Moeda e poder em Roma: um mundo em transformação – CARLAN (RAP)

CARLAN, Cláudio Umpierre. Moeda e poder em Roma: um mundo em transformação. São Paulo: Annablume, 2013, 214p. Resenha de: RAMALHO, Jefferson. Revista Arqueologia Pública, Campinas, São Paulo, v.10, n. 2, p. 115-119, jun. 2016,

Trabalhar com moedas é algo diferente, inusitado […] é percorrer a história da humanidade em todas as suas facetas. É reunir e integrar dados reveladores de momentos áureos, de crises, de guerras […] É colocar no presente os mistérios do passado (LUDOLF, 2002: 199).

A atenção que moedas recebem é tão antiga quanto elas próprias. São artefatos peculiares e importantes para o estudo da História. A numismática é a ciência que estuda as moedas, podendo atingir um alto grau de precisão técnica e classificação. É um campo de estudo imenso, uma vez que esses pedaços de metal estão repletos de informações sobre os mais diversos interesses da História: Arte, Religião, Economia, Política, sobre sociedades e civilizações. Manoel Severin de Faria, sacerdote católico e numismata português do século XVII aponta que “nas imagens das moedas e suas inscrições se conservava a memória dos tempos, mais que em nenhum outro documento” (LUDOLF, 2002: 199).

A forja de uma ciência própria para o estudo desses pequenos objetos metálicos antigos inicia-se na Idade Moderna com as coleções: a busca pelo passado greco-romano. Francesco Petrarca e Guillame Budé são duas das figuras principais que ajudam a configurar a gênese formal dos estudos das moedas. Com o passar dos tempos e a consolidação do colecionismo, assim como o aumento de material (moedas) disponível para estudo e avanços museológicos, surgem as sociedades numismáticas.

O livro de Carlan, Moeda e poder em Roma, trata – inicialmente – da questão do colecionismo e sua gênese, culminando na ascensão de museus, como o Museu Histórico Nacional no Rio de Janeiro, e de gabinetes numismáticos, como o da Catalunha em Barcelona. Em seguida, apresenta um catálogo de moedas romanas – de grande valor, já que é fundamental para o trabalho numismático – separado por imperador, temas e exergo2 do reverso3. Sendo assim, o centro do livro é a análise de uma coleção composta por 1888 moedas, cunhadas no IV século do Império Romano, do MHN. Trata, também, dos diferentes tipos monetários da Antiguidade Tardia e todo seu contexto socioeconômico, político, e histórico. Por fim, analisa a propaganda por meio da moeda e relaciona a legitimação de poder com a vasta iconografia monetária.

É muito difícil tentar traçar as origens do colecionismo, já que o homem coleciona desde o Paleolítico e é difícil determinar o motivo (SOUZA, 2009: 01). Porém, o resgate do passado greco-romano remonta, como expõe o professor Carlan, aos tempos pós-invasões bárbaras e à formação dos jovens estados modernos. Durante o Renascimento, essa prática floresceu a partir de novos interesses e valores históricos e artísticos. Um trabalho importante, conhecido como um dos primeiros catálogos numismáticos do período foi o Illustrium Imagines elaborado por Andrea Fulvio que contém imagens de diversas moedas e bustos antigos. Além de abundantes e portáteis, a variedade de bustos, cenas, símbolos e figuras estampadas nas moedas antigas encantavam aos numismatas de uma época em que se tinha “fome” por imagens, em especial, greco-romanas. (CUNNALY, 1999: 12)

Já no século XVIII, a Vila Albani torna-se um centro de encontro de colecionadores e estudiosos do período que, como Wicklemann (1717 – 1768), buscavam imitar a cultura Clássica Antiga. A Society of Dilletani, também do XVIII, promoveu campanhas arqueológicas com o objetivo de estudar, conhecer e analisar as ruínas greco-romanas, o que contribuiu para o aumento do material numismático disponível para estudo (CARLAN, 2013: 41).

A atividade do colecionismo é somada aos avanços museológicos iluministas que, através da arte, buscavam um processo de regeneração cultural (burguesia x aristocracia, arte “racional” x arte rococó). O Museu Britânico de Londres é considerado o pioneiro e, de maneira geral, apresentou (e ainda apresenta) – sustentado pela arte – as diferentes etapas da cultura material em diversas sociedades.

Toda essa contextualização e explicação sobre museus é transportada, no texto, para a comparação entre o Gabinete numismático da Catalunha e o Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro. Ambos tiveram a mesma formação: através de doações em períodos relativamente próximos. Umas das diferenças seria a forte relação entre a fundação do MHN e o nacionalismo. Carlan ainda destaca que a numismática não está presa nos museus já que a moeda é um prato cheio para o estudo da História Econômica, Política, da Arte e as relações sociais existentes em sociedades monetarizadas4 (CARLAN, 2013: 48).

4 No vocabulário numismático, uma sociedade monetarizada é aquela – segundo os padrões modernos – que possui um sistema monetário que adotou a moeda metálica como meio de troca.

A análise seguinte é a de sete peças numismáticas de quatro imperadores diferentes: Constante (1 peça), Constâncio II (1); Honório (2) e Arcádio (3). As moedas antigas devem ser pensadas como um corpus documental que possui um emissor que quer transmitir uma mensagem – por meio de representações e signos – para um destinatário ou receptor. Sendo assim, a moeda possui uma função política, social, administrativa, militar, religiosa e econômica dentro da sociedade Romana (CARLAN, 2013: 64). Para o estudo seguinte no livro, utilizou-se do “esquema de Lasswell”5.

O centro analítico do livro são as 1888 moedas cunhadas nos século IV d.C.. A análise quantitativa executada separou as numárias em três: imperador (de Diocleciano a Galério), reverso (e seus temas) e exergo (local de cunhagem). O estudo recebe ainda, um amplo contexto histórico de cada imperador o que é fundamental para os estudos posteriores a serem elaborados a partir das mesmas numárias. O maior número de moedas do acervo (360) são as de Constantino com ênfase nos temas militares e religiosos. A explicação de Carlan para tal verificação é:

Era preciso pagar o exército, legitimar o poder dos imperadores perante a tropa, homenagear ou favorecer uma determinada legião, demonstrar a segurança do seu governo divulgando a construção de muralhas ou campos militares, representar a sua vitória – a vitória de Roma – sobre um determinado inimigo (CARLAN, 2013: 172).

O contexto histórico apresentado é o do século IV: Tetrarquia e a divisão de tarefas civis e militares entre os imperadores, as reformas da Tetrarquia, o processo de ruralização do Império Romano – ação de mão única -, crise institucional (assassinato de 19 imperadores), guerra contra o Império Persa, as legiões romanas e as modificações da guerra e a análise da economia do período com ênfase no fator numismático: é interessante notar que é neste trecho que Carlan aborda o outro lado da numismática e examina em detalhe a crise dos preços, o valor da moeda, a variação de pureza dos metais usados nas cunhagens e da balança comercial romana.

Por fim, é feito o estudo da moeda, propaganda e legitimação do poder. É fundamental ler os símbolos contidos nos reversos das moedas romanas que constituem um corpo de informação a ser interpretado pelo receptor. Busca-se as intenções e interesses que explicam a motivação do emissor ao cunhar aquele tipo. Sendo assim, faz-se necessário analisar ambos os lados da moeda que compõe um documento vastíssimo que, aliado a outras fontes, nos ajuda a produzir uma interpretação do passado.

De maneira geral, pode-se dizer que a obra de Carlan contribui para o fortalecimento dos estudos numismáticos acadêmicos no Brasil que ainda são considerados, de certa forma, incipientes. Há, entre os historiadores, certo preconceito sobre o uso de moedas como documentos, já que a maioria dos intelectuais da área prefere utilizar a antiga forma de documento: impressa em papel, catalogada e disposta em um arquivo ou biblioteca (CARLAN & FUNARI, 2012: 29).

Tal hábito vem se alterando desde os Annales, que contribuíram para uma nova concepção sobre documentos. A moeda – que sofreu suas devidas alterações ao longo da História – faz parte do cotidiano de todos e revela uma forma de produzir, aliada a outros tipos de fontes, uma interpretação do passado distinta: já que a moeda, antiga ou contemporânea, é capaz de nos dizer muito sobre sociedades, suas concepções, economia, arte, política e tecnicismo (maneiras de produção das moedas). O livro de Carlan é uma leitura interessante para aqueles já inseridos ou não na temática romana da numismática, pois aborda conceitos básicos mesmo durante reflexões mais profundas do tema.

Notas

1 Graduando em História pela Universidade Estadual de Campinas, bolsista do CNPq, [email protected].

2 Local inferior do campo da moeda, onde se encontra a data e a casa monetária, quando existem tais informações.

3 Face oposta ao Anverso (lado principal da moeda que representa quase sempre a entidade emissora). Na gíria popular é conhecia como “coroa”.

5 Harold Laswell (1902-1978): pioneiro na análise de conteúdos aplicados à política e à propaganda. Levantou teorias sobre o poder da mídia de massa. O esquema de Laswell analisa os meios de comunicação partindo da “análise de conteúdo”: uma série de questionamentos relacionados aos meios de comunicação (no caso do livro de Carlan, a moeda na Roma antiga). Alguns exemplos são: “Quem?; Diz o que?; Em qual canal?; Para quem?; Com quais efeitos?”

Referências bibliográficas

CARLAN, Claudio Umpierre. Moeda e poder em Roma: um mundo em transformação, São Paulo, Annablume, 2013.

CARLAN, Claudio Umpierre; FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Moedas, a Numismática e o estudo da História. 1ª edição, São Paulo, Annablume/Fapemig/Unifal/Unicamp, 2012.

CUNNALLY, John. Images of the Illustrious: the numismatic presence in the Renaissance, Princeton, Princeton University Press, 1999.

LUDOLF, Dulce. “Que é Trabalhar com Moedas” In: O outro Lado da Moeda. Livro do Seminário Internacional. Rio de Janeiro, Museu Histórico Nacional, p.199-200, 2002.

SOUZA, Helena Vieira Leitão de. “Colecionismo na modernidade” In: Simpósio Nacional de História, Fortaleza, 25. Anais do XXV Simpósio Nacional de História – História e Ética. Fortaleza: ANPUH, p. 1-9, 2009.

Jefferson Ramalho – Doutorando em História Cultural (IFCH-UNICAMP) como bolsista CAPES e sob orientação do professor Dr. Pedro Paulo Abreu Funari, além de ser mestre em Ciências da Religião (PUC-SP) com licenciatura em História e bacharelado em Teologia. E-mail: [email protected]

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