Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico – ORLANDI (RF)

ORLANDI, Eni P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Campinas: Pontes, 5. ed., 2007. ALMEIDA, Risonete Lima de. A leitura no ensino fundamental: um gesto simbólico situado no entremeio dos sentidos. Revista FACED, Salvador, n. 20, p. 125-126, jul./dez. 2011.

O ensino de língua portuguesa na escola fundamental deve legitimar a prática da leitura e promover inovações a partir do que diz Orlandi em considerações reveladoras de nova concepção de língua e de ensino. O que se torna possível quando situa a língua como um texto que circula na instituição escolar, constituído histórico-socialmente e que permite produção de sentidos diversos.

A idéia de língua aqui situada, doravante texto, nos remete ao ensino que busca transpor a simples idéia de inteligibilidade do sujeito que o situa apenas no sistema formal, para a ideia de compreensão como condições sine qua non de produção de sentido. Compreender é, pois, “[…] explicitar os processos de significação que trabalham o texto”. (p. 88) Neste sentido, rechaça-se a concepção de interpretação que restringe aos sentidos que simulam alguns livros didáticos e práticas de ensino da língua. Defende-se a interpretação vista como gesto simbólico – a compreensão, ato que representa, que projeta sentidos através de seus mecanismos de funcionamento.

Ao gesto simbólico é dada a característica de ampla dimensão, pois o privilégio da interpretação pressupõe o sujeito e a sociedade como um todo, o que inclui suas instituições (a escola, o aluno, o professor, a família etc.). Pressupõe também os diferentes mecanismos interpretativos na relação com as diversas linguagens, nas distintas posições dos sujeitos. Sujeito histórico, social, descentrado de sua origem porque ele próprio é um lugar de significação.

Portanto, o ensino da língua portuguesa não deve ser mediado apenas pelo texto escrito. A ideia de sentidos leva a pensar os diferentes gestos de interpretação, possível apenas a partir das variadas formas de linguagem e, geralmente, de distintas materialidades (música, imagens, pintura, projeção fílmica, escrita etc.) que significam. Assim o é porque o gesto carrega a incompletude que liga língua e historia na produção de sentidos. Os sentidos não se fecham, não são evidentes em uma única dimensão.

O ensino, assim, solicita o caráter multidimensional do espaço simbólico em que o texto se insere e exige daquele que ensina e aprende o saber que “[…] há uma necessidade que rege um texto e que vem da relação com a exterioridade”. (p. 15) Ao professor cabe permitir que se desloquem os sentidos, que se desconstru¬am o já aparente, o já dito, que permitam o equivoco, pois este avança em direção a uma outra significação. Isto porque o texto não é sistema que disponibiliza sentido próprio a partir de propriedades intrínsecas.

Nessa perspectiva o lugar de conhecimento é diferente daquele da interdisciplinaridade. É o lugar do entremeio, onde linguagem e exterioridade constitutiva são indissociáveis porque prevalece a noção de discurso e que não separa linguagem e sociedade na história. Lugar onde o linguístico não é propriedade da linguística, pois os sentidos do texto não combinam com o reducionismo teórico. Se assim não o fosse os professores da educação infantil e das séries iniciais estariam excluídos do gesto simbólico quando trabalham práticas de leitura.

Situar-se no entremeio, no efeito de sentidos entre locutores, é condição de leitura. A interpretação e a legibilidade são garantidas a partir da conjugação necessária da língua com a história – o discurso, produzindo a impressão da realidade. Assim sendo, não se fala em ensinar conteúdos, em relação termo-a-termo entre pensamento/linguagem/mundo (conteudismo), mas de fato – observação de como o texto, na condição de objeto simbólico, funciona. Assim dito, o texto é o fato de linguagem e “[…] os estudos que não tratam da textualidade não alcançam a relação com a memória da língua”. (p. 58)

Ao aluno deve ser dada a oportunidade de se situar como autor dos sentidos que perpassam o ensino e a aprendizagem do texto, o que significa a oportunidade de revelar que o seu dizer historiciza, que o seu discurso é interpretável, de representar e se representar, de ser reconhecido como produtor de um evento interpretativo. Porque ele, sujeito ativo, determina a constituição dos sentidos, embora este processo escape ao seu controle con¬ciente e às suas intenções, como falha necessária.

Risonete Lima de Almeida – Pesquisadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e Linguagem – GELING/UFBA; Supervisora do Curso de Especialização em Educação Infantil – MEC/SEB/UFBA; Professora da UNEB – Departamento de Letras – Campus II.

Acessar publicação original

Educação física inclusiva na escola: em busca de uma escola plural – SOLER (RF)

SOLER, Reinaldo. Educação física inclusiva na escola: em busca de uma escola plural. Rio de Janeiro: Sprint, 2005. Resenha de: CRUZ, Marlon Messias Satana. Revista FACED, Salvador, n. 20, p. 127-133, jul./dez. 2011.

O autor nos mostra uma proposta de intervenção no sentido de inclusão de alunos com deficiência na educação física Escolar. Partindo de conceitos e na perspectiva de excluir o preconceito, o autor apresenta alguns conceitos básicos a respeito da Educação especial como: Educação Especial: processo de desenvolvimento global das potencialidades de pessoas com deficiência, de condutas típicas e de altas habilidades e que abrange os diferentes níveis e graus do sistema de ensino. Fundamenta-se em referências teóricas e práticas, compatíveis com as necessidades específicas de cada aluno. O processo deve ser integral, fluindo desde a estimulação essencial até os graus superiores do ensino. Sob o enfoque sistêmico, a educação especial integra o sistema educacional vigente, identificando-se com sua finalidade, que é a de formar sujeitos conscientes e participativos.

Alunado da Educação Especial: é constituído por educandos que requerem recursos pedagógicos e metodologias educacionais específicas. Genericamente chamados de portadores de necessidades educacionais especiais, classificam-se em: pessoas com deficiência (visual, auditiva, mental e múltipla), portadores de condutas típicas (problemas de condutas decorrentes de síndromes de quadros psicológicos e neurológicos que acarretam atrasos no desenvolvimento e prejuízos no relacionamento social) e os de altas habilidades (com notável desempenho e elevada potencialidades em aspectos acadêmicos, intelectuais, psicomotores e artísticos).

Pessoa com Deficiência: é a que apresenta, em comparação com a maioria das pessoas, significativas diferenças físicas, sensoriais ou intelectuais, decorrentes de fatores inatos e/ou adquiridos, de caráter permanente e que acarretam dificuldades em sua interação com o meio físico e social.

Pessoa Portadora de Necessidades Especiais: é a que, por apresentar, em caráter permanente ou temporário, alguma deficiência física, sensorial, cognitiva, múltipla, ou que é portadora de condutas típicas ou ainda de altas habilidades, necessita de recursos especializados para superar ou minimizar suas dificuldades.
Aluno Com Necessidades Educativas Especiais: é aquele que, por apresentar dificuldades maiores que as dos demais alunos, no domínio das aprendizagens curriculares correspondentes a sua idades (seja por causas internas, por dificuldades ou carências do contexto sociofamiliar, seja pela inadequação metodológica e didática, ou por história de insucessos em aprendizagens), necessitam, para superar ou minimizar tais dificuldades, de adaptações para o acesso físico (remoção de barreiras arquitetônicas) e/ou de adaptações curriculares significativas em várias áreas do currículo.

Educação Inclusiva: por educação inclusiva se entende não só o processo de inclusão dos alunos com deficiência ou de distúr¬bios de aprendizagem na rede comum de ensino em todos os seus graus, mas fundamentalmente de todas as diferenças, pois hoje é o fato que cada ser humano é uno, e as oportunidades devem ser iguais para todos. A primeira escola de todas as pessoas deve ser a escola regular.

Reinaldo Soler nos mostra que na busca da educação inclusiva a metodologia ideal é a pedagogia transdiciplinar de Nicolescu (1997) e seus princípios são: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a ser, aprender a viver junto. Entretanto, na educação física a pedagogia cooperativa nos prepara melhor para esta tarefa da educação inclusiva.

Tratar de inclusão é uma tarefa difícil, pois apesar da sociedade sentir a necessidade de superar a prática exclusiva a uma prática inclusiva, as ações ainda, em muitos casos, ficam no plano das ideias estando longe da prática. O educador tem um papel fundamental neste processo, pois tem todos os elementos em seu poder e pode modificar toda uma cultura, exclusiva, por meio de suas aulas. Nesta perspectiva a escola passa a ser o espaço possível para que toda esta transformação possa acontecer, pois este é o espaço que devemos nos diferenciar dos outros e construir o nosso mundo.

A primeira escola de todas as pessoas poderá ser sempre a regular, porém após avaliação, se houver a necessidade da escola especial, este aluno deve ser remanejado para esta. Entretanto, a primeira opção deve ser sempre a oportunidade de conviver e aprender com todas as diferenças, tendo sempre as mesmas oportunidades. Os educadores têm o dever de oportunizar aos alunos com deficiência uma inserção em uma escola regular independentes dos resultados futuros. E os pais devem dar a confiança e segurança necessária para matricular seus filhos em uma escola de ensino regular, a construção de uma escola inclusiva dever ser compromisso de toda a sociedade.

Muitos são os mitos e preconceitos que fazem com que a sociedade tenha um comportamento errôneo perante os alunos com deficiência, pode-se entender que ao longo do convívio, paralelo a educação, formam os conceitos, as idéias e opiniões sobre este público. Existe a real necessidade em conviver com a pessoa com deficiência, para superar preconceitos, entendê-las e reconhecer que a diversidade é real. Sem preconceitos traçamos um caminho para uma sociedade menos injusta, que acolhe as diferenças e as valorize.

Passeando pela história, o passado nos mostra que a educação física já foi responsável por discriminações dos alunos com deficiência das escolas regulares, em 1938 de acordo com o decreto 21.241, a matrícula de alunos especiais foi proibida com o argumento que o estado dos alunos o impediria permanentemente de participar das aulas de educação física. Já na atualidade podemos perceber que a educação física superou preconceitos e se transformou em relação aos alunos especiais, tomando como exemplo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1996), onde nos mostra esta mudança de enfoque:

“Por desconhecimento, receio ou mesmo preconceito, a maioria dos portadores de necessidades especiais tendem a ser excluídos das aulas de educação física. A participação nessa aula pode trazer muitos benefícios a essas crianças, particularmente no que diz respeito ao desenvolvimento das capacidades perceptivas, afetivas de integração e inserção social, que levam este aluno a uma maior condição de consciência, em busca da sua futura independência.” (p. 40)

O professor de educação física deve passar por todo este processo de transformação, para que possa incorporar o devido tema a sua pratica pedagógica, para que suas aulas, que já trata tantas outras diferenças, passe a respeitar esta necessidade especial. E, sobretudo, assumindo a questão da sociedade inclusiva como sua.
Os alunos com deficiência podem se relacionar bem com qualquer pessoa, principalmente com aqueles que os entendem, e para entendê-los não é preciso pré-requisitos, basta tratá-los com igualdade, sem restrições, muito menos pena, ou proteção exagerada, e, sobretudo, acreditam em suas potencialidades. Podemos citar que os portadores de deficiência física e os portadores de deficiência sensorial estão se integrando gradativamente à vida da comunidade escolar. E, ainda persistem, em grau mais elevado, preconceitos em relação àqueles que possuem deficiência intelectual. A escola valoriza a mente, e se esta mente não produz como o esperado, então está sujeita a exclusão e ao isolamento. Os portadores de deficiência intelectual são mais capazes do que muitos estereotipam, basta que lhe dê um espaço e respeite sua individualidade.

Devemos nos livrar de qualquer tipo de preconceito com os alunos com deficiência, e enxergá-los como pessoas mais que eficientes, e para isso o papel do educador é essencial. A sociedade em geral será beneficiada com esta mudança de enfoque, pois assim esta estará mais justa e solidária. Esta mudança profunda de comportamento depende preferencialmente do esforço de pessoas comprometidas com o processo educacional.

Não podemos mais aceitar a exclusão como algo normal, pois ultimamente está havendo avanços em relação em uma nova escola, agora inclusiva. A inclusão é uma grande oportunidade para as escolas se transformarem e se modernizarem e também uma chance, tanto do poder público como da iniciativa privada, investir no aprimoramento dos seus professores investindo em formação, tornando-os competentes para lidar com a diversidade, visando uma transformação tanto na escola quanto na sociedade.

Entretanto, devemos entender a diferença entre interação e inclusão, na interação a escola não muda e a permanência da criança é condicionada às suas possibilidades. Já na inclusão, a escola deve mudar e se adaptar as diferenças, e não ao contrário. Existe uma grande necessidade em conhecer melhor a questão da inclusão/interação, e isto é reforçado também por meios de leis e portarias que tentam sanar, por meio de esclarecimento, alguns preconceitos a respeito da inserção do aluno com deficiência na escola regular. Os cursos superiores na área de educação necessitam de disciplinas específicas que visem focalizar melhor o assunto.
Contudo, uma escola regular não se torna inclusiva somente em receber alunos especiais nas suas classes, torna-se inclusiva quando se reestruturam, tanto no espaço físico quanto pedagogicamente, para atender os novos alunos em termos de Necessidade Especiais.

Apesar da inclusão de alunos com deficiência na rede regular de ensino ser um direito garantido pela constituição federal, para que ela realmente se efetive é necessário que a comunidade escolar esteja preparada para esta mudança. A inclusão apóia e defende a participação de todo o universo escolar, professores, diretores, funcionários, alunos e comunidade. O sucesso da inclusão está diretamente ligado ao trabalho desenvolvido por toda comunidade escolar.

Especificando em educação física, independente de qual seja o conteúdo escolhido, os processos de ensino-aprendizagem deve considerar as características dos alunos em todas as suas dimensões (cognitivas, corporal, afetiva, social e estética), garantindo a participação de todos independente do seu comprometimento motor, sensorial, cognitivo. A participação do aluno com deficiência na aula de educação física é muito relevante no sentido que os alunos possam desenvolver suas capacidades perceptivas, afetivas, de integração, e de inclusão social, favorecendo a sua autonomia e independência, estabelecendo e ampliando cada vez mais suas relações sociais, aprendendo aos poucos a articular suas idéias, respeitando as diferenças e desenvolvendo atitudes de ajuda e colaboração.

O professor de educação física deverá fazer as adequações necessárias, nas regras, nas atividades, na utilização do espaço, utilizando de recursos que estimule a participação de todo grupo, dando possibilidades que favoreçam a sua formação integral. A aula de educação física deve ser um exercício de convivência, em que os alunos aprenderão a construir uma nova sociedade, sem discriminação, e com atitudes de solidariedade, respeito e aceitação, não havendo lugar para o preconceito e a exclusão.

O papel do professor de educação física na inclusão, como em qualquer modalidade de ensino, é o de intermediar novos aprendizados, apresentando aos seus alunos o novo e o desconhecido, pois diante do desafio, o aluno tende a assimilar melhor o conhecimento, idealizando os recursos motores e mentais que possuem. O professor deve entender que utilizando o lúdico, que é a linguagem infantil, poderá avançar muito mais no aprendizado, já que, o que prende uma criança a uma atividade é a alegria e o prazer de brincar.

É necessário criar alternativas para o fim desta exclusão que torna a todos nós perdedores. Uma proposta sugerida é basear o trabalho na pedagogia cooperativa, tentando com isso criar uma nova ética, uma ética cooperativa, nesta perspectiva o professor deve possuir habilidades para integrar o grupo reforçando a cooperação. O papel do professor é fundamental nessa perspectiva, porém a ideia é que o grupo possa se tornar cada vez mais independente, autônomo e criativo. Desta forma estimula cada vez mais a autoestima dos alunos. Ter uma autoestima saudável é fundamental para que a pessoa possa tentar aprender e ensinar com cada vez mais entusiasmo. A autoestima é formada pela imagem que cada pessoa tem de si mesmo, somada ao autoconceito desenvolvido a partir de incentivos e informações que recebe de seu meio social. O papel do professor é fundamental para que os alunos construam uma autoestima positiva, ou seja, a maneira como eles vêem a sim mesma. Podemos e devemos como professores, estimular o crescimento da autoestima dos alunos em todo momento, essa é uma das funções do educador, pois o sucesso dos alunos depende e está intimamente ligado a uma autoestima saudável.

Dentro desta perspectiva, podemos citar que são inúmeros os benefícios da inclusão dos alunos com deficiência nas escolas regulares e principalmente nas aulas de educação física, pois quando se participa junto com outras pessoas acontece o aumento da autoestima, melhoria da competência física e social e também um aumento na variedade de modelos sócias propiciados pela diversidade dos participantes. Os benefícios da inclusão de alunos com necessidades educativas especiais na escola regular são evidentes, apesar das dificuldades, e o aprendizado é mútuo, tanto alunos com deficiência ganham, quanto os alunos da rede regular de ensino.
A escola deve ser estruturada visando à formação crítico¬-reflexiva e ativa do aluno na construção da sua identidade, da sua cidadania, por ser um dos primeiros espaços de convivência social, onde ele passa uma considerável parte de sua vida e toma conhecimento de seus primeiros aprendizados.

Em face disso, a acessibilidade – direito e condição de acesso aos lugares, às pessoas e às atividades humanas, de todos os cidadãos – deve ser promovida pelas instâncias e políticas públicas a fim de propiciar a inclusão de todas as pessoas, deficientes ou não. A criação das condições reais de acesso à escola é fundamental para que se possa conceber um ambiente inclusivo.

Marlon Messias Satana Cruz – Universidade do Estado da Bahia – DEDC Campus XII. Email: [email protected]

Acessar publicação original

Undoing gender – BUTLER (RF)

BUTLER, Judith. Undoing gender. New York; London: Routledge, 2004. 273p. Resenha de: DORNELLES, Priscila Gomes. Revista FACED, Salvador, n.19, p.131-132, jan./jun. 2011.

Judiht Butler é estadunidense, filósofa e professora da Universidade da Califórnia/EUA, localizada em Berkeley. A autora apresenta a problematização dos movimentos teórico-políticos do feminismo como um dos focos principais das suas produções.

Para isso, assume uma posição pós-estruturalista e ligada à teoria queer para conceituar o sujeito como produto normativo generificado.

Após algumas publicações tratando de circunscrever o gênero como uma norma cultural que governa a materialização dos corpos, tais como Gender trouble: feminism and the subversion of identity (1990) e Bodies That Matter: On the Discursive Limits of “Sex” (1993), em Undoing gender, Judith Butler reúne ensaios reelaborados e versões alargadas de produções já apresentadas publicamente, as quais, agora, estão compiladas para problematizar o plano normativo do gênero a partir, segundo a autora, das experiências de tornar-se desfeito. Nesta obra, o movimento analítico sela o sujeito como produto normativo e volta-se para tratar da produção do gênero de forma articulada e implicada com a problematização da vida e das noções de humano.

Capitaneado pelas discussões de gênero e sexualidade, Undoing gender propõe certa “rasura” aos movimentos de feministas centrados na promoção do debate de gênero restrito às questões/ demandas sociais de mulheres, inclusive reforçando o dimorfismo sexual a partir de concepções que operam essencializando o que é um corpo feminino. Os ensaios deste livro estão engajados com Novas Políticas de Gênero, as quais, segundo Butler, configurariam “um caldo” epistemológico e político de discussões em torno de transgêneros, transexuais e intersex de forma (des)articulada com as teorias feministas e queer. Nesse sentido, a autora dedica os capítulos Gender regulations, doing justice to someone: sex reassignment and allegories of transsexuality e undiagnosing gender para descrever, no âmbito do discurso médico, o processo vivido por sujeitos transexuais para a realização das cirurgias de resignação de sexo, bem como as justificativas produzidas, também no âmbito científico, para as cirurgias de “adequação” de sujeitos intersex.

Butler aponta que esse universo de “(re)construção” dos corpos através das tecnologias, bem como as formas de violências e violações aos sujeitos avessos aos padrões normativos do gênero são trazidos para destacar como as normas de gênero funcionam para fazer/desfazer os sujeitos, inclusive questionando a noção de autonomia. Importa para a autora argumentar e articular, a partir de bases hegelianas, a relação entre as normas de reconhecimento e a produção diferencial do humano ao “destrinchar” analiticamente as situações apresentadas no decorrer do livro.

Além dessa base argumentativa, nos diferentes capítulos, a autora posiciona as possibilidades de movimentação do sujeito em relação à constituição normativa que o precede e o externa. Para isso, o conceito de agência circula como um lugar, distribuído de forma diferencial entre os gêneros, de fazer-se a partir da crítica – vale ressaltar que este termo é tratado ao largo de concepções de sujeito crítico possíveis, apenas, através da consciência dos jogos de poder e, consequente, construção de formas de emancipação.

Nesta obra e em outras produções, a crítica refere-se ao questionamento dos processos e dos termos que restringem a vida, com isso, ampliando o reconhecimento das formas de humano.

Ao fim e ao cabo, isto significa que o exercício individual da agência está atrelado à crítica/transformação social.

Ademais, interessa mencionar que a autora trata do conceito de humano como algo contingente. Nesse sentido, o seu questionamento é proposto considerando as bases normativas generificadas, racializadas e sexualizadas que constituem graus diferenciados de humanidade. Judith Butler provoca-nos a pensar que o que está em jogo no questionamento das normas é a definição parcial/futura do humano. Para isso, falar do lugar do irreconhecível torna-se uma possibilidade de tensionar os caminhos normativos ao alargamento.

Priscila Gomes Dornelles – E-mail:[email protected]

Acessar publicação original

 

Feios – WESTERFELD (RF)

WESTERFELD, Scott. Feios. Tradução de Rodrigo Chia. Rio de Janeiro: Galera Record, 2010. Resenha de COUTO, Edvaldo Souza; GOELLNER, Silvana Vilodre. Fabricar a beleza corporal. Revista FACED, Salvador, n.19, p.125-130, jan./jun. 2011.

Não é uma coisa boa encher a sociedade de pessoas bonitas?

Yang Yuan

Numa época em que os corpos são pavoneados e festejados em todos os lugares e cada um é estimulado, de diferentes maneiras, a promover mudanças físicas e mentais, em performances cada vez mais extraordinárias, praticamente todos desejam beleza e perfeição. De preferência em acordo com as celebridades midiáticas do momento, que não cessam de promover e administrar minimamente os modos como tecnicamente constroem e cultuam a si mesmas.

As técnicas, terapias e recursos para as metamorfoses corporais se multiplicam e se popularizam. Nas revistas, TV, sites, filmes e publicidades em geral é repetido insistentemente que um mundo de beleza e perfeição está ao alcance de todos. Sob essa lógica, só é feio quem quer, não se cuida, não ama nem acaricia a si mesmo com os cosméticos e medicamentos que prometem milagres na aparência dos sujeitos, no desempenho muscular e cognitivo.

Nesse contexto, as fronteiras entre o cotidiano de milhares de pessoas, cada vez mais seduzidas pelas possibilidades do melhoramento corporal, e a ficção literária e cinematográfica, que promove os corpos turbinados, são cada vez mais tênues. Um livre e veloz trânsito entre esses universos complementares faz parte da aventura prazerosa contida no ato de pavonear-se.

Em Feios, o livro de Scott Westerfeld, a perfeição corporal não depende da vontade ou iniciativa pessoal, é lei, onde a beleza é mais que uma opção ou sorte de privilegiados. É algo obrigatório.

Trata-se do primeiro livro da trilogia do autor texano, que mescla aventura e ficção, e se tornou best-seller do New York Times e em vários países onde foi traduzido. Aqui no Brasil o livro foi lançado pela Editora Record, no recém-nascido selo Galera, que é voltado para jovens e nasceu do infanto-juvenil Galera Record.

Num futuro não distante a utópica sociedade de Westerfeld apresenta pessoas que são divididas e classificadas como feias ou perfeitas. Todos nascem feios. Até mesmo os que podem ser considerados bonitinhos são feios. Nascer feios não significa que são marcados por alguma aberração ou defeito físico e mental. Significa que são pessoas normais. Mas num mundo onde as tecnologias constroem incessantemente a perfeição, ser normal significa mesmo ser feio. Assim, os normais, isto é, os feios, nascem em Vila Feia e ficam presos em alojamentos até completarem 16 anos.

Quando os adolescentes feios completam 16 anos ganham de presente do governo a operação plástica completa, que os transformam em belos e perfeitos. Presente é modo de dizer, pois com essa idade todos são submetidos aos processos de transformação cirúrgica. A operação plástica completa inclui diversos procedimentos cirúrgicos e medicamentos de última geração para corrigir as feições consideradas indesejadas. A pele é trocada por outra e adeus espinhas e manchas. Os músculos são modelados e a gordura sugada para sempre. Os ossos são substituídos por uma liga artificial, mais leve e resistente. Os olhos, cortados a laser para se obter uma visão perfeita, recebem implantes reflexivos sob a íris, tornam-se grandes; os lábios cheios e volumosos. Os ossos são amassados, esticados ou recheados até atingir o formato certo.

Os dentes são trocados por cerâmica resistente como a asa de um avião e tão brancos como porcelana. Desse modo, as pessoas feias são transformadas em perfeitas, tornam-se borbulhantes e passam a viver felizes em Nova Perfeição.

Nova Perfeição, a morada dos belos tecnicamente construídos, fica defronte a Vila Freia, do outro lado do rio. É o lugar onde os perfeitos vivem, bebem, pulam de paraquedas, voam a bordo de pranchas magnéticas e se divertem o tempo todo, em intermináveis festas, orgias e bebedeiras. Moram em casas lindas e ultraconfortáveis e se dedicam ao divertimento em tempo integral. Usam roupas maravilhosas, sempre da última moda, são populares, queridos e bajulados, afinal são belos e têm tudo o que desejam. Namoram as pessoas mais lindas e incríveis. Além de belos são ricos. Não precisam se preocupar com trabalho e problemas pequenos e limitados como subsistência, educação e segurança, coisas típicas dos imperfeitos, dos feios. A cidade oferece bastante liberdade, deixa que os jovens aprontem, desenvolvam sua criatividade e independência.

Nova Perfeição é a Cocanha dos nossos tempos ultramodernos.

A Cocanha é uma utopia medieval. Numa época em que a fome ameaçava sempre as pessoas e o trabalho duro enfraquecia multidões, o País de Cocanha é o lugar do sonho, da perfeição, da abundância, da prosperidade e do prazer, da liberdade e do gozo eternos. A Cocacha é a terra abençoada onde corre leite e mel, rios de vinho estão por toda parte, as frutas caem maduras dos pés, os peixes saem fritos dos rios e mares. Queijos e pães são obtidos sem nenhuma dificuldade ou esforço. A Cocanha é um país tão rico que bolsas cheias de moedas ficam jogadas pelo chão. As pessoas não são vis, são virtuosas e corteses. É o lugar das festas e das orgias.

São quatro páscoas por ano, quatro festas de São João, quatro natais, quatro carnavais. Já a quaresma, só tem uma a cada quatro anos. Ninguém compra ou vende, não existe trabalho, cansaço, aborrecimentos, dores de qualquer espécie. As pessoas são sempre belas, jovens e saudáveis. Vivem para satisfazer o seu prazer, como por lazer. De certo modo, a Cocanha, esse paraíso de delícias e perfeição, remete ao mito judaico do Éden e também ao mito do Eldorado, tão difundido na época da conquista das Américas.

Na cibercultura, na era da sociedade em rede, das pessoas conectadas em tempo real, o mito da Cocanha medieval é atualizado em Nova Perfeição, o lugar dos corpos minimamente construídos e potencializados em acordo com os mais rigorosos critérios de beleza, da memória modificada para apagar vestígios de tristezas e dores da dura vida de pessoas insignificantes, isto é, de feios.

Nova Perfeição existe por causa da medicina avançada, de medicamentos de última geração capazes de alterar corpos, memórias e inteligências, para que todos desfrutem de uma vida borbulhante e incessantemente feliz.

Tally Youngblood é a heroína dessa saga dos corpos perfeitos, que encarna as aventuras, que permitem uma pessoa cruzar as fronteiras entre os feios e bonitos, promover as melhorias técnicas na aparência e na interioridade de si. Em Feios, Tally ainda é uma garota que espera ansiosamente completar os 16 anos para ser finalmente transformada em perfeita. Enquanto sofre a longa espera, tudo que deseja é abandonar a vida sem graça e seu corpo estranho de feia. Costuma passar os dias pensando em todos os visuais possíveis para assumir quando finalmente se tornar perfeita. Nessa enfadonha espera, enfrenta muitas madrugadas no seu alojamento a contemplar o outro lado do rio, a Vila Perfeição, onde alguns amigos que já cruzaram a fronteira desfrutam de uma vida incrível, cheia de aventuras e prazeres. E o mais importante, é que deixaram para trás seus corpos feios e podem viver felizes com suas novas formas físicas e mentais sempre belas e sedutoras.
De acordo com Tally, “duas semanas de queimaduras horríveis serão compensadas com uma vida inteira de aparência maravilhosa” (p. 100).

Enquanto espera o tempo estipulado por lei para tornar-se perfeita, Tally conhece Shay, uma feia que não está nem um pouco ansiosa para completar 16 anos e viver a sua metamorfose cirúrgica.

O que Shay deseja é fugir de Vila Feia e do destino de ser bela em Vila Perfeição. Ela considera a beleza construída horrível. Trata- -se de uma adolescente rebelde que não aceita o destino traçado pelas autoridades e quer viver do seu modo a sua própria aventura, sendo feia para sempre, pois é capaz de qualquer coisa para “fugir à tirania da beleza” (p. 133). Tem um plano para fugir dos limites da cidade e se juntar à Fumaça, um grupo fora da lei que sobrevive nas ruínas de uma vila perdida na floresta e sobrevive retirando o sustento da natureza.

O conflito entre natureza e técnica se coloca aqui de modo curioso. Tally não consegue entender como alguém pode desejar ser feia para sempre, querer voltar para a natureza, plantar, caçar, queimar árvores para se aquecer, matar animais para se alimentar, beber água dos córregos sem passá-la pelo purificador, enfrentar doenças, viver pouco. Como alguém pode desejar abrir mão do conforto tecnológico e da vida fácil nas cidades e preferir o campo sempre hostil? Com a fuga da amiga Tally, é chantageada pelos Especiais, uma espécie de polícia altamente equipada que tudo vê e controla: deve se unir a eles para derrotar de vez os enfumaçados ou vai ser condenada a ficar feia para sempre. A garota vive muitos dilemas. Sente-se curiosa pelo estilo de vida na Fumaça, quer conhecer pessoas que amadurecem naturalmente depois dos 16 anos, gente de fisionomia decadente, que preserva uma verdade enrugada, venosa, esmaecida, grosseira, terrível, mas ao mesmo tempo almeja sua beleza perfeita. Das escolhas que faz dependem as muitas aventuras entre os feios e os bonitos, entre o universo da natureza e o das técnicas avançadas.

A viagem para a distante fumaça é uma verdadeira odisseia cheia de enigmas que precisam ser desvendados. O deslocamento é feito sobre prancha voadora que segue veloz sobre o rio e a floresta, com o uso de jaquetas inteligentes que regulam a temperatura do corpo e ajuda na tomada de decisões, pois indica caminhos; com a facilidade dos alimentos sintéticos e pingentes rastreadores.

Para Tally, apesar do fascínio, não é fácil se adaptar e viver entre os enfumaçados. “Ela nunca tinha visto tantos rostos tão diferentes. Bocas, olhos e narizes de todos os formatos possíveis, combinados de um jeito absurdo, em pessoas de todas as idades.

E os corpos? Alguns eram monstruosamente gordos ou estranhamente musculosos ou perturbadoramente magros. E quase todos apresentavam proporções desequilibradas e feias. No entanto, em vez de demonstrarem vergonha por causa de suas deformidades, as pessoas davam risadas, trocavam beijos…” (p. 193-194).
Aos poucos, a protagonista percebe diferenças abismais entre a Vila Perfeição sonhada e o cotidiano da Fumaça. Na cidade as coisas são sempre descartáveis e substituíveis. Ali no mato, os objetos e as pessoas ficam velhos e carregam suas histórias em amassados, arranhões, rasgos e rugas. Na cidade vive uma massa de corpos modificados, perfeitamente sorridentes e iguais, voláteis, programados e fáceis de controlar, pois têm os cérebros e o sistema nervoso recondicionados pelas cirurgias e medicamentos. Na floresta tem-se a diversidade corporal, as controvérsias, discordâncias, os diferentes modos de ser e viver. Na cidade as pessoas perfeitas são rastreadas, monitoradas e orientadas cada minuto do dia, seus pensamentos são programados, seus sentimentos são manipulados.

Na floresta enfrentam livremente as vicissitudes da vida, podem tomar suas próprias decisões, sofrer e corrigir as escolhas erradas, encher-se de júbilo com as decisões acertadas.

Tally também percebe aos poucos que existe um certo romantismo em relação à natureza, à vida na floresta. Talvez essa discussão de fundo sustente muito do fascínio de milhares de pessoas pelo livro de Westerfeld. A sociedade tecnológica não constrói apenas as cidades, mas igualmente a natureza. De certo modo a natureza é uma mentira. Não há natureza, o que contemplamos sempre é o artifício. A natureza é uma fabricação da cultura, da cultura tecnológica, que naturaliza em nós seus muitos e sedutores artifícios. É natural do homem produzir artifícios, refazer o mundo, modificar e recriar a si mesmo. Por mais que amasem a natureza os enfumaçados nasceram em cidades, eram todos produto da civilização tecnológica. Talvez por isso, uma vez rastreada, Tally leva a polícia especial para destruir a Fumaça. E volta para a cidade, sem dramas, para, finalmente, submeter-se à cirurgia e ser perfeita, para sempre.

O livro Feios, de Westerfeld, é um importante e divertido relato literário de corpos inscritos em acontecimentos tecnológicos.

Rompe com o olhar naturalista sobre o qual muitas vezes o corpo é observado, explicado, educado e enfatiza sua condição cultural, suscetível a inúmeras intervenções de acordo com o desenvolvimento tecnológico e científico de cada época.

No livro, o aperfeiçoamento da natureza e dos corpos é sempre criticado baseado numa convicção estranha de que as tecnologias padronizam os corpos e os pensamentos. Ressoa aqui uma certa visão negativada das transformações tecnológicas sobre o mundo e sobre nós mesmos. Talvez essa convicção estranha do autor sirva apenas para alimentar as tramas da série e nos volumes seguintes seja possível observar que determinadas tecnologias médicas e de comunicação, que na atualidade promovem uma suposta padronização, num futuro próximo sejas empregadas para produzir intensas diferenças, renovados modos de ser e viver. Talvez, nesse contexto, natureza e técnica, corpos feios e bonitos, deixem de ser realidades opostas e conflituosas. Talvez o futuro da biotecnologia seja menos sombrio e promova o equilíbrio entre essas realidades, integradas e dinâmicas, em que os sujeitos alegremente reelaborem a si mesmos em encantadas e criativas aventuras existenciais.

Edvaldo Souza Couto – Professor Associado na Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia – UFBA. E-mail: [email protected]

Silvana Vilodre Goellner – Professora Associada na Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

A gramática do tempo: para uma nova cultura política – SANTOS (RF)

SANTOS, Boaventura de Sousa. Uma nova teoria política crítica: reinventar o estado, a democracia e os direitos humanos. In: ______. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008. Resenha de: TENÓRIO, Camila Muritiba. Da inevitabilidade da crise da modernidade à criação de um novo contrato social. Revista FACED, Salvador, n.18, p.103-110, jul./dez. 2010.

Boaventura de Sousa Santos é doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale e professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, na qual exerce também a função de diretor do Centro de Estudos Sociais e do Centro de Documentação 25 de Abril. O autor nasceu em Coimbra, em 1940, e possui hoje uma extensa bibliografia, composta de ensaios, artigos, livros e até mesmo poemas, que constituem embasamento para profissionais de diversas áreas. São algumas de suas obras mais importantes os livros Introdução a uma ciência pós-moderna, publicado em 1989; Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade, datado de 1994; e A gramática do tempo: para uma nova cultura política, de 2006, o qual constitui objeto deste estudo.

Neste volume da coleção Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a politica na transição para digmática, Santos discorre sobre o Estado moderno ocidental e a crise que sofre este contrato social que, ao mesmo tempo em que busca gerir as desigualdades e exclusões, é responsável por sua expansão. A obra A gramática do tempo: para uma nova cultura política observa o colapso da modernidade para o qual a única solução seria uma transformação social capaz de inventar uma nova democracia e, consequentemente, um novo modelo de Estado.

Na terceira parte da supracitada obra, o autor se ocupa de uma das contradições que caracterizam a sociedade moderna, isto é, a antinomia existente entre os princípios de emancipação – que correspondem à igualdade e à inclusão social – e os princípios de regulação – que se referem à desigualdade e à exclusão.
O sociólogo aborda as particularidades que envolvem os termos desigualdade e exclusão, cujo significado aparece de forma distinta conforme o momento histórico e a sociedade em que se desenvolve. Tanto a desigualdade como a exclusão são sistemas de pertença hierarquizada, mas enquanto na primeira a pertença se dá pela subordinação, na segunda ocorre pela não-pertença.

A desigualdade é um fenômeno socioeconômico assentado na integração social, de forma que os desiguais compreendem parte indispensável da sociedade, contudo ocupantes do setor mais baixo. Seu grande teorizador é Karl Marx, que enfatizou a desigualdade entre capital e trabalho. Já a exclusão tem sua base na segregação, configurando-se como fenômeno sociocultural profundamente desenvolvido por Michel Foucault. A estes sistemas de hierarquização somam-se o racismo e o sexismo, figuras híbridas que combinam desigualdade e exclusão.

A gestão controlada das desigualdades e da exclusão tem sua base ideológica no universalismo, seja pela homogeneização e consequente descaracterização das diferenças – universalismo antidi-ferencialista –, seja pela absolutização das diferenças, tornando-as incomparáveis – universalismo diferencialista.

Conforme Boaventura de Sousa Santos, esse tipo de gestão passou a ser, devido às pressões sociais, uma preocupação do Estado, cuja proposta, longe de buscar eliminar esses elementos, corresponde à manutenção da desigualdade dentro de níveis toleráveis, por meio de políticas sociais, e à relativização da exclusão, a partir da distinção entre as formas aceitáveis e aquelas não aceitáveis socialmente. O Estado Moderno vive, então, um modelo de regulação social que produz a desigualdade e a exclusão, mas procura mantê-las dentro de limites funcionais.

A aplicação desse formato de gestão ocorreu por intermédio da social-democracia e do Estado-Providência, isto é, pela própria negociação entre capital e trabalho, com o Estado promovendo o pleno emprego e uma política fiscal redistributiva.

O autor afirma a necessidade de se rever o modelo moderno de regulação social, já que o pilar “comunidade” parece ter sido olvidado. Há, assim, não dois, mas três pilares básicos: Estado, mercado e comunidade, estando os dois últimos compreendidos no que se intitula sociedade civil. É com base nesse terceiro pilar que se observará a reinvenção do Estado-Providência, de modo que as áreas sociais não regulamentadas pelo Estado não precisariam seguir uma lógica mercadológica, sendo organizadas por meio do elemento comunidade.

A intensificação do processo de globalização econômica e cultural tem acarretado alterações no sistema de desigualdade e exclusão. Economicamente, tem-se a revolução tecnológica que levou a um aumento do desemprego estrutural que, por sua vez, torna precária a integração hierarquizada garantida pelo trabalho, passando este a constituir mais um elemento de exclusão que de desigualdade. Por outro lado, culturalmente, o que se percebe é a eliminação das culturas locais por meio da imposição de uma cultura dominante, um modelo de massa e uma ideologia do consumo.

Se a globalização da economia ocasiona a mutação do sistema de desigualdade em sistema de exclusão, a globalização da cultura opera em sentido inverso, ocorrendo, assim, uma metamorfose no sistema de desigualdade e exclusão. Esta metamorfose, aliada a uma insuficiência de recursos para manter as políticas redistributivas, evidenciam uma crise no Estado Moderno. Diante deste contexto, o autor encontra na articulação entre as políticas de igualdade e de identidade uma orientação para a criação de novas formas democráticas multiculturais e consequente reinvenção do Estado.

O sociólogo pondera sobre o contrato social, o qual se funda na permanente tensão existente entre regulação e emancipação, isto é, entre o interesse público por um Estado capaz efetivamente de gerir a sociedade e o interesse particular por liberdade.

Percebe-se que o contrato social encontra-se embasado em três critérios de inclusão e exclusão: 1- inclui apenas o ser humano, excluindo a natureza; 2- inclui os cidadãos e exclui os não-cidadãos; 3- inclui o espaço público, excluindo a esfera privada. A gestão dessas tensões ocorre por meio dos princípios de interação – o regime geral de valores –, dos indicadores quantitativos, escalas e perspectivas – o sistema comum de medidas – e do espaço de deliberação nacional – o espaço tempo privilegiado.

O objetivo da contratualização é garantir a legitimação do governo, o bem-estar econômico e social, a segurança e a identidade cultural nacional. A persecução destas metas levou à politização do Estado, que vem expandindo a sua capacidade de regulação, e à socialização da economia por meio do reconhecimento da luta de classes, destacando-se neste processo a atuação dos sindicatos. Outra implicação da implementação do contrato social é a nacionalização da identidade cultural nacional, o que tem reforçado os critérios de exclusão e inclusão.

Hodiernamente, contudo, o contrato social está em crise, o que pode ser observado em seus pressupostos. O regime geral de valores não tem resistido à fragmentação da sociedade, de modo que grupos sociais distintos possuem significados distintos para os mesmos valores. O sistema comum de medidas encontra-se em momento de agitação, afetando a estabilidade das escalas.

O espaço-tempo nacional desaparece para dar lugar ao global e ao local. Essas mudanças evidenciam um aumento da exclusão e das desigualdades, afetando a estrutura moderna de Estado.

Boaventura de Sousa Santos afirma que o maior risco para a sociedade é a insurreição de um regime fascista, que pode assumir quatro diferentes formas: 1- apartheid social, isto é, uma divisão dentro das cidades entre zonas selvagens e zonas civilizadas; 2- fascismo paraestatal, em que atores sociais se sobrepõem ao Estado nas tarefas de coerção e regulação; 3- fascismo da insegurança, no qual há disseminação do medo e da ilusão de que apenas grupos privados podem propiciar a segurança que o Estado não é capaz de oferecer; 4- fascismo financeiro, em que os mercados financeiros passam a influenciar e regular outros setores da sociedade.
A necessidade de se evitar a iminente crise que o contrato social exige, consoante o sociólogo, que sejam obedecidos três princípios: pensamento alternativo de alternativas, ação-com-clinamen (ações rebeldes) e espaços-tempo de deliberação democrática.

Enfim, o autor discute a construção de um novo contrato social, com a reinvenção solidária e participativa do Estado. A transformação social possui dois paradigmas: a revolução e o reformismo. Enquanto este traz o Estado como agente capaz de solucionar os problemas da sociedade civil, aquele trata da necessidade de re¬forma no próprio Estado.

O paradigma do reformismo prevaleceu no sistema mundial com a criação do Estado-Providência, cuja atuação se desenrola seguindo estratégias de acumulação de capital, hegemonia e con¬fiança. Foi a partir da desarticulação das duas últimas estratégias e decorrente ascensão da estratégia de acumulação que, em 1980, começou a crise deste paradigma.

Após o reformismo, inaugurou-se a fase do Estado mínimo, em que o Estado era considerado irreformável e, portanto, deveria interferir o mínimo possível na sociedade civil, confirmando a ideologia neoliberalista. Somente com a superação desta fase foi possível assimilar a questão da reforma, disseminando o paradig¬ma da revolução. É neste ponto que Santos começa a pensar uma reinvenção que não observe a concepção dominante de Estado¬-empresário – que prega a privatização e a adoção dos critérios de produtividade importados da esfera privada na administração pública –, mas, sim, empregando a concepção de Estado-novíssimo¬-movimento-social.

A reinvenção do contrato social, assim, passa pela articulação do terceiro setor, o qual deve sofrer uma reforma simultânea com o Estado, em que sejam coordenadas a democracia representativa e a democracia participativa.

Neste contexto, torna-se essencial a redescoberta democrática do trabalho, com redução da jornada laboral, estabelecimento de padrões salariais mínimos, reforço na qualificação profissional e, finalmente, reinvenção do movimento sindical com participação direta dos trabalhadores.

A democratização do trabalho, a participação popular nas decisões de Estado, bem como a reconstrução dos direitos humanos e o reconhecimento da diferença são pontos chaves de discussão nesta obra, constituindo-se a base para a criação de um novo pacto social.

Diante dos argumentos expostos por Boaventura de Sousa San¬tos, percebe-se que o autor, partindo da noção de contrato social, trata da tensão existente entre regulação social e emancipação social. Esta parece ser uma questão recorrente sempre que se discute a contratualização, com a irreversível transição do homem do estado de natureza para o estado civilizado.

Jean Jacques Rousseau (1712 – 1778) já discorria sobre a dificuldade de se manter a liberdade individual, direito natural do homem, apesar da necessária sujeição à vontade do Estado.

O problema, então, seria “trouver une forme d’association qui défende et protège de toute da force commune la personne et les biens de chaque associé, et par laquelle chacun s’unissant à tous n’obéisse pourtant qu’a lui-même et reste aussi libre qu’auparavant1”. (ROUSSEAU, 1978, p.178) A solução seria a contratação de um pacto não orientado pela violência e coerção, mas sim pela vontade geral, de forma que cada constituísse parte indissociável do Estado, de forma que a obediência a este não fosse mais que a obediência à própria vontade.

O pacto social rousseauniano funda-se, destarte, no conceito de vontade geral, isto é, na noção de comunidade. Santos recupera a ideia de comunidade do contratualista, identificando-a como um novo pilar que representa, junto ao Estado e ao mercado, a tríade que sustenta o contrato social. A ação da comunidade desenvolveria uma democracia participativa e retiraria do mercado a regulação das áreas sociais privatizadas.

A comunidade em Santos representa o terceiro setor privado e não fundamentado na lógica mercadológica. A inclusão deste terceiro pilar na modernidade levaria à criação de um novo modelo de regulação, no qual, por meio da luta social, seria alcançado um equilíbrio entre regulação e emancipação, tal como apresentado no séc. XVIII por Rousseau.
Conquanto Boaventura de Sousa Santos desenvolva seus argumentos com base no conceito de comunidade fundado por Rousseau, suas ideias são bastante atuais e inovadoras, já que evidenciam a crise do Estado moderno e sugerem uma reforma que validaria um modelo contemporâneo de regulação social.

Neste sentido, observam-se ainda as discussões desenvolvidas por autores como Wampler e Avritzer (2004), que também buscam, por meio da participação e deliberação pública, uma mudança social substancial que possa impulsionar a democracia. Afirma-se a importância da sociedade civil no processo de decisões, especialmente do envolvimento da comunidade.

A diferença basilar na obra de Santos, quando comparada à de Wampler e Avritzer (2004) reside no fato de que, enquanto estes mostram-se confiantes no modelo de participação adotado hoje no Brasil, aquele não percebe ainda alterações significativas no Estado atual, que ainda vive a crise em seu modelo de regulação. As perspectivas de Santos, entretanto, são positivas – embora um tanto utópicas, como designadas pelo próprio autor – quanto à possibilidade real de reforma social e política do Estado.

A importância do consenso para garantir a legitimidade de um Estado é ressaltada por Carlos Nelson Coutinho (1995), trazendo novamente a ideia aristotélica de interesse comum em oposição à visão liberal de John Locke de que o bom governo é aquele que assegura os interesses e direitos individuais. As exclusões e desigual¬ades constantemente evidenciadas na modernidade por Santos representam a marca do séc. XIX, na vigência do Estado Liberal.

Contrariando as afirmações de Santos, Coutinho (1995) não acredita na reforma do Estado sob a égide do capitalismo, já que este modo de produção não se coaduna com a plena cidadania política e social, que apontaria para a instauração do socialismo.

Os dois autores, todavia, reconhecem que se está diante de uma crise que exige um reordenamento da sociedade, mas diferem quanto ao meio que deve ser empregado para solucioná-la.

Santos não adota uma abordagem institucionalista, pois afirma ser imperativa a atuação da comunidade na regulação do Estado, contudo, defende posicionamentos que remetem ao institucionalismo de Marta Arretche (2007) quando afirma que a criação do terceiro setor, ao qual se atribui a tarefa de democratizar o Estado, depende da promoção de políticas estatais. Arretche (2007) destaca a importância de se estudar as instituições políticas, já que elas têm o condão de influenciar no comportamento dos atores políticos, e, como resultado, podem garantir a representatividade, a estabilidade e a democracia.

É o Estado que deve tomar a iniciativa, por meio de suas políticas, para desenvolver um terceiro setor forte. No entanto, é a partir da colaboração entre comunidade e Estado que se garante a natureza democrática dessas políticas públicas. A resposta, en¬tão, não estaria numa visão institucionalista, nem numa teoria da sociedade civil, mas naquilo que os autores Wampler e Avritzer (2004) denominam de públicos participativos, isto é, uma esfera de deliberação que surge da conexão entre Estado e sociedade.

Poder e comunidade apresentam-se, segundo Francis Wolff (2003), como as duas instâncias da política, remetendo mais uma vez à tensão entre regulação e emancipação que está no centro das discussões em Santos. Ao mesmo tempo em que o homem busca a vida em sociedade para garantir a igualdade, a liberdade e a paz, ele precisa de um poder central – o Estado – para regular e agir coercitivamente sobre esta mesma sociedade. Mais uma vez depara-se com a crise do contrato social e a emergência do contrato rousseauniano como resposta a essas tensões.

Boaventura de Sousa Santos revela que a solução para a crise da modernidade estaria, então, na criação de um novo pacto social que pudesse equilibrar as tensões entre regulação e emancipação, o que somente pode ser logrado a partir do fortalecimento do terceiro setor e democratização do Estado, unindo sociedade civil e sociedade política, comunidade e Estado.

Notas

1 Tradução da autora: encontrar uma forma de associação que defende e protege de todas as forças comuns a personalidade e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça, entretanto, a ninguém outro que a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes.

Referências

ARRETCHE, Marta. A agenda institucional. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 22, n. 64, jun. 2007.

COUTINHO, Carlos Nelson. Representação de interesses, formulação de políticas e hegemonia. In : TEIXEIRA, Sonia (Org.). Reforma sanitária: em busca de uma teoria. São Paulo: Cortez, 1995. p. 47-60.

ROUSSEAU, Jean Jacques. Du contrat social. Paris: Librairie Générale Française, 1978.

WAMPLER, Brian; AVRITZER, Leonardo. Públicos participativos: sociedade civil e novas instituições no Brasil democrático. In: COELHO, Vera; NOBRE, Marcos (Org.). Participação de deliberação: teoria democrática e experiências institucionais no Brasil contemporâneo. São Paulo: Editora 34, 2004. p. 210-238.
WOLFF, Francis. A invenção da política. In: NOVAES, Adauto (Org.). A crise do Estado-Nação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 23-54.

Camila Muritiba Tenório – Analista judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região. Email:[email protected]

Acessa publicação original

O programa da revolução – ULIANOV (RF)

ULIANOV, Vladimir I. Teses de Abril, 1917. In: MARX, Karl et al. O programa da revolução. Brasília, DF: Nova Palavra, 2008. p. 73-87. Resenha de: TAFFAREL, Celi; RODRIGUES, Raquel. Revista FACED, Salvador, n.17, p.129-132, jan./jun. 2010.

Biografia do autor e contexto da obra

Vladimir I. Ulyanov foi um dos grandes revolucionários da história, líder da Revolução Russa de 1917. Nasceu em 22 de abril de 1870 na cidade russa de Simbirsk (atual Ulyanovsk) e morreu em 21 de janeiro de 1924 em Gorki (próximo da cidade de Moscou) devido à doença. Conhecido por Lênin foi, o terceiro filho entre cinco irmãos. Em 1887, seu irmão mais velho, Alexandre Ulianov, foi executado por ter sido acusado de participar do atentado contra o czar Alexandre III, acontecimento que o impressionou profundamente. Estudou direito e em 1895 foi preso e enviado a Sibéria por três anos, acusado de divulgar ideias marxistas entre trabalhadores locais. A resenha que ora apresentamos refere-se ao ano de 1917 quando Lênin era dirigente da Revolução de Outubro. Eleito presidente do Conselho dos Comissários do Povo, levou a fundo a batalha contra todos os adversários da Revolução. Em 1922, criou, em conjunto com os sovietes, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Lênin resistiu com força ao movimento contrarrevolucionário (1918-21). Durante seu governo, nacionalizou indústrias e bancos, controlou as terras agrícolas e constituiu um forte controle político e econômico. As Teses de Abril, texto que ora resenhamos, apresenta a discussão acerca do informe apresentado por Lênin na reunião dos bolcheviques, em 4 de abril de 1917.

Síntese das principais ideias

As Teses de Abril são ao todo dez, e representam uma plataforma de ação para orientar os bolcheviques no processo revolucionário, e foram apresentadas por Lênin aos seus camaradas. Das Teses de Abril constam:

Tese I – Atitude frente à guerra – Lênin critica a enganação das massas pela burguesia naquilo que chamavam de defensismo, defesa da pátria e manifestar-se em favor de nenhuma concessão, por mínima que seja, ao “defensismo revolucionário” deveria ser tolerada em nossa atitude em relação à guerra. A única guerra que se justifica é a guerra revolucionária, desde que as condições sejam atendidas:

a)Passagem do poder ao proletariado e aos setores mais pobres do campesinato que são próximos dele; b) renuncia, em atos e não em palavras, a qualquer anexação; c) ruptura total nos fatos com todos os interesses do capital.

Enfatizava que as massas deveriam ser esclarecidas, principalmente na relação capital e guerra imperialista, sendo impossível terminar a guerra com uma paz verdadeiramente democrática, que não seja imposta pela violência, sem derrubar o capital. A classe operaria é a única que tem condições de dirigir a guerra revolucionária e o defensismo revolucionário é uma traição ao socialismo.

II – A Transição. A transição é considerada a primeira parte da revolução que deu poder à burguesia, pelo fato do proletariado não ter nível suficiente de consciência e de organização, e a etapa seguinte seria o proletariado e o campesinato assumirem o poder. Lênin constatou que o proletariado é insuficientemente consciente e organizado, mesmo tendo a força do trabalho em suas mãos; ao contrário da burguesia, que é organizada e está preparada, além de possuir uma clara consciência de classe.

III – Nenhum apoio ao governo provisório. Exigir que o governo deixe de ser imperialista, que atenda as necessidades das massas.

IV – O verdadeiro governo é o soviete de deputados operários. As massas não podem ser ludibriadas, precisamos explicar pacientemente, persistentemente e de forma sistemática. A possibilidade de um governo revolucionário será a partir dos sovietes de deputados operários. Queremos que as massas se libertem de seus erros pela experiência.

V – República dos sovietes de deputados operários, assalariados agrícolas e camponeses. Fim da polícia, do exército e da burocracia.
Com a experiência da Comuna de Paris, os salários dos funcionários públicos, eleitos e destituíveis a qualquer momento, não deverão exceder o salário médio de um bom operário. O fato de não terem extinguido a polícia, o exército e a burocracia foram elementos fundamentais para a revolução não avançar. A arte de governar não se aprende em nenhum livro. Tente, erre, aprenda a governar. Governar não é nada fácil, mas é necessário e será com a experiência que podemos avançar.

VI – Programa agrário. Os sovietes dos representantes assalariados agrícolas devem ser responsáveis pelo programa, devido o seu lugar na produção e não o campesinato. Confiscar as terras dos latifundiários e, consequentemente, nacionalizar todas as terras do país e colocá-las à disposição dos sovietes locais de deputados dos trabalhadores agrícolas e dos camponeses. Trabalhar/explorar a terra com base na coletividade.

VII – Fusão imediata dos bancos do país em um banco nacional único. Administrado pelos sovietes de deputados operários.

VIII – Controle da produção social e repartição dos produtos aos sovietes de deputados operários. Introduzir o socialismo seria uma tarefa posterior

IX – Tarefas do partido:

a) Convocar imediatamente o Congresso do Partido;

b) Modificar o Programa, principalmente nos itens sobre: 1) o imperialismo e a guerra imperialista, 2) a posição perante o Estado e a nossa reivindicação de em Estado-Comuna; 3) Corrigir o Programa Mínino, já superado;

c) Mudar o nome do partido (para Partido Comunista).

X – Renovar a Internacional. Lênin reconhece que o programa do partido está defasado e que precisa ser alterado e defende substituir o nome do partido para Partido Comunista. As massas devem compreender que o socialismo cindiu-se no mundo todo.

Análise

As Teses de Abril, escritas por Lênin em 1917, apontavam a necessidade da reforma agrária; reconheciam que a guerra, que não era revolucionária, beneficiava exclusivamente a burguesia e, que não podemos iludir as massas, temos a responsabilidade de nos dirigir de forma clara e sistemática para que nos façamos entender.

As Teses de Abril foram assinadas, exclusivamente, por Lênin que defendia a necessidade de não retroceder e não abrir mão daquilo que foi conquistado pela luta dos operários assalariados e do campesinato. Continuam atuais em seus conteúdos, o que lhes confere aderência ao real, como ponto de apoio na luta histórica da classe trabalhadora, para organizar e compreender o seu lugar de classe em si e classe para si.

Celi Taffarel – E-mail: [email protected]

Raquel Rodrigues – E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

Um rigor outro: sobre a questão da qualidade na pesquisa qualitativa – MACEDO et al. (RF)

MACEDO, Roberto Sidnei; GALEFFI, Dante; PIMENTEL, Álamo. Um rigor outro: sobre a questão da qualidade na pesquisa qualitativa. Salvador: EDUFBA, 2009.Resenha de: BITENCOURT, Laís Andrade; SOUZA Mírian Loiola. Revista FACED, Salvador, n.17, p.133-138, jan./jun. 2010.

Credenciais dos autores

Roberto Sidnei Macedo possui graduação em Psicologia, é Doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Paris Saint-Denis, com Pós-Doutorado em Currículo e Formação na Universidade de Fribourg-Suíça. Pesquisador líder do Grupo de Pesquisa em Currículo e Formação (FORMACCE), do PPGE e do DMMDC FACED/UFBA. Vice-Coordenador do GT de Currículo da ANPED. Em sua trajetória acadêmica foi professor de algumas universidades públicas e particulares. Atualmente, como professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, orienta teses e dissertações, nas áreas de currículo e formação de professores. Dante Galeffi possui graduação em Arquitetura, é Doutor em Educação pela FACED/UFBA. Pesquisador do campo de Filosofia da Educação do PPGE e do DMMDC FACED/UFBA. Atualmente é professor permanente do Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação e do Doutorado Multi-institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento (DMMDC), ambos na UFBA. É o atual coordenador do DMMDC. Lidera o Grupo de Pesquisa Epistemologia do Educar e Práxis Pedagógica, desenvolvendo pesquisas nas áreas de epistemologia da complexidade, transdisciplinaridade e epistemologia do educar transdisciplinar.
Álamo Pimentel possui graduação em Pedagogia, é Doutor em Educação pela Universidade do Rio Grande do Sul. Pesquisador do campo de Antropologia da Educação do PPGE/FACED/UFBA. Pró- Reitor de Assuntos Estudantis da UFBA. Atualmente é professor Adjunto II da Universidade Federal da Bahia e professor colaborador de Programa de Pós-Graduação em Educação FACED/UFBA. Atua, principalmente nas áreas de antropologia educacional, convivência e educação.
Resumo da obra

Nesse trabalho, os autores Macedo, Galeffi e Pimentel discutem acerca do desenvolvimento de pesquisas qualitativas, e para isso, ancoram-se em vivências possíveis ao pesquisador ao longo destas experiências. A obra é dividida em três capítulos, sendo cada um deles escrito por um dos autores. Os textos trazem uma clara preocupação dos escritores em situar o leitor a respeito das escolhas teóricas e epistemológicas que sustentam esta abordagem de pesquisa, ressaltando os elementos que constituem e conceituam o rigor necessário a um trabalho de pesquisa sério e de qualidade.

No primeiro capítulo, O rigor nas pesquisas qualitativas: uma abordagem fenomenológica em chave transdisciplinar”, Galeffi, em pouco mais de 70 páginas, trabalha de forma provocativa, principalmente os conceitos de pesquisa qualitativa, rigor, abordagem transdisciplinar, a interferência da política, da economia e da ética nesse tipo de abordagem.

Começa sua discussão fazendo dois questionamentos importantes. Um diz respeito aos fundamentos epistemológicos norteadores da pesquisa qualitativa e o outro aos métodos empregados neste tipo de pesquisa. Ambos questionamentos nortearam suas reflexões ao longo do primeiro capítulo. No decorrer do texto o autor descreve conceitos básicos que, a seu ver, orientarão os estudos da pesquisa qualitativa de natureza fenomenológica, entendendo a fenomenologia “como o esforço do pensamento humano em conectar-se com a totalidade do vivido e do vivente, tendo-se em vista a autocondução responsável e consequente da vida de relação presente”.( p. 15 )

Galeffi não perde de vista o fato de que a qualidade na pesquisa qualitativa é configurada a partir das experiências humanas, refletidas e apropriadas. Compreende a ética como investigação filosófica relativa ao agir, deixando claro a importância da criticidade nas pesquisas qualitativas, contudo chamando a atenção para a crítica justa, moderada, criteriosa, cuidadosa, dedicada e rigorosa.

Rigor e qualidade são duas expressões usadas pelos autores durante toda a obra. Consciente da necessidade de ampliar as compreensões do leitor sobre o que seja o rigor e a qualidade na pesquisa, Galeffi retoma, em várias sessões de seu capítulo, o seu próprio entendimento sobre o rigor e a qualidade. Nessa explanação busca diferenciar os parâmetros norteadores das pesquisasquantitativa e qualitativa e, nesta direção, não nega a importância dos números em trabalhos de pesquisa, mas entende que esses não são os meios mais potentes ou os únicos a garantirem a qualidade da mesma. A sua compreensão de rigor extrapola a praticidade de resultados que possam ser mensurados ou apresentados de forma objetiva. Discute o rigor como atitude de comportamento e compromisso com aquilo que promove a potência, aquilo que nos faz bem. Afirma ainda que o rigor nada tem a ver com a exteriorização metodológica de passos e regras que julguem ser o meio para se conduzir uma investigação científica consistente. Para ele o rigor é um ato livre e implicado com a vida ambundante.

Desse modo, Dante critica o fato das qualidades nas pesquisas serem medidas por critérios previamente estabelecidos. Para ele, é coerente considerar uma pesquisa qualitativa, aquela em que o pesquisador se torna aprendiz de si mesmo, na medida em que a pesquisa alcança sentido como práxis qualificadora, implicando em uma produção de si-mesmo-outro-mundo.

No segundo capítulo, Outras luzes: um rigor intercrítico para uma etnopesquisa política, Macedo desenvolve sua reflexão partido do pressuposto de que a busca do rigor nas pesquisas qualitativas significa a busca da qualidade epistemológica, metodológica, ética e política, socialmente referenciadas.

Critica o fato dos muitos trabalhos científicos nas universidades terem se distanciado dos “valores epistemológicos, metodológicos, comunitária e publicamente construídos como valorosos, e que possibilitam as pesquisas a inserção na responsabilização/ legitimação qualitativa da instituição universitária”. (p. 79)
Na busca de elucidar o que caracteriza o rigor na pesquisa qualitativa, vê a necessidade de diferenciá-lo da rigidez, afirmando o rigor como uma ética de qualidade constituído na intercompreensão, na intercrítica dialogicizada e dialeticizada, levando em consideração os conhecimentos produzidos, também, a partir de situações culturais nãoacadêmicas. O autor defende que não é possível fazer pesquisa sem explicitar o meio cultural em que os atores sociais estão inseridos, nem tampouco sem reconhecer a participação dos mesmos no desenvolvimento do trabalho. Neste sentido, apresenta a etnometodologia como sendo a base teórica que sustenta a etnopesquisa, sobretudo porque não trata os atores sociais como “idiotas culturais”, ao contrário, afirma que os mesmos possuem etnométodos, ou seja, modos, jeitos, maneiras de compreender o mundo e resolver os impasses da vida.

Aponta para a necessidade de entender o qualitativo para além da divisão quantidade/qualidade. Assinalando a existência de momentos delicados que tratam do rigor nas pesquisas qualitativas desde a coleta de dados até a interpretação dos mesmos, concluindo que a interpretação se dá em todo o processo de pesquisa. Vale ressaltar ainda, que o autor faz o levantamento de algumas questões que podem levar à desqualificação da pesquisa qualitativa como: insuficiência de fontes de “dados”; ausência de evidências apoiada sobre os “dados” obtidos de fontes variadas; erro de interpretação, entre outros.

Macedo descreve e reflete sobre a importância da crítica, da autocrítica e da intercrítica na constituição de um rigor outro. Deixando à escolha do pesquisador a construção do seu caminho, a sua autorização diante do seu objeto de estudo e do seu caminhar, desde, é claro, que o mesmo não perca de vista o rigor como na perspectiva de aprofundamento, de relacionamento e de conexão.

No terceiro e último momento do livro Considerações sobre a autoridade e o rigor nas etnografias da educação, Pimentel faz reflexões sobre o papel do pesquisador na pesquisa qualitativa. Pauta sua discussão entre a ambígua relação teorias e práticas investigativas e a abordagem da antropologia, nesse âmbito de pesquisa.
Conta experiências vividas em campo com algumas pesquisas realizadas, principalmente de cunho etnográfico onde pôde desenvolver seu trabalho com rigor e não rigidez a partir do trabalho de campo e do contexto social.

Explica que seu interesse na etnografia como prática de produção do conhecimento sobre a cultura corresponde ao desejo de encontrar na antropologia e na educação um campo interdisciplinar de construção teórico-metodológica capaz de inovar concepções de ensino e aprendizagem.

Para o autor, a etnografia tem cumprido um papel importante para a formação de intelectuais ocupados com a interpretação das culturas na construção dos cenários sociais contemporâneos. Tendo como resultados, principalmente, reivindicações de novos paradigmas de pensamento no campo das ciências humanas; transformações de posturas investigativas; abordagem do cotidiano como dimensão instituinte da vida comum, bem como consubstanciação da cultura como dinâmica de formação.

O olhar, a escuta, a conversação e a autorização nas pesquisas são preocupações que norteiam o ensaio do autor, buscando sempre a compreensão da escrita etnográfica como tomada de posição nas relações eu-outro das configurações culturais em que os indivíduos se apresentam em seus contextos vivenciais.
Pimentel toma o educar e o conversar como interfaces de um processo de ensino-aprendizagem. Para ele, o entrelaçamento no linguajar e no se emocionar com o outro cria situações em que o sujeito da pesquisa (o ator social) e o pesquisador incorporam, afetiva e cognitivamente, características posturais e saberes fundamentais para a aproximação com o outro.

Não nega, em momento algum do texto, a importância do quantitativo nas pesquisas qualitativas, contudo conclui sua reflexão afirmando que a autoridade será apenas construída quando superarmos a necessidade do controle do mundo através das nossas certezas estatísticas e nos aventurarmos na vertiginosa busca das significações que dão rumo e sentido ao estranho e ao familiar mundo que também habitamos com os outros.

Conclusão e crítica das resenhistas

Ao dialogar com as reflexões dos três autores, torna-se preemente buscar compreender o que nos faz escolher determinada abordagem de pesquisa dentre as diversas possibilidades existentes. Os textos nos fizeram pensar sobre a necessidade de realizar pesquisas mais abrangentes e densas, pesquisas bem articuladas entre a ambiguidade, quantidade e qualidade.

Os autores apresentaram, de forma crítica e com certa leveza, o papel e a importância do rigor nas pesquisas humanas, como também nos fez refletir sobre a diferença entre o conceito de rigor que figura entre as pesquisas quantitativas e as qualitativas. É válido se pensar hoje sobre quantas pesquisas são comparadas entre si, sobre como se compara esse ou aquele método avaliativo, esse ou aquele modelo de ensino, essa ou aquela cultura, entretanto, ainda não se pratica uma comparação reflexiva que esteja atrelada ao contexto social. Ainda não se faz comparação/reflexão/ação sobre o papel do próprio pesquisador nas suas pesquisas e o impacto destas sobre os atores sociais, sobre quem pesquisa e sobre a comunidade pesquisada.

Macedo, Galeffi e Pimentel nos trazem uma obra pertinente, reflexiva e provocativa sobre a complexidade de se desenvolver pesquisas qualitativas e o quanto essa abordagem exige do pesquisador atenção, escuta e cuidado. Nesta perspectiva, o compromisso ético que figura nas relações estabelecidas entre pesquisador, sujeitos sociais e contexto cultural foi responsavelmente destacada no decorrer dos textos dos autores.

Para nós, essa obra figurou como um saboroso convite a experimentar a aventura da pesquisa e nela descobrirmos talentos, formas, encontros sem desconsiderar as antíteses de tudo isso, pois as desconstruções fazem parte do processo de aprendizagem. E nesse diálogo, entre o que sabemos e o novo apresentado, podemos ampliar a nossa própria visão e compreensões do mundo, enriquecendo assim as nossas futuras produções.

Laís Andrade Bitencourt[email protected]

Mírian Loiola Souza – E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

Do MEB à WEB: o rádio na educação – PRETTO; TOSTA (RF)

PRETTO, Nelson De Luca; TOSTA, Sandra Pereira (Org). Do MEB à WEB: o rádio na educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. 207p. Resenha de: CASTRO, Fernanda Carla. Revista FACED, Salvador, n.17, p.123-127, jan./jun. 2010.

“A rádio, como nunca antes, é muito mais que somente rádio”, afirma o pesquisador Guillermo Orozco Gómez (Universidade de Guadalajara), no prefácio do livro Do MEB à WEB: o rádio na educação. Organizado pelos pesquisadores Nelson De Luca Pretto e Sandra Pereira Tosta1, a publicação reúne pesquisas nacionais e internacionais que tratam do rádio e do seu potencial educativo. O livro discute o Movimento de Educação de Base (MEB), que na década de 1960 incorporou o rádio como um recurso educativo, a WEB, que impôs mudanças na maneira tradicional de se fazer Educação por meio desse veículo, que se tornou “muito mais que somente rádio”. Conforme destaca Gómez, hoje o rádio oferece uma “dinâmica de possibilidades inéditas para o intercâmbio informativo, a produção de conhecimento e a própria Educação”. Mas o grande desafio que deve ser buscado em todas as experiências radiofônicas educativas é “propiciar a interação real dos usuários da rádio com os próprios conteúdos para a expressão, transcendendo a mera recepção radiofônica”.

Segundo os organizadores, Do MEB à WEB surgiu “com o objetivo de contribuir com a discussão e práticas dos usos do nosso velho e bom companheiro rádio e de sua reinvenção digital, web rádio, na Educação”. Para isso foram convidados autores com experiências educativas diversificadas com o rádio no Brasil e em outros países. Os organizadores também destacam a necessidade de incorporar à publicação o debate sobre a adoção de softwares livres na rádio web, entendida por Pretto e Tosta como de importância estratégica para a Educação e a Cultura, por “contribuir com a emancipação do País em termos científicos e tecnológicos”.

O artigo que abre a publicação, O Rádio e a Educação: a experiência do MEB e as contribuições para a Educação popula, é de José Peixoto Filho – Universidade Federal Fluminense (UFF), que resgata o surgimento2 do MEB e como sua decisão de incorporar o rádio como meio e instrumento educativo e pedagógico contribuiu para a Educação popular e a alfabetização de adultos, entre 1961e 1966. Os programas de rádio do MEB em Goiás, destacados no artigo, embora censurados pelo contexto político da época, enquanto estiveram no ar, funcionaram com êxito na interação com o trabalhador do campo, extrapolando sua alfabetização e levando-o a uma atitude crítica diante da exploração e da dominação.

O pesquisador José Marques de Melo da Universidade de São Paulo (USP), em seu artigo, Mídia, Educação e Cultura Popular: notas sobre a revolução sem violência travada em Pernambuco no tempo de Arraes (1960-1964), discorre sobre um projeto que se entrelaça com o MEB. O pesquisador narra, do lugar de “observador participante”, como funcionou o Movimento de Cultura Popular (MCP), fundado em 1960, em Pernambuco, no governo de Miguel Arraes. Melo lembra que, desde sua fundação, o MCP, além da valorização de diversas manifestações culturais, buscou desenvolver nas comunidades do Nordeste, uma apreciação e uma leitura crítica dos meios de comunicação. O artigo faz um resgate documental das atuações do MCP, apresentando pontos de convergência e divergência com o MEB, e convidando os educadores da nova geração a revisarem criticamente tais projetos.

No terceiro artigo, Rádio web na Educação: possibilidades e desafios, os pesquisadores Nelson De Luca Pretto, Maria Helena Silveira Bonilla e Carla Sandeiro, partindo da experiência de implantação de uma rádio web na Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (FACED/UFBA), chamam a atenção para perspectivas e dificuldades trazidas com a transposição do rádio para o ciberespaço. Com a rádio web abre-se um leque de novas possibilidades para atividades educacionais, demandando uma participação ativa de alunos, que passam de meros consumidores de informações a produtores de conteúdos. Por outro lado, o grande desafio é garantir o pleno uso desses novos recursos. Os pesquisadores denunciam que a pressão política dos grandes grupos empresariais das comunicações impede uma transformação da legislação que regulamenta as rádios comunitárias, restringindo sua apropriação pela comunidade e pelo campo educacional: “com a população pobre distante da possibilidade de uso efetivo desses recursos, o discurso torna-se vazio”.

Cicília M. Krohling Peruzzo (USP) dá continuidade ao debate lançado pelos pesquisadores da UFBA no estudo, “Rádios livres e comunitárias, legislação e educomunicação”, no qual esclarece em que se convergem e em que se diferenciam os dois tipos de rádio no Brasil, e enumera os benefícios trazidos às comunidades que se envolvem na produção radiofônica. Aprendendo as técnicas e linguagens e mesmo os mecanismos de manipulação a que podem estar sujeitos, os envolvidos “melhoram a autoestima e um possível interesse em crescer e colaborar para que mudanças sociais ocorram”. Mas, novamente, as comunidades têm que lutar contra as limitações impostas ao direito de exercitar a comunicação e as políticas “favoráveis aos grandes grupos de mídia e ao mercado das comunicações do ponto de vista prioritário do negócio”.

O quinto artigo, A rádio comunitária na construção da cidadania e da identidade, traz a pesquisa desenvolvida por Lílian Mourão Bahia da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), sobre o papel das rádios comunitárias União, de Belo Horizonte, e Inter- FM, de Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte. Partindo da noção de esfera pública de Jurgen Habermas, a pesquisadora ouviu líderes comunitários, agentes, trabalhadores e dirigentes dos veículos e concluiu que as experiências, mesmo que de maneira embrionária e descontínua, reconfiguraram a esfera pública midiática, formando e consolidando identidades locais e abrindo espaço para o exercício da cidadania.

Mauro José Sá Rego Costa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), discorre, no artigo Para criar o site Radioforum, em busca de um rádio inventivo, sobre as motivações que o levaram, juntamente a um grupo de radioartistas, produtores e teóricos do rádio, a formatar, na internet, um espaço de discussão e experimentação. Os envolvidos no projeto dão seus depoimentos e mostram com quais gêneros radiofônicos irão trabalhar, buscando devolver a inventividade às ondas do rádio.

Em Rádio como política pública: uma experiência paradigmática em educomunicação, Ismar de Oliveira Soares (USP) apresenta aos leitores o projeto3 que, a partir de 2001, levou o rádio a 455 escolas da rede municipal de São Paulo, envolvendo cerca de 11 mil pessoas. Com uma proposta de produção colaborativa, envolvendo democraticamente educadores e educandos, Soares acredita que a grande ousadia da Educom.rádio foi sua implantação “em uma rede formal de ensino, regida por normas que atravessam gerações de educadores e que garantem a tradicional verticalidade do processo de ensino”.

Das escolas de São Paulo, o rádio chega às de Belo Horizonte, por meio de Fábio Martins da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que registra algumas experiências radiofônicas educativas na capital mineira, não sem antes evocar a figura de Roquette- Pinto e sua crença no rádio “como veículo capaz de provocar mudanças na mentalidade popular”. No artigo intitulado O rádio dos meninos, o pesquisador discute os conceitos de “educomunicação” e “educomídia”, além de dar voz a alguns dos alunos envolvidos em um dos projetos radiofônicos de Minas Gerais.

Dos alunos a discussão salta para os moradores de uma favela de Belo Horizonte, principais ouvintes de Ana Paula Bossler (FaE/UFMG) e sua proposta de falar sobre ciência no rádio. Em Divulgação Científica na Rádio Favela FM4:percursos discursivos e a ciência na ausência da imagem, a pesquisadora discute os desafios do projeto e descreve a rotina de produção do programa Ciência na Favela. Bossler apresenta ainda considerações acerca dos programas com finalidade educativa na mídia.

No décimo capítulo, Nelson De Luca Pretto, Maria Helena Silveira Bonilla, Fabrício Santana, Bruno Gonsalves, Mônica de Sá Dantas Paz e Hilberto Mello retomam a discussão sobre os softwares livres. Em Soluções em software livre para rádio web, os pesquisadores da UFBA apresentam indicações de como usar e instalar rádios web com software livre em projetos educacionais e comunitários.

As experiências de Espanha e Portugal estão no artigo A rádio universitária como modalidade educativa audiovisual em contexto digital. No estudo, os pesquisadores Marcelo Mendonça Teixeira (Universidade do Minho), Juan José Perona Páez, da Universidade Autonoma de Barcelona (UAB) e Mariana Gonçalves Daher Teixeira (Universidade do Minho) analisam e comparam as rádios universitárias mais significativas dos dois países, concluindo que o caráter alternativo das emissoras possibilita a veiculação de temáticas dificilmente encontradas em outras rádios, “como a problemática da exclusão social; a popularização da ciência e o conhecimento; assim como a música, o cinema, a literatura e arte”.

Quem encerra a publicação é Maria Luz Barbeito Veloso (UAB), que também traz uma experiência da Espanha. Em Publiradio.net: desenho, desenvolvimento e avaliação de materiais didáticos on-line para a formação em comunicação, Veloso apresenta uma plataforma on-line que permitiu aos alunos de publicidade da UAB gerar seus próprios produtos publicitários radiofônicos e acabou por se transformar em uma web rádio educativa.

Acredita-se que Do MEB à WEB, ao reunir todos esses estudos, pode iluminar não só outras pesquisas sobre o rádio em seu papel educativo, como todas as comunidades envolvidas com esse veículo que, em tempos de Internet, abre um extenso campo de experimentação.

Notas

1 Nelson De Luca Pretto é doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo e professor associado da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. Sandra Pereira Tosta é doutora em Antropologia Social pela USP. Professora da PUC Minas; coordenadora do Grupo de Pesquisa em Educação e Culturas (Educ); pesquisadora do CNPq.

2 O MEB foi instituído em março de 1961, por meio de um convênio entre a Presidência da República e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), durante o governo Jânio Quadros.

3 O projeto Educom.rádio surgiu em 2001, numa parceria entre a Secretaria de Educação da Prefeitura de São Paulo e o Núcleo de Comunicação e Educação (NCE) da USP. Em 2005 e 2006, o projeto foi levado a escolas do ensino médio do Centro-Oeste do Brasil, incluindo aldeias indígenas e comunidades quilombolas.

4 Criada em 1981, por iniciativa dos moradores de uma comunidade do Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, a Rádio Favela foi legalizada em 1996 e condecorada duas vezes pela ONU por suas ações a favor da cidadania e do combate à violência.

Fernanda Carla Castro – E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

 

O Programa da Revolução – TROTSKY (RF)

TROTSKY, Leon. Programa de transição. In: MARX, Karl et al. O Programa da Revolução. Brasília, DF: Nova Palavra, 2008. Resenha de: GAMA, Carolina Nozella; SANTOS JÚNIOR, Cláudio de Lira. Revista FACED, Salvador, n.16, p.141-148, jul./dez. 2009.

Leon Trotsky nasceu em 1879 em Yakovka (atual Ucrânia), numa família judia. Aos 16 anos iniciou sua participação política como social democrata, contra a autocracia czarista, e dois anos depois foi preso e exilado na Sibéria. Em 1902 fugiu do exílio e em Londres conheceu Lênin. Revolucionário comunista, foi o segundo dirigente mais importante da Revolução Russa de 1917.

Ao lado de Lênin, iniciou a construção daquilo que deveria ter sido o primeiro Estado socialista no mundo. De 1918 a 1921, exerceu o cargo de Comissário do Povo para a Guerra. Em 1923 aprofunda-se a cisão entre Stálin e Trotsky, provocada pela crescente burocratização de Stálin e por sérias divergências políticas relacionadas à questão da autodeterminação da Geórgia. Com a morte de Lênin em 1924, começa, no Comitê Central do Partido Bolchevique, o processo de calúnia e difamação de Trotsky promovido por Stálin e seus dois principais aliados Kamenev e Zinoviev. Em 1925, Trotsky é proibido de falar em público, e em 1929 é banido da União Soviética, por ordem de Stálin. Vai para o exílio na Turquia onde fica até 1933.

Depois, França até 1935, e Noruega até 1937. Chega ao México em 1937. Em 1938 escreve o Programa de Transição, que é o programa de fundação da IV Internacional. A mando de Stálin, é assassinado por Ramón Mercader, em 20 de agosto de 1940 no México. Este ano completamos 70 anos de seu assassinato.
O Programa de transição, aprovado como o programa político da 4ª Internacional em 1938, foi escrito após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a Revolução Russa (1917), e nos anos precedentes à Segunda Guerra Mundial (1945), portanto, período de crise do capitalismo que culminou com a Segunda Guerra mundial enquanto estratégia para se recuperar da crise. O texto foi organizado em vinte e um tópicos; a seguir, apresentaremos uma síntese da obra, buscando destacar as teses defendidas pelo autor ao longo da mesma.

No primeiro e segundo tópicos – As premissas objetivas da revolução socialista e O proletariado e suas direções – Trotsky (2008, p. 91-93) faz uma contextualização da situação política mundial e nacional da época demonstrando que o sistema capitalista passava por crises conjunturais que afetavam diretamente os proletários.
O crescimento do desemprego era uma das consequências dessas crises, e nem mesmo a burguesia encontrava saída para elas. O autor defende a tese de que as premissas objetivas para o socialismo não só estavam maduras como começavam a apodrecer, e que a crise social era característica da situação pré-revolucionária em que se vivia. Defende ainda que a crise histórica da humanidade se reduz à crise da direção revolucionária, e que o principal obstáculo para a revolução são os aparelhos burocráticos conservadores e a política traidora das velhas organizações operárias. E que, apesar disso, as leis da história e as condições objetivas do capitalismo em decomposição são mais fortes que os aparelhos burocráticos.

Afirma que a crise da direção do proletariado – crise da civilização humana, só pode ser resolvida pela 4ª Internacional.

No terceiro tópico, que trata do Programa mínimo e programa de transição, defende um programa de transição que trata das reivindicações transitórias das massas e serve de ponte entre as reivindicações atuais (da época) e a revolução socialista. Além disso, a tarefa principal do programa é mobilizar sistematicamente as massas em direção à revolução proletária. Este programa de transição contrapunha-se ao programa mínimo defendido pela social democracia, que visa reformar o capitalismo ao invés de derrubá-lo. Uma das reivindicações transitórias é apresentada no tópico: Escala móvel de salários e escala móvel das horas de trabalho, em que Trotsky afirma que o capitalismo tem dois males econômicos fundamentais, o desemprego crescente e a carestia da vida. Em seguida, lembra que a 4ª Internacional reivindica direito ao trabalho e existência digna para todos, para isso defende uma escala móvel das horas de trabalho, segundo a qual o trabalho disponível deveria ser repartido entre todos os operários existentes, essa repartição deveria determinar a duração da semana de trabalho.

Sobre os sindicatos na época de transição o autor diz que, na luta pelas reivindicações transitórias, os operários tinham necessidade de organizações de massas, fundamentalmente, de sindicatos, um dos meios para a revolução proletária. Não pequenos sindicatos revolucionários segmentados, mas sindicatos de massa unificados, afirmando que o autoisolamento fora dos sindicatos de massa equivalia à traição da revolução. Trotsky discorre sobre a necessidade de criação de organizações temporárias (comitês) que congregassem toda a massa em luta. Defende a edificação de partidos revolucionários em cada país como tarefa central da época de transição. Acerca dos comitês de fábrica, segue dizendo que a principal importância desses comitês consiste em abrir um período pré-revolucionário entre o período burguês e o regime proletário.

Outro aspecto tratado na obra é a questão do ‘segredo comercial’ e o controle sobre a indústria. Segundo o autor, o segredo comercial era um complô do capital monopolista contra a sociedade e sua abolição seria o primeiro passo em direção ao controle da indústria.

O controle da indústria pelos operários deveria desmascarar as trapaças dos bancos; revelar as rendas, os gastos e o desperdício de trabalho humano resultante da anarquia capitalista que visa, única e exclusivamente, o lucro. Trotsky defende a tese de que para vencer a resistência dos exploradores era necessária a pressão do proletariado através dos comitês de fábrica.

O texto aborda ainda a questão da expropriação de certos grupos capitalistas, como alguns ramos da indústria, assim como também a expropriação dos bancos privados e a estatização do sistema de crédito, à medida que o imperialismo significa o domínio do capital financeiro e que este domínio se dá através dos bancos.
Defende, a fim de realizar um único sistema de investimento e crédito para atender aos interesses do povo, a fusão de todos os bancos num Banco Único do Estado, ressaltando, porém, que a estatização dos bancos só produziria resultados favoráveis se o poder do próprio Estado passasse às mãos dos trabalhadores.
Nos tópicos seguintes: Os piquetes de greve, os destacamentos de combate, a milícia operária, o armamento do proletariado e a aliança dos operários e camponeses, o autor aponta estratégias de ação e combate que devem ser adotadas pelo proletariado, como as greves com ocupação de fábricas, os piquetes, a criação de destacamentos operários de autodefesa e de uma milícia operária.

Além disso, defende a união entre operários e camponeses, cabendo aos trabalhadores da indústria levar a luta de classes para o campo. Competindo à 4ª Internacional a elaboração de programas de reivindicações transitórias para os camponeses (pequenos proprietários) e para a pequena burguesia urbana. Trotsky defende ainda um programa de nacionalização da terra e de coletivização da agricultura que exclua radicalmente a ideia de expropriação dos pequenos camponeses.
Faz parte do Programa de transição e da luta revolucionária a luta contra o imperialismo e contra a guerra que é uma gigantesca empresa comercial. Com isto, o desarmamento da burguesia, a expropriação das empresas armamentistas que trabalham para a guerra em prol de um exército do povo. Assim como também a reivindicação do direito de voto aos 18 anos para homens e mulheres, para a mobilização da juventude e a união dos proletários de todos os países. Estas teses estão expostas no tópico A luta contra o imperialismo e contra a guerra. No tópico seguinte, O governo operário e camponês, o autor recoloca a necessidade de uma aliança entre o proletariado e os camponeses para a constituição de um governo operário e camponês, defende esta união como base para o poder soviético, e como a primeira etapa para a ditadura do proletariado. Defende, como a tarefa central da 4ª Internacional, libertar o proletariado da velha direção conservadora que estava (está) em contradição com a situação catastrófica do capitalismo em declínio, e constituía-se num obstáculo ao progresso histórico.

Aponta também como tarefa da 4ª Internacional, a destruição das ilusões reformistas e pacifistas e o reforço da união da vanguarda com as massas, preparando a tomada revolucionária do poder.

Segundo Trotsky, o aprofundamento da crise social aumentaria não somente o sofrimento das massas, mas também sua impaciência, sua firmeza e seu espírito de ofensiva. E, ao tratar dos sovietes, o autor afirma que esta organização dos trabalhadores é necessária, pois congregam as diversas reivindicações dos explorados e que sua palavra de ordem é o coroamento do programa de reivindicações transitórias. Que num período de transição os sovietes tornam-se rivais e adversários das autoridades locais e do próprio governo central. Esta dualidade de poder seria o ponto culminante do período de transição, momento em que o regime burguês e o regime proletário opõem-se, irreconciliavelmente, um ao outro.

O programa de transição elucida também qual deveria ser o programa de ação e as reivindicações transitórias dos países coloniais e dos países fascistas. No tópico Os países atrasados e o programa das reivindicações transitórias, Trotsky aponta como sendo os problemas centrais e, portanto, a tarefa dos países coloniais ou semicoloniais, a revolução agrária e a independência nacional. Menciona exemplos de países que se encontravam nesta situação na época, como a China e a Índia, por exemplo. Fala sobre a traição da esquerda à revolução proletária citando a 2ª Internacional e a Internacional Comunista. Em seguida, defende a tese de que a direção geral do desenvolvimento revolucionário pode ser determinada pela fórmula da revolução permanente, assim como se deram as três revoluções russas (1905, fevereiro de 1917 e outubro de 1917).

Ao partir para o tópico Programa de reivindicações transitórias nos países fascistas, Trotsky explicita a situação da Alemanha e da Itália com os governos de Hitler e Mussoline. Adverte novamente sobre a traição da esquerda, que na Alemanha, por exemplo, o proletariado não foi derrotado pelo inimigo em combate, mas pela covardia, abjeção e traição da esquerda; e que por este motivo, a vitória de Hitler foi a derrota do movimento revolucionário. Fala da impotência da 2ª e 3ª Internacionais que não provocaram um movimento de organização das massas. Aponta a necessidade de um novo programa revolucionário, pois a luta continuava, e a vanguarda do proletariado precisava encontrar apoio e uma nova bandeira de luta que não estivesse maculada. Nessa conjuntura, defendia a necessidade de um trabalho preparatório, sobretudo de propaganda, para a união e organização das massas para a derrubada de Mussolini e Hitler; e que isso se daria sob a direção da 4ª Internacional.

A União soviética e as tarefas da época de transição – neste tópico o autor discute a revolução ocorrida na Rússia em outubro de 1917, suas implicações na União Soviética (URSS) e as tarefas do programa de transição. Explica como a burocratização do Estado operário stalinista encorajou a acumulação privada e os privilégios traindo e agindo contra a classe operária, criando um Estado operário degenerado. Expõe que a principal tarefa na URSS, apesar de tudo, é a derrubada da burocracia sob a bandeira da luta contra a desigualdade social e a opressão política para recuperar o caráter democrático e classista dos sovietes. Complementa que a 4ª Internacional declara guerra às burocracias da 2ª e da 3ª Internacionais, da mesma forma ao reformismo sem reformas, ao pacifismo sem paz, ao anarquismo a serviço da burguesia, aos revolucionários que temem a revolução.

O texto trata também da questão do oportunismo e do revisionismo, afirma que os reformistas são incapazes de aprender com as trágicas lições da História; toma-se como exemplo a socialdemocracia francesa que com a política do partido de Leon Blum tomou como exemplo a catástrofe política da social-democracia alemã e caiu na burocracia burguesa que é incapaz de realizar uma política revolucionária. Segue-se reiterando que, por sua vez, a 4ª Internacional se mantém no terreno do marxismo, única doutrina revolucionária que permite compreender a realidade, descobrir as causas das derrotas e preparar conscientemente a vitória. Ao tratar do sectarismo, lembra que os sectários simplificam a realidade, e que para os mesmos preparar-se para a revolução significa convencerem-se a si mesmos das vantagens do socialismo; e mais, estes se recusam a lutar pelas reivindicações parciais ou transitórias.

Estas questões são trabalhadas nos tópicos: Contra o oportunismo e o revisionismo sem princípios, e Contra o sectarismo.

Nos penúltimo tópico do Programa intitulado Lugar à juventude! Lugar às mulheres trabalhadoras!, o autor chama atenção para a necessidade de renovação do movimento e da atenção que deve ser dada à juventude. Afirma que somente o fresco entusiasmo e o espírito ofensivo da juventude podem assegurar os primeiros sucessos na luta. Trata das organizações oportunistas que concentram sua atenção nas camadas superiores da classe operária e ignoram as mulheres trabalhadoras e a juventude. Ainda neste tópico, Trotsky coloca que na 4ª Internacional não há lugar para o carreirismo, “câncer das velhas internacionais”, mas lugar somente para os que quiserem viver para o movimento e não viver dele.

Finaliza o Programa de transição com o tópico Sob a bandeira da 4ª Internacional, no qual esclarece que a 4ª Internacional surgiu das maiores derrotas do proletariado na História, e que a causa dessas derrotas foi a degenerescência e a traição da velha direção da esquerda. O autor afirma que a tarefa da 4ª Internacional é acabar com a dominação capitalista; sua finalidade é o socialismo, e seu método é a revolução proletária. Explica ainda que sem democracia interna não há educação revolucionária e sem disciplina não existe ação revolucionária. Defende a tese do centralismo democrático, que consiste em completa liberdade na discussão e total unidade na ação, como a base do regime interno da 4ª Internacional.

Conclui o texto reafirmando que a crise da civilização humana é a crise da direção do proletariado, e chama os operários e as operárias de todos os países para se organizarem sob a bandeira da 4ª Internacional.

Passadas, aproximadamente, sete décadas da elaboração do Programa de transição, destacamos que esta obra é tragicamente atual. Afinal, o que vivemos senão o evidente apodrecimento do modo de produção capitalista? Trotsky em 1938 defendeu a tese de que a crise que a humanidade enfrentava era a crise do proletariado, ou seja, a crise revolucionária. Marx, em 1846, na Ideologia Alemã, nos assinalava sobre a necessidade da superação histórica do sistema capitalista, através da apropriação dos meios de produção pela classe trabalhadora. Hoje, é sabido que já possuímos condições materiais para superação deste modo de produção, e de que sua superação é necessária para enfrentarmos a barbárie e a alienação humanas.

Assim sendo, a explicação que Trotsky nos dá acerca da crise do capital faz-se sim atual, pois se a classe trabalhadora – única classe verdadeiramente revolucionária – não conseguiu se organizar, tomar consciência de classe, ir para o embate, para a tomada do poder e concretizar a revolução, é na organização e conscientização da classe que a crise se coloca.

Com relação aos países atrasados – o que conhecemos hoje como subdesenvolvidos – o Brasil encaixa-se nesta classificação, Trotsky estabelece um programa das reivindicações transitórias para os mesmos. Aponta a revolução agrária e a independência nacional como os problemas centrais e a principal tarefa dos “países coloniais ou semicoloniais”. Também neste ponto podemos notar a atualidade da elaboração realizada pelo autor. Sabemos que a questão agrária e latifundiária no Brasil é um sério problema, que, felizmente, a classe trabalhadora enfrenta e combate, a exemplo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Nosso país possui uma das maiores concentrações de terra do mundo.

A terra se concentra nas mãos de pouquíssimos proprietários que sustentam o agronegócio e o desenvolvimento do capital no campo. Portanto, mais do que nunca, as questões teóricas e programáticas apresentadas por Trotsky precisam ser retomadas. Atualizadas naquilo que, porventura, tenham envelhecido.

A classe trabalhadora continua necessitando de uma direção revolucionária, de um programa de ações para se balizar. Hoje o capital enfrenta uma crise estrutural, a exemplo do Brasil, a classe trabalhadora deposita suas ilusões numa esquerda que não atende às suas reivindicações, aliando-se à burguesia. Mas, não é possível abandonar a classe, faz-se necessário auxiliá-la, através das suas próprias reivindicações, a romper suas ilusões no terreno próprio das ilusões. Como nos apontou Trotsky, é tarefa das organizações revolucionárias a destruição das ilusões reformistas e pacifistas da classe, além do reforço da união da vanguarda com as massas, preparando a tomada revolucionária do poder. Compreendemos, no entanto, que o revolucionário isolado e desarticulado não é capaz de realizar grandes ações em prol da revolução. Pelo contrário, homens revolucionários como Marx, Engels, Lênin, Trotsky nos mostram que a organização coletiva junto da classe é necessária, para a discussão democrática das premissas teóricas e programáticas, mas sem prescindir da unidade total na ação.

Carolina Nozella Gama – Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]

Cláudio de Lira Santos Júnior – Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

Jacques Ardoino: pédagogue au fil du temps – VERRIER (RF)

VERRIER, Christian. Jacques Ardoino: pédagogue au fil du temps. Préface de René Barbier. Paris: Téraèdre, 2010. 244p. Resenha de: MACEDO, Roberto Sidnei. Revista FACED, Salvador, n.16, p.139-140, jul./dez. 2009.

Jacques Ardoino: pedagogo no fio do tempo, é um trabalho de biografia analítica realizado por Christian Verrier, como nós, ex-aluno deste provocante e refinado epistemólogo das ciências da educação e antropossociais, que por diversas vezes visitou o Brasil para debater suas ideias, vinculadas principalmente ao seu mais fecundo e principal conceito neste campo da pesquisa e da formação educacional, o conceito de multirreferencialidade.

Enquanto uma obra que caracteriza bem as biografias analíticas, Jacques Ardoino: pédagoque au fil du temps procura traçar a itinerância do epistemólogo das ciências da educação de uma forma tal que sua vida não se descola dos seus conceitos fundamentais, das suas ideias e da personalidade forte e empreendedora do formador e pesquisador, que tinha um gosto quase compulsivo pela criticidade e pela argumentação voltada para os grandes desafios epistemológicos e ontológicos produzidos pelo movimento da temporalidade a que estava implicado. Nestes termos, a obra explicita o conjunto de diálogos provocantes entre Ardoino, Morin, Castoriadis, Mafesoli, Lourau, entre outros intelectuais contemporâneos, que desafiam as fronteiras da contemporaneidade, daí sua preferência por teorizar a partir dos meios e práticas educacionais a problemática da complexidade.

Mas é a ideia de multirreferencialidade que aparece capitaneando a obra e entretecendo as inúmeras contribuições do pesquisador emérito da vanguardista Universidade de Paris 8, para se compreender a formação e intervir nas coisas da educação.

Verrier tem a competência de, através dos argumentos implicados de Jacques Ardoino, nos colocar no centro dos sentidos construídos pelo epistemólogo a respeito daquilo que mais lhe entusiasmava nas suas diversas conferências e conversas com seus alunos, ou seja, a heterogeneidade como riqueza irredutível da emergência humana e a identidade constituída por identificações fundadas na negatricidade dos sujeitos sociais em movimento de afirmação das suas alteridades, alteridades que só podem emergir, segundo Ardoino, na medida em que, em relação, alteram e ao mesmo tempo criam incessantemente inacabamentos. Dá-se aqui a inarredável e trágica necessidade do outro. É nestes termos que a pluralidade implica numa ética e numa política que vai muito além de uma “comemoração” diante da emergência da diversidade.

Entretanto, é a densidade da ideia-força de multirreferencilidade que a obra evidencia de forma intencional.

Verrier nos mostra que o grande mérito do pensamento de Ardoino e da sua práxis educacional é fazer entrar de forma original e fecunda na epistemologia das ciências da educação e antropossociais, um sistema de pensamento e uma perspectiva de práxis, onde a heterogeneidade é o ponto de partida epistemológico, ético, político e formativo, reconhecida como ineliminável para se pensar a formação do Ser do homem em sociedade. Motivo da publicação de números específicos de algumas revistas de mérito no campo das ciências da educação na Europa e no Brasil, a epistemologia e a práxis multirreferencial de Ardoino faz do seu argumento instituinte sobre a alteridade/alteração, um potente analisador crítico e um fundante dispositivo de formação, que deslocam, destrivializam e desnaturalizam as compreensões e práticas educacionais forjadas nas palavras de ordem, nas respostas pré-digeridas, nos lugares-comuns, nos conceitos protegidos, significados autoritários e nas interpretações de pretensões monossêmicas. É assim que a existência e a cultura, no plural, radical e relacionalmente concebidas, alimentam e fazem brotar uma epistemologia da educação e, a fortiori, uma compreensão da formação e da sua mediação, implicadas à emergência culturalmente singular e relacional da nossa human-idade. É este viés que identifica Ardoino como um epistemólogo das situações e ações educacionais, que prefere pensar e atuar de dentro das vibrações produzidas pelas temporalidades vividas. Aliás, é orientado por esta perspectiva, que Verrier cunha o título da sua obra, que, ademais, vai marcar o conjunto de escritos que na Europa começam a realçar a singularidade universal do pensamento inquieto e radicalmente pluralista do nosso também professor Jacques Ardoino.

Roberto Sidnei Macedo – Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

NADA sobre nós sem nós. Oficina Nacional de Indicação de Políticas Públicas Culturais para Inclusão de Pessoas com Deficiência: relatório final 16 a 18 de outubro de 2008 –

NADA sobre nós sem nós. Oficina Nacional de Indicação de Políticas Públicas Culturais para Inclusão de Pessoas com Deficiência: relatório final 16 a 18 de outubro de 2008. Rio de Janeiro: ENSP/FIOCRUZ, 2009. Resenha de: CASTRO, Fátima Campos Daltro de. Revista FACED, Salvador, n.16, p.133-138, jul./dez. 2009.

Esse livro trata dos trabalhos finais em torno de propostas e diretrizes que buscam nortear as políticas públicas de inclusão cultural dos diversos grupos historicamente excluídos, ação essa iniciada em 2007 com a oficina – Loucos pela Diversidade – da diversidade da Loucura a Identidade da Cultura, promovida pelo SIND/MINC e a Fiocruz. Considerando o potencial das atividades culturais produzidas por pessoas com deficiências, a SID e a Fiocruz deram continuidade à parceria, realizaram em outubro de 2008, na cidade do Rio de Janeiro, a Oficina Nacional de Indicação de Políticas Públicas Culturais para Inclusão de Pessoas com Deficiência, com apoio da CEF. Lançado pela Fundação Osvaldo Cruz/LAPS, propõe desafios para as políticas públicas no sentido de ampliar sua visão sobre deficiência, a urgência da cultura se inserir nesse processo com maior afinco em busca de soluções que atendam as necessidades emergentes em torno do assunto, subsidiando-os e instrumentalizando-os profissionalmente e culturalmente para a real acessibilidade.

Almejando maior diálogo entre o governo e a sociedade civil, o livro trata de proposições que a Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural do Ministério da Cultura (SID/MINC) vem promovendo através de encontros, seminários e oficinas.

As atividades e discussões desenvolvidas nas oficinas lançam uma proposta de trabalho para indicar diretrizes e ações, no sentido de contribuir para a construção de políticas culturais de patrimônio, difusão, fomento e acessibilidade para pessoas com deficiências, focalizando a Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência, para juntos discutir e encontrar estratégias que possam por em prática em editais relacionados à arte e à cultura, à legislação nacional já existente sobre acessibilidade e ao que dispõe a convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência (ONU).

Nos depoimentos propostos no encontro, por meios de oficinas coletivas e a participação conjunta de diversos segmentos, estabelece-se um “novo jeito de olhar” para o assunto, adotando processos participativos com a colaboração de diversos grupos e profissionais que estudam e desenvolvem trabalhos com pessoas com e sem deficiência nos campos artísticos, culturais e políticos.

Apresenta um trabalho de fôlego que busca interligar a prática social da pessoa com deficiência, entendendo-o como um complexo de possibilidades (apto a construir conhecimentos) e não dissociado do seu modo de viver e estar no mundo.

Já nas primeiras páginas da obra coletiva, Nada sobre Nós sem Nós, já se define as questões que encaminharam a construção do trabalho expondo sua metodologia, objetivo, mesas de debates, painel, grupos de trabalho, plenária final e material produzido.

As diretrizes e ações aprovadas em consenso nos Grupos de Trabalho (GT) contemplam o patrimônio, criando e estabelecendo instrumentos para a efetiva produção cultural dessas pessoas para que sejam reconhecidos nos campos artístico, ético, estético, social, político e cultural, apontando para a circulação e uso social do patrimônio. É percebido nas ações propostas por esse segmento, o interesse em promover um intercâmbio eficaz entre artistas, bem como ampliar os espaços de diálogos entre as diversas esferas dos órgãos federais, estaduais e municipais, mobilizando, articulando espaços de diálogos com gestores de cultura nos três níveis do governo, a iniciativa privada, o legislativo, os conselhos de direitos e o Ministério Público.

O livro está dividido em tópicos cujas temáticas discutem conteúdos em torno de cultura e deficiência, trajetória e perspectivas, coordenadas por Ricardo Lima, e com a participação dos debatedores Andréia Chiesorin, João de Jesus Paes Loureiro, Isabel Maior. A temática Nada sobre Nós sem Nós, coordenado por Paulo Amarante, contou com a participação de Rogério Andriolli, Angel Vianna, Arnaldo Godoy. Por ultimo, a mesa de debates, Patrimônio, Difusão, Fomento e Acessibilidade, coordenada, por patrícia Dornelles, compartilhando das discussões junto aos debatedores Jorge Marcio Andrade, Cláudia Werneck, Frederico Maia. O objetivo é, construir propostas de diretrizes e ações subsidiar e elaboração de políticas públicas do Ministério da Cultura (MINC) para pessoas com deficiências e em situação de risco social.

Na programação do livro segue uma descrição da Metodologia da Oficina, Objetivos, Mesa de Debates, Painel Temático, Grupos de Trabalho, Plenária de Final, Material Produzido, seguindo com uma tabela que constava as Diretrizes e Ações Aprovadas em torno de Patrimônio, Difusão, Fomento, Acessibilidade, por fim, a Carta do Rio de Janeiro – Políticas Públicas Culturais para a Inclusão de Pessoas com Deficiências.

O conteúdo da carta contempla e expressa a necessidade de insistir na necessidade de que as políticas, ações e comportamentos devem pautar-se pela compreensão e acolhimento das pessoas em suas identidades múltiplas e diversificadas, contemplando sempre a sua condição humana e cidadã e nunca a deficiência. Apoia-se em diversos documentos legais, por exemplo, a Declaração de Salamanca (1994), Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Pessoa com Deficiência (Convenção da Guatemala no Brasil, Lei nº 3.956/01), entre outras de igual importância, para dar cabo ao exercício comum e hegemônico inclusão/exclusão que envolve essas pessoas.

As comunicações oriundas das personalidades participantes do evento e transcritos nessa obra propõem a necessidade da reflexão em torno do assunto e trazem em seu bojo um panorama histórico das diversas ações que já foram concretizadas, bem como dificuldades reais frente à ideia de um processo de construção onde as trocas de informações precisam ser compartilhadas, negociadas com cada setor. Compreende que, se ações e elaborações podem ser entendidos por esse viés, estamos caminhando num processo que respeita as necessidades individuais/singularidades e suas diferenças.

O depoimento de Ricardo Lima, Subsecretário do SIND/MINC, pontua que essa é a premissa e norte que está direcionando a construção do Ministério, e a construção da Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural para tratar das questões da diversidade com base nas questões da diferença. Estratégias e ações de emergências são relatadas por pessoas engajadas nesse processo e que estão vinculadas ao governo. A urgência em disponibilizar os meios educacionais possíveis para que haja a troca de informações efetivas entre os diversos campos e setores, é ponto de interesse.

Um pensamento recorrente em todas as falas são as dificuldades encontradas para ajudar a criar os espaços de cidadania nos locais menos favorecidos. Além disso, desenvolver mecanismos e diálogos que possam criar nesses setores sociais, geralmente invisíveis ou marginalizados, a oportunidade de solucionar problemas do cotidiano, é enfatizado. O exercício da autonomia é outro assunto bastante discutido durante o encontro.

Questões históricas relatadas pela professora Isabel Menor – Secretaria Especial dos Direitos Humanos, traz para o espaço das discussões os 60 anos da Declaração dos Direitos Humanos – Art.

1, da declaração, que expressa a ideia de que todos nós nascemos livres e iguais e que devemos ter, uns para com os outros, espírito de fraternidade. A professora lança uma pergunta: será que nós somos livres e iguais? Fala da importância que a nova convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência, que foi promulgada pela Assembleia das Nações Unidades (dezembro de 2001), e recentemente ratificada pelo Brasil, é uma convenção de não discriminação, que finaliza e cristaliza os modelos anteriores e afirma o modelo de inclusão.

Explica sua intencionalidade e abrangência ao ultrapassar eminentemente ideias anteriores, quando é aberto um espaço para que as pessoas com deficiência possam se expressar sem um interlocutor mediando sua voz. Enfatiza que foi a primeira constituição a ser inserida no status constitucional, passando a legislação da pessoa com deficiência a ser uma situação do Supremo Tribunal Federal. Para ela, essa é uma possibilidade rica e de abrangência ampliada no processo legislativo que, a partir desse status, podem fazer determinações, e não apenas indicações.

Além disso, explica o Protocolo Facultativo, aquele que dá o direto ao cidadão brasileiro apelar ao Comitê Internacional de Direitos Humanos, se houver violação dos Direitos Humanos no nosso país que não seja resolvida em todas as instâncias. Tudo o que cerca a pessoa com deficiência, sua prática social no cotidiano, suas relações estreitas com a comunicação, informação, acessibilidade, ou qualquer barreira que demonstre descriminação de qualquer ordem à pessoa humana é entendido como violação da lei. Questionar e analisar as ações do cotidiano torna-se uma prática um guia para a nova ação/transformação da sociedade, a construção do pensamento crítico sobre o que ocorre a seu redor é ponto de interesse das discussões.

Fátima Campos Daltro de Castro – Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

Escritos sobre educação/ comunicação e cultura – PRETTO (RF)

PRETTO, Nelson De Lucca. Escritos sobre educação, comunicação e cultura. São Paulo: Papirus, 2008. 240 p. Resenha de: OLIVEIRA, Rosa Meire Carvalho. Revista FACED, Salvador, n.15, jan./jul. 2009.

Escritos sobre educação, comunicação e cultura, de autoria do professor Nelson De Luca Pretto, doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado em Londres, Inglaterra, foi editado em 2008 pela Papirus. De cunho aparentemente despretensioso, a obra reflete, no entanto, a militância do educador Nelson Pretto, que, com o próprio exemplo, demonstra como construir uma prática que defenda a atuação do professor como intelectual da cultura.

É essa perspectiva que vemos consolidada ao longo de todo o livro, que apresenta um conjunto de textos datados entre 1983 e 2006. São artigos – publicados ou não – e entrevistas em diversos órgãos de imprensa local e nacional, além de discursos e escritos de antigos panfletos. É por meio deles que vemos reiterados, não só o espírito transformador que tem animado as práticas acadêmicas, universitárias e do cidadão Nelson Pretto, mas as ideias que vêm consubstanciando ao longo de mais de duas décadas a que os textos nos remetem, a ação de um educador ocupado em transformar pela práxis, a realidade de processos vitais para a educação, a comunicação e a cultura.

O alcance dessa práxis é revelada nas 240 páginas do livro, que é dividido em sete partes. E como bem aponta o educador português António Nóvoa, a quem coube a apresentação da obra: “Nelson Pretto exerce um olhar crítico e obriga-nos a pensar para além das esquadrias habituais. Este livro não deixa ninguém indiferente.
Faz-nos pensar. Dá o que pensar. Não será esse o objetivo primeiro de um intelectual? E, ao mesmo tempo, convida-nos a agir. Não será essa a missão principal de um educador?” (p. 11), indaga.

Nóvoa observa não ser à toa que o livro começa com um texto de Paulo Freire para quem o ato de educar é um ato de comunicação. É dessa mesma estirpe que se revela Pretto em suas itinerâncias, ao trabalhar a perspectiva de aproximar a educação da comunicação, trazendo desde seus primórdios um novo olhar que recoloca os cidadãos, em primeiro plano, e os professores como mediadores de uma cultura estruturalmente tecnologizada, em um novo patamar de ação. É nesse sentido que Pretto constata: “[…] Imaginava e continuo imaginando – hoje mais ainda! – que um professor deve ser, antes de tudo, uma liderança comunitária e intelectual […] fazer o processo educativo algo questionador, que extrapole o espaço das edificações escolares, uma ação que ganhe, literalmente, o mundo”. (p. 13) Nesse sentido, ganha espaço entre as várias seções do livro princípios defendidos por Pretto que compreende os imensos desafios colocados aos professores nesses tempos de comunicação em redes digitais globalizadas, cuja internet é o marco, e da imensa distância entre a cultura escolar e a cultura produzida fora dos muros da escola. Para ele, há dois pontos “importantíssimos” a considerar: primeiro, que a rede traz a possibilidade de interação entre o local e o não-local, a partir da valorização da cultura de origem; depois, pela “ocupação” dos espaços midiáticos, sejam os tradicionais (jornal, televisão, rádio, etc.) ou das novas mídias (a internet) por parte da escola. “Temos, portanto, de fortalecer os nós de conexão, de forma a fazer com que local e não-local interajam em pé de igualdade. Por isso sempre digo que não queremos internet nas escolas, mas sim escolas na internet” (p. 39), diz.

A Educação pelos meios e para os meios (BELLONI, 2001), ganha assim nas ideias de Pretto em Escritos em educação, comunicação e cultura a atualidade necessária à compreensão crítica dos fenômenos mediáticos da contemporaneidade, especialmente aqueles que envolvem a Teoria da Cibercultura e sua aproximação com a Educação, quando marca bem a qualidade dos processos comunicativos em redes digitais, suas características e o imenso potencial que é oferecido aos professores como mediadores da cultura, na tarefa de produzir coletivamente conhecimento em sala de aula, em lugar de simplesmente reproduzi-lo.
Daí que, para Pretto, as tecnologias digitais promovem um novo modo de ser e de agir da sociedade e ampliam os desafios de professores em sua missão diária. “[…] Apropriar-se dessas tecnologias como uma mera ferramenta, do meu ponto de vista, é jogar dinheiro fora. Colocar computador, recursos multimídia e não sei mais o que para a mesma educação tradicional, de consumo de informações, é um equívoco” (p. 49), observa. Na defesa de uma educação que contemple o local e o não local, as culturas de dentro e fora da escola e as possibilidades dos professores como intelectuais da cultura, Pretto acredita ser necessário uma maior presença da escola nos meios de comunicação, não apenas como consumidor, mas como produtor de informação. “Precisamos preparar professores que trabalhem na formação de uma juventude que possa atuar de forma plena na sociedade. Não apenas como consumidora mais qualificada, mas como produtora. Esse é o desafio!” (p. 40) O livro Escritos em educação, comunicação e cultura é revelador, portanto, da práxis que anima o pensamento instigante do educador Nelson Pretto. Quem, como nós, acompanha de perto um pouco da dinâmica de seus processos, consegue enxergar na obra a sua alma de pesquisador, de intelectual envolvido com questões que lhe são caras, seja na possibilidade de intervenção discursiva, a partir de suas convicções externadas em suas diversas produções textuais, seja pela capacidade de ocupar espaços acadêmicos, universitários e sociais, como cidadão comprometido com processos de mudanças.

É assim que nas sete seções de Educação, comunicação e cultura essas itinerâncias se constituem e revelam as diversas facetas do irrequieto professor. “A atitude de Nelson Pretto é coerente com a perspectiva de um intelectual que questiona aquilo que “já sabe” para, assim, abrir caminho a novas possibilidades e novos desígnios”, observa António Nóvoa em seu prefácio. (p. 11) Na primeira seção do livro, intitulada Entrevistas e Discursos, é assim que Pretto surge a nos abrir novas possibilidades reflexivas em relação a temas como o avanço das tecnologias de informação e comunicação (TIC) e sua relação com a educação, a partir da criação da Rede Bahia – uma “perna baiana” da internet; o futuro da escola e as transformações exigidas nos métodos e modelos de ensino-aprendizagem impelidas pelas TIC, como a relação com as novas gerações de nativos digitais (ou geração alt tab); inclusão digital; e a construção de uma escola “sem rumo”. Esta buscaria dialogar com os complexos e rápidos processos de um novo tempo social, cultural e econômico, na tentativa de promover novas educações.

Sua base epistemológica ancorar-se-ia na pedagogia da diferença, em lugar de uma pedagogia da assimilação, com o firme propósito de eliminar o que Pretto chama de “apartheid social”.

Em Escritos: Educação, que intitula a segunda seção do livro, o autor agrupa os textos que considera mais voltados para a educação, publicados ou não em forma de artigos para jornais. É nesse espaço também onde aparece a forte veia política e ativista, de um intelectual preocupado com temas caros aos rumos da educação brasileira e baiana, como a formação de professores, as condições da escola e da Universidade Pública, especialmente da UFBa, seus problemas e sua expansão. São textos datados a partir de 1983, que traduzem a preocupação de Pretto com a qualidade das políticas públicas para a educação, dentre as quais aquelas relacionadas ao livro didático, assunto que por muito tempo ocupou as reflexões do autor.

A temática dos livros didáticos, inclusive, intitula a terceira seção do livro, chamada Educação: Livros Didáticos. A parte é formada por seis artigos escritos por ocasiões e fins diversos – um deles publicado em 1996 pelo jornal Folha de São Paulo – e resume a preocupação do autor com as políticas (ou sua falta) para o livro didático. O tom dos textos é sempre de perplexidade e denúncia, com reflexões envolvendo pontos como a falta de inclusão dos professores nos debates realizados pelo governo sobre a questão e as posturas dos editores, que estariam mais preocupados, segundo o autor, em termos de quantidade e não na qualidade do livro didático produzido no Brasil. “Sabíamos que um programa de governo teria de contemplar a questão da quantidade, mas considerando que a questão da qualidade era fundamental, ela teria que ser atacada com a mesma firmeza com que se atacou a questão da quantidade” (p. 129), sustenta no texto que prefacia o livro Que sabemos sobre o livro didático, editado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais e publicado em 1989 pela editora da Unicamp. Na ocasião da pesquisa que resulta no livro, o autor ocupava a coordenação do órgão (1986/1987).

A Cultura: o cuidado com a cidade e as gentes é o título da seção quatro, que resgata a produção do autor no campo da cultura.

Editado em ordem cronológica de aparecimento dos textos em jornais baianos, especialmente em A Tarde, e de outros estados, além de orelha de livros – como é o caso de Homem satélite, texto escrito em 2000 e publicado em livro homônimo do professor Edvaldo Couto. Buscou-se uma articulação entre os textos que tratam das mais variadas abordagens, tendo como afirma o autor, um “enorme” vínculo com a educação. Em verdade, os textos, muitos em estilo de crônica, traçam uma espécie de visão do autor e seus vínculos com a cultura baiana.

A seção é aberta com uma crônica de uma viagem à cidade de Lençois (BA), em busca de uma certa Cachoeira Glass. Relata percalços e encontros inusitados, como aquele estabelecido com seu Biça. Também circulam por ali lembranças da apresentação da Banda Afro Olodum, no Circo Voador, do Rio de Janeiro, A lavagem (festa típica baiana) da localidade de Jauá, no litoral Norte de Salvador, entre referências a outras festas populares, entre outros aspectos da típica cultura baiana. São ao todo 15 crônicas da vida da cidade, repletas de baianidade, onde o autor não deixa de manifestar o amor à cidade – que adotou aos 11 anos com a mudança da família de Porto Alegre para a Bahia. Neste particular, a crônica Velhos tempos que não voltam mais homenageia a cidade onde viveu até os cinco anos, Joaçaba, em Santa Catarina.

Na quinta seção, três textos compõem a parte dedicada à Ciência e Tecnologia. O primeiro deles trata de Ciência e televisão, refletindo sobre o papel educativo da televisão, seja pública ou comercial. O autor reflete sobre o que são em verdade programas educativos e o surgimento dos mesmos na TV brasileira.
Num panfleto sobre o Globo Ciência, programa produzido pela Globo, Pretto faz uma crítica à qualidade do que se considera ciência, aludindo à espetacularização da ciência pela produção do programa. A seção é encerrada com artigo sobre a realização da Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Salvador.

A sexta seção, penúltima do livro Escritos em educação, comunicação e cultura, apresenta uma série de 22 artigos sobre a presença das tecnologias de informação e comunicação no mundo contemporâneo. O título A tecnologia da informação: e chegaram os bytes, traz embutido seu valor, especialmente memorial, por registrar o desenvolvimento da rede internet na Bahia, com a reunião de um consórcio para este fim, com a participação da UFBA, governos estadual e municipal, antiga Telebahia e órgãos e entidades do estado. No artigo intitulado A Bahia já caiu na rede, publicado em 18/5/1995 – primórdios da internet comercial no Brasil – Pretto informava: “Hoje nosso número de usuários gira em torno de dois mil. Já temos uma estrutura descentralizada como é a filosofia da internet.” (p. 177) Os textos abordam pontos de vista variados sobre o desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação e informação (TIC), descrevendo avanços na comunicação digital e de sua relação com a cultura e a educação. Nesse último aspecto, que viria a se tornar objeto do pensamento e da reflexão de Nelson nos últimos 15 anos, o autor nessa seção, sustenta mais uma vez a filosofia de uma educação democrática e inclusiva. Cobra políticas de democratização e acesso às TIC, como a aplicabilidade dos recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), que prometia destinação de recursos oriundos das empresas de serviços de telecomunicações para financiar a ampliação do espectro de acesso dos brasileiros à internet.

“Conectar as escolas públicas à internet é o caminho para fortalecer a produção de conhecimento e de cultura das crianças, jovens, adolescentes, professores e comunidade (p. 197)”, sentencia.

É esse conjunto de reflexões que resume o livro Escritos em educação, comunicação e cultura, que se encerra com a sétima seção, intitulada Escritos Com…. A seção não recebe ares de conclusão, mas, ao contrário, insinua uma continuidade, seja nas parcerias que os textos apresentam, seja nas temáticas discutidas, temáticas essas que se mantêm atuais na agenda de reflexões daqueles que cotidianamente lidam com os “caminhos cruzados” da educação e da comunicação.
É esse compromisso que parece apontar Pretto, ao escolher para fechar o livro textos que demonstram sua opção por melhores rumos para a Sociedade da Informação, a formação de professores, a inclusão digital, novas educações com escolas e universidade sem rumos. Esta última bem aos moldes do que idealizava o companheiro de itinerâncias, professor Luiz Felippe Serpa, reitor da UFBa por dois períodos, em sua incansável defesa da pluralidade, diversidade e de novas educações, a quem homenageia postumamente ao longo do livro e em dois artigos nesta seção final.

Referências

_________ BELLONI, Maria Luiza. O que é mídia-educação. Campinas, SP: Autores Associados, 2001. 116 p.

Rosa Meire Carvalho de Oliveira – Doutoranda em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

Bullying e suas implicações no ambiente escolar – PEREIRA (RF)

PEREIRA, Sônia Maria de Souza. Bullying e suas implicações no ambiente escolar. São Paulo: Paulos, 2009. 96p. Resenha de: ROCHA, Telma Brito. Revista FACED, Salvador, n.15, jan./jul. 2009.

O cinema, nos últimos anos, tem nos apresentado uma série de filmes que abordam a violência nas escolas. Basta assistir aos filmes: Visitor Q (Japão/2001), Tiros em columbine (EUA/2002), Elefante (EUA/2003), Escola da violência (Coreia do Sul/2006), É só uma questão de tempo (Austrália/2006), Klass (Estônia/2007), A onda (Alemanha/2008), Entre os muros da escola (França/2009) Embora nem todos os filmes sejam baseados em fatos reais, eles demonstram que o problema da violência nas escolas é comum ao conjunto das sociedades.

No Brasil, como sabemos, não é diferente; professores convivem com cenas reais de brigas entre alunos que envolvem agressões físicas com socos, chutes ou agressões psicológicas, por meio de ofensas, difamações (inclusive dirigidas aos próprios professores); e ainda grupos de alunos ou ex-alunos depredando o patrimônio, munidos de armas ou drogas, comprometendo a integridade da vida escolar.

As formas de violência no ambiente escolar são variadas e envolvem uma mutiplicidade de atos. O mesmo ocorre com os fatores determinantes para sua ocorrência, pois abarcam desde questões psicológicas, familiares, socioeconômicas, e também circunstânciais como o uso de drogas lícitas ou ilícitas.

No contexto das diferentes formas de manifestações da violência na escola, temos ainda o bullying, termo de origem inglesa, derivado do adjetivo bully, que significa valentão, tirano; um tipo de violência entre os alunos, caracterizada pela ocorrência de agressões de ordem física e/ou psicológica, geralmente por um longo período e de forma repetitiva, na qual se evidencia um desequilíbrio de poder entre agressor e vítima.

O bullying é um problema que vem sendo detectado como em muitas escolas, sejam públicas ou privadas. Mesmo assim, profissionais da educação desconhecem suas características, ou as graves consequências dos atos cruéis e intimidadores. Por conta desse desconhecimento, ele é confundido com a indisciplina ou brincadeiras entre alunos ou grupos de alunos, por vezes de caráter físico, que envolvem contato pessoal, discussões ou brigas corriqueiras, ocasionais, em pares de igual força e poder.

Nesse sentido, o livro Bullying e suas implicações no ambiente escolar, fruto de uma monografia defendida no curso de Pedagogia da UFBA em 2007, sob a orientação da professora Celma Borges, é uma obra importante, pois ajuda pais e profissionais da educação no entendimento dessa temática. Por meio de uma revisão bibliográfica, a autora analisa porque é tão difícil para as escolas detectarem o bullying, quais as consequências para o desenvolvimento cognitivo e afetivo dos alunos vitimados; como as escolas e as famílias podem prevenir e combater o bullying.

O livro é composto de pequenos capítulos, seis ao todo, incluíndo a conclusão. De maneira clara e objetiva, a autora apresenta na introdução a estrutura do livro, pontuando que seu trabalho não tem pretensão de apresentar soluções definitivas, mas desenvolver algumas reflexões sobre a gravidade do problema, e também medidas para o seu enfretamento no ambiente escolar.

No capítulo dois, a autora revisa os conceitos de violência e seus possíveis condicionantes como fator explicativo desse fenômeno.

Considera que o conceito varia em diferentes períodos da história da humanidade, ou seja, depende da forma como cada indivíduo compreende o tema, a partir de seus valores e sua ética.

Assim, o termo é complexo e polissêmico, visto que é usado para designar fenômenos variados e distintos. Dentre os fatores determinantes para a violência, entre os mais citados em sua revisão bibliográfica está a desestruturação familiar, e o alto índice de exclusão social.

No capítulo três, parte do histórico para explicar o conceito de bullying, e as diferenças entre bullying e indisciplina. Essa discussão que a autora traz é importante, porque sabemos que, embora os estudos sobre a questão da violência na escola já aconteciam desde os anos 70, na Suécia, Reino Unido, Estados Unidos da América (EUA), só nos anos 80 é que Dan Olweus, pesquisador da Universidade de Bergen na Noruega, desenvolveu os primeiros critérios para detectar o problema de forma específica, e assim diferenciá-lo de outras possíveis interpretações, que envolviam indisciplina e brincadeiras entre alunos – as chamadas gozações. Já no Brasil, até 2003, o termo não era mencionado nas pesquisas sobre violência escolar, somente em 2005, conforme a autora, os estudos de Lopes Neto (2005), Fante (2005), Seixas (2005) e Murriel e outros autores. (2006) discutem a questão (p. 36).

Segundo Pereira, o bullying se manifesta através de insultos, intimidações, apelidos cruéis, gozações que magoam profundamente, acusações injustas, tomar pertences, meter medo, atuação de grupos que hostilizam, ridicularizam e infernizam a vida de outros alunos, levando-os à exclusão, além de danos físicos, morais e materiais. (p.31) Em geral, podemos notar que as vítimas não dispõem de recursos, status e habilidade para reagir porque estão numa relação desigual de poder com os agressores, ou por razões psicológicas, econômicas ou sociais. Os agressores se valem dessas incapacidades para infligir dano, seja porque alcançaram algum tipo de gratificação emocional com tal postura, ou pretendem obter alguma vantagem específica como se apossar de dinheiro, de objetos da vítima, ou ainda solidificar posições na hierarquia do grupo onde estão inseridos, e aumentar sua popularidade entre os demais colegas. O caráter intencional ainda é justificado pela escolha de grupos com características físicas, socioeconômicas, de etnia e orientação sexual, específicas.

Nesse sentido, ser diferente é um pretexto para que o autor do bullying satisfaça a sua necessidade de agredir, ofender e humilhar alguém. Os agressores buscam em suas vítimas algumas diferenças em relação ao grupo no qual estão inseridos. A prática de bullying se constitui numa prática de rejeição perversa, que priva o indivíduo, considerado “diferente e inferior”, de sua dignidade, e de seu direito de participar e existir socialmente.

A autora estabelece diferença entre disciplina, indisciplina e bullying: Disciplina são regras básicas de convivência, a indisciplina pode ser percebida como uma fuga as regras, uma não obediência, pelo aluno, às regras preestabelecidas, no caso da escola. (p. 52) Porém, não podem ser confundidas, visto que a primeira provoca transtornos disciplinares de fácil solução. A segunda provoca transtornos mais complicados, pois prejudica o desenvolvimento natural de seus envolvidos, tanto no emocional como no cognitivo e psicológico.

No capítulo quatro, apresenta as consequências e implicações do bullying, tanto para vítima quanto para agressor, demonstra os aspectos psicológicos e cognitivos implicados. Para os agressores, as prováveis consequências podem ser: crença na força para solução dos seus problemas; dificuldade em respeitar a lei e os problemas que daí advêm; problemas de relacionamento afetivo social. (p. 62) Já para as vítimas, existe perda de concentração na escola, de autoestima, problemas de relacionamento, síndrome do pânico, depressão, e podem levar a atitudes mais extremas como o suicídio.

No quinto capítulo, discute alguns modelos de prevenção/ intervenção de alguns países para minimizar a violência nas escolas.

No entanto, aponta que não existe uma receita única, mas várias que deram certo, como as estratégias estabelecidas no currículo, no projeto pedagógico, articuladas à gestão da escola.

Além disso, considero importante que cada escola estabeleça um projeto que reconheça seus limites, possibilidades, compreendendo ainda sua diversidade. É preciso, pois, que a união, as secretarias estaduais e munícipais se comprometam com a formação de professores para o enfretamento do bullying. O livro, portanto, é uma excelente oportunidade para começar o debate no espaço escolar; um suporte teórico que nos ajudará, entre outras questões, a distinguir os alunos que praticam bullying dos alunos indisciplinados, e medidas de intervenção para sua prevenção.

Telma Brito Rocha – Doutoranda em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

The 2009 horizon report – JOHNSON et al. (RF)

JOHNSON, L.; LEVINE, A.; SMITH, R. The 2009 horizon report. Austin, Texas: The New Media Consortium, 2009. ISBN 978-0- 9765087-1-7 Disponível em: . Resenha de: HALMANN, Adriane Lizbehd. Revista FACED, Salvador, n.15, jan./jul. 2009.

Tendências tecnológicas na educação*

Quais as tendências tecnológicas e como elas alteram a educação? Esta questão aponta para um contexto em constante transformação, o qual é objeto de estudos do Horizon Project, formado por grupo de pesquisadores de importantes instituições educacionais.

Anualmente, através do diálogo entre estes educadores, que analisam pesquisas, artigos e sites, é publicado o Horizon Report, um relatório que aponta tendências tecnológicas na educação.

No site do projeto1 é possível ter acesso aos seis relatórios anuais publicados, inclusive ao mais recente deles, na edição 2009.

O relatório de 2009, sob licença Creative Commons2, ao longo das 36 páginas, apresenta tecnologias que, segundo eles, serão “adotadas” na educação entre um ano ou menos (tecnologias móveis e nuvens computacionais), dois ou três anos (geo-taggin – tudo conectado e localizado; personal ideia – a web como plataforma e de cada um) e quatro ou cinco anos (Aplicações web semânticas – o que, segundo eles, seria feito pelas máquinas inteligentes; Objetos inteligentes/smarts – internet nas coisas, coisas que “sabem” sobre si). Cada uma das duas tecnologias de cada um dos três tópicos é abordada em uma visão geral; relevância para o ensino, aprendizagem, pesquisa e expressões criativas; exemplos; e leituras adicionais.

Ao longo do relatório são abordadas algumas tendências chave nas mudanças dos próximos anos nas práticas de ensino, pesquisa e expressão criativa. Uma dessas tendências se refere ao modo como as pessoas, globalmente, têm alterado suas práticas de trabalho, colaboração e comunicação por meio das tecnologias, especialmente as tecnologias de informação e comunicação. Cada vez mais, alunos e professores estão conectados – espaços de colaboração online, comunidades virtuais, mobilidade/tecnologias móveis, voz sobre IP… – transcendendo as tradicionais “bordas” (fronteiras) da escola. Neste contexto, a noção de inteligência coletiva é redefinida, pois, enquanto muitos veem os atuais potenciais da web como um amadorismo de massa e investem em instrumentos de controle, os jovens pedem para participar ativamente do processo de aprendizagem, não como meros ouvintes, mas utilizando todo o potencial do acesso fácil ao vasto conhecimento disponível, bem como o desenvolvimento de novos ambientes.

Os jogos, amplamente difundidos entre os jovens, passam a ter grande relevância neste quadro, pois oferecem oportunidades de interação social alargada e possibilitam que o jovem simule, construa e se posicione frente a situações hipotéticas. Algumas estratégias de aprendizagem baseadas em jogos demonstram que os jovens aprendem significativamente através dessa participação ativa e a interação, sinalizando que métodos tradicionais que não engajam os estudantes não são suficientes. Ao mesmo tempo, as ferramentas para a produção de informação tornam-se cada vez mais intuitivas, indicando para a escola a necessidade da apropriação de linguagens variadas, extrapolando a memorização de textos. Relacionado a tudo isto, encontramos as tecnologias móveis, em um contexto onde são produzidos um bilhão de celulares por ano, e que, cada vez mais, ferramentas “indispensáveis” às pessoas são integradas a estes aparelhos. Estes desenvolvimentos impactam e influenciam transformações na vida de todos, nas formas de se comunicar, trabalhar e, como é aprofundado ao longo do relatório, no aprender, colocando em questão as formas de ensino, as formações dos professores e os conteúdos das escolas.

Mas o relatório também aponta desafios para essas transformações. Novas necessidades estão postas, muitas delas que transformam as formas de ler e escrever, demandando novos materiais didáticos, em outros suportes e mídias e, inclusive, alterando sua concepção de produto estático e abrindo a possibilidade de colaboração dos próprios estudantes. Os métodos de ensino também necessitam ser renovados, de forma que potencializem o ensino, a aprendizagem, a pesquisa e as expressões criativas, considerando os alunos de hoje (nativos digitais) e suas atuais condições. A estrutura da escola também deve ser repensada, pois os atuais currículos não contemplam a relação com os saberes que os alunos estabelecem na web, tampouco suas potencialidades criativas de apropriação. Esta nova escola deve priorizar o percurso do aluno, incentivando que ele colete, analise e compartilhe resultados autonomamente, não difundindo mais a ideia de pesquisa como geradora de produtos estáticos. O aluno, além de consumir informações, deve ser capaz de gerenciar e interpretar os dados rapidamente.

Este aluno já está permeado pelos serviços web e de telefonia móvel, sendo que a cada dia novos serviços são lançados e transformam o cotidiano destes jovens, facilitando e acelerando o acesso às informações, a interação com outros sujeitos e, inclusive, a construção de novas soluções. Este é um contexto que coloca em xeque a atual escola e seus processos.

Esta publicação representa um importante referencial para os pesquisadores da área, pois traça um panorama do desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, em especial os serviços web, identificando “impactos” destas na educação.

É importante ressaltar, contudo, que este “impacto” não deve ser pensado como algo pronto que “atinge” a escola de fora para dentro.

Pelo contrário, apesar de enfatizar o “impacto” das TIC na escola, os autores discorrem sobre o aspecto relacional da web, do modelo de construção e desenvolvimento feito pelos próprios usuários (ao contrário de uma dita cultura das massas), do papel dos jovens na construção do conhecimento e na apropriação dos instrumentos e processos que perpassam a web.

Devemos pensar a escola como parte deste processo, que deve caminhar e se repensar com ele. Estas tendências não são receitas ou pacotes que a escola deve aderir para se “adequar” a novos modelos de negócios ou informacionais. Mais do que tudo, esta publicação demonstra que a escola é parte atuante desta sociedade que constrói o contexto atual e não pode se colocar à parte dele, pelo contrário, deve participar, propor, criar contextos propícios à expressão criativa. Por ser um contexto em constante transformação, a escola não deve ter como objetivo maior “correr atrás das demandas da sociedade”, ou ainda, colocar a internet na escola, mas sim, precisa aprender a aprender, colocar a escola na internet3.

Notas

1 Horizon Project – http:// www.nmc.org/horizon

2 Creative Commons (tradução literal: criação comum também conhecido pela sigla CC) é o termo usado para o conjunto de licenças padronizadas para gestão aberta, livre e compartilhada de conteúdos culturais em geral (textos, músicas, imagens, filmes e outros). Com ela o autor define, através de vários módulos disponíveis, quais direitos ele abdica em favor do seu público, de modo a facilitar o compartilhamento e recombinação dos conteúdos. Muitas vezes o autor permite que qualquer pessoa copie e recombine livremente sua obra (o que não é permitido com o copyright), desde que reconhecendo a autoria.

3 Esta expressão é amplamente utilizada por Nelson De Luca Pretto em suas obras. Ver especialmente a entrevista O futuro da escola, publicada no Jornal do Brasil em 28 de novembro de 1999. Disponível em: . Acesso em: 9 jun. 2009.

Adriane Lizbehd Halmann – Doutoranda em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora titular da Universidade Estadual de Santa Cruz/BA. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original