Rádio, arte e política – COSTA (REi)

COSTA, Mauro Sá Rego. Rádio, arte e política. Rio de Janeiro: FAPERJ, 2012. Resenha de: CORDEIRO, Salete de Fátima Noro. Revista Entreideias, Salvador, v. 4, n. 2, 162-171 jul./dez. 2015.

Mauro Costa reúne, nessa obra, vários de seus artigos, cuidadosamente selecionados para levar o leitor à reflexão sobre a importância e dinâmicas do rádio, ao longo do tempo até o contexto contemporâneo. No primeiro artigo, “Rádio Arte e Política”, o mesmo que dá título à obra, logo marca o tom da sua escrita, colocando o rádio, desde sua origem, como um meio universal que atinge grandes contingentes da população e, portanto, um instrumento cultural, artístico e político que pode chegar a qualquer cidadão, instruído ou não. Apresenta o rádio com seu caráter plural, sendo usado, tanto numa perspectiva autoritária, – a exemplo da rádio nazista e fascista na Alemanha e Itália respectivamente –, como libertária, a exemplo da radiodifusão nos EUA no início do século XX e das rádios livres na França e Itália em meados da década de 1970. O rádio ganha notável reconhecimento da população, uma vez que a comunicação passa a acontecer ultrapassando as barreiras geográficas, o que significa dizer que as pessoas começaram a se comunicar a longas distâncias sem a interferência do Estado ou de empresas. Em estilo contraventor ou reacionário, expande-se, principalmente quando começa a se difundir e servir de meio de comunicação livre nos EUA (comunicação entre rádios amadores).
Nesse caso, o Estado intervém através do “Ato do Rádio” legislação que obriga os rádios amadores a tirar licença e só permite a comunicação por ondas curtas, sob a alegação do Congresso americano de “interferências maliciosas”. Mera coincidência em relação aos atos de criminalização das rádios comunitárias nos dias atuais, tanto nos Estados Unidos como em diversas partes do mundo.

Essa restrição definia uma faixa do espectro muito limitada para uso, sob pena de multa para quem infringisse as regras, o que levou a um movimento pela liberdade de comunicação, produção e arte.

A luta pela liberdade de expressão através das rádios caminhou junto com sua clandestinidade, dando origem a criação de um repertório cada vez mais variado, entre eles, a emissão de propaganda, música e narrativas orais. Muitas rádios, ainda hoje, continuam clandestinidade, ou seja, sem licenças, pela grande burocratização das instituições reguladoras e pelos interesses políticos dos proprietários de rádios comerciais, que dificultam sua regulamentação.

Na França e na Itália, até os anos 1970, todas as rádios eram estatais. Somente após esse período é que as rádios comerciais começaram a surgir. Mauro Costa cita o exemplo da rádio “Alice,” uma rádio livre que surge em Bolonha, na Itália (1976-1977), como um projeto estético-político, sendo considerada contraventora para a época e tendo como um dos seus fundadores o ativista Franco Berardi (Bifo). Torna-se a primeira rádio livre de Bolonha, onde a contrainformação passa a ser o principal instrumento no desmascaramento do discurso do poder. O mesmo grupo que organiza a rádio “Alice”, organiza também a revista Altraverso, um grupo que, em meio aos movimentos políticos da época, buscava fazer uma outra política, ou pelo menos, constituir maneiras diferentes de fazê-la, através dos meios de comunicação, promovendo a circulação de informação e comunicação. Política e informação caminhavam juntas no pensamento desse grupo, onde, “informações falsas produzem eventos verdadeiros” (p.65).

Do ponto de vista teórico, Mauro Costa, apresenta os sentidos e significados, ou melhor, não sentidos e não significados, que envolvem a perspectiva de fazer uma rádio contraventora, que transmite contrainformação, que interage com ouvintes e que transmite silêncio. Embasado em Burroughs e Deleuze, toma a palavra como vírus e, dessa maneira, a palavra se espalharia e dominaria as narrativas e discursos, exercendo papel condicionante e de controle. Segundo ele, nós, seres humanos, já não comunicamos por nós mesmo, pelas nossas percepções, pelo real, mas pelo que a palavra fez da linguagem, “pedaços de linguagem” que vão se articulando e esparramando. Já não é o ser humano que fala, mas a palavra, o vírus. O que cria uma distância entre as palavras e a experiência. A mídia instituída fala por cada um de nós e nos retira a potência da linguagem, da comunicação. Segundo ele, o que vale é a experiência direta, adâmica, a que está antes da palavra, no silêncio. O vazio precede a palavra. Sentido e não sentido fazem parte de um mesmo agenciamento. Vazio é espaço de privilégio, onde os artistas estão no ato da criação, no momento da poiésis, onde esquecem os códigos, ultrapassam os limites da linguagem instituída e criam o inédito, o singular e o novo.

Esse lugar potente, que rompe com o instituído dando abertura para o nonsense, para a criação, é o que almejava a rádio “Alice” em termos de potência política, “ético-estética”. O silêncio do rádio é quebrar, abrir, fechar, cortar, interromper a linguagem feita da palavra vírus, escapar do controle, interromper a comunicação, linguagem que fala por todos. Abrir espaço para a construção de novas linguagens, possibilitando outras maneiras de comunicar, de pensar, de criar, de estabelecer relações outras, com valores pertencentes a cada um e aos seus coletivos.

A rádio “Alice” é uma rádio subversiva. “O problema real é o de criar novas condições culturais, cotidianas, vivenciais, relacionais, psíquicas para que um processo de auto-organização da sociedade possa se livrar das correntes do comando capitalista…”(67).

Ela está relacionada a uma política emergente, instituinte, micropolítica que não está relacionada a nada até então instituído, nem aos movimentos de direita nem de esquerda, nem ao capital, nem ao movimento trabalhador. O modelo político estético criado pela rádio “Alice”, potencializa a criação de zonas de auto-organização, onde cada coletivo passa a pensar e a descobrir sua expressão.

Ela remete diretamente, através da sua ousadia da sua performance e de seus repórteres, à invenção de linguagens e expressões, à uma outra arquitetura de rádio.
A “rádio Alice” é descrita como uma experiência paradigmática de comunicação, caracterizada sob uma abordagem teórica de lógica de sentido fundamentada em Deleuze e Guattari. Os meios políticos dessa rádio estão basicamente na forma, e não necessariamente no conteúdo, valorizando uma política de contrainformação, que se dá através de um rádio teatralizado. Foi uma experiência marcada pelo nonsense, cheia de paradoxos, fluxos, intensidades do ato de comunicar. Os meios radioelétricos deram o suporte para uma nova perspectiva de tempo que foi instaurado, uma comunicação instantânea, que valorizava um tempo contínuo através dos meios, a exemplo do uso do próprio telefone, que estabelecia uma comunicação em rede através da publicização da ligação ao vivo.

Pela primeira vez, aqueles que mobilizavam os movimentos político- artísticos e estéticos estavam utilizando uma mídia eletrônica e criando uma rede através das pessoas que circulavam pela cidade, pelos eventos e pelas manifestações. A comunicação podia acontecer através do rádio e do telefone que eram utilizados para criar interação com público ouvinte. Ela acontecia em tempo real, antes mesmo do surgimento da web, cobrindo uma diversidade muito grande de eventos e com uma proposta de produção de conteúdos e uma linguagem cheia de ineditismos.

Mauro Costa ainda menciona a publicação de um livro de Bifo, onde aparece, explicitamente, a intencionalidade da criação de uma política do movimento, com caráter não linear, mas múltiplo, convergindo para as mídias e para o rádio. Os escritos de Bifo são importantes pois falam das rádios livres da época (Itália e França) sob uma perspectiva de ruptura, muitas vozes no ar, mostrando que a cultura minoritária estava florescendo através do rádio.

Depois do fechamento da rádio “Alice” (1977), Bifo refugia-se na França e continua sua mobilização e militância através da escrita, ampliando a discussão do rádio até o surgimento do movimento da cibercultura, onde faz uma análise da internet como uma nova protagonista do sistema e das relações de poder, como em sua obra Mutazione e Cyberpunk (1994).

As rádios livres criavam essa dinâmica, trazendo o inusitado para a programação, compartilhamento com o público, potencializando um ambiente propício para a efervescência cultural.

No entanto, a sua legalização, imposta pelo governo italiano, causou o seu esfacelamento e sua completa derrocada. No momento em que o governo submete a existência das rádios livres a um estatuto, a sua institucionalização acaba com sua essência e sua liberdade.

Exigir conteúdos, audiência e qualidade retirava das emissoras sua liberdade criativa, a autonomia de produzir o que quisesse, sem a preocupação com expansão ou audiência. Esse é o panorama geral das rádios livres e da sua regulamentação também no Brasil.

Aqui, para pensar o funcionamento e legalização das rádios comunitárias, foi instaurada a Comissão de Comunicação, Tecnologia e Informática do Congresso Nacional que leva à aprovação da Lei nº 9.612, em 1998. Cabe ressaltar que a maioria da bancada parlamentar estava direta ou indiretamente ligada a empresas de rádio e televisão, o que deixa sua marca indelével na legislação.

As barreiras criadas pela legislação geram morosidade nos processos, fazendo com que muitas rádios permaneçam na clandestinidade, mesmo realizando um trabalho intenso e relevante em suas comunidades. Nas palavras de Mauro Costa, são “verdadeiros centros culturais populares” (p. 91), deles participando pessoas de todas as idades e gêneros, mas principalmente jovens. São as rádios que chegam e suprem o vazio deixado pelas políticas públicas de cultura, esporte, lazer, trabalho, entre outras, principalmente no que está relacionado às demandas da juventude.

Essa comunicação que nasce à margem da lei, produz uma outra realidade e emerge daí a presença, envolvimento e participação marcante dos jovens. O Ministério da Cultura, sensível a essa realidade e à necessidade de estimular a produção cultural envolvendo as tecnologias que estavam chegando naquele momento, cria os Pontos e os Pontões de Cultura e projetos para o desenvolvimento da cultura em comunidades populares.

Foi dentro desse contexto que aconteceu um evento denominado Radiofórum, no ano de 2008 em Londrina- PR, onde intelectuais de diversas áreas se reuniram pensando numa rádio que mexesse, sacudisse, fizesse um rebuliço com o instituído modo de pensar e de fazer rádio no Brasil. No momento em que as tecnologias digitais disponíveis propiciaram a transição para a incorporação das tecnologias da informação e comunicação e a criação das rádios web, o desejo desse grupo foi de construir uma rádio que ultrapassasse o modelo de transmitir informação (tempo, clima e trânsito), que realmente fosse um elemento provocador no sentido de quebrar esse cotidiano e principalmente, fazer pensar.

A partir do surgimento da internet, são criadas as rádios web, muitas delas impensáveis do ponto de vista político. A internet surge como espaço alternativo tanto para quem quer ouvir e acessar, como para quem quer produzir e disponibilizar conteúdos.

Tanto as rádios web como os sites de músicas, acabam sendo um local privilegiado de produção cultural dos jovens, pois eles são os primeiros a chegar e se engajar quando dos projetos de rádios comunitárias, por exemplo. Isso mostra, por um lado, um vácuo nas políticas públicas que não contemplam a população jovem em suas necessidades, principalmente em relação à cultura. Os jovens no Brasil fazem parte de uma massa de excluídos, de desempregados e de um grupo que faz aumentar os índices de violência.

As rádios livres e comunitárias estão diretamente ligadas a modos de resistência e, atreladas à tecnologia digital, vêm oferecer formas de produção de arte e cultura, e consequentemente, a produção de um trabalho imaterial.

No livro, Mauro Costa baseia-se em Toni Negri e Michael Hardt (xxx) para falar dessas formas de produção, trazendo para o centro do debate, as maneiras de cooperação ou colaboração que lhes são inerentes. A inteligência coletiva que é produzida através das redes não dispensa a necessidade de corpos e mentes. Muito pelo contrário, é formada por eles, trabalhando de maneira conjunta, tudo graças a essas tecnologias digitais que permitem o trabalho em rede, sem os constrangimentos espaço-temporais. É nas fendas, nas brechas, que essa parcela de excluídos do trabalho formal encontram táticas de sobrevivência diante do que as tecnologias digitais propiciam e da construção dessa inteligência coletiva, encontram maneiras de desenvolver outras atividades produtivas.

“Várias atividades produtivas vêm se articulando desta maneira, principalmente nos setores da juventude, estes que estão em situação de crise na relação como trabalho juridicamente regular” (p. 91). Para exemplificar essas formas de trabalho imaterial propostas ou criadas pela juventude, o autor registra três experiências: as rádios comunitárias, o hip-hop e a produção de artes plásticas por coletivos independentes.

A primeira experiência descrita pelo autor são as rádios comunitárias, e traz como exemplo a rádio web Musicadiscreta, que produz programas sobre música, acontecimentos e personagens de vários estilos musicais até passeios etnomusicais; a Rádio Pacífica- NY-EUA, uma rádio comunitária nos Estado Unidos que, bem diferente da legislação daqui, permite que rádios comunitárias operem em rede, tudo com financiamento dos ouvintes. Cita ainda o site Sussurro, uma biblioteca musical de acesso livre criada pelo professor da UFRJ Rodolfo Caesar, que disponibiliza músicas e documentos, artigos, programas de rádio, uma variedade de conteúdos e gêneros musicais. Como, por exemplo, a Boomshot- SP, criada por um fã do hip-hop, que frequenta os espaços desse ritmo e faz das pessoas aí presentes seus entrevistados. Seus programas realizados ao vivo ficam disponíveis para download no site. Na onda do hip-hop, e seguindo a proposta de compartilhar conteúdos livres, o autor cita Bocada Forte, Rap Nacional e Só Pedrada Musical, que também possuem a característica de serem espaços alternativos, não seguindo padrões instituídos ao modelo da indústria fonográfica, onde os artistas trocam, compartilham e disponibilizam suas músicas, seus mixtapes. Suas músicas circulam pelas redes globais, onde muitas vezes ficam conhecidos, ganham prestígio na comunidade e são chamadas para fazer seu trabalho, instaurando-se assim, circuitos paralelos de construção de cultura.

A segunda experiência é o contexto de produção e circulação do hip-hop, que apresenta-se como contracultura, já que sua existência não está vinculada ao apoio de nenhuma organização institucional. Todo o processo de construção da música acontece através de uma auto-organização do coletivo, que promovem encontros, eventos, oficinas, onde uns vão passando/compartilham as técnicas e saberes para/com os outros.

A terceira experiência citada por Mauro Costa refere-se ao Coletivo Imaginário Periférico. Trata-se de um grupo de artistas plásticos, que desenvolve seu trabalho dentro de uma linguagem contemporânea de arte. Também não está atrelado a nenhum órgão ou entidade instituído no campo da cultura ou da arte, como por exemplo, escolas ou museus, mas é um grupo que se auto organiza através de eventos de arte e ateliês coletivos. É a partir desses espaços, mais alternativos, que as trocas e as aprendizagens acontecem.

Seguindo essa lógica de produção e compartilhamento, inúmeros sites são criados na web, dando oportunidade de acesso a uma grande variedade de produções sonoras, gêneros radiofônicos, programas de radioarte e radiodrama, documentários sonoros, paisagens e poesia sonoras, além da possibilidade de abertura de canais para discutir essas produções artísticas, teóricas e culturais.

Dentro dessa perspectiva plural de produzir rádio, o autor discute acerca do pensamento sobre a escuta, o som e a arte do rádio, um campo teórico pouco explorado ou inexistente. A Utilização do rádio, limitado muitas vezes ao campo da música, como em “arte dos ruídos” de Luigi Russolo e “a libertação dos sons” de Edgar Varèse, se por um lado buscava renovar a arte musical, restringia a liberdade de escuta do que seriam os elementos fundamentais para as experiências sensoriais, da busca do ruído como som em si. Segundo Mauro Costa “a não separação de uma arte do rádio ou da escuta, da arte da música, impediu, até recentemente, o desenvolvimento de critérios de leitura (de audição) próprios dela” (p. 22). Isso quer dizer que toda a codificação ou busca de pureza nos ruídos só prejudicou o desenvolvimento de outras maneiras de perceber, tratar, produzir sons e desenvolver uma teoria da escuta.

Ele traz exemplos de compositores que vão buscar suas experiências sensoriais nos estúdios de rádio, nas experiências acústicas que esse meio proporciona, resgatando inspiração e técnicas para desenvolverem suas composições, como o caso de Pierre Schaeffer que desenvolve a sua “música concreta”, proporcionando o desenvolvimento do pensamento sobre a escuta livre, ou de François Bayle, que a partir dessa senda, inicia os trabalhos que levam ao estudo da percepção auditiva ligada à cognição. Por fim, cita o compositor e teórico da educação Murray Schafer, que cria o conceito de “paisagem sonora” contemplando aspectos estéticos e ecológicos que envolvem os ambientes sonoros. A ecologia acústica, estudo desenvolvido por esse intelectual, propõe uma educação da escuta, uma atenção consciente do ambiente sonoro em que habitamos, através da educação que atingiria um grande contingente, que envolveria, pelo menos, três aspectos: desenvolver uma melhor percepção sonora desses cidadãos e dos espaços que habitam; tomar consciência de que cada um de nós somos coautores da produção sonora que nos cerca; e da percepção da produção de poluição sonora (esse programa teria ambição de abranger a educação e a saúde pública). Por outro lado, a educação da escuta do ambiente a nossa volta, encaminharia novos desafios de percepção sonora, abrindo para outras “linguagens musicais pós-tonais”, “ritmos não regulares” e desenvolvimento cognitivo. O interesse por essa área do conhecimento levou o autor a aprofundar os estudos, levando em consideração a criação de novas narrativas e principalmente de uma experiência estética, dando origem, então, a vários eventos e projetos, como o Laboratório de Rádio da UERJ/ Baixada, na Faculdade de Educação.

O livro ainda contém uma entrevista com Murray Schafer, onde aborda a origem do projeto “paisagens sonoras das cidades”, um projeto mundial que saiu de uma proposta de ensino no Departamento de Comunicação da Universidade Simon Frazer, no Canadá, e toma com espaço de trabalho a própria cidade.

O projeto estuda não apenas os sons musicais, mas qualquer tipo de som, ruído que faça parte do cotidiano, ou o que ele chama de “paisagem sonora”. Essa é entendida como algo dinâmico, móvel e, portanto, merece ser estudada, já que esses sons cotidianos estão mudando e afetando o comportamento dos cidadãos. O primeiro desses estudos foi feito em Vancouver/Canadá, e os restantes em outras cidades do mundo, evidenciando a diferença sonora presente em cada uma delas.
O rádio passa a ser entendido como um meio onde essas experiências podem ser compartilhadas e estimuladas. Isso tudo, segundo Mauro Costa, pode levar a um aprofundamento da experiência sonora ao ponto de falar em um “rádio fenomenológico”, que seria um tipo de rádio com uma programação com menor interferência possível ou sem interferência de quem o faz (colocar o microfone em um espaço e não interferir, apenas transmitir para outros espaços), o que levaria à criação de singularidades acústicas/ sonoras expressando a paisagem de cada lugar a partir dos sons que são específicos e característicos de cada região ou localidade.
O texto de Mauro Costa ainda ressalta o brilhantismo e ineditismo nas composições e instalações musicais de John Cage e relaciona seu pensamento ao de Deleuze e Guattari em muitos aspectos, entre eles a concepção de uma lógica pervasiva, que vai equiparar som e silêncio, quebrar a noção de espaço e de tempo da modernidade (tempo presente, passado e futuro) e dar espaço para o acaso, onde qualquer coisa pode acontecer durante a elaboração da obra, não havendo predominância de qualquer interpretação ou qualquer gosto do artista. Estabelece um paradoxo entre silêncio e som, caracterizado pelo tempo de duração, onde “nenhum som teme o silêncio que o extingue. E nenhum silêncio existe que não esteja pregnante de som.” (p. 51) O conteúdo de sua construção musical reúne sons musicais e ruídos registrados a partir dos meios eletrônicos, uma música inédita “sem propósito, aleatória, intempestiva, rompendo a barreira entre arte e vida, a música e os sons da vida, das ruas, do cotidiano-aprender a ouvir o mundo” (p. 40).

A perspectiva de Cage trata da desconstrução do compositor/autor diante dos equipamentos de áudio, especialmente o rádio, ou seja, é retirada a centralidade do artista no processo de criação. Entre as várias obras sonoras, criadas por Cage, fica marcante a diversidade na introdução, apresentação ou utilização do rádio. Ele acreditava que a música do futuro seria produzida a partir de instrumentos elétricos, sendo o rádio um dos principais instrumentos de trabalho do artista. Cage é considerado o inventor da radioarte, antes mesmo de ser criado esse conceito.

É discutido na obra de Mauro Costa, o rádio com grande potencial educacional, mas que enfrenta dificuldade de se desprender dos modelos padronizados e comerciais de fazer a programação.

Muitas vezes os programas têm um conteúdo revolucionário, mas seus formatos reproduzem padrões, não apresentam outras estéticas possíveis, outras vozes que destoem de um modelo predeterminado, ampliando as experiências possíveis nesse campo.

A leitura dessa obra é interessante para todos aqueles que estão buscando experiências outras de produzir conteúdos sonoros e comunicação; para aqueles preocupados com a construção de uma educação de resistência, colaboração e, ao mesmo tempo, de sensibilidade da escuta.

Salete de Fátima Noro Cordeiro – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia. E-mail: [email protected]

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Do MEB à WEB: o rádio na educação – PRETTO; TOSTA (RF)

PRETTO, Nelson De Luca; TOSTA, Sandra Pereira (Org). Do MEB à WEB: o rádio na educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. 207p. Resenha de: CASTRO, Fernanda Carla. Revista FACED, Salvador, n.17, p.123-127, jan./jun. 2010.

“A rádio, como nunca antes, é muito mais que somente rádio”, afirma o pesquisador Guillermo Orozco Gómez (Universidade de Guadalajara), no prefácio do livro Do MEB à WEB: o rádio na educação. Organizado pelos pesquisadores Nelson De Luca Pretto e Sandra Pereira Tosta1, a publicação reúne pesquisas nacionais e internacionais que tratam do rádio e do seu potencial educativo. O livro discute o Movimento de Educação de Base (MEB), que na década de 1960 incorporou o rádio como um recurso educativo, a WEB, que impôs mudanças na maneira tradicional de se fazer Educação por meio desse veículo, que se tornou “muito mais que somente rádio”. Conforme destaca Gómez, hoje o rádio oferece uma “dinâmica de possibilidades inéditas para o intercâmbio informativo, a produção de conhecimento e a própria Educação”. Mas o grande desafio que deve ser buscado em todas as experiências radiofônicas educativas é “propiciar a interação real dos usuários da rádio com os próprios conteúdos para a expressão, transcendendo a mera recepção radiofônica”.

Segundo os organizadores, Do MEB à WEB surgiu “com o objetivo de contribuir com a discussão e práticas dos usos do nosso velho e bom companheiro rádio e de sua reinvenção digital, web rádio, na Educação”. Para isso foram convidados autores com experiências educativas diversificadas com o rádio no Brasil e em outros países. Os organizadores também destacam a necessidade de incorporar à publicação o debate sobre a adoção de softwares livres na rádio web, entendida por Pretto e Tosta como de importância estratégica para a Educação e a Cultura, por “contribuir com a emancipação do País em termos científicos e tecnológicos”.

O artigo que abre a publicação, O Rádio e a Educação: a experiência do MEB e as contribuições para a Educação popula, é de José Peixoto Filho – Universidade Federal Fluminense (UFF), que resgata o surgimento2 do MEB e como sua decisão de incorporar o rádio como meio e instrumento educativo e pedagógico contribuiu para a Educação popular e a alfabetização de adultos, entre 1961e 1966. Os programas de rádio do MEB em Goiás, destacados no artigo, embora censurados pelo contexto político da época, enquanto estiveram no ar, funcionaram com êxito na interação com o trabalhador do campo, extrapolando sua alfabetização e levando-o a uma atitude crítica diante da exploração e da dominação.

O pesquisador José Marques de Melo da Universidade de São Paulo (USP), em seu artigo, Mídia, Educação e Cultura Popular: notas sobre a revolução sem violência travada em Pernambuco no tempo de Arraes (1960-1964), discorre sobre um projeto que se entrelaça com o MEB. O pesquisador narra, do lugar de “observador participante”, como funcionou o Movimento de Cultura Popular (MCP), fundado em 1960, em Pernambuco, no governo de Miguel Arraes. Melo lembra que, desde sua fundação, o MCP, além da valorização de diversas manifestações culturais, buscou desenvolver nas comunidades do Nordeste, uma apreciação e uma leitura crítica dos meios de comunicação. O artigo faz um resgate documental das atuações do MCP, apresentando pontos de convergência e divergência com o MEB, e convidando os educadores da nova geração a revisarem criticamente tais projetos.

No terceiro artigo, Rádio web na Educação: possibilidades e desafios, os pesquisadores Nelson De Luca Pretto, Maria Helena Silveira Bonilla e Carla Sandeiro, partindo da experiência de implantação de uma rádio web na Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (FACED/UFBA), chamam a atenção para perspectivas e dificuldades trazidas com a transposição do rádio para o ciberespaço. Com a rádio web abre-se um leque de novas possibilidades para atividades educacionais, demandando uma participação ativa de alunos, que passam de meros consumidores de informações a produtores de conteúdos. Por outro lado, o grande desafio é garantir o pleno uso desses novos recursos. Os pesquisadores denunciam que a pressão política dos grandes grupos empresariais das comunicações impede uma transformação da legislação que regulamenta as rádios comunitárias, restringindo sua apropriação pela comunidade e pelo campo educacional: “com a população pobre distante da possibilidade de uso efetivo desses recursos, o discurso torna-se vazio”.

Cicília M. Krohling Peruzzo (USP) dá continuidade ao debate lançado pelos pesquisadores da UFBA no estudo, “Rádios livres e comunitárias, legislação e educomunicação”, no qual esclarece em que se convergem e em que se diferenciam os dois tipos de rádio no Brasil, e enumera os benefícios trazidos às comunidades que se envolvem na produção radiofônica. Aprendendo as técnicas e linguagens e mesmo os mecanismos de manipulação a que podem estar sujeitos, os envolvidos “melhoram a autoestima e um possível interesse em crescer e colaborar para que mudanças sociais ocorram”. Mas, novamente, as comunidades têm que lutar contra as limitações impostas ao direito de exercitar a comunicação e as políticas “favoráveis aos grandes grupos de mídia e ao mercado das comunicações do ponto de vista prioritário do negócio”.

O quinto artigo, A rádio comunitária na construção da cidadania e da identidade, traz a pesquisa desenvolvida por Lílian Mourão Bahia da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), sobre o papel das rádios comunitárias União, de Belo Horizonte, e Inter- FM, de Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte. Partindo da noção de esfera pública de Jurgen Habermas, a pesquisadora ouviu líderes comunitários, agentes, trabalhadores e dirigentes dos veículos e concluiu que as experiências, mesmo que de maneira embrionária e descontínua, reconfiguraram a esfera pública midiática, formando e consolidando identidades locais e abrindo espaço para o exercício da cidadania.

Mauro José Sá Rego Costa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), discorre, no artigo Para criar o site Radioforum, em busca de um rádio inventivo, sobre as motivações que o levaram, juntamente a um grupo de radioartistas, produtores e teóricos do rádio, a formatar, na internet, um espaço de discussão e experimentação. Os envolvidos no projeto dão seus depoimentos e mostram com quais gêneros radiofônicos irão trabalhar, buscando devolver a inventividade às ondas do rádio.

Em Rádio como política pública: uma experiência paradigmática em educomunicação, Ismar de Oliveira Soares (USP) apresenta aos leitores o projeto3 que, a partir de 2001, levou o rádio a 455 escolas da rede municipal de São Paulo, envolvendo cerca de 11 mil pessoas. Com uma proposta de produção colaborativa, envolvendo democraticamente educadores e educandos, Soares acredita que a grande ousadia da Educom.rádio foi sua implantação “em uma rede formal de ensino, regida por normas que atravessam gerações de educadores e que garantem a tradicional verticalidade do processo de ensino”.

Das escolas de São Paulo, o rádio chega às de Belo Horizonte, por meio de Fábio Martins da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que registra algumas experiências radiofônicas educativas na capital mineira, não sem antes evocar a figura de Roquette- Pinto e sua crença no rádio “como veículo capaz de provocar mudanças na mentalidade popular”. No artigo intitulado O rádio dos meninos, o pesquisador discute os conceitos de “educomunicação” e “educomídia”, além de dar voz a alguns dos alunos envolvidos em um dos projetos radiofônicos de Minas Gerais.

Dos alunos a discussão salta para os moradores de uma favela de Belo Horizonte, principais ouvintes de Ana Paula Bossler (FaE/UFMG) e sua proposta de falar sobre ciência no rádio. Em Divulgação Científica na Rádio Favela FM4:percursos discursivos e a ciência na ausência da imagem, a pesquisadora discute os desafios do projeto e descreve a rotina de produção do programa Ciência na Favela. Bossler apresenta ainda considerações acerca dos programas com finalidade educativa na mídia.

No décimo capítulo, Nelson De Luca Pretto, Maria Helena Silveira Bonilla, Fabrício Santana, Bruno Gonsalves, Mônica de Sá Dantas Paz e Hilberto Mello retomam a discussão sobre os softwares livres. Em Soluções em software livre para rádio web, os pesquisadores da UFBA apresentam indicações de como usar e instalar rádios web com software livre em projetos educacionais e comunitários.

As experiências de Espanha e Portugal estão no artigo A rádio universitária como modalidade educativa audiovisual em contexto digital. No estudo, os pesquisadores Marcelo Mendonça Teixeira (Universidade do Minho), Juan José Perona Páez, da Universidade Autonoma de Barcelona (UAB) e Mariana Gonçalves Daher Teixeira (Universidade do Minho) analisam e comparam as rádios universitárias mais significativas dos dois países, concluindo que o caráter alternativo das emissoras possibilita a veiculação de temáticas dificilmente encontradas em outras rádios, “como a problemática da exclusão social; a popularização da ciência e o conhecimento; assim como a música, o cinema, a literatura e arte”.

Quem encerra a publicação é Maria Luz Barbeito Veloso (UAB), que também traz uma experiência da Espanha. Em Publiradio.net: desenho, desenvolvimento e avaliação de materiais didáticos on-line para a formação em comunicação, Veloso apresenta uma plataforma on-line que permitiu aos alunos de publicidade da UAB gerar seus próprios produtos publicitários radiofônicos e acabou por se transformar em uma web rádio educativa.

Acredita-se que Do MEB à WEB, ao reunir todos esses estudos, pode iluminar não só outras pesquisas sobre o rádio em seu papel educativo, como todas as comunidades envolvidas com esse veículo que, em tempos de Internet, abre um extenso campo de experimentação.

Notas

1 Nelson De Luca Pretto é doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo e professor associado da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. Sandra Pereira Tosta é doutora em Antropologia Social pela USP. Professora da PUC Minas; coordenadora do Grupo de Pesquisa em Educação e Culturas (Educ); pesquisadora do CNPq.

2 O MEB foi instituído em março de 1961, por meio de um convênio entre a Presidência da República e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), durante o governo Jânio Quadros.

3 O projeto Educom.rádio surgiu em 2001, numa parceria entre a Secretaria de Educação da Prefeitura de São Paulo e o Núcleo de Comunicação e Educação (NCE) da USP. Em 2005 e 2006, o projeto foi levado a escolas do ensino médio do Centro-Oeste do Brasil, incluindo aldeias indígenas e comunidades quilombolas.

4 Criada em 1981, por iniciativa dos moradores de uma comunidade do Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, a Rádio Favela foi legalizada em 1996 e condecorada duas vezes pela ONU por suas ações a favor da cidadania e do combate à violência.

Fernanda Carla Castro – E-mail: [email protected]

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