pena dos escritores românticos ou não, temáticas largamente trabalhadas pelos que, durante anos, foram habitantes da metrópole ou das ex-colônias. Cada autor esboçou e teceu uma nação ou cidade do tamanho de sua imaginação, impregnada de “realidades” tornadas visíveis através de diferentes suportes, matizados pela prática do “bem inventar”.

A história seguiu o mesmo percurso, mas, zelosa pela diferença e marcação de status no que concerne à produção de saber, lançou-se, então, à cata de fontes, estribada pela certeza de que falava da REALIDADE por intermédio de regras reconhecidas pela comunidade científica, afeta à área do conhecimento. Contudo, a invenção está presente, pois, como bem diz Durval Muniz de Albuquerque Júnior,

as invenções podem resultar no que não se planejou, podem surgir do encontro inesperado e acidental de elementos que jaziam separados. O momento de invenção, como de irrupção de qualquer evento histórico, é um momento de dispersão, que só ganha contornos definidos no trabalho de racionalização e ordenamento feito pelo historiador. Ordem que não está no próprio evento, articulações prováveis, possíveis, mas nunca indiscutíveis ou evidentes. Fato histórico, um misto de matéria e memória, de ação e representação, fruto de uma pragmática que articula a natureza, a sociedade e o discurso (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2007, p. 35).

Neste dossiê, Francisco Salinas Portugal trabalha com a pertença ambígua de obras literárias que não se encaixam numa literatura considerada como sistema. Entretanto, o afã de construção de processos identitários levou intelectuais a postularem sua integração a um sistema. Para tal intento, investiram na construção de um romance histórico, criando a imagem pública do literato ou personagens à espera de que o leitor contribua para a legitimação da (nova) tradição. Frank Marcon investiga a relação entre o escritor Pepetela, seus romances e a imaginação da nação em Angola. Demonstra como a trajetória de vida do escritor e sua relação com a União dos Escritores Angolanos fazem parte de um contexto de institucionalização da literatura naquele país, bem como analisa os romances e sua relação com a criação de uma narrativa histórica romanceada para a nação. Esta análise não se encerra numa percepção centrada em Angola, mas implica perceber a presença de Portugal e do Brasil nas narrativas de Pepetela, como contrapontos (próximos e distantes), presentes neste processo de efetivação da “nação imaginada”. Heloisa Paulo aborda o sequestro do paquete Santa Maria, uma embarcação de luxo e um dos orgulhos do regime de Salazar. A bibliografia em torno do episódio do Santa Maria alcança um número razoável de títulos, quer em português, quer em espanhol, galego ou catalão. No entanto, a grande maioria é composta por relatos de participantes. O objetivo da autora é analisar os relatos existentes, trazendo um novo ângulo de interpretação para o fato. Julio Sánchez Gómez discute a relação entre os índios do Brasil e o processo de independência do país, no período de 1821 a 1850. Os índios são vistos tanto como sujeito passivo da legislação – primeiro do rei de Portugal, a partir do período pombalino, passando pela etapa da Corte do Rio de Janeiro e da seguinte corte imperial, assim como das discussões parlamentárias em Lisboa e no Rio quanto como sujeito ativo nas lutas independentistas. Lucia Maria Paschoal Guimarães perscruta o papel desempenhado pela revista Atlantida, o mais expressivo veículo de divulgação de um projeto político-cultural voltado para a defesa da formação de uma comunidade luso-brasileira. Concomitante à permanente reflexão doutrinária acerca da conveniência do estreitamento das relações entre Brasil e Portugal, a revista ocupava-se de questões literárias, históricas e artísticas contemporâneas, o que lhe conferia um alcance político e ao mesmo tempo cultural. Manuel Ferro trabalha a imagem de Lisboa, colhida das vivências urbanas, objeto de tratamento literário nos folhetins do fim-de-século XIX, que desmontam tanto os códigos de valores dominantes, como a uma visão poética de uma cidade, capital e Reino e de Império, decadente, sem conseguir acompanhar o ritmo do progresso das grandes capitais europeias. Maria Aparecida Ribeiro mostra como José de Alencar, por meio de cartas dirigidas a Gonçalves de Magalhães, criou uma poética nacional, culminando com a produção de um romance no qual nação e raça brasileira foram o (o condutor da narrativa. Rafael Alves Pinto Júnior analisa a atuação do engenheiro português Ricardo Severo (1869-1940) a partir de sua conferência sobre a Arte Tradicional no Brasil, realizada na Sociedade de Cultura Artística em 1914, em São Paulo, catalisando o movimento neocolonial no Brasil. Destaca também que a in9uência intelectual de Severo foi maior que sua ação profissional, desencadeando um intenso debate em torno da questão da nacionalidade e do papel da obra de arte – notadamente a arquitetura – como um elemento civilizatório e identitário.

Na secção artigos, José María Aguilera Manzano analisa algumas das características do projeto de identidade construído por um grupo de liberais autonomistas cubanos durante o século XIX. Devido à censura, esse grupo não pode valer-se do discurso político para conseguir seus objetivos identitários. Tal situação os levou a fazer uso da literatura como meio privilegiado de expressão de suas ideias. Kátia Rodrigues Paranhos aborda as iniciativas dos grupos de teatro popular no Brasil, a partir da década de 1960, explorando experiências e representações do movimento operário, sobretudo ao interrogar os textos, as imagens e os sons como fontes. Por (m, duas resenhas que tratam de experiências autoritárias. A resenha produzida por Cláudia Graziela Ferreira Lemes que trata do livro de Carlos Fonseca, intitulado Trece Rosas Rojas: la Historia más conmovedora de la guerra civil. Elio Cantalício Serpa e Marcello Felisberto Morais de Assunção resenharam a obra do filólogo Victor Klemperer, intitulada LTI: a língua do IIIº Reich.

Referências

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A arte de inventar o passado. Bauru, SP: EDUSC, 2007.

Elio Cantalício Serpa

Organizador do Dossiê


SERPA, Elio Cantalício. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 16, n. 1, jan. / jun., 2011. Acessar publicação original [DR]

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