Weapons of the Weak: everyday forms of Peasant Resistance || Domination and the Arts of Resistance: hidden transcritos | James C. Scott

Infelizmente, a obra de James C. Scott ainda é pouco conhecida entre os historiadores brasileiros. Seus trabalhos nem sequer foram traduzidos, o que demonstra o parco interesse editorial. No entanto, as temáticas levantadas em seus estudos convergem intimamente com os interesses de pesquisa desenvolvidos no Brasil, especialmente nos programas de pós-graduação em História.

Pesquisas sobre resistência dos trabalhadores de variadas origens e condições, assim como sobre movimentos sociais, consistem em uma importante vertente atual dos interesses teóricos e políticos dos historiadores. Pode-se afirmar que esta tendência afirma-se particularmente entre os historiadores acadêmicos, que, em suas teses e dissertações, buscam reatar o fio perdido das lutas sociais obscurecidas pela propaganda neoliberal pós-Guerra Fria. De fato, os programas de pós-graduação e muitos cursos de graduação em História aglutinam cada vez mais seus focos de interesse temático dentro de uma linha teórica/metodológica que se convencionou chamar de História Social. Muito embora a advertência de que a história é inteiramente social por definição não tenha sido esquecida, há uma certa ênfase nessa especificação “social” que reafirma o lugar da política no interior dos estudos históricos, ao mesmo tempo em que amplia este conceito de modo a permitir análises que extrapolam a tradicional referência ao Estado como relação primordial ou central que configurava os estudos de História Política. Leia Mais

A dominação e a arte da resistência: discursos ocultos / James Scott

Com o recente lançamento de A dominação e a arte da resistência pela livraria Letra Livre de Portugal (especializada em escritos libertários) podemos enfim dispor em língua portuguesa de uma das principais obras de James C. Scott. Até então os interessados nas ideias deste autor no Brasil tivemos de nos contentar com as traduções de uns poucos artigos publicados em periódicos acadêmicos.[3]

Há cinco décadas James C. Scott, professor de Ciência Política e Antropologia da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, vem produzindo uma extensa obra que abrange diferentes campos de estudos, como economia política, relações agrárias, hegemonia e formas de resistência, política camponesa e, mais recentemente, anarquismo. Entre os seus livros mais importantes estão: The moral economy of the peasant (1979), Weapons of the weak (1985), Seeing like a state (1998) e The art of not being governed (2009).

A dominação e a arte da resistência não está entre suas publicações mais recentes; a primeira edição nos Estados Unidos remonta a 1990. Mesmo assim este livro tem uma importância particular na trajetória de James C. Scott. Enquanto a maior parte de seus trabalhos baseia-se em estudos de caso, através de pesquisas participantes junto a comunidades camponesas da Malásia, A dominação e a arte da resistência é uma tentativa de generalização de suas reflexões a respeito das relações de classe e das formas de resistência, estendendo o argumento para outras interações de poder, em que figuram experiências de escravos, castas subalternas, mulheres, povos indígenas e – evidentemente – trabalhadores rurais de outras regiões do mundo.

Uma das principais teses de James C. Scott é a de que se as camadas subalternas da sociedade – apesar de se verem cotidianamente sujeitas a diversas modalidades de exploração e usurpações – não demonstram, na maior parte do tempo, uma revolta aberta e declarada contra seus opressores isso não implica numa simples ausência de resistência entre os dominados.

Em contato com comunidades rurais sul-asiáticas Scott pôde observar que, sob o manto da passividade, se oculta uma robusta resistência que se apresenta sob formas pouco visíveis, como roubos noturnos de cereais, escapadas sutis a ações de recrutamento, o cumprimento de serviços mal executados a despeito de um comportamento aparentemente subserviente demonstrado pelo trabalhador, enfim daquilo tudo que uma vez esse autor nomeou como “formas brechtianas de resistência” porque – como nos apresentam as personagens criadas pelo escritor da Ópera dos três vinténs – a esperteza da dissimulação pode ser um modo consistente da cultura popular e rebelde enfrentar figurões poderosos. Não se contentando com a classificação sociológica de “resistência passiva” para esse tipo de atitude tão difundida entre os subalternos, James C. Scott concentrou sua atenção nessas formas prosaicas dos embates de classe e chegou a conclusões de grande interesse para historiadores sociais e pesquisadores de campos afins.

A dominação e a arte da resistência é uma obra dedicada a entender as variadas dimensões do discurso oculto que a gente simples assume nas relações cotidianas e conflituosas. Nessa resenha faço referência somente a algumas teses apresentadas por Scott a respeito do discurso oculto dos subalternos; mas que fique claro: a muitas outras conclusões instigantes poderão chegar os leitores atentos e interessados.

Os primeiros capítulos do livro são dedicados a explicitar as características da ordem dominante quando as relações de classes transcorrem sob as regras da obediência. Nos contatos travados entre sujeitos desiguais prevalece um diálogo de aparente consenso, quando o indivíduo usa da deferência para “transmitir uma imagem exterior de conformidade com as normas de conduta defendidas pelos superiores” (p. 55).

São os casos, por exemplo, em que um subalterno faz uso de uma reverência para saudar um superior ou emprega uma forma de tratamento honorífica. Tais atitudes podem representar um desejo sincero e conformista de honrar um superior respeitado, mas também é possível que os rituais públicos de homenagem não passem de gestos altamente mecanizados e vazios por parte de quem visa acima de tudo salvaguardar sua segurança. Scott oferece o exemplo das mães dos escravos que, para protegerem seus filhos, os educam no sentido de procurarem sempre agradar, “ou pelo menos não hostilizar seus senhores” (p. 56), nisso que é uma atitude mais realista que sincera.

Dada a existência de um constante exercício de poder permeando as relações de classes, raciais, de gêneros ou de quaisquer outras formas de hierarquia social, o contato entre sujeitos desiguais origina uma ordem de linguagem cindida, onde, por um lado, apresenta-se um discurso público, em geral caracterizado por manifestações de conformidade e aceitação, e, por outro lado, um discurso oculto, onde o dissenso e a revolta se revelam apenas naqueles pequenos círculos de confiança como a família ou grupos de amigos.

A principal característica do discurso oculto é o encontrar-se “fora do raio de audição dos detentores de poder” (p. 57). Por se anunciar apenas em circunstâncias específicas, em geral quando os subalternos sentem suficiente confiança em seus interlocutores para desabafar seus ressentimentos em relação aos superiores, o discurso oculto permite mesmo aos que não enxerguem meios exequíveis de reagir contra as injustiças criar fantasias de vingança e, dessa forma, constituir às costas dos poderosos certo consenso relativamente à reprovação dos atos opressivos.

Uma humilhação pública de um soldado raso ou de um camponês pobre poderá não ser seguida por qualquer reação declarada de indignação ou revolta, mas muito provavelmente o desabafo revelará um pensamento muito pouco domesticado tão logo o oficial ou o rico proprietário rural deem as costas. Nestas circunstâncias, é usual que surjam apelidos depreciativos, xingamentos, promessas de revide, referências a fábulas cujo efeito alegórico seja a expressão da revolta dos de baixo contra seus opressores.

Se usarmos os termos de Freud em Interpretação dos sonhos pode-se dizer que a atenção dedicada apenas ao conteúdo manifesto do discurso público pode transmitir uma ideia bastante enganosa a respeito da disposição de resistência dos subalternos, pois não enxerga aquele conteúdo latente, identificável apenas em sua dimensão oculta. Para o patronato e as instituições de poder, o discurso oculto apresenta-se opaco, preservado seu conteúdo em cuidadoso segredo.

Tudo isso pode não significar muito para o desencadeamento de revoltas camponesas de dimensões nacionais ou dramáticas revoluções sociais, mas são aspectos decisivos para a conformação de formas cotidianas de resistência, que não figuram nas notícias da imprensa, mas são um dado com o qual todo e qualquer chefe, policial ou cobrador de impostos terá de lidar.

O reconhecimento da existência e da abrangência do discurso oculto no cotidiano de sujeitos socialmente destituídos de poder leva James C. Scott a rever as explicações de teóricos de diferentes campos das ciências sociais quanto à natureza da hegemonia de classe. No mais das vezes, os teóricos da hegemonia supõem que a incorporação ideológica dos grupos subalternos a uma ordem dominante resulta num embotamento da consciência de classe, desarmando as pessoas comuns de seu senso crítico através de alguma espécie de “falsa consciência”.

Em algumas teses marxistas – que Scott situa entre as teorias fortes sobre a hegemonia – as suposições a respeito do poder ideológico das classes dominantes em mascarar e, mesmo, ocultar as formas mais explícitas de opressão social desafiam a própria tese de que “a mudança alguma vez poderia ter origem a partir de baixo”. “Se as elites controlam a base material da produção, obtendo por essa via uma obediência prática, e se controlam também os meios de produção simbólica, que lhes asseguram a legitimação de seu poder e de seu controlo, então ter-se-ia atingido um poder capaz de se autoperpetuar e que só um choque a partir do exterior poderia perturbar” (p. 122).

Scott, no entanto, contesta se a incorporação ideológica dos grupos subordinados reduz necessariamente o conflito social. Toda a ideologia que se pretenda ser hegemônica tem, efetivamente, de fazer promessas aos grupos subordinados, procurando convencer-lhes de que uma dada ordem social também é de seu interesse.

Ocorre, no entanto, que essas promessas são em geral cobradas, abrindo caminho para o conflito social. Scott remete-se às infindáveis listas de queixas vindas de toda a França, registradas nos cahiers de doléances antes da Revolução. Nelas não se declarava desejo de abolir a servidão ou a monarquia. Havia antes uma intenção bastante difundida de reformar o feudalismo através da retificação dos “abusos” da aristocracia e seus funcionários. “Mas a relativa modéstia das demandas”, diz Scott, “não impediu – dir-se-ia até que terá ajudado a estimular – as ações violentas dos camponeses e dos sans-coulottes que constituíram a base social da revolução” (p. 121).

As reações dos socialmente destituídos de poder às experiências de opressão estão, para James C. Scott, longe de qualquer ideia de uma negação simplória ou instintiva às atitudes de usurpação de que a vida da gente comum é preenchida. Quando o autor aponta para a existência de um discurso oculto dos grupos subordinados isso implica na pressuposição de que existe um “público” entre o qual esse discurso circula; existe então comunicação, na exata definição do termo.

A noção de um discurso oculto está, dessa forma, atrelada às práticas dos subordinados em desbravar espaços sociais próprios, resguardados da vigilância e controle dos superiores. São exemplos desses espaços resguardados os matagais, os bosques escondidos, os descampados e os barrancos que os escravos norte-americanos recorriam para se encontrarem e falarem em segurança. São também as capelas, tabernas e lares que se constituíram em centros de desenvolvimento da cultura popular europeia, como mostrou Peter Burke [4]; “espaço para uma vida intelectual livre e para experiências democráticas com ‘número ilimitado de membros’”, como entendeu E. P. Thompson [5]. “Espaços sociais” que poderiam não ter a acepção exclusiva de um local físico isolado, mas que também eram cortinas fechadas, sussurros, dialetos nativos incompreensíveis aos ouvidos imperialistas.

Por entender a imprescindível necessidade desses espaços dissidentes para o surgimento do discurso oculto que James C. Scott conclui que a revolta, humilhação ou fantasia em bruto sequer existem: “A revolta, a humilhação e as fantasias são experiências que têm sempre um enquadramento cultural que é parcialmente criado pela comunicação exclusiva entre os subordinados” (p. 172-173).

Todas essas considerações sobre o discurso oculto nas artes da resistência dizem muito mais sobre as formas cotidianas de reação dos subordinados, à sua “resistência normal” (no interior ainda de uma dada ordem social) que aos processos de ruptura aberta contra essa ordem. Ainda assim as teses de James C. Scott não se restringem a considerações sobre os tipos mais sutis de embates sociais.

Por um lado, as formas cotidianas de resistência dos camponeses (e do conjunto dos grupos subordinados das sociedades) não são algo com o que as autoridades mantenedoras do status quo possam se descuidar. Apesar de não provocarem grandes impactos ou mobilizarem imediatamente a opinião pública da nação essas pequenas ações cotidianas da resistência dos de baixo formam, na sua totalidade, uma força social nada desprezível e o pragmatismo político das elites só muito arriscadamente poderia delas se negligenciar. Um trecho retirado de outro texto de Scott, no qual a autora nomeia de infrapolítica a essa “dimensão discreta da luta política” (p. 253), é particularmente esclarecedor:

As formas cotidianas de resistência camponesa não produzem matérias de jornais. Assim como milhões de pólipos de antozoários criam um arrecife de corais, milhões e milhões de atos individuais de insubordinação e de evasão criam barreiras econômicas e políticas por si próprios. Há raramente alguma confrontação dramática, eventualmente digna de ser noticiada. E, sempre que o barco do estado esbarra numa dessas barreiras, a atenção é centrada no acidente e não na vasta agregação de micro-atos que resultaram na barreira.[6]

Por outro lado, no entanto – observando a partir do ponto de vista dos próprios subalternos – o domínio do discurso oculto é, por excelência, o espaço preparatório das manifestações públicas, dos protestos e mesmo das rebeliões e levantes multitudinários. Os últimos capítulos de A dominação e a arte da resistência dedicam-se a discorrer sobre como o discurso oculto forma disfarces, testa limites… até que um dia a resistência revela-se em alto e bom som nos espaços públicos da sociedade. O discurso oculto dos subalternos então sai de cena para dar lugar à entrada do discurso público.

Por tudo o que foi mostrado – e pelo tanto mais que não fui capaz de mostrar – o livro de James C. Scott apresenta-se como um importante instrumento de análise para os estudos sobre as formas de resistência plebeias (sejam elas camponesa, operária, nativa, feminina, de castas subjugadas, indígena, negra, homo, bi ou transexual). Para os historiadores sociais, em particular, A dominação e a arte da resistência revela-se também como uma criativa fonte de inspiração. E não somente porque o autor lança mão a todo o momento a inúmeros exemplos históricos para ilustrar e articular seus argumentos. Também porque a obra dialoga constantemente com a produção de historiadores de referência, como Natalie Davis, Eugene Genovese, E. P. Thompson, Eric Hobsbawm, Marc Bloch, Richard Cobb, Dipesh Chakrabarty, Christopher Hill, Moses Finley, George Rudé, Ranajit Guha, Emanuel Le Roy Ladurie, Georges Lefebvre dentre outros.

Conhecer a obra de James C. Scott nos instiga a percorrer novos caminhos no vasto território das experiências dos sujeitos subalternos da história. Afinal de contas, a agenda por uma história radical é um projeto aberto a novas trajetórias.

Notas

3. SCOTT, James C. Formas cotidianas de resistência camponesa. Raízes, vol. 21, n. 1, janeiro a junho de 2002, p. 10-31. ______. Exploração normal, resistência normal. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 5, janeiro a julho de 2011, p. 217-243.

4. BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. Europa, 1500-1800. São Paulo: Companhia de Bolso, 2010.

5. THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Vol. 1: A árvore da liberdade. 3ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

6. SCOTT, James C. Formas cotidianas de resistência camponesa. Raízes, vol. 21, n. 1, janeiro a junho de 2002, p. 13.

Referências

BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. Europa, 1500-1800. São Paulo: Companhia de Bolso, 2010.

SCOTT, James C. Formas cotidianas de resistência camponesa. Raízes, vol. 21, n. 1, janeiro a junho de 2002, p. 10-31.

______. Exploração normal, resistência normal. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 5, janeiro a julho de 2011, p. 217-243.

THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Vol. 1: A árvore da liberdade. 3ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

Tyrone Apollo Pontes Cândido – Curso de História e Mestrado Interdisciplinar de História e Letras – MIHL da Universidade Estadual do Ceará, campus de Quixadá.


SCOTT, James C. A dominação e a arte da resistência: discursos ocultos. Tradução de Pedro Serras Pereira. Lisboa/Fortaleza: Livraria Letra Livre/Plebeu Gabinete de Leitura, 2013, 340p. Resenha de: CÂNDIDO, Tyrone Apollo Pontes. O discurso oculto das artes da resistência. Em Perspectiva. Fortaleza, v.3, n.1, p.274-280, 2017. Acessar publicação original [IF].

A dominação e a arte da resistência: discursos ocultos | James Scott

Com o recente lançamento de A dominação e a arte da resistência pela livraria Letra Livre de Portugal (especializada em escritos libertários) podemos enfim dispor em língua portuguesa de uma das principais obras de James C. Scott. Até então os interessados nas ideias deste autor no Brasil tivemos de nos contentar com as traduções de uns poucos artigos publicados em periódicos acadêmicos.3

Há cinco décadas James C. Scott, professor de Ciência Política e Antropologia da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, vem produzindo uma extensa obra que abrange diferentes campos de estudos, como economia política, relações agrárias, hegemonia e formas de resistência, política camponesa e, mais recentemente, anarquismo. Entre os seus livros mais importantes estão: The moral economy of the peasant (1979), Weapons of the weak (1985), Seeing like a state (1998) e The art of not being governed (2009). Leia Mais

Weapons of the Weak: everyday forms of Peasant Resistance. Domination and the Arts of Resistance: hidden transcriots / James Scott

Infelizmente, a obra de James C. Scott ainda é pouco conhecida entre os historiadores brasileiros. Seus trabalhos nem sequer foram traduzidos, o que demonstra o parco interesse editorial. No entanto, as temáticas levantadas em seus estudos convergem intimamente com os interesses de pesquisa desenvolvidos no Brasil, especialmente nos programas de pós-graduação em História.

Pesquisas sobre resistência dos trabalhadores de variadas origens e condições, assim como sobre movimentos sociais, consistem em uma importante vertente atual dos interesses teóricos e políticos dos historiadores. Pode-se afirmar que esta tendência afirma-se particularmente entre os historiadores acadêmicos, que, em suas teses e dissertações, buscam reatar o fio perdido das lutas sociais obscurecidas pela propaganda neoliberal pós-Guerra Fria. De fato, os programas de pós-graduação e muitos cursos de graduação em História aglutinam cada vez mais seus focos de interesse temático dentro de uma linha teórica/metodológica que se convencionou chamar de História Social. Muito embora a advertência de que a história é inteiramente social por definição não tenha sido esquecida, há uma certa ênfase nessa especificação “social” que reafirma o lugar da política no interior dos estudos históricos, ao mesmo tempo em que amplia este conceito de modo a permitir análises que extrapolam a tradicional referência ao Estado como relação primordial ou central que configurava os estudos de História Política.

No caso da história “vista de baixo”, a vida dos trabalhadores fora dos sindicatos, partidos e organizações passa a ser um importante tema de pesquisa que amplia as possibilidades de entendimento de dimensões mais obscuras ou imperceptíveis das relações de poder. A procura sistemática das formas e lugares da “resistência” passou a dominar as preocupações dos historiadores, mesmo que uma série de divergências – de natureza teórica ou política – ainda permaneça.

Nessa perspectiva, os trabalhos de James C. Scott podem acrescentar uma rica reflexão a este debate contemporâneo. Os dois livros aqui sumariamente resenhados representam um esforço do autor em precisar empiricamente este debate e dar uma nitidez teórica ao conceito de “práticas de resistência cotidiana”. Esta noção foi inicialmente discutida no livro W eapons of the Weak: everyday forms of Peasant Resistance (1985), que é o resultado de um trabalho de dois anos de observação participante em uma pequena vila rural da planície de Muda, no estado de Sedaka, no nordeste da Malásia. Esta aldeia se dedicava tradicionalmente à agricultura do arroz, e as mudanças trazidas pela revolução verde aumentavam a desigualdade entre pobres e ricos, especialmente com a utilização de novas máquinas e técnicas agrícolas. A atenção de Scott se centrou mais nas tensões e lutas não visíveis dentro da estrutura social local do que em conflitos de massa contra o governo, dedicando-se a analisar formas de resistência cotidiana, individual ou coletiva.

As práticas de resistência cotidiana, para ele, se constituem na “luta prosaica mas constante entre o campesinato e aqueles que buscam extrair trabalho, comida, impostos, rendas e juros dos camponeses” (p. 32-33). A prática do “corpo mole”, a dissimulação, a condescendência, o furto, a simulação, a fuga, a fantasia, a difamação, a maledicência, o incêndio culposo, são atitudes encontradas pelo autor que apontam para uma compreensão interiorizada e sutil da exploração e do antagonismo. Para ele, estas “formas brechtianas de luta de classes têm certos traços em comum”: mesmo requerendo “pouca ou nenhuma coordenação ou planejamento”, são mecanismos de “auto-ajuda individual” que “geralmente evitam qualquer confrontação simbólica direta com as autoridades ou com as normas da elite”. Assim, como os caminhos da resistência cotidiana não estão somente impressos nas lutas abertas e institucionais contra os dominantes, é preciso ver “o que os camponeses fazem entre revoltas para defender seus interesses da melhor forma possível” (p. 29).

Assim, tanto as práticas cotidianas quanto os movimentos sociais institucionalizados são considerados por Scott como formas de resistência. Desta forma, ele discorda da separação entre “resistência real” e “resistência incidental”, o que implica em um importante discussão metodológica.

Resistência real, se argumenta, é (a) organizada, sistemática e cooperativa, (b) guiada por princípios e não egoísta, (c) tem conseqüências revolucionárias, e/ou (d) incorpora idéias ou intenções que negam as bases da dominação em si mesmas. Atividades incidentais ou epifenomênicas, por contraste, são (a) desorganizadas, não sistemáticas, e individuais, (b) oportunistas e de auto-satisfação, (c) não tem conseqüências revolucionárias, e/ou (d) implicam, na sua intenção ou significado, em uma acomodação com o sistema de dominação (p. 292).

O autor entende, portanto, que esta diferenciação, mesmo que seja útil para fins de classificação das formas de resistência, não consegue captar as práticas cotidianas como instrumentos populares de manifestação de um sentimento de injustiça e de luta contra a opressão social. Se as práticas cotidianas não apontam caminhos revolucionários ou, às vezes, até reafirmam a ordem social, continuam, apesar de tudo, sendo mecanismos encontrados para driblar ou sublimar a opressão e/ou a exploração de classe, constituindo-se, portanto, em importante janela para a compreensão das lutas sociais e das condições de vida dos setores populares subalternos. No entanto, dado o caráter fragmentado e difuso destas práticas, a questão que se coloca é como identificá-las e que metodologia utilizar para estudá-las.

Em trabalho posterior, Domination and the Arts of Resistance (1990), a preocupação de Scott é desenvolver uma abordagem teórica para compreender as relações de dominação a partir das interações sociais cotidianas. Nesse trabalho, o autor trata não só de camponeses, mas também de outros grupos ou classes, tais como escravos, servos, etnias e povos colonizados.

As interações sociais são analisadas como teatralização, em que os indivíduos se utilizam de diversas “máscaras” para situarem-se nas relações de poder. Há uma nítida aproximação, aqui, com os trabalhos do historiador inglês E. P. Thompson, que examina as práticas de um teatro dos dominantes em confronto com um contra-teatro dos dominados, os quais, através de discursos de submissão e deferência, manifestam contraditoriamente insatisfações, ressentimentos, revoltas ou descontentamentos. As práticas de representação, confirmadas pela detalhada pesquisa empírica de Scott, indicam a constituição de um jogo de papéis e lugares em que as normas ou regras elaboradas pelos dominantes ganham significados diferentes, e às vezes contrastantes, quando colocadas em ação pelos grupos populares. Mais uma vez, a distinção entre “resistência ativa” e “resistência passiva”, como definidores de um campo da política e outro do conformismo, perde consistência teórica e prática. Neste livro de 1990, o autor desenvolve de forma mais ampla a noção de “práticas cotidianas de resistência”, procurando entendê-las na confluência entre “transcrito público” (public transcript) e “transcrito invisível” (hidden transcript).

No “transcrito público”, ambas as partes tendem a orientar suas atitudes por estratégias de respeito, dissimulação e vigilância. A análise destas atitudes pode ser um caminho metodológico importante para compreender os padrões culturais de dominação e subordinação. Esta perspectiva se assenta numa crítica à visão de que os grupos e/ou indivíduos dominantes conseguem efetivamente manter o controle total sobre os grupos dominados e sobre as práticas determinadas pelas normas que regem o espaço público, assim como suas decorrências. Os subordinados, mesmo que estejam em conflito aberto com o dominante, procuram agir com deferência e consentimento, garantindo assim um campo perceptível e seguro de negociação. Trata-se de um “gerenciamento de aparência” em situações de hierarquia de poder, quando o subordinado tenta interpretar a expectativa do dominante.

A dominação precisa ser reafirmada socialmente através de um trabalho político sistemático, representado no “transcrito público”. As principais formas deste transcrito são afirmações, eufemismos e unanimidades. Afirmações ocorrem através de pequenas cerimônias, chamadas por Scott de “etiqueta”, que constituem uma espécie de “gramática da interação social” (p. 47).

Eufemismos têm como objetivo mascarar os fatos cruéis e violentos da dominação e dá-los um aspecto inofensivo ou simpático, neutralizando-os enquanto possibilidades de fraturas do tecido social – como exemplo, o autor cita o uso da palavra “pacificação” para a ocupação e o ataque armado. Unanimidades são mecanismos utilizados pelos dominantes não para ganhar a concordância dos subordinados, mas para intimidá-los de modo a garantir um relacionamento durável de submissão.

As expressões do “transcrito público” são fundamentais para a análise das relações de poder e, segundo Scott, a única forma de alcançar estas manifestações é “conversar” com o ator (ou com as evidências deixadas no registro das fontes históricas) “fora do palco”, ou seja, distante do contexto hierárquico de poder, onde as regras do teatro da dominação tendem a prevalecer. Este espaço “seguro”, “livre”, é chamado de “transcrito invisível”, que “consiste de falas, gestos e práticas que confirmam, contradizem ou enfatizam o que aparece no transcrito público”. Scott esclarece que não se trata de uma oposição entre espaço da necessidade e da liberdade, ou contexto do falso e do verdadeiro, mas atos teatrais para audiências diferentes (p. 5).

O interesse de Scott vai particularmente para situações de dominação, que, embora institucionalizadas através da ideologia, do ritual e da etiqueta, são permeadas por relações pessoais, como é o caso das relações entre servo e senhor, do sistema de castas e das relações sociais do campesinato. Entretanto, os grupos que se orientam por relações pessoais – tradicionais – têm também uma existência social “fora do palco”, o que lhes permite desenvolver uma renitente crítica ao poder. Há, aqui, um interesse particular para os estudos sobre situações vinculadas ao sertão cearense, com suas relações intensamente marcadas pelo paternalismo, pelo coronelismo e pelo compadrio.

Assim, as pesquisas de Scott se dirigem para os temas da resistência, das estratégias, da representação, da ação como atos que obedecem a determinadas regras de comportamento mas que permitem uma ressignificação em função de contextos de desigualdade e confronto. As “práticas de resistência cotidiana” constituem, para os populares de maneira geral, um território de negociação (público), em que as regras de atuação são definidas pelos dominantes, e um território de liberdade relativa (oculto), onde as expressões de crítica podem circular mais livremente, constituindo assim um “vocabulário da exploração”.

A identificação desses territórios pelo pesquisador é fundamental, pois as expressões de revolta e/ou de conformismo só adquirem significado efetivo no interior desses contextos de enunciação, configurando um gerenciamento criativo e persistente das condições da exploração e da dominação social. Mais uma vez, a ampliação do conceito de política é condição fundamental para o entendimento das ações populares de resistência à dominação de classe.

Os rumores, a dissimulação, o ressentimento, os eufemismos, o “corpo mole”, são formas possíveis de resistência em contextos de dominação e de controle cultural. Possuem, portanto, um sentido político de antagonismo de classe que o foco exclusivamente centrado nas instituições formais dos trabalhadores não permitia ver.

A riqueza das análises de James C. Scott já está a merecer uma boa tradução para o português, para que a comunidade de historiadores, interessada nas formas de resistência popular à dominação social, possa se beneficiar desse amplo, complexo e comprometido arsenal de combate ao conformismo teórico e ao determinismo econômico.

Frederico de Castro Neves – Universidade Federal do Ceará.

Marilda Aparecida de Meneses – Universidade Federal da Paraíba.


SCOTT, James C. Weapons of the Weak: everyday forms of Peasant Resistance. New Haven: Yale University Press, 1985; Domination and the Arts of Resistance: hidden transcriots. New Haven: Yale University Press, 1990. Resenha de: NEVES, Frederico de Castro; MENESES, Marilda Aparecida. Revista Trajetos, Fortaleza, v.1, n.1, 2001. Acessar publicação original. [IF].