Il positivismo dall’Italia al Brasile: sociologia giuridica, giuristi e legislazione (1822 – 1935) | Marcela da Silva Varejão

A geração de 1870 é um dos temas de grande interesse e relevância para muitos dos intelectuais que se propõem ou propuseram a estudar a história das idéias no Brasil. A essa geração deve-se, parafraseando Sílvio Romero, o “surto de idéias novas” que passou a contestar as estruturas do Estado monárquico brasileiro. A chamada Escola do Recife, muito contribuiu, de acordo com essa mesma historiografia das idéias, para a recepção do positivismo e evolucionismo europeus e suas manifestações críticas em campos diversos como filosofia, direito, política e sociologia.

Essa autoproclamada escola, pois foi nomeada por um de seus membros, Sílvio Romero, e outros a perpetuaram, definia-se como uma orientação filosófica progressiva e que permitia a cada um ter suas idéias e investigações. Seus membros se formaram na mesma Faculdade, a de Direito do Recife, e compartilharam o mesmo ambiente acadêmico.

Entretanto, não existe unanimidade entre aqueles que enveredaram pelo estudo desse grupo de intelectuais quanto à formação de uma escola de pensamento, nem tão pouco dos membros que faziam parte desse grupo. Por outro lado, mesmo que se questione a existência de uma escola ou quem são seus membros, é inegável que eles tiveram um papel importante nos diversos campos pelos quais a chamada Escola enveredou.

O livro de Marcela Varejão, Il positivismo dall’Italia al Brasile: sociologia Del diritto, giuristi e legislazione (1822 – 1935), tem como tema mais circunscrito a relação entre os membros da Escola do Recife e os intelectuais italianos através da recepção, por parte dos primeiros, do pensamento positivista elaborado pelos segundos. O livro é o resultado da pesquisa de doutorado da autora, defendida no ano de 1999 em Milão, mas foi publicado em forma de livro apenas em 2005. A distância entre a conclusão da escrita e a publicação do livro pode deixar o leitor com a sensação de que a bibliografia utilizada é desatualizada, mas, com essa distância em mente, a leitura se torna mais indulgente nesse quesito.

O trabalho da autora consiste em rastrear a recepção do positivismo no Brasil focando na Escola do Recife através, principalmente, de sua faceta jurídica. Nesse sentido, o trabalho de Varejão se preocupa em fazer uma história das idéias sóciojurídicas com pouco ou quase nenhum contato destas com o ambiente político-social no qual elas, as idéias, e aqueles que as recepcionam e reelaboram, os intelectuais, estão inseridos.

O livro, por ser escrito e publicado na Itália e por ter os italianos como público alvo, procura nos dois primeiros capítulos inserir o leitor no contexto da recepção das idéias positivistas na América do Sul. A primeira parte do livro é dedicada a todas as nações sul-americanas. A Argentina é tomada como principal receptora e divulgadora, já os demais países, com exceção do Brasil, são tratados em separado e com pouca atenção. Nesse momento a autora se utilizou de uma bibliografia da história das idéias para a América Latina pouco atual (o livro mais recente é de 1987) e poucos trabalhos da historiografia dos países por ela trabalhados.

Já no Brasil são destacados os intelectuais que tiveram contato com o positivismo dedicando-se atenção especial ao positivismo ortodoxo capitaneado pela Igreja Positivista sediada no Rio de janeiro. A primeira parte funciona apenas como uma introdução confusa ao pensamento positivista sul-americano, o que, de qualquer maneira, se aproxima do que pareceu ser a intenção da autora.

A partir da segunda parte do livro, após mais de um terço do mesmo, Varejão inicia a sua pesquisa com profundidade. É nesse momento que ela passa a trabalhar com os membros da Escola do Recife como Tobias Barreto, Silvio Romero, Clóvis Beviláqua, Artur Orlando e João Vieira de Araújo, além de dedicar um capítulo especial à relação entre Nina Rodrigues, a Antropologia Criminal, Lombroso e sua filha, Gina Lombroso.

Daí em diante o trabalho ganha em riqueza com a análise das discussões, apropriações e rejeições das idéias de um sem número de intelectuais, principalmente os italianos. A análise da autora começa de uma dimensão mais ampla, ou seja, a introdução das idéias positivistas na Escola do Recife, em especial com Tobias Barreto, passando pelo nascimento de uma sociologia jurídica no Brasil, onde além de Barreto Varejão inclui Silvio Romero e Artur Orlando, terminando em Vieira de Araújo e sua relação entre as reformas da legislação penal de 1890 e o pensamento jurídico penal positivista italiano.

O trabalho de pesquisa de fontes realizado por Varejão é muito bem feito, entendendo-se como fontes aquelas que têm relevância dentro de uma história do pensamento jurídico-penal feita por uma jurista. Em capítulos como o último que trata de João Vieira de Araújo, por exemplo, encontra-se o ante projecto de nova edição do código criminal e o parecer de Assis Martins, exemplar raro, e até os estudos italianos do mesmo autor, também raríssimo. Entretanto, fontes de outros tipos, como jornais ou opúsculos, por exemplo, apesar de figurarem no texto são pouco explorados.

Não é à toa que a autora não se preocupa muito com esse tipo de fonte. As leituras que Varejão fez estão ligadas a uma tradição de história das idéias no Brasil associada a filósofos e juristas de renome que já trabalharam com a mesma temática, como Antônio Paim, Machado Neto, Vamireh Chacon, Nelson Saldanha, entre outros. A proposta e interesse da autora se alinham com os deles.

É a partir dessa tradição que na segunda parte ao trabalhar com Tobias Barreto é mostrado ao leitor como o próprio Barreto concebia o direito: como uma luta da humanidade contra a natureza que produziria a cultura na qual o direito estaria incluso. Essa visão de direito, por sua vez, seria derivada da leitura e refutação ou aceitação do pensamento de intelectuais italianos. Um exemplo disso foi a negação da teoria do atavismo de Lombroso por ser biologizante demais e negar a luta humana pela cultura.

Exemplos dessa relação não faltam durante todo o trabalho. Na quarta parte, quando Varejão passa a se dedicar a Artur Orlando, a autora mostrará que a concepção de direito dele estava intimamente ligada à sua percepção da sociedade. Para Orlando a Antropologia era a ciência por excelência para conhecer o homem, e o direito seria uma espécie de antropo-técnica que não poderia prescindir da Antropologia. Criticava Lombroso pelos seus exageros de querer submeter uma, o direito, à outra, a Antropologia.

O que fica claro na tese da autora é que a visão de sociedade de cada um dos membros da Escola do Recife influenciou profundamente na forma como recepcionaram as idéias positivistas italianas. Estas, por sua vez, eram em sua maioria ligadas às novas discussões jurídico-penais presentes em terreno europeu, como a Antropologia Criminal, a Sociologia Criminal e a Terceira Escola de Direito Penal. Mas não há explicação do porquê destas teorias terem despertado tanto interesse a ponto de serem abordadas por vários dos intelectuais mais importantes daquele período ligados ao direito no Brasil. É certo que a autora assinala o pertencimento destes intelectuais a uma linha evolucionista positivista em pelo menos algum momento de suas vidas, mas fora do mundo das idéias não há explicação para tal fenômeno na pesquisa proposta.

O trabalho de Marcela Varejão possui todos os méritos por se propor a fazer uma pesquisa inovadora de rastrear a recepção das idéias sócio-jurídicas nos integrantes da Escola do Recife e por dar continuidade à tradição de pesquisa de autores importantes como Antonio Paim e Miguel Reale. Acredito que cumpre muito bem com seu objetivo, como a própria banca da sua tese registrou. A autora deixou, no entanto, para outro pesquisador a tarefa de enveredar pelos caminhos ainda pouco explorados da recepção das idéias sócio-jurídicas e suas relações com o mundo social ou político.

Laércio Albuquerque Dantas – Universidade Federal de Pernambuco.


VAREJÃO, Marcela da Silva. Il positivismo dall’Italia al Brasile: sociologia giuridica, giuristi e legislazione (1822 – 1935). Milão: Giuffrè, 2005. Resenha de: DANTAS, Laércio Albuquerque. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.29, n.2, jul./dez. 2011. Acessar publicação original [DR]

 

Rondon: o marechal da floresta – DIACON (E-CHH)

DIACON, Todd A. Rondon: o marechal da floresta. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Resenha de: CATELLI, Rosana Elisa. p.333-339. Especiaria – Cadernos de Ciências Humanas, Ilheus, v.10, n.17, p.333-339, jan./jun., 2007.

Rondon: o marechal da Floresta é o título do livro do historiador Todd A. Diacon, da Universidade do Tenessee, Estados Unidos, lançado pela Companhia das Letras, em 2006. Diacon fez uma extensa pesquisa nos arquivos documentais, como o Museu do Exército e o Museu do Índio, ambos no Rio de Janeiro, a fim de recuperar a trajetória de Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958), o oficial do exército que formulou uma das primeiras políticas para os povos indígenas no Brasil.

No final do século XIX, o governo brasileiro iniciou uma política de povoamento e ocupação que abrangia uma vasta região: do Mato Grosso ao Amazonas. A idéia era colonizar estas regiões com população não indígena, construir estradas, educar os índios e instalar meios de comunicação que ligassem o interior ao litoral. Em 1900, Rondon, jovem oficial do Exército, tornou-se o chefe da Comissão de Linhas Telegráficas do Estado do Mato Grosso e em 1907 comandou a Comissão Estratégica de Instalação de Linhas Telegráficas do Mato Grosso ao Amazonas, concluída em 1915. Diacon concentra sua análise nesta última Comissão, que percorreu 1600 quilômetros de mata cerrada, com rios largos, povos indígenas e poucos mapas para guiarem os homens nesta empreitada. O autor procura reconstituir o cotidiano desta Comissão e as dificuldades que enfrentaram ao explorar uma região totalmente desconhecida. Acompanhados de 58 mulas e 100 bois, carregavam comida, máquinas de costura, fuzis, morfina, baterias, cabos de aço, gramofone, mesas, tendas etc. No decorrer da viagem, várias dificuldades acometiam estes homens: os animais sucumbiam, faltavam suprimentos, eram atacados pela malária e pelos indígenas.

A descrição que Diacon faz da passagem da Comissão pelos inóspitos territórios do Mato Grosso e do Amazonas enfatiza o caráter de aventura que deve ter sido abrir estes caminhos pela selva. A chance de explorar este Brasil desconhecido, isolado da nação, é o que parecia animar Rondon, que não se deixava abater pelas perdas, pela malária e pelo cansaço. Integrar o sertão à nação brasileira e expandir a autoridade do Estado Central eram os propósitos centrais da Comissão. Diacon mostra que para compreender o processo de integração destas terras e dos povos indígenas, proposto por Rondon, é importante “levar a sério” os ideais positivistas que o acompanharam durante sua formação como engenheiro militar e depois como estrategista da ocupação do interior do Brasil. O positivismo seria a chave, na análise de Diacon, para compreender a obstinação de Rondon em sua aventura pela selva e a sua postura com relação aos índios.

Rondon entrou em contato com as idéias positivistas na Academia Militar do Rio de Janeiro. Adotou o mote positivista de servir à humanidade por ações que fomentassem o progresso científico, a industrialização e a modernização. Suas Comissões eram compostas por botânicos, zoólogos, antropólogos, todos com o objetivo de estudar a natureza e descobrir formas de usá-la para o bem da humanidade. Em plena floresta amazônica, Rondon e seus homens, praticavam os rituais positivistas: seguiam o calendário positivista, tocavam o Hino Nacional num gramofone que os acompanhava nas longas caminhadas, hasteavam a bandeira, comemoravam as datas cívicas. Rondon fazia sempre discursos para seus homens a fim de convertê-los ao positivismo.

Este afinco de Rondon a estes ideais explica, segundo Diacon, a forma como a política indigenista foi formulada pela Comissão.

Seguindo estes pressupostos, a integração deveria ocorrer pacificamente e não pela exclusão dos povos indígenas. A opção de Rondon foi a de proteger e assimilar culturalmente os índios, pela promoção da educação destes povos, que incutiria novos hábitos e promoveria a civilização dos mesmos. No ideário positivista, diríamos que os índios passariam do estado fetichista ao estado científico-industrial e para que esta passagem ocorresse de fato, ela precisava acontecer por “aceitação” e não pela força.

Os positivistas brasileiros criticavam a ação da Igreja Católica em relação aos índios, por forçá-los a abandonar as suas crenças em nome do catolicismo. Segundo os preceitos da Igreja Positivista, os índios, enquanto estivessem num estágio inferior da evolução social, não deveriam ser forçados a abandonar as suas crenças. Eles não eram vistos como uma raça inferior, mas num estágio de evolução inferior. Com base nestes pressupostos, Rondon foi o primeiro diretor do Serviço de Proteção ao Índio, de 1910 a 1915.

Com relação à política indigenista, Diacon faz uma discussão confrontando as obras de caráter mais biográfico, que louvavam as ações de Rondon e as revisões contemporâneas que tecem intensas críticas à ação da Comissão em relação aos índios.

Para Diacon, os estudos recentes, realizados por antropólogos, concebem que ações como as de assistência, proteção e pacificação escondem a violência da Comissão Rondon e o objetivo de conquistar estes povos. Diacon concorda, em parte, com esta tese dos chamados revisionistas, salientando a ambigüidade das ações da Comissão que, com uma visão etnocêntrica, contribuiu para a deturpação da cultura indígena, mas também afirma que Rondon foi o primeiro a defender as terras indígenas e a soberania destes povos. Segundo o autor, se Rondon optou por uma política de assimilação do índio aos hábitos culturais do homem “civilizado”, isto pode ter representado um avanço para a época se comparamos com propostas muito piores existentes naquele momento. Para Diacon, seria um anacronismo supor que Rondon concebesse os índios como um “outro”, com uma cultura própria. Para ele e os demais positivistas da época, o índio era um homem primitivo, que deveria ainda chegar ao estágio da civilização com o auxílio dos órgãos oficiais, que implantariam políticas educacionais e de proteção ao índio.

Este processo de assimilação dos povos indígenas proposto pela Comissão Rondon pode ser verificado também pelas imagens produzidas no decorrer de sua trajetória. A Comissão Rondon produziu vários registros fotográficos e cinematográficos de valor inestimável para os estudos etnográficos e imagéticos, arquivados em grande parte no Museu do Índio do Rio de Janeiro.

Há também a preciosa coleção de filmes etnográficos, alguns já perdidos e outros que foram preservados pela Cinemateca Brasileira, entre eles: “Rituaes e festas bororo” (1917), “Ao redor do Brasil: aspectos do interior e das fronteiras brasileiras” (1932), “Romuro, selvas do Xingu” (1924), “Os carajás” (1932), “Viagem ao Roraima” (1927), “Parimã, fronteiras do Brasil” (1927) e “Inspectoria de Fronteiras” (1938) (TACCA, 2001). A Comissão tinha como integrante o Major Luiz Thomaz Reis, responsável pela Secção de Cinematograhia e Photographia, criada em 1912. O Major Thomaz Reis tinha conhecimentos sofisticados de cinema e fotografia e realizou um dos primeiros registros etnográficos do mundo. Este material tem sido objeto de estudos sobre o uso da imagem no início de século e das relações estabelecidas com os índios. Rondon tinha consciência da importância da publicidade de suas ações e, principalmente, da repercussão que a veiculação destas imagens poderia ter. Os filmes de Thomaz Reis eram projetados para o público de cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo e causavam grande polêmica. Para um público ávido por imagens, curioso a respeito do sertão brasileiro, os filmes de Thomaz Reis lotavam as salas e proporcionavam um grande “marketing” da Comissão. Na perspectiva nacionalista da comissão, os filmes e as fotografias tiveram grande importância na criação de um imaginário coletivo em torno do tipo nacional, do sertão e dos povos indígenas.

Segundo Diacon, nas fotografias da Comissão podemos encontrar representações de caráter positivista: índios segurando a bandeira nacional, a figura feminina como símbolo da nação, Catelli, Rosana entre outras. Imagens estas que eram utilizadas como forma de publicizar as ações da Comissão para o Exército e para o governo brasileiro, como também formar uma opinião pública a respeito da nação. Este uso institucional da imagem está entre uma das ações pioneiras da Comissão Rondon, que será seguida em vários projetos políticos posteriores.

A divulgação de imagens do interior do Brasil compunha não só um conjunto de representações internas do território nacional, como também contribuía para a construção da imagem do Brasil no exterior. Rondon sabia da importância de boas relações internacionais no auge do imperialismo americano e por isso aceita o pedido do Ministro das Relações Exteriores, em 1913, para guiar o ex-presidente Theodore Roosevelt que pretendia realizar um safári pelo noroeste brasileiro. Apesar de esta viagem significar uma interrupção nos trabalhos de Rondon, ele a aceitou por entender que isto possibilitaria a divulgação das potencialidades do Brasil no exterior, como também faria a publicidade de seu projeto telegráfico pelo interior do país.

Diacon descreve a trajetória desta expedição Rondon-Roosevelt com detalhes dos locais percorridos, os suprimentos e as dificuldades enfrentadas. Os jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo da época divulgaram amplamente esta expedição, o que satisfez os objetivos de Rondon.

A Comissão Rondon oferece várias possibilidades de análise para compreendermos o Brasil do final século XIX e início do século XX. Diacon salientou aspectos como o ideário positivista presente na formação de Rondon e as conseqüências deste ideário para a política indigenista. Mas muitos outros pontos de vista poderiam ainda ser analisados, dada a riqueza de documentos textuais e imagéticos produzidos por esta Comissão. O trabalho de Diacon representa um importante levantamento histórico para percorrermos a trajetória de Rondon pelas selvas do Brasil e compreendermos as ações desta Comissão na construção de um imaginário sobre o índio e sobre a nação brasileira.

Referências

BIGIO, Elias dos Santos. Cândido Rondon: a integração nacional. Rio de Janeiro: Contraponto/ Petrobrás, 2000.

MACIEL, Laura Antunes. A nação por um fio: caminhos, práticas e imagens da “Comissão Rondon”. São Paulo: EDUC, 1998.

TACCA, Fernando de. A imagética da Comissão Rondon: etnografias fílmicas estratégicas. Campinas: Papirus, 2001.

Rosana Elisa Catelli – Professora do curso de Comunicação Social da UESC e doutora em Multimeios – Cinema, pela Unicamp. E-mail:[email protected]

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As artes de curar: medicina, religião, magia e positivismo na República Rio-Grandense, 1889-1928 – WEBER (RBH)

WEBER, Beatriz Teixeira. As artes de curar: medicina, religião, magia e positivismo na República Rio-Grandense, 1889-1928. Santa Maria: Editora da UFMS; Bauru: EDUSC, 1999. 249p. Resenha de: SILVEIRA, Anny Jackeline Torres. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.43, 2002.

O final do século XX reservou descobertas surpreendentes no campo do conhecimento médico, tanto na área da identificação como no tratamento dos males que atingem o corpo de homens e mulheres. O anúncio do mapeamento da seqüência dos genes que compõem o DNA humano, realizado durante a última década pelos pesquisadores do consórcio público internacional Projeto Genoma Humano (PGH), tem sido tratado como a maior conquista da área médica, inaugurando mesmo uma nova era do conhecimento sobre a humanidade. Alguns afirmam que a medicina aproxima-se agora das ciências exatas, pela precisão com a qual esta descoberta poderá municiar o saber médico na identificação e solução das doenças1.

Estamos cada vez mais próximos de uma visão de doença pautada exclusivamente por uma explicação científica, em que os exames realizados por equipamentos ultra-modernos e o recurso à bioquímica responderiam a todas as necessidades e enfermidades do corpo humano? Não há como negar que tal descoberta representa uma grande vitória da medicina laboratorial, pautada no desenvolvimento da técnica e da tecnologia que envolve as descobertas do que se convencionou chamar a “era bacteriológica”. Porém, notícias como estas tendem a reforçar no imaginário social uma visão homogeneizadora e evolucionista do saber médico e de suas práticas. É sobre um mundo bastante contraposto a tal visão que nos fala o livro de Beatriz Weber, As artes de curar.

Elegendo como espaço de pesquisa a sociedade do Rio Grande do Sul na passagem do século XIX para o XX, a autora examina aspectos variados e interligados que caracterizariam a história do saber médico nesta região. Dentre eles, podemos citar as diferentes práticas de cura a que recorria sua população, a luta pela constituição de um campo profissional pelos médicos diplomados, as interferências que a ideologia positivista exerceu no reconhecimento da profissão, o papel da religião, da caridade e da magia na percepção da doença pelos leigos e sua interferência na posição que era assumida pelos médicos diante das mesmas. Sua análise aponta para uma realidade na qual práticas, saberes e crenças, diversos em seus fundamentos e procedimentos, partilhavam de forma às vezes conflituosa, às vezes em sobreposição ou harmonia, um mesmo espaço de ação.

Segundo Beatriz Weber, o poder da medicina é fruto de um processo que foi sendo construído durante todo o século XIX, e vai se consolidar no Rio Grande do Sul apenas por volta da década de quarenta. A teoria positivista e a forma como a medicina era por ela encarada tiveram papel importante neste processo. Conforme a autora, o positivismo era uma marca na formação das elites políticas do Rio Grande Sul e interferiu nas reações do poder público às tentativas de parte do corpo médico em criar restrições ao exercício de sua prática profissional, à adoção de medidas de intervenção para evitar a propagação das doenças e àquelas relativas à organização do espaço e da higiene urbana.

Bastante interessante é a descrição que a autora efetua sobre o modo como o saber médico é percebido por Comte e pelos partidários do positivismo, especialmente a idéia de que a medicina está subordinada à moral e à imagem que aproxima o médico do sacerdote: “aquele que diz o que é preciso fazer e o que se pode esperar, que traz a resignação em nome de uma ordem superior quando a ação não pode modificá-la” (p. 36). Havia, no Rio Grande do Sul, vários médicos partidários do positivismo. No entanto, nem todos partilhavam completamente das proposições dos seus teóricos a respeito do saber e da prática médica, mostrando, assim, como são variadas as possibilidades de apropriação das teorias que circulavam naquele momento, com leituras específicas dentro de contextos determinados.

Sobre este aspecto, chamam a atenção as justificativas elaboradas pelos membros do Apostolado Positivista do Brasil a respeito da defesa da liberdade no exercício da arte de curar. O profissional desta arte devia exercer uma influência espiritual sobre seus pacientes, era preciso que o médico se esforçasse para conquistar sua confiança. Era através dela, somada à sua conduta e ao seu devotamento, que o médico imporia a autoridade de sua palavra, e não por uma reserva de mercado estabelecida pela lei ou pela força. Antes de criticar os empíricos, dos quais teria nascido, a medicina (dita científica) devia apropriar-se dos seus resultados que foram confirmados pela experiência. Além disto, a confiança angariada pelos práticos e empíricos junto à população era fruto de uma identidade de crenças por eles partilhada, de concepções de mundo muito mais próximas do que, por exemplo, as que seriam professadas e propostas pelos médicos diplomados. Miguel Lemos, do Apostolado Positivista, contrapunha a figura do médico moderno aos seus “primitivos confrades, que sabem sinceramente fazer partilhar aos seus doentes a confiança que eles têm nos meios que empregam” (p.43). Este fator talvez também explicasse o sucesso de muitos “charlatães indignos”. À ciência, dizia então, era necessário penetrar no espírito da população para ser aceita.

A autora aborda também as relações entre as crenças positivistas e as questões da higiene e da intervenção pública nos espaços urbanos, e a influência que as teorias científicas sobre o contágio/transmissão (miasmas, bacteriologia) exerceram sobre a administração gaúcha, marcada pela ação de políticos positivistas. Ela frisa que, muitas vezes, concepções teóricas diferenciadas eram agregadas pelas instituições públicas, assim como pelos próprios médicos. Isto põe em cheque a perspectiva evolucionista e triunfalista do conhecimento científico, pautado por conquistas cada vez mais amplas e por uma aproximação sempre maior com a verdade. E não eram só filiações a abordagens distintas sobre a doença e a cura ¾ muitas das quais na época eram consideradas “científicas”, como o espiritismo e a homeopatia, entre outros ¾ que caracterizavam os médicos do período. Havia as crenças de caráter “subjetivo”, como a própria religião, que também marcava a prática de muitos desses profissionais.

Beatriz Weber aborda ainda o processo de constituição de “uma solidariedade corporativa e de um consenso profissional” entre os médicos diplomados. Isto se faz através de instituições como hospitais, associações ou entidades profissionais e da própria Faculdade de Medicina. Porém, como mostra a autora, este não é um processo linear ou simples, mas um caminho conflituoso marcado por desavenças políticas e filosóficas. Ao mostrar que estes médicos não eram os únicos portadores de um saber sobre as doenças e a cura; que seu conhecimento era marcado por incertezas teóricas, além das dificuldades práticas (como o instrumental precário, por exemplo); que participavam de outras crenças, como a religião, que influíam na forma como viam o processo de cura e seu próprio papel como profissionais, a autora desmistifica mais uma vez a velha imagem gloriosa e triunfante da medicina e a noção de que a constituição do poder que este saber exerce sobre a sociedade tenha sido fruto de um projeto homogêneo e sempre vitorioso.

Faz parte, ainda, da sua análise, o papel desempenhado pela Santa Casa de Misericórdia no processo de formação de um campo de saber específico, a transformação de suas funções assistênciais em terapêuticas e de produção de conhecimento, e as tensões que eram criadas pela convivência de práticas e saberes distintos. Por fim, Beatriz Weber mostra a permanência, durante todo este processo de afirmação do saber médico “científico”, das outras diversas práticas de cura às quais recorriam os diferentes grupos sociais. Nesta parte, a autora enfatiza uma perspectiva de análise que toma os grupos populares como sujeitos atuantes na organização do mundo no qual viviam, superando as interpretações que vão apresentar estes grupos como meros objetos ou pacientes de um projeto de normatização (neste caso, de “medicalização” da sociedade), ou que encaram suas ações apenas como uma reação à imposição destas normas disciplinadoras e dominadoras. Conforme afirma Beatriz Weber, estes setores sociais “interagiram socialmente com criatividade e participaram ativamente das definições do mundo em que viveram”(p.18).

Em sua conclusão, a autora nos diz que

(…) as diversas formas de organização para a cura … não se impuseram inclementes umas sobre as outras, garantindo o predomínio de uma visão. Intercambiaram-se elementos entre as concepções, compondo universos explicativos próprios, muitas vezes ambíguos e contraditórios … Muitas desenvolveram formas de atuação que as mantiveram em atividade até hoje. (p.228).

Isto nos leva a pensar sobre as afirmações emitidas pela imprensa sobre a conquista representada pela descoberta do código genético humano, apresentadas no início deste texto. Será mesmo tão absoluto o triunfo identificado nesta conquista? Como têm reagido as pessoas comuns a este avanço anunciado? O que muda na sua perspectiva sobre a doença e o processo da cura? Será que esta descoberta vai fazer esvaziar a peregrinação de pacientes que procuram o “Lar São Luiz”, o Centro do médium Chico Xavier2 e outras diversas “casas de cura”, terreiros de umbanda ou benzedeiras que se espalham através do País? Vamos deixar de lado os velhos chás para o resfriado, a enxaqueca ou outro mal-estar qualquer?

A feição que tem tomado o noticiário a respeito destas descobertas se inscreve na tradição, apontada por Maria Clementina P Cunha na apresentação da obra em exame, que

(…) atribui ao saber [especialmente ao saber dito científico], com sua intrínseca pretensão de deter a verdade, um potencial quase ilimitado de controlar e moldar a sociedade segundo seus próprios desígnios (p.15).

Se a genética promete à sociedade grandes conquistas, ela também apresenta fracassos e erros ¾ que, porém, não encontram publicidade tão marcante nos meios de comunicação. Além disto, ela propõe questões de caráter ético que afetam toda a sociedade e que, portanto, não deverão ser decididas num âmbito cultural, social e político restrito, como até então tem sido feito. É preciso, como nos mostra o livro em exame, ultrapassar a imagem asséptica da medicina [e da ciência como um todo] que lança fora toda crença, toda subjetividade, toda diversidade que fundamentou este saber e suas práticas sobre a cura. A ciência não é tão poderosa e hegemônica como muitas vezes deixa transparecer, nem homens e mulheres vivem ou elaboram o seu cotidiano a partir de uma perspectiva exclusivamente científica, de uma visão de mundo informada apenas pelos saberes que compõem esta esfera da produção cultural da sociedade. A leitura de Beatriz Weber contribui de forma significativa para ultrapassarmos essa visão linear e progressista que ainda hoje marca a imagem do conhecimento científico.

 

Notas

1 “[O] Projeto Genoma Humano, promete a era da bio-medicina de precisão”; “A transcrição … do código genético inaugura a era da medicina como ciência quase exata”. Folha de S. Paulo, “Genoma” (Caderno Especial). São Paulo, 27 de junho de 2000.

2 O “Lar São Luiz” e o centro de Chico Xavier são conhecidas “casas de cura” que realizam consultas e operações espirituais. A primeira está localizada no Rio de Janeiro, e a segunda, em Minas Gerais.

Anny Jackeline Torres Silveira – Coltec – UFMG, Doutoranda UFF.

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