Rios e Sociedades / Revista Brasileira de História / 2019

Movimentos dos rios / movimentos da História

Aos que entram nos mesmos rios afluem outras e outras águas.

Heráclito, fragmento 12, 2012, p. 47.

A relação estreita entre o desenrolar da história humana e os movimentos das águas na superfície terrestre, especialmente os movimentos dos rios que cruzam os continentes para além dos espaços litorâneos, pode ser pensada, de início, por meio de algumas poderosas metáforas. Heráclito de Éfeso, no século VI a.C., usou o rio como imagem da história em seu sentido mais amplo: o próprio fluxo da existência. A renovação permanente das águas do rio, que ao mesmo tempo persiste como uma unidade definida pelas suas margens, indica o jogo complexo entre mudança e continuidade que pode ser observado no acontecer do mundo. Milênios mais tarde, em seu livro clássico, publicado em 1946, O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Filipe II, Fernand Braudel também usou o movimento das águas como metáfora para os diferentes níveis de profundidade em que se pode analisar a História, apresentando os “acontecimentos” como “cristas de espuma levantadas pelo poderoso movimento das marés” (Braudel, [1946]1995, p. 25).

Essas metáforas, assim como várias outras que poderiam ser mencionadas, adquirem um sentido humano concreto nas inumeráveis situações em que sociedades interagiram de maneira intensa com sistemas fluviais, de modo que estes últimos se tornaram agentes importantes para definir a localização geográfica e o próprio devir da vida cultural, social e econômica. Pensando apenas no mundo contemporâneo, pode-se observar como a proximidade e a relação intensa com rios de tamanho significativo ou, em sentido mais amplo, com bacias hidrográficas, estabeleceram padrões recorrentes no desenvolvimento de grandes cidades, de complexos agrícolas (em grande parte dependentes de obras de irrigação) e de estruturas industriais (que se valem dos rios para construir intrincados fluxos e metabolismos socioambientais que passam pela entrada constante de matéria e energia e pela saída de produtos mercantilizáveis e dejetos poluentes). Além dos exemplos acima, poderiam ser mencionados inúmeros outros casos históricos em que assentamentos humanos, dinâmicas de transporte, movimentos de lazer e turismo, expressões culturais e artísticas e crises de saúde pública, entre outros, passaram por uma interação aturada com sistemas fluviais.

No caso do território brasileiro, foco do presente Dossiê, é importante ressaltar que não se pode entender a formação da sociedade nacional, em sua grande diversidade, sem levar em conta o espaço continental onde o país foi construído, marcado por enormes e complexas redes fluviais. A vida social aqui existente, em sua variedade geográfica, econômica e cultural, interagiu de maneira acentuada com esse movimento incessante das águas, seja em termos de mobilidade, de processos de territorialização, de práticas culturais ou de dinâmicas de exploração econômica. Os rios também estiveram muito presentes nos conflitos armados e nas disputas por domínio político regional, assim como na própria construção objetiva do Estado nacional e de suas instituições. Amazonas, São Francisco, Paraná e Tietê, entre tantos outros rios, tornaram-se ícones no imaginário do Brasil. A interação com os rios, que já era essencial para as sociedades indígenas, transformou-se em aspecto inescapável da vida concreta das sociedades na América portuguesa e no Brasil enquanto país, inclusive nos seus espaços litorâneos.

Apesar da existência de farta documentação sobre o mundo dos rios em diferentes países, além da sua presença marcante em inúmeras descrições da vida social em diferentes latitudes, a atenção específica e explícita ao tema fluvial por parte da historiografia foi relativamente modesta até as últimas décadas. Em meados do século XX, no entanto, foi possível observar um esforço de inovação no recorte dos objetos de análise histórica, para além daqueles baseados em países e regiões definidos segundo um critério essencialmente político. Dentro dessa abertura, onde se situa o recorte da Zona da Mata nordestina como objeto de análise por Gilberto Freyre em 1937, ou do Mar Mediterrâneo por Fernand Braudel (no livro já citado de 1946), um importante precedente foi estabelecido por Lucien Febvre e Albert Demangeon com a publicação em 1935 de seu livro O Reno: Problemas de História e de Economia. Ironicamente, no entanto, uma iniciativa semelhante foi realizada quase ao mesmo tempo pelo escritor e jornalista Emil Ludwig, que em 1937 publicou um livro sobre a história de vida do rio Nilo (Ludwig, 1937). É natural, porém, que a obra de Febvre, por apresentar uma densidade de pesquisa bem mais sólida, tenha marcado com muito mais relevância a cena historiográfica. É certo que o trabalho foi escrito com uma clara perspectiva antropocêntrica, procurando descartar qualquer vestígio de determinismo geográfico. A ideia central é a do rio forjado pela história humana, mais do que pela natureza. O foco são as questões político-econômicas, servindo o rio como uma espécie de espelho geográfico para pensar, por exemplo, a transformação das fronteiras nacionais na Europa.

No período mais recente, já sob influência da nova história ambiental que emergiu a partir da década de 1970, a literatura histórica específica sobre os rios cresceu muito, tanto em termos quantitativos quanto no aspecto da diversidade temática. Não seria o caso de resumir essa literatura no curto espaço desta Apresentação.[1] De toda forma, uma tendência que se pode ressaltar na literatura recente, mesmo que de maneira muito geral, é a de considerar os rios em si mesmos, na sua materialidade biofísica e sociotécnica. Ou seja, ir além da visão do espelho exógeno que serve mais que tudo para observar diferentes aspectos da vida social. Os rios, nessa perspectiva, são introduzidos no corpo da história, nos seus movimentos endógenos. A materialidade dos rios, incluindo suas transformações ao longo da história, expressa em si mesma a rede de interações sociais, tanto culturais quanto tecnoeconômicas, que com ela vem interagindo. Essa mesma materialidade, porém, inclusive nos seus aspectos biofísicos e ecológicos, participa e influencia no destino dessa rede complexa (que vem sendo conceituada mediante expressões como sócio-natureza ou devir biocultural). Um trabalho de grande influência, que abriu importantes horizontes dentro dessa nova perspectiva, foi o livro de Richard White The Organic Machine: The Remaking of the Columbia River (White, 1995). Nesse livro, o rio Columbia é visto como uma paisagem híbrida construída pela natureza e pelas diversas intervenções sociotécnicas e culturais ao longo do tempo. A materialidade do rio, além disso, expressa as diferenças de concepção e de interesse dos vários atores sociais que com ele interagiram, tornando-se ao mesmo tempo um fenômeno material e um espaço em disputa.

Em que momento os historiadores se debruçaram sobre a história das intricadas relações entre rios e populações no Brasil? Talvez, uma historiografia muito centrada no litoral e na sua oposição ao sertão, como matriz fundante de uma ideia de nação (notadamente, a partir de finais do século XIX), tenha subestimado essa temática. De toda forma, uma historiografia mais explícita e substantiva com relação ao tema dos rios começou a emergir no país em período recente, na virada para o século XXI – o que não significa dizer que não existia nada de relevante no passado. Ao contrário, existe uma interessante herança intelectual a ser redescoberta nesse campo. É possível encontrar, em alguns historiadores do século XX, importantes análises indiretas que, sem tomar os rios como eixo do recorte analítico, perceberam muito bem a sua presença marcante em diferentes momentos da história do país. Cabe destacar, por exemplo, as fortes descrições de Gilberto Freyre na década de 1930, no livro já mencionado (Freyre, [1937]2004), sobre as dinâmicas de envenenamento dos rios do Nordeste pelos resíduos das usinas de açúcar. Ou então, de maneira ainda mais notável, os trabalhos de Sérgio Buarque de Holanda, nas décadas de 1940 e 1950, sobre a centralidade da navegação fluvial nos movimentos de exploração dos sertões do Centro-Oeste partindo de São Paulo. O livro Monções, de 1945, em especial, apresentou elegantes e inovadoras análises sobre as relações entre rios e sociedades naquele contexto, particularmente pelo conceito de “estradas móveis”, que foram pensadas, de maneira próxima das tendências mais recentes, em sua própria materialidade, considerando detalhadamente as corredeiras e cachoeiras, os períodos de cheias etc. Ainda em 1948, inspirado pelo tema da expansão paulista e pelo trabalho de Emil Ludwig, o poeta Humberto de Mello Nóbrega publicou um livro que recortava de forma inovadora, ao menos no contexto nacional, um rio específico como objeto de análise histórica. Apesar de não ser uma análise profunda, o livro História do Rio Tietê (Mello Nóbrega, [1948]1981) é bastante abrangente e informativo, discutindo diferentes aspectos da relação entre a sociedade paulista e aquele rio – desde os esforços para promover sua navegação até, por exemplo, seu papel como inspirador de arte e literatura. Na formulação do próprio autor, porém, o rio é visto “ora como cenário, ora como comparsa”, já que o protagonismo é sempre do homem.

Nas décadas seguintes, alguns ensaios foram publicados sobre rios emblemáticos, como no caso do São Francisco e do Amazonas,[2] mas trabalhos situados no quadro de uma historiografia acadêmica, com maior elaboração teórica e metodológica, só irão aparecer nas portas do século XXI. É o caso do belo trabalho de Victor Leonardi sobre o complexo do rio Negro e suas cidades abandonadas: Os historiadores e os rios: natureza e ruína na Amazônia brasileira (Leonardi, 1999); do amplo estudo de Haruf Espindola sobre a ocupação histórica de um importante vale fluvial entre Espírito Santo e Minas Gerais: Sertão do Rio Doce (Espindola, 2005); do estudo de Janes Jorge sobre o rio Tietê na cidade de São Paulo, mostrando a relevância de aproximar história urbana e história fluvial: Tietê – o rio que a cidade perdeu (Jorge, 2006); por fim, da rica e diversificada coletânea organizada por Gilmar Arruda com o título de A natureza dos rios (Arruda, 2008). Esses trabalhos, já participando de um diálogo aberto com a historiografia internacional e com a perspectiva da história ambiental, abriram caminho para o tipo de historiografia profissional e mais rigorosa, apesar da sua variedade de enfoques, que poderemos encontrar nos autores que responderam ao chamado para o presente Dossiê. Uma historiografia que se aproxima da temática dos rios a partir de diferentes dimensões e recortes, explorando as ricas conexões ecológicas, geográficas, socioeconômicas e culturais que podem ser observadas com relação ao mundo dos rios em diferentes momentos e lugares da história do Brasil.

O artigo de André Vasques Vital recupera a história do Território do Acre de princípios do século XX, no contexto de desenvolvimento da economia da borracha na Amazônia brasileira. Com base em uma discussão com bibliografia recente, o autor discute os limites da agência histórica pensada apenas a partir da ação humana. Seu texto aprofunda uma importante reflexão sobre o papel do rio Iaco, suas dinâmicas de cheias e vazantes e as consequências e imprevisibilidades desse regime na ação humana. Assim, os tumultuosos acontecimentos políticos e econômicos ocorridos no Território do Acre, depois de sua anexação ao Brasil, ganham novos sentidos também pela atuação (imprevisível muitas vezes) do rio e pelas implicações das dinâmicas fluviais (como o incremento de doenças decorrentes das águas empoçadas). O rio Iaco é aqui uma “coisa-poder”, nas palavras do autor, fundamental para compreender as articulações políticas locais da região.

Ana Lucia Britto, Suyá Quintslr e Margareth da Silva Pereira abordam a transformação da região da Baixada Fluminense entre finais do século XIX e a primeira metade do século XX. Apoiadas em uma sólida reflexão sobre os rios na historiografia, tanto no campo da história ambiental como no campo da história dos sistemas sociotécnicos, as autoras desvendam como os rios da região foram alvo de diversas formas de intervenção ao longo do tempo. Mais ainda, examinam os impactos dessas intervenções desde finais do século XIX. Trata-se de entender como se articularam as dinâmicas fluviais com as dinâmicas sociais, entendendo os rios como “sistemas tecnológicos e ambientais”. É a partir de meados do século XIX, com a introdução da ferrovia, que a região e seus rios sofrem transformações significativas. De região rica passa a ser considerada área insalubre e improdutiva, o que ensejará, nas primeiras décadas do século XX, diversas intervenções, no sentido de sanear a região e torná-la produtiva. Esse processo, levado a cabo pelo Estado, dá ensejo ao surgimento de uma “hidrocracia” responsável pelas políticas de intervenção nos rios da Baixada Fluminense.

Gabriela Segarra Martins Paes analisa o mito dos negros d’água do rio Ribeira de Iguape, na região do Vale do Ribeira. Trata-se de recuperar e compreender as matrizes culturais e os significados atribuídos pela população da região à existência desses seres encantados aquáticos geralmente identificados com um rapaz negro de baixa estatura, muitas vezes com pés e mãos de pato. O mito relaciona-se com a presença de africanos escravizados na região, desde o século XVII, e com as modernas comunidades remanescentes de quilombo. A autora aprofunda a sua reflexão, mostrando a relação histórica entre os escravizados da região do Vale do Ribeira e a África Centro-Ocidental, onde estavam enraizadas crenças acerca de espíritos das águas. Revela assim os diversos pontos em comum entre as crenças dos dois lados do Atlântico, como o local de habitação dos seres encantados e os temas do sequestro de mulheres, do sentido ventura-desventura e da relação e interferência entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Na realidade, o mito dos negros d’água remete ao tráfico negreiro e à escravidão. De fato, envolve a travessia de águas e o renascimento num novo mundo (muitos negros d’água teriam sido capturados e gerado descendência na região), mas também a violência (seus pés e mãos eram cortados), o aprendizado de uma nova língua, a relação entre seres diferentes e o uso do sal associado ao batismo. Enfim, para Gabriela Paes, o enraizamento do mito na região decorre da sua capacidade de “servir de metáfora” da experiência da viagem atlântica e da própria escravidão.

O texto de Henri Acselrad retoma as experiências dos atingidos pela construção da barragem da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no estado do Pará, nos anos 1970 e 1980. O barramento do rio Tocantins implicou não somente a inundação de uma imensa área para conformação do lago da usina. Teve, de fato, inúmeras implicações do ponto de vista ambiental (como a decomposição da matéria orgânica que ficou debaixo da água), por ensejar o aparecimento de pragas de mosquitos, por exemplo, mas igualmente do ponto de vista social. Inúmeros grupos populacionais que havia séculos viviam no e do Tocantins tiveram sua vida alterada, sendo deslocados para outros espaços ou para novos espaços criados pelo barramento. Essas populações heterogêneas, que viviam ao longo do curso do rio, mobilizaram-se contra autoridades públicas e empresariais, ligadas ao empreendimento, para denunciar os desmazelos, a negligência e a violência que significou esse processo. O texto, entretanto, não examina exatamente esses movimentos, mas sim, de maneira muito original, o processo de produção escrita dessas populações atingidas, por meio de manifestos, cartas, boletins e cordéis. A produção e circulação de impressos por parte de uma população vinculada majoritariamente à tradição oral permitiu transformar “um caso em uma causa”. Isso significou o aparecimento de um “novo autor” da história do rio – os atingidos pela barragem. O escrito produzido e publicado pelos diversos grupos afetados permitiu, assim, não somente a produção de um registro sobre a memória do rio Tocantins, mas também a produção de um registro para a ação. A força do “artefato impresso” reside na duração que lhe permite ser “recebido e reconhecido”. Nesse sentido, os impressos produzidos pelos atingidos pela barragem do rio Tocantins fizeram parte de suas lutas e serviram como forma de rememoração dessas próprias lutas.

Iane Maria da Silva Batista e Leila Mourão Miranda retomam a questão dos rios da Amazônia, mas a partir de uma perspectiva distinta do texto de Acselrad, embora se referindo ao mesmo contexto. As autoras partem de uma reflexão sobre os usos e representações das águas e de como essas formas se transformam ao longo do tempo. Assim, notadamente a partir da segunda metade do século XX, os rios se reconfiguram em recursos naturais por parte do Estado e de interesses privados. Disso deriva, desde os anos 1950, o seu reconhecimento para os planos de desenvolvimento da região, principalmente, relacionados aos projetos de exploração das riquezas minerais da Amazônia. Esse processo de comoditização da água, por meio da construção de usinas hidrelétricas na região amazônica, fez os rios se tornarem lugares de “hidronegócios”. Ora, argumenta-se no texto, esse tipo de representação e uso da água dos rios da região vai de encontro a outras relações, construídas secularmente pelas populações da região. Mais ainda, a transformação da água dos rios em mercadoria tem causado enormes impactos socioambientais. As implicações da reconfiguração da água dos rios em mercadoria nos obrigam, desse modo, a repensar a relação que construímos com a água nas últimas décadas.

Haruf Salmen Espindola, Eunice Sueli Nodari e Mauro Augusto dos Santos exploram um acontecimento recente, um desastre, ocorrido há quase 4 anos. Trata-se do rompimento da barragem de Fundão, que pertencia a dois grandes grupos de exploração mineral: as empresas Vale S.A. e BHP Billinton. Para os autores, é preciso compreender o termo desastre numa perspectiva ampla, uma vez que a fatalidade significou não somente o rompimento da barragem, mas uma série de acontecimentos que envolveram e ainda envolvem áreas rurais, áreas urbanas, rios, reservas e a zona costeira, impactando a vida de seres humanos, da flora e da fauna. O artigo revela a complexidade das consequências do desastre, uma vez que os efeitos (e as ações mitigadoras) foram diversos ao longo de toda a área afetada. O texto introduz, também, a noção de “incerteza” para se pensar a constatação de que a mineração industrial representa um “grande risco” (não há aqui como não pensar no recente caso do desastre de Brumadinho). A reflexão do texto finalmente aborda o problema da diversidade de narrativas sobre o acontecimento, envolvendo diferentes grupos e instituições, muitas vezes contraditórias entre si, ensejando o próprio aumento das incertezas.

Por fim, o texto de Cristina Brito examina, por meio dos rios, a relação das sociedades com os manatis, na América colonial. A partir de uma reflexão sobre o lugar dos rios, a autora busca compreender a relação histórica com esses animais, inclusive na sua dimensão simbólica. Para ela, os manatis (como os rios) se tornaram metáforas dos “ritmos naturais e sociais”. Assim, a autora examina diversas representações textuais e imagéticas desses animais, produzidas no período colonial, mostrando como a chegada dos europeus à América impactou as populações dos manatis e como se reconfiguraram as representações sobre eles (embora estas não tenham sido muito abundantes). Discutem-se no texto até mesmo os múltiplos usos e representações indígenas sobre os manatis, com base na documentação produzida por europeus. A reflexão de Cristina Brito insere-se numa discussão sobre a relação entre o mundo humano e o não humano. Trata-se aqui de frisar o próprio protagonismo desses animais aquáticos no seu percurso de interações com as sociedades indígenas e com a sociedade colonial. Segundo a autora, os rios (onde habitavam os manatis) podem ser pensados como lugares de confluência de interações entre seres humanos e entre eles e os animais, enfim, entre “pessoas e a natureza”.

Rio poder; rio saneado; rio metáfora; rio protesto; rio negócio; rio desastre; rio animais. Embora referindo-se ao mesmo objeto – a história dos rios e sua relação com as sociedades -, os enfoques apresentados pelos textos deste Dossiê não somente são muito diversos, mas igualmente dialogam com campos de conhecimento distintos. Mais ainda, tratam de espaços / tempos múltiplos: a América colonial, os vários rios da Amazônia, do século XIX ao século XX, o rio Ribeira de Iguape e a África, a Baixada Fluminense da virada do século, o rio Doce de “ontem”. O que articula as discussões presentes neste Dossiê é certamente a necessidade de incorporar os rios – na sua agência, nas suas representações, na sua simbologia, nos impactos da ação antrópica sobre eles, enfim, na sua complexidade – à reflexão dos historiadores. É que, para um país composto por uma intrincada rede de milhares de rios, oficialmente agrupados em 12 bacias hidrográficas, não há como esquecer que, embora em grande parte ignorada, a “fluvialidade” é parte fundamental da formação histórica do Brasil.

Notas

  1. Uma amostra bastante significativa, reunindo historiadores de vários países, pode ser encontrada em MAUCH; ZELLER, 2008.
  2. Vale mencionar, por sua qualidade, trabalhos como O Médio São Francisco(LINS, 1952), O rio comanda a vida: uma interpretação da Amazônia (TOCANTINS, 1952) e Jângala: Complexo Araguaia (BERNARDES, 1994). Em período mais recente, é importante citar a informativa e interessante trilogia, com bastante material histórico, publicada pelo jornalista Marco Antônio Coelho: Rio das Velhas: memória e desafios (COELHO, 2002); Os descaminhos do São Francisco(COELHO, 2005) e Rio Doce: a espantosa evolução de um vale (COELHO, 2011).

Referências

ARRUDA, Gilmar (org.). A natureza dos rios: história, memória e territórios. Curitiba: EDUFPR, 2008. [ Links ]

BERNARDES, Carmo. Jângala: Complexo Araguaia. Goiânia: Cultura Goiana, 1994. [ Links ]

BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na época de Filipe II. [1946]. Lisboa: Dom Quixote, 1995. [ Links ]

COELHO, Marco Antônio. Os descaminhos do São Francisco. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. [ Links ]

COELHO, Marco Antônio. Rio das Velhas: memória e desafios. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 2002. [ Links ]

COELHO, Marco Antônio. Rio Doce: a espantosa evolução de um vale. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. [ Links ]

ESPINDOLA, Haruf. Sertão do Rio Doce. Bauru: Edusc, 2005. [ Links ]

FEBVRE, Lucien; DEMANGEON, Albert. Le Rhin: problèmes d’Histoire et d’Économie. Paris: Armand Colin, 1935. [ Links ]

FREYRE, Gilberto. Nordeste: aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil. [1937]. São Paulo: Global, 2004. [ Links ]

HERÁCLITO. Fragmentos contextualizados. Tradução, estudos e comentários: Alexandre Costa. São Paulo: Odysseus, 2012. [ Links ]

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. [1945]. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. [ Links ]

JORGE, Janes. Tietê – o rio que a cidade perdeu: São Paulo, 1890-1940. São Paulo: Alameda, 2006. [ Links ]

LEONARDI, Victor. Os historiadores e os rios: natureza e ruína na Amazônia brasileira. Brasília: Paralelo 15, 1999. [ Links ]

LINS, Wilson. O Médio São Francisco. [1952]. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1983. [ Links ]

LUDWIG, Emil. The Nile: The Life-Story of a River. New York: Viking Press, 1937. [ Links ]

MAUCH, Christof; ZELLER, Thomas (org.). Rivers in History: Perspectives on Waterways in Europe and North America. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2008. [ Links ]

MELLO NÓBREGA, Humberto de. História do rio Tietê. [1948]. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. [ Links ]

TOCANTINS, Leandro. O rio comanda a vida: uma interpretação da Amazônia. [1952]. Manaus: Valer, 2000. [ Links ]

WHITE, Richard. The Organic Machine: The Remaking of the Columbia River. New York: Hill and Wang, 1995. [ Links ]

José Augusto Pádua – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de História, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0002-4524-5410

Rafael Chambouleyron – Universidade Federal do Pará (UFPA), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Faculdade de História, Belém, PA, Brasil. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0003-1150-5912


PÁDUA, José Augusto; CHAMBOULEYRON, Rafael. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.39, n.81, mai / ago., 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Amazônia e História Global / Tempo / 2017

Desde o final do século XVIII, o que o hoje conhecemos como a região amazônica da América do Sul passou principalmente a ser identificada a partir de vários conceitos relativos ao mundo natural: Floresta Amazônica, Selva Amazônica, Floresta Equatorial da Amazônia, Floresta Pluvial ou Hileia Amazônica. Foi precisamente o cientista prussiano Friedrich Alexander von Humboldt (1769-1659) quem usaria o termo hileia (Hyleae) para denominar e centralizar essa região no planeta. A marca do território, porém, é muito mais antiga. Desde 1540, quando Francisco de Orellana (1490-1550) desceu o imenso paraná-assu dos tupis, o batismo do rio Amazonas correu mundo, evocando imagens da mitologia grega e das narrativas indígenas. Da natureza à história, a ideia de Amazônia começava a ser construída. Em 1833, Ignacio Accioli Cerqueira e Silva (1808-1865) utilizaria a expressão “País das Amazonas” para denominar a extensa área do antigo estado do Grão-Pará e Maranhão, nos tempos da América colonial portuguesa. Essa noção faria percurso de mão dupla no campo científico oitocentista, entre a ilustração e o Romantismo, tanto que, em 1835, Friedrich Moritz Rugendas (1802-1858) utilizaria “região do Amazonas” para nomear a região Norte do Brasil, enquanto o barão Frederico José de Santa Anna Nery (1848-1901) retomaria a ideia de “País das Amazonas” em uma publicação em Paris, em 1885. Nery foi o ponto de partida de uma vasta intelectualidade “nativa” que utilizaria um conceito de Amazônia com forte acento histórico, geográfico e cultural, no qual se sobressairiam José Veríssimo, José Coelho da Gama Abreu, Ignacio Moura, Euclides da Cunha, Henrique Santa Rosa, Alfredo Ladislau e Eidorfe Moreira.

Está claro, portanto, que o conceito de Amazônia pode variar dependendo do ponto de vista fisiográfico, geomorfológico, biogeográfico, político e histórico. Por isso mesmo, a proposta deste dossiê temático foi a de reunir estudos sobre a Amazônia brasileira e as fronteiras amazônicas da América do Sul, do Atlântico e do Caribe, e seus diálogos com o campo historiográfico internacional da chamada global history. Tomando como premissa que, em si, a Amazônia sempre foi um espaço de fronteiras, de políticas transnacionais e de relações sociais, intelectuais e econômicas em escala mundial, apresentamos aqui cinco trabalhos que manejam diferentes histórias conectadas e cruzadas em distintas escalas de leitura temporal e espacial com passagem pelo locus amazônico, real ou imaginário, histórico, literário ou artístico, passado ou presente. Ancorados em importante e múltiplo debate historiográfico, desde a economia-mundo, de Braudel, Wallerstein e Tomich, passando pelas connected histories, de Sanjay Subrahmanyam, Serge Gruzinski e François Hartog, seguindo pela histoire cruzée, de Michael Werner e Bénédicte Zimmermann, até distinções pontuais entre a global history, a world history e a transnational history, nas obras de Hugo Vengoa e Sandra Ficker, os vários artigos compartilham da necessidade de ampliar os objetos de análise para além das fronteiras nacionais. Assim também, revelam esforço em romper com a tradicional unidade do Estado-nação e oferecer uma interpretação alternativa aos “modelos” centrados a partir de “casos” europeus.

Mark Harris apresenta uma releitura dos primeiros relatos sobre a Amazônia, de finais do século XV e primeira metade do século XVI, buscando compreendê-los como elementos importantes para a compreensão das sociedades ameríndias e suas dinâmicas históricas no momento da conquista. Com isso, aprofunda uma reflexão consagrada a partir da pesquisa arqueológica que vê o momento da conquista como a irrupção dos europeus em um mundo em plena ebulição, revelando também as múltiplas conexões entre as diversas partes da Amazônia no momento da chegada dos ibéricos.

Em seu texto sobre contrabando nas fronteiras luso-hispânicas da Amazônia, Sebastián Gómez González revela os inúmeros interesses envolvidos e as complexas relações estabelecidas nas zonas de fronteira, para além dos interesses das Coroas ibéricas. Ao estudar o contrabando entre as Amazônias hispânica e portuguesa, o autor não só lança luz sobre as relações entre esses mundos considerados quase que excludentes pelas historiografias nacionais, como também permite conectar duas outras regiões, também apartadas historiograficamente uma da outra: as terras baixas e as terras altas, ou a selva e os Andes e sua zona de transição, o pé de monte.

O artigo de Rafael Ale Rocha também está voltado para o problema da fronteira, questão central na região amazônica ao longo de todo o período colonial e depois das independências das nações sul-americanas. Ao analisar os conflitos em torno do Cabo do Norte e das pretensões portuguesas e francesas sobre essa região, o autor reinsere a Amazônia em uma reflexão mais global e a conecta com a compreensão de seu lugar nos respectivos impérios a partir dos contextos mais globais nos quais se insere o problema das fronteiras. Faz isso, principalmente, a partir da correspondência trocada por um governador do estado do Maranhão e autoridades francesas e do Reino português.

Daniel Souza Barroso e Luiz Carlos Laurindo Junior buscam analisar as dinâmicas da escravidão no vale amazônico nos quadros da economia-mundo capitalista, revisitando um clássico debate historiográfico sobre a importância e a efetividade econômica e demográfica da escravidão negra no Norte do Brasil. Demonstrando, de modo inovador, o papel da reprodução endógena na manutenção do escravismo na Amazônia e atualizando o diálogo com Wallerstein e Tomich, os autores propõem uma reflexão sobre a economia escravista amazônica, cotejada com a chamada segunda escravidão, faceta mais conhecida da história global das relações de trabalho compulsório no século XIX.

Aldrin Moura de Figueiredo e Silvio Ferreira Rodrigues investem sobre a questão do “centro” e da “periferia” no contexto da arte global, tomando como parâmetro analítico a circulação de cópias de pintura europeia em Belém do Pará, na segunda metade do século XIX, em diálogo com outros centros e periferias de arte, como Roma, Lisboa, Istambul e Santiago. O contexto mais amplo é o do movimento internacional de renovação do catolicismo, conhecido como ultramontanismo, romanização ou reforma católica, no qual se destacou a atuação do bispo do Pará d. Antônio de Macedo Costa (1830-1891), durante o pontificado de Pio IX. Para os autores, esse movimento testemunha a pedagogia e os debates políticos na história do catolicismo romano e brasileiro do século XIX, evidenciando conexões artísticas, intelectuais e religiosas entre o Vaticano e a América do Sul como parte do movimento internacional de renovação do catolicismo.

Esperamos que a leitura dos artigos do dossiê permita a compreensão de uma Amazônia (ou de várias Amazônias, no tempo e no espaço) que tem de ser entendida a partir de sua complexidade e, principalmente, das múltiplas conexões que dão sentido à sua história, superando uma historiografia tradicional que ainda insiste em pensá-la e explicá-la a partir dos quadros dos Estados nacionais.

Aldrin Moura de Figueiredo – Faculdade de História, Universidade Federal do Pará – Belém – Brasil. E-mail: [email protected]

Rafael Chambouleyron – Faculdade de História, Universidade Federal do Pará – Belém – Brasil. E-mail: [email protected]

José Luis Ruiz-Peinado Alonso – Departamento de História e Arqueologia, Universidade de Barcelona – Barcelona – Espanha. E-mail: [email protected]


FIGUEIREDO, Aldrin Moura de; CHAMBOULEYRON, Rafael; ALONSO, José Luis Ruiz-Peinado. Apresentação. Tempo. Niterói, v.23, n.3, set. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê