A relação da cidade com os rios | Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte | 2019

A relação da cidade com os rios. Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. Belo Horizonte, v.6, dez. 2019. Acesso apenas pelo link original.

Rios e Sociedades / Revista Brasileira de História / 2019

Movimentos dos rios / movimentos da História

Aos que entram nos mesmos rios afluem outras e outras águas.

Heráclito, fragmento 12, 2012, p. 47.

A relação estreita entre o desenrolar da história humana e os movimentos das águas na superfície terrestre, especialmente os movimentos dos rios que cruzam os continentes para além dos espaços litorâneos, pode ser pensada, de início, por meio de algumas poderosas metáforas. Heráclito de Éfeso, no século VI a.C., usou o rio como imagem da história em seu sentido mais amplo: o próprio fluxo da existência. A renovação permanente das águas do rio, que ao mesmo tempo persiste como uma unidade definida pelas suas margens, indica o jogo complexo entre mudança e continuidade que pode ser observado no acontecer do mundo. Milênios mais tarde, em seu livro clássico, publicado em 1946, O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Filipe II, Fernand Braudel também usou o movimento das águas como metáfora para os diferentes níveis de profundidade em que se pode analisar a História, apresentando os “acontecimentos” como “cristas de espuma levantadas pelo poderoso movimento das marés” (Braudel, [1946]1995, p. 25).

Essas metáforas, assim como várias outras que poderiam ser mencionadas, adquirem um sentido humano concreto nas inumeráveis situações em que sociedades interagiram de maneira intensa com sistemas fluviais, de modo que estes últimos se tornaram agentes importantes para definir a localização geográfica e o próprio devir da vida cultural, social e econômica. Pensando apenas no mundo contemporâneo, pode-se observar como a proximidade e a relação intensa com rios de tamanho significativo ou, em sentido mais amplo, com bacias hidrográficas, estabeleceram padrões recorrentes no desenvolvimento de grandes cidades, de complexos agrícolas (em grande parte dependentes de obras de irrigação) e de estruturas industriais (que se valem dos rios para construir intrincados fluxos e metabolismos socioambientais que passam pela entrada constante de matéria e energia e pela saída de produtos mercantilizáveis e dejetos poluentes). Além dos exemplos acima, poderiam ser mencionados inúmeros outros casos históricos em que assentamentos humanos, dinâmicas de transporte, movimentos de lazer e turismo, expressões culturais e artísticas e crises de saúde pública, entre outros, passaram por uma interação aturada com sistemas fluviais.

No caso do território brasileiro, foco do presente Dossiê, é importante ressaltar que não se pode entender a formação da sociedade nacional, em sua grande diversidade, sem levar em conta o espaço continental onde o país foi construído, marcado por enormes e complexas redes fluviais. A vida social aqui existente, em sua variedade geográfica, econômica e cultural, interagiu de maneira acentuada com esse movimento incessante das águas, seja em termos de mobilidade, de processos de territorialização, de práticas culturais ou de dinâmicas de exploração econômica. Os rios também estiveram muito presentes nos conflitos armados e nas disputas por domínio político regional, assim como na própria construção objetiva do Estado nacional e de suas instituições. Amazonas, São Francisco, Paraná e Tietê, entre tantos outros rios, tornaram-se ícones no imaginário do Brasil. A interação com os rios, que já era essencial para as sociedades indígenas, transformou-se em aspecto inescapável da vida concreta das sociedades na América portuguesa e no Brasil enquanto país, inclusive nos seus espaços litorâneos.

Apesar da existência de farta documentação sobre o mundo dos rios em diferentes países, além da sua presença marcante em inúmeras descrições da vida social em diferentes latitudes, a atenção específica e explícita ao tema fluvial por parte da historiografia foi relativamente modesta até as últimas décadas. Em meados do século XX, no entanto, foi possível observar um esforço de inovação no recorte dos objetos de análise histórica, para além daqueles baseados em países e regiões definidos segundo um critério essencialmente político. Dentro dessa abertura, onde se situa o recorte da Zona da Mata nordestina como objeto de análise por Gilberto Freyre em 1937, ou do Mar Mediterrâneo por Fernand Braudel (no livro já citado de 1946), um importante precedente foi estabelecido por Lucien Febvre e Albert Demangeon com a publicação em 1935 de seu livro O Reno: Problemas de História e de Economia. Ironicamente, no entanto, uma iniciativa semelhante foi realizada quase ao mesmo tempo pelo escritor e jornalista Emil Ludwig, que em 1937 publicou um livro sobre a história de vida do rio Nilo (Ludwig, 1937). É natural, porém, que a obra de Febvre, por apresentar uma densidade de pesquisa bem mais sólida, tenha marcado com muito mais relevância a cena historiográfica. É certo que o trabalho foi escrito com uma clara perspectiva antropocêntrica, procurando descartar qualquer vestígio de determinismo geográfico. A ideia central é a do rio forjado pela história humana, mais do que pela natureza. O foco são as questões político-econômicas, servindo o rio como uma espécie de espelho geográfico para pensar, por exemplo, a transformação das fronteiras nacionais na Europa.

No período mais recente, já sob influência da nova história ambiental que emergiu a partir da década de 1970, a literatura histórica específica sobre os rios cresceu muito, tanto em termos quantitativos quanto no aspecto da diversidade temática. Não seria o caso de resumir essa literatura no curto espaço desta Apresentação.[1] De toda forma, uma tendência que se pode ressaltar na literatura recente, mesmo que de maneira muito geral, é a de considerar os rios em si mesmos, na sua materialidade biofísica e sociotécnica. Ou seja, ir além da visão do espelho exógeno que serve mais que tudo para observar diferentes aspectos da vida social. Os rios, nessa perspectiva, são introduzidos no corpo da história, nos seus movimentos endógenos. A materialidade dos rios, incluindo suas transformações ao longo da história, expressa em si mesma a rede de interações sociais, tanto culturais quanto tecnoeconômicas, que com ela vem interagindo. Essa mesma materialidade, porém, inclusive nos seus aspectos biofísicos e ecológicos, participa e influencia no destino dessa rede complexa (que vem sendo conceituada mediante expressões como sócio-natureza ou devir biocultural). Um trabalho de grande influência, que abriu importantes horizontes dentro dessa nova perspectiva, foi o livro de Richard White The Organic Machine: The Remaking of the Columbia River (White, 1995). Nesse livro, o rio Columbia é visto como uma paisagem híbrida construída pela natureza e pelas diversas intervenções sociotécnicas e culturais ao longo do tempo. A materialidade do rio, além disso, expressa as diferenças de concepção e de interesse dos vários atores sociais que com ele interagiram, tornando-se ao mesmo tempo um fenômeno material e um espaço em disputa.

Em que momento os historiadores se debruçaram sobre a história das intricadas relações entre rios e populações no Brasil? Talvez, uma historiografia muito centrada no litoral e na sua oposição ao sertão, como matriz fundante de uma ideia de nação (notadamente, a partir de finais do século XIX), tenha subestimado essa temática. De toda forma, uma historiografia mais explícita e substantiva com relação ao tema dos rios começou a emergir no país em período recente, na virada para o século XXI – o que não significa dizer que não existia nada de relevante no passado. Ao contrário, existe uma interessante herança intelectual a ser redescoberta nesse campo. É possível encontrar, em alguns historiadores do século XX, importantes análises indiretas que, sem tomar os rios como eixo do recorte analítico, perceberam muito bem a sua presença marcante em diferentes momentos da história do país. Cabe destacar, por exemplo, as fortes descrições de Gilberto Freyre na década de 1930, no livro já mencionado (Freyre, [1937]2004), sobre as dinâmicas de envenenamento dos rios do Nordeste pelos resíduos das usinas de açúcar. Ou então, de maneira ainda mais notável, os trabalhos de Sérgio Buarque de Holanda, nas décadas de 1940 e 1950, sobre a centralidade da navegação fluvial nos movimentos de exploração dos sertões do Centro-Oeste partindo de São Paulo. O livro Monções, de 1945, em especial, apresentou elegantes e inovadoras análises sobre as relações entre rios e sociedades naquele contexto, particularmente pelo conceito de “estradas móveis”, que foram pensadas, de maneira próxima das tendências mais recentes, em sua própria materialidade, considerando detalhadamente as corredeiras e cachoeiras, os períodos de cheias etc. Ainda em 1948, inspirado pelo tema da expansão paulista e pelo trabalho de Emil Ludwig, o poeta Humberto de Mello Nóbrega publicou um livro que recortava de forma inovadora, ao menos no contexto nacional, um rio específico como objeto de análise histórica. Apesar de não ser uma análise profunda, o livro História do Rio Tietê (Mello Nóbrega, [1948]1981) é bastante abrangente e informativo, discutindo diferentes aspectos da relação entre a sociedade paulista e aquele rio – desde os esforços para promover sua navegação até, por exemplo, seu papel como inspirador de arte e literatura. Na formulação do próprio autor, porém, o rio é visto “ora como cenário, ora como comparsa”, já que o protagonismo é sempre do homem.

Nas décadas seguintes, alguns ensaios foram publicados sobre rios emblemáticos, como no caso do São Francisco e do Amazonas,[2] mas trabalhos situados no quadro de uma historiografia acadêmica, com maior elaboração teórica e metodológica, só irão aparecer nas portas do século XXI. É o caso do belo trabalho de Victor Leonardi sobre o complexo do rio Negro e suas cidades abandonadas: Os historiadores e os rios: natureza e ruína na Amazônia brasileira (Leonardi, 1999); do amplo estudo de Haruf Espindola sobre a ocupação histórica de um importante vale fluvial entre Espírito Santo e Minas Gerais: Sertão do Rio Doce (Espindola, 2005); do estudo de Janes Jorge sobre o rio Tietê na cidade de São Paulo, mostrando a relevância de aproximar história urbana e história fluvial: Tietê – o rio que a cidade perdeu (Jorge, 2006); por fim, da rica e diversificada coletânea organizada por Gilmar Arruda com o título de A natureza dos rios (Arruda, 2008). Esses trabalhos, já participando de um diálogo aberto com a historiografia internacional e com a perspectiva da história ambiental, abriram caminho para o tipo de historiografia profissional e mais rigorosa, apesar da sua variedade de enfoques, que poderemos encontrar nos autores que responderam ao chamado para o presente Dossiê. Uma historiografia que se aproxima da temática dos rios a partir de diferentes dimensões e recortes, explorando as ricas conexões ecológicas, geográficas, socioeconômicas e culturais que podem ser observadas com relação ao mundo dos rios em diferentes momentos e lugares da história do Brasil.

O artigo de André Vasques Vital recupera a história do Território do Acre de princípios do século XX, no contexto de desenvolvimento da economia da borracha na Amazônia brasileira. Com base em uma discussão com bibliografia recente, o autor discute os limites da agência histórica pensada apenas a partir da ação humana. Seu texto aprofunda uma importante reflexão sobre o papel do rio Iaco, suas dinâmicas de cheias e vazantes e as consequências e imprevisibilidades desse regime na ação humana. Assim, os tumultuosos acontecimentos políticos e econômicos ocorridos no Território do Acre, depois de sua anexação ao Brasil, ganham novos sentidos também pela atuação (imprevisível muitas vezes) do rio e pelas implicações das dinâmicas fluviais (como o incremento de doenças decorrentes das águas empoçadas). O rio Iaco é aqui uma “coisa-poder”, nas palavras do autor, fundamental para compreender as articulações políticas locais da região.

Ana Lucia Britto, Suyá Quintslr e Margareth da Silva Pereira abordam a transformação da região da Baixada Fluminense entre finais do século XIX e a primeira metade do século XX. Apoiadas em uma sólida reflexão sobre os rios na historiografia, tanto no campo da história ambiental como no campo da história dos sistemas sociotécnicos, as autoras desvendam como os rios da região foram alvo de diversas formas de intervenção ao longo do tempo. Mais ainda, examinam os impactos dessas intervenções desde finais do século XIX. Trata-se de entender como se articularam as dinâmicas fluviais com as dinâmicas sociais, entendendo os rios como “sistemas tecnológicos e ambientais”. É a partir de meados do século XIX, com a introdução da ferrovia, que a região e seus rios sofrem transformações significativas. De região rica passa a ser considerada área insalubre e improdutiva, o que ensejará, nas primeiras décadas do século XX, diversas intervenções, no sentido de sanear a região e torná-la produtiva. Esse processo, levado a cabo pelo Estado, dá ensejo ao surgimento de uma “hidrocracia” responsável pelas políticas de intervenção nos rios da Baixada Fluminense.

Gabriela Segarra Martins Paes analisa o mito dos negros d’água do rio Ribeira de Iguape, na região do Vale do Ribeira. Trata-se de recuperar e compreender as matrizes culturais e os significados atribuídos pela população da região à existência desses seres encantados aquáticos geralmente identificados com um rapaz negro de baixa estatura, muitas vezes com pés e mãos de pato. O mito relaciona-se com a presença de africanos escravizados na região, desde o século XVII, e com as modernas comunidades remanescentes de quilombo. A autora aprofunda a sua reflexão, mostrando a relação histórica entre os escravizados da região do Vale do Ribeira e a África Centro-Ocidental, onde estavam enraizadas crenças acerca de espíritos das águas. Revela assim os diversos pontos em comum entre as crenças dos dois lados do Atlântico, como o local de habitação dos seres encantados e os temas do sequestro de mulheres, do sentido ventura-desventura e da relação e interferência entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Na realidade, o mito dos negros d’água remete ao tráfico negreiro e à escravidão. De fato, envolve a travessia de águas e o renascimento num novo mundo (muitos negros d’água teriam sido capturados e gerado descendência na região), mas também a violência (seus pés e mãos eram cortados), o aprendizado de uma nova língua, a relação entre seres diferentes e o uso do sal associado ao batismo. Enfim, para Gabriela Paes, o enraizamento do mito na região decorre da sua capacidade de “servir de metáfora” da experiência da viagem atlântica e da própria escravidão.

O texto de Henri Acselrad retoma as experiências dos atingidos pela construção da barragem da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no estado do Pará, nos anos 1970 e 1980. O barramento do rio Tocantins implicou não somente a inundação de uma imensa área para conformação do lago da usina. Teve, de fato, inúmeras implicações do ponto de vista ambiental (como a decomposição da matéria orgânica que ficou debaixo da água), por ensejar o aparecimento de pragas de mosquitos, por exemplo, mas igualmente do ponto de vista social. Inúmeros grupos populacionais que havia séculos viviam no e do Tocantins tiveram sua vida alterada, sendo deslocados para outros espaços ou para novos espaços criados pelo barramento. Essas populações heterogêneas, que viviam ao longo do curso do rio, mobilizaram-se contra autoridades públicas e empresariais, ligadas ao empreendimento, para denunciar os desmazelos, a negligência e a violência que significou esse processo. O texto, entretanto, não examina exatamente esses movimentos, mas sim, de maneira muito original, o processo de produção escrita dessas populações atingidas, por meio de manifestos, cartas, boletins e cordéis. A produção e circulação de impressos por parte de uma população vinculada majoritariamente à tradição oral permitiu transformar “um caso em uma causa”. Isso significou o aparecimento de um “novo autor” da história do rio – os atingidos pela barragem. O escrito produzido e publicado pelos diversos grupos afetados permitiu, assim, não somente a produção de um registro sobre a memória do rio Tocantins, mas também a produção de um registro para a ação. A força do “artefato impresso” reside na duração que lhe permite ser “recebido e reconhecido”. Nesse sentido, os impressos produzidos pelos atingidos pela barragem do rio Tocantins fizeram parte de suas lutas e serviram como forma de rememoração dessas próprias lutas.

Iane Maria da Silva Batista e Leila Mourão Miranda retomam a questão dos rios da Amazônia, mas a partir de uma perspectiva distinta do texto de Acselrad, embora se referindo ao mesmo contexto. As autoras partem de uma reflexão sobre os usos e representações das águas e de como essas formas se transformam ao longo do tempo. Assim, notadamente a partir da segunda metade do século XX, os rios se reconfiguram em recursos naturais por parte do Estado e de interesses privados. Disso deriva, desde os anos 1950, o seu reconhecimento para os planos de desenvolvimento da região, principalmente, relacionados aos projetos de exploração das riquezas minerais da Amazônia. Esse processo de comoditização da água, por meio da construção de usinas hidrelétricas na região amazônica, fez os rios se tornarem lugares de “hidronegócios”. Ora, argumenta-se no texto, esse tipo de representação e uso da água dos rios da região vai de encontro a outras relações, construídas secularmente pelas populações da região. Mais ainda, a transformação da água dos rios em mercadoria tem causado enormes impactos socioambientais. As implicações da reconfiguração da água dos rios em mercadoria nos obrigam, desse modo, a repensar a relação que construímos com a água nas últimas décadas.

Haruf Salmen Espindola, Eunice Sueli Nodari e Mauro Augusto dos Santos exploram um acontecimento recente, um desastre, ocorrido há quase 4 anos. Trata-se do rompimento da barragem de Fundão, que pertencia a dois grandes grupos de exploração mineral: as empresas Vale S.A. e BHP Billinton. Para os autores, é preciso compreender o termo desastre numa perspectiva ampla, uma vez que a fatalidade significou não somente o rompimento da barragem, mas uma série de acontecimentos que envolveram e ainda envolvem áreas rurais, áreas urbanas, rios, reservas e a zona costeira, impactando a vida de seres humanos, da flora e da fauna. O artigo revela a complexidade das consequências do desastre, uma vez que os efeitos (e as ações mitigadoras) foram diversos ao longo de toda a área afetada. O texto introduz, também, a noção de “incerteza” para se pensar a constatação de que a mineração industrial representa um “grande risco” (não há aqui como não pensar no recente caso do desastre de Brumadinho). A reflexão do texto finalmente aborda o problema da diversidade de narrativas sobre o acontecimento, envolvendo diferentes grupos e instituições, muitas vezes contraditórias entre si, ensejando o próprio aumento das incertezas.

Por fim, o texto de Cristina Brito examina, por meio dos rios, a relação das sociedades com os manatis, na América colonial. A partir de uma reflexão sobre o lugar dos rios, a autora busca compreender a relação histórica com esses animais, inclusive na sua dimensão simbólica. Para ela, os manatis (como os rios) se tornaram metáforas dos “ritmos naturais e sociais”. Assim, a autora examina diversas representações textuais e imagéticas desses animais, produzidas no período colonial, mostrando como a chegada dos europeus à América impactou as populações dos manatis e como se reconfiguraram as representações sobre eles (embora estas não tenham sido muito abundantes). Discutem-se no texto até mesmo os múltiplos usos e representações indígenas sobre os manatis, com base na documentação produzida por europeus. A reflexão de Cristina Brito insere-se numa discussão sobre a relação entre o mundo humano e o não humano. Trata-se aqui de frisar o próprio protagonismo desses animais aquáticos no seu percurso de interações com as sociedades indígenas e com a sociedade colonial. Segundo a autora, os rios (onde habitavam os manatis) podem ser pensados como lugares de confluência de interações entre seres humanos e entre eles e os animais, enfim, entre “pessoas e a natureza”.

Rio poder; rio saneado; rio metáfora; rio protesto; rio negócio; rio desastre; rio animais. Embora referindo-se ao mesmo objeto – a história dos rios e sua relação com as sociedades -, os enfoques apresentados pelos textos deste Dossiê não somente são muito diversos, mas igualmente dialogam com campos de conhecimento distintos. Mais ainda, tratam de espaços / tempos múltiplos: a América colonial, os vários rios da Amazônia, do século XIX ao século XX, o rio Ribeira de Iguape e a África, a Baixada Fluminense da virada do século, o rio Doce de “ontem”. O que articula as discussões presentes neste Dossiê é certamente a necessidade de incorporar os rios – na sua agência, nas suas representações, na sua simbologia, nos impactos da ação antrópica sobre eles, enfim, na sua complexidade – à reflexão dos historiadores. É que, para um país composto por uma intrincada rede de milhares de rios, oficialmente agrupados em 12 bacias hidrográficas, não há como esquecer que, embora em grande parte ignorada, a “fluvialidade” é parte fundamental da formação histórica do Brasil.

Notas

  1. Uma amostra bastante significativa, reunindo historiadores de vários países, pode ser encontrada em MAUCH; ZELLER, 2008.
  2. Vale mencionar, por sua qualidade, trabalhos como O Médio São Francisco(LINS, 1952), O rio comanda a vida: uma interpretação da Amazônia (TOCANTINS, 1952) e Jângala: Complexo Araguaia (BERNARDES, 1994). Em período mais recente, é importante citar a informativa e interessante trilogia, com bastante material histórico, publicada pelo jornalista Marco Antônio Coelho: Rio das Velhas: memória e desafios (COELHO, 2002); Os descaminhos do São Francisco(COELHO, 2005) e Rio Doce: a espantosa evolução de um vale (COELHO, 2011).

Referências

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José Augusto Pádua – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de História, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0002-4524-5410

Rafael Chambouleyron – Universidade Federal do Pará (UFPA), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Faculdade de História, Belém, PA, Brasil. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0003-1150-5912


PÁDUA, José Augusto; CHAMBOULEYRON, Rafael. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.39, n.81, mai / ago., 2019. Acessar publicação original [DR]

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A cidade e os rios na história do Brasil / História Revista / 2009

Neste número apresentamos ao público o dossiê temático: A cidade e os rios na história do Brasil, organizado pelo professor Leandro Mendes Rocha (UFG), professora Gercinair Silvério Gandara (PNPD-CAPES / UFG) e professor Laurent Vidal (Université de La Rochelle / Paris III-Sorbonne Nouvelle). A temática é fruto da aproximação e cooperação acadêmica entre universidades brasileiras (Universidade Federal de Goiás, Universidade Católica de Goiás, Universidade Federal do Piauí, Universidade de Brasília, Universidade Federal de Viçosa, Universidade Federal do Pará) e universidades francesas (Universidade de Paris III-Sorbonne, Universidade de La Rochelle, entre outras). Nesta cooperação, incluem-se o intercâmbio de pesquisadores e a realização de eventos no Brasil e na França, bem como as publicações de pesquisas em parcerias. Como parte da cooperação realizou-se em junho de 2009, o III seminário itinerante franco-brasileiro intitulado: “A cidade e os rios na história do Brasil: identidades e fronteiras”, sediado em Belém do Pará. A temática principal deste evento foi as cidades e os rios da Amazônia brasileira. Na programação, intercalaram-se viagens planejadas pelos rios Guamá e Tocantins. Todavia, vale lembrar que, em agosto de 2004, organizou-se no Estado de Goiás, o primeiro seminário itinerante franco-brasileiro, e o objeto de estudos foi a história das cidades brasileiras com a temática “A cidade no Brasil: nascimentos, renascimentos – Séculos XVIII – XX”; contou-se com o apoio das Universidades Federal de Goiás, Estadual de Goiás e da Universidade de La Rochelle. Nesse evento propôs-se a refletir sobre a multiplicidade das formas de surgimento das cidades e do urbano nas regiões de fronteiras do Brasil.

Em maio de 2008, realizou-se o segundo seminário franco-brasileiro com a temática “a cidade e os rios na história do Brasil”. O objetivo foi investigar a importância dos rios e das vias de comunicação naturais, na estruturação de uma rede urbana regional e nacional, sobretudo, a partir da segunda metade do século XVIII. Nesse seminário, procurou-se, ainda, compreender a configuração das identidades, nestas cidades, entre a atração do rio e a atração do interior, o foco principal foi o rio Parnaíba no Piauí, e três cidades foram visitadas, Teresina / PI, Parnarama / MA e Parnaíba / PI.

Em 2009, realizou-se o III seminário Itinerante Franco-Brasileiro intitulado: “A cidade e os rios na história do Brasil: identidades e fronteiras”. A missão neste evento foi investigar a forma como vivem as populações amazônicas, suas relações históricas, geográficas, econômicas, ambientais, sociais e culturais com os rios, com os diversos espaços de urbanidade e ruralidade, localidade e globalidade e, neste processo, como se pensam e produzem suas identidades na Amazônia contemporânea.

A proposta de eventos itinerantes surgiu e desenvolveu-se da necessidade de reivindicar para o público acadêmico o direito e a responsabilidade de conhecer essas histórias. Deste modo, a organização e publicação deste dossiê têm como princípio atender anseios de divulgar as pesquisas, bem como a proposta dos seminários itinerantes franco-brasileiro. Vale ressaltar que a proposta dos seminários itinerantes reflete uma postura acadêmica diferenciada. Considera-se, que as ciências humanas trouxeram ao conhecimento novas luzes a partir dos fundadores dos Annales, que conclamaram, os historiadores a saírem de seus gabinetes e farejarem “a carne humana” em qualquer lugar, onde pudesse ser encontrada por quaisquer meios. A partir de então o texto de historiadores ganhou contornos mais amplos, incluindo toda produção material e espiritual humana. De lá para cá se promoveu uma interdisciplinaridade entre a história e as demais ciências humanas, com objetivo de desenvolver uma metodologia adequada aos novos objetos e abordagens. Todavia, sabe-se que os eventos científicos no cotidiano acadêmico são componentes importantes e se realizam comumente nas dependências das universidades ou de instituições de pesquisas. Diante disso, os eventos itinerantes são avessos à rotina universitária. O equilíbrio e a sobriedade deste tipo de evento sobrepujam-se ao vigor emotivo da experiência, como do contato direto com os objetos estudados.

O pesquisador na itinerância desses seminários tem visão ampla do espaço-tempo e não se deixa aprisionar em compartimentações de alvenarias. E, quando o tema proposto envolve aspectos relacionados aos rios e às cidades, a itinerância se fortalece. Ela flutua, pois além de o objeto de estudo estar em permanente movimento, as suas margens surgem aos olhos atentos do investigador e emergem histórias profundas. Os rios até agora por nós itinerados são rios distantes, periféricos, pouco integrados à chamada vida nacional. Sabíamos que um grande número de rios brasileiros ficou sempre como um mistério a desvendar nas paisagens, nas gentes. Muitos rios brasileiros estão com seus dorsos lisos à espera daquele eterno fluir. O simbolismo do rio é o da fluidez. Foi sobre os alicerces desses esforços que erguemos orgulhosos os eventos e tentamos compor as histórias dos rios, das ribeiras e, ou, das cidades. Dos rios não nos impressiona apenas o equilíbrio e a pujança das proporções, a linha em que se desenvolvem e se estendem, serpenteando, a contornar a lomba dos declives. São as lições admiráveis, construções, na humildade do encantamento de quem sente o orgulho do rio ao emprestar seu dorso à arte, que se projeta aos olhos nus com a paixão, ou o desprezo dos sentimentos que o animam. E, os rios, nisto são tão sensíveis e expressivos, tão naturais, como a riqueza sedutora da própria vida. Patenteia-se, portanto, o comprazimento e, ao mesmo tempo, a consciência de obreiro, no respeito comovedor do material com que labora e, sobretudo, na exemplar devoção deste dossiê. Assim, no humano encantamento de ver luzir esta obra trabalhou-a com mãos laborosas para realçar nas suas páginas uma formosura, a dos rios e das cidades na história do Brasil. Há brandura no correr. Há gentes que lhes vão às margens com a dureza das suas vidas de quase todos os dias. Há o rio! As cidades aqui aparecem, definidas a golpes de luz, em meandros, vivos e secretos. E no escuro sonâmbulo das águas principia-se um grande espaço, que termina muito ao longe. Entre a nascente e a foz varrem a sombra dos vales que tomam um nítido colorido, nas suas saliências arquiteturais, as cidades.

No dossiê, “A cidade e os rios na história do Brasil”, reúnem-se pesquisas que trazem contribuições significativas ao abordarem diferentes aspectos da história das cidades e dos rios na história do Brasil.

O artigo “Vareiros do rio Grajaú”, de Alan Kardec Gomes Pachêco Filho, analisa a História, a memória e as condições, de trabalho dos vareiros negros e índios do rio Grajaú, localizado no centro sul maranhense, no início do século XX.

O artigo “Cadê a água que estava aqui? Os leitos secos na memória e na história”, de Alexandre Martins de Araújo, é um estudo de caso a respeito de para onde são mandados os rios que secam, mostra que os múltiplos espaços hidráulicos, principalmente aqueles cujos leitos já secaram, participam diretamente da construção de memórias.

O artigo “Entre rios, rodovias e grandes projetos: mudanças e permanências em realidades urbanas do baixo Tocantins (Pará)”, de Bruno Cezar Pereira Malheiro e Saint-Clair Cordeiro da Trindade Júnior, traz a reflexão acerca das mudanças e permanências das cidades ribeirinhas na Amazônia, assume uma importância especial, pois permite analisar o perfil sócio-espacial dessas cidades consideradas tradicionais.

O artigo “Rio Araguaia: o caminho dos sertões, de Francisquinha Laranjeira Carvalho e Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante, investiga a multiplicidade, a diversidade e a complexidade que marcaram a historicidade do rio Araguaia, como via de integração, ressaltando o seu poder de coesão social.

O artigo “O rio Longá e o povoamento do norte do Piauí”, de José Luis Lopes Araújo e Accyolli Rodrigues Pinto de Sousa, analisa a bacia do rio Longá que representou importante fator de povoamento do norte do Piauí e seus usos pelas comunidades dos municípios que a compõem.

O artigo “Uma Veneza no sertão fluminense: os rios e os canais em Campos dos Goitacazes”, de Maria Isabel de Jesus Chrysostomo, analisa a importância dos meios materiais através dos quais uma sociedade constrói seu espaço de vivência e produção.

Para fechar o dossiê, o artigo “Encontros e desencontros no Oeste: Reflexões teóricas sobre as demarcações simbólicas das comunidades ribeirinhas do Rio das Almas em Goiás nas décadas de 1940 a 1950”, de Sandro Dutra e Silva, investiga como as fronteiras podem representar distinções entre geografia, temporalidades e identidades, dentre outras que reforçam, ao mesmo tempo, os traços do pertencimento e da distinção.

Há as resenhas das obras: VIDAL-NAQUET, P. Atlântida: pequena história de um mito platônico, escrita por Diogo da Silva Roiz; Omena, Luciane Munhoz de. Pequenos poderes na Roma imperial, escrita por Pedro Paulo Funari; e a resenha da obra FRANCO JÚNIOR, Hilário. A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura, escrita por Ademir Luiz da Silva.

Encontra-se também neste número o texto da conferência intitulada “Intelectuales, ideas e identidad en nuestra América”, ministrada pelo prof. Horacio Cerutti Guldberg, na abertura do IV Simpósio Internacional de História, Cultura e Identidades, realizado pela Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás e pelo Núcleo Regional da ANPUH / GO, no Campus Samambaia da Universidade Federal de Goiás, na cidade Goiânia, em 13 de outubro de 2009.

E, por último, fechamos o número 2, volume 14, jun. / dez, 2009, apresentando o texto, da fala, da professora Lena Castello Branco F. de Freitas, proferida em sessão de homenagem promovida em 08 de dezembro de 2009, pela Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás aos professores aposentados do Departamento de História. Jamais poderíamos deixar de apresentar neste número, que inicia sua circulação a partir do dia 30 de dezembro, parte do tempo que, ao se ler o texto de Lena Castello Branco, compreende-se também o sentido do texto: “O passado presente no amanhã”, de Nasr Fayad Chaul, que homenageia os mestres que desbravaram temas e abriram caminhos, sempre na vanguarda do que se considera a historiografia produzida em Goiás, na defesa apaixonada do historiador e atento ao presente, revelou que no passado é o lugar de se buscar o entendimento do presente e as formas de como neste atuar. Com a homenagem, torna-se acessível a compreensão da história dos professores do antigo Departamento de História, que constituíram os alicerces da atual Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás. Convidamos à leitura.

Gercinair Silvério Gandara

Leandro Mendes Rocha Laurent Vidal

Organizadores do dossiê

Comissão Editorial

Maria da Conceição Silva-Editora

Armênia Maria de Souza

David Maciel

Luciane Munhoz de Omena


GANDARA, Gercinair Silvério; VIDAL, Leandro Mendes Rocha Laurent; et al. Apresentação. História Revista. Goiânia, v.14, n.2, 2009. Acessar publicação original [DR]

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