Ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul / História – Debates e Tendências / 2019

A desmemoria

“O medo seca a boca, molha as mãos e mutila. O medo de saber nos condena à ignorância; o medo de fazer nos reduz à impotência. A ditadura militar, medo de escutar, medo de dizer, nos converteu em surdos e mudos. Agora a democracia, que tem medo de recordar, nos adoece de amnésia; mas não se necessita ser Sigmund Freud para saber que não existe tapete que possa ocultar a sujeira da memória”.

Eduardo Galeano.

Nas décadas de 1960 e 1970, uma série de golpes de Estado nos países do Cone Sul deu início ao ciclo de ditaduras militares – ou civil-militares – na região, atingindo países como Brasil, Uruguai, Chile e Argentina. Estas ditaduras se estruturaram a partir das diretrizes gerais da Doutrina de Segurança Nacional (DSN), das orientações de estratégia da teoria da contrainsurgência norte-americana e da doutrina de guerra revolucionária francesa, instituindo, assim, a noção de “guerra interna”. Dessa forma, as Ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul criaram o “inimigo interno” – chamado genericamente de “subversivo” – e adotaram amplamente uma política repressiva baseada no Terrorismo de Estado, que ultrapassou os limites da “repressão legal”, permitida pelo arcabouço jurídicoconstitucional, utilizando “métodos não convencionais” – tais como o sequestro, a detenção ilegal, a tortura, o assassinato e o desaparecimento de opositores e seus cadáveres – para aniquilar a oposição política e o protesto social, fossem estes armados ou não. Como pano de fundo, tais regimes constituíram pressuposto essencial para a readequação das respectivas economias nacionais aos novos ditames do capitalismo mundial. Leia Mais

Ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul / Anos 90 / 2012

O Dossiê Ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul, que integra o presente número da Revista Anos 90, confirma o crescimento e a excelência das pesquisas que, sobre essa temática, vêm sendo realizadas nos países do Cone Sul. Nesse sentido, o avanço da produção historiográfica é inegável. Tal fato decorre, por um lado, de uma certa mirada simultânea na valorização da História Recente regional; por outro, pelo contexto de mudanças políticas na região, fato que não é alheio à revalorização do passado imediato. Nesse sentido, há, no presente, o interesse social pelo resgate da experiência histórica de uma geração que viveu singularmente aquele período autoritário, bem como uma agenda de demandas sobre questões inconclusas (abertura de arquivos repressivos; papel da justiça; reparações; formação de comissões da verdade etc.). Tais demandas redimensionam as contribuições que os historiadores e profissionais de outras áreas geram a partir das suas pesquisas e dos seus trabalhos de divulgação, permitindo, ainda, a socialização de um conhecimento que possibilita à sociedade maior aproximação a um passado ainda pouco conhecido e interditado por controversas políticas de esquecimento.

Deve-se salientar, também, que uma perspectiva de conjunto sobre o Cone Sul – independentemente dos traços singulares que, evidentemente, emolduram as experiências locais e nacionais – possibilita desenvolver uma percepção dos elementos comuns, paralelos, semelhantes e, em diversos casos, conectados. O atual panorama político dos países da região tem estimulado o debate sobre leis de anistia, acessibilidade dos arquivos repressivos, comissões de verdade e justiça de transição, papel das testemunhas, herança das experiências traumáticas e formas de reparação, bem como avanços e recuos do Poder Judiciário diante dos crimes do terrorismo de Estado. Portanto, não só a academia tem se mostrado receptiva a esta dinâmica efervescente em relação à história recente, como outros protagonistas têm incidido no debate, caso de partidos políticos, associações de direitos humanos, mídia, forças armadas etc., gerando um vigoroso processo de interação que é retroalimentado pela simultaneidade de iniciativas tão diversas, mas que coincidem em um redimensionamento e valorização do passado recente.

O conjunto de quatorze artigos e uma resenha que compõem o Dossiê (resultado de exigente processo seletivo que envolveu mais de trinta e cinco artigos recebidos) reflete as problemáticas anteriormente citadas, incluindo aspectos vinculados aos antecedentes e às transições posteriores, enfatizando diversos subtemas correlatos: fontes e arquivos; fundamentação doutrinária; conexão repressiva; discussões teóricas; papel da memória; efeitos traumáticos etc.

O Dossiê inicia com a apresentação de um consistente artigo do professor Bruno Groppo, pesquisador do Centre d’Histoire Sociale du XXe Siècle (Université de Paris I). Intititulado Reflexões sobre os conceitos de responsabilidade e culpa na obra de Karl Jaspers e sobre sua aplicabilidade à ditadura de 1976-1983 na Argentina, o texto analisa a tentativa do filósofo alemão de propor, em 1946, portanto, no contexto do julgamento e da divulgação massiva dos crimes cometidos pelo nazismo, uma avaliação à sociedade alemã, sobre a sua atitude, participação ou omissão diante daquela experiência. A análise de Groppo resgata a proposição de Jaspers, de estabelecer um debate centrado nos conceitos de responsabilidade e culpa. Ignorada no seu tempo, a problemática ética levantada pelo filósofo alemão, entretanto, acabou sendo recolocada pelos filhos da geração do silêncio. Diante dos significativos efeitos que, finalmente, produziram tais ideias de Jaspers, Groppo utiliza esse antecedente para aferir se contribui para dar maior inteligibilidade ao tenso embate entre esquecimento e memória existente na história argentina relacionado à ditadura de 1976-1983.

O artigo La dictadura del Proceso de reorganización nacional y la represión al movimiento obrero, de autoria do professor da UBA, Pablo Pozzi, centra-se em um dos objetivos mais estratégicos – e ainda pouco conhecido – da ditadura de segurança nacional argentina, a repressão contra o movimento operário, condição fundamental para seu disciplinamento e para a reprodução do capital. Com o objetivo de abrir a economia e torná-la competitiva, procurou-se acabar com o ativismo sindical. A infiltração, a delação e a colaboração orgânica entre setores empresariais e forças repressivas foram fundamentais para atingir aqueles objetivos. Pozzi expõe os mecanismos de enquadramento específicos implementados pela ditadura, caso dos sequestros e desaparecimentos ocorridos em empresas como a Ford e a Mercedes Benz, entre outras. A partir da explicitação da análise da documentação produzida pela Dirección de Investigaciones Políticas de la Policía de la Provincia de Buenos Aires, o autor destaca, ainda, a utilização de leis que permitiram garantir algum grau de legitimidade, bem como a imposição de uma reestruturação sindical que permitiu cooptar quadros dirigentes, tirando autonomia e capacidade reivindicativa ao movimento e isolando, assim, os setores mais organizados do denominado sindicalismo combativo.

O Golpe civil-militar de 64: algumas possibilidades sobre seu significado, artigo do cientista político e professor da Universidade Católica de Pelotas, Renato Della Vecchia, apresenta um panorama das condições que geraram a interrupção da democracia brasileira em 1964. Partindo de certas interpretações clássicas sobre o significado histórico do golpe, entre as quais as realizadas por Paul Singer, Maria Victória Benevides, Angelina Cheibub Figueiredo, Fernando Henrique Cardoso e José Serra, Della Vecchia avalia o desenrolar do processo histórico que configura a queda do Governo Goulart, a partir da premissa do necessário diálogo do político com o econômico, como chave explicativa para compreender as expectativas então existentes em relação ao sentido e significado de tão frágil democracia, e do autoritarismo em gestação.

A atuação parapolicial é o tema desenvolvido por Ana Belén Zapata, da Universidad Nacional del Sur (Bahía Blanca), em Violencia parapolicial en Bahía Blanca, 1974-1976. Delgados límites entre lo institucional y lo ilegal en la lucha contra la “subversión apátrida”. Ancorada nos documentos existentes no Arquivo da Dirección de Inteligencia de la Policía de la Provincia de Buenos Aires (DIPBA), o trabalho analisa aspectos da violência implementada por grupos parapoliciais na cidade de Bahía Blanca (provincia de Buenos Aires), entre os anos de 1974 e 1976. Trata-se do período de amadurecimento e fermentação dos fatores que levaram ao golpe de Estado que impôs a ditadura identificada com o Proceso de Reorganización Nacional. Centrado na violência de extrema direita naquela cidade, o artigo indaga a respeito das motivações e caracterização dos crimes promovidos na fase terminal da tensa democracia argentina, o grau de conhecimento e envolvimento da própria DIPBA (órgão estatal) e a forma como os protagonistas do sistema político encararam e interpretaram essas ações ilegais e parapoliciais na denominada “luta antissubversiva” instalada previamente ao próprio golpe de Estado.

O texto de Débora Carina D’Antonio – Los presos políticos del penal de Rawson: un tratamiento para la desubjetivación Argentina (1970- 1980) – foca, de uma perspectiva de gênero, a realidade de um centro de detenção onde foi aplicada uma tecnologia de disciplinamiento, sob o marco de práticas evidentemente ilegais e inconstitucionais. Segundo a autora, no interior da prisão de Rawson, foi imposta uma lógica desmasculinizadora que extrapolou o objetivo explícito da ditadura de quebrar os presos de uma perspectiva ideológica e política. O artigo, ao introduzir o tema da violência sexual, perfila-se como instrumento de resgate de traumas ainda pouco explicitados que confirmam a existência de faces repressivas ainda pouco conhecidas dentro do inesgotável universo constitutivo do terrorismo de Estado. Mesmo assim, onde a atuação da justiça é perceptível, coletivos de vítimas que sofreram essa violência vêm ocupando espaço público e colocando o problema como temática necessária de pesquisa ou experiência de vida que exige reparações e responsabilizações. É da natureza dessa dimensão tão complexa, portanto, que trata a reflexão de D’Antonio.

A professora Paula Vera Canelo, pesquisadora do Conicet e da Universidad Nacional de San Martín, questiona no seu artigo Los desarrollistas de la ‘dictadura liberal’. La experiencia del Ministerio de Planeamiento durante el Proceso de Reorganización Nacional en la Argentina, a caracterização da ditadura argentina (1976-1983), certa compreensão generalizada que associa a ditadura argentina (1976-1983) como sendo homogeneamente liberal. Após historiziçar a experiência de planejamento no país e apontar uma linha de continuidade desde o governo Frondizi até o golpe do Proceso de Reorganización Nacional, Canelo, discordando daquele senso comum, avalia a pugna interna entre o entorno do Ministro de Economia, Martínez de Hoz (aperturista, privatista e desindustrializador), e um conjunto civil-militar que, através do Ministério do Planejamento e desempenhando funções no complexo militar industrial e em empresas estatais, defendia o planejamento e a intervenção estatal na economia, a partir de uma interpretação da Doutrina de Segurança Nacional, que justificava uma “industrialização defensiva” e que se estabelece no interior do aprofundamento da relação do binômio “desenvolvimento-modernização”. O artigo estuda a origem e formação doutrinária desse grupo, sua inserção no projeto ditatorial, o embate com correntes opostas e seu declive final.

Alejandro Paredes, pesquisador do Conicet e da Universidad Nacional de Cuyo (Mendoza) centra seu artigo, La organización de los refugiados políticos chilenos en Mendoza y la huelga de hambre de Julio de 1976, na conexão repressiva regional chileno-argentina, destacando o caso dos refugiados políticos chilenos, em Mendoza (Argentina), entre 1976 e 1983. Após o golpe no Chile, milhares de perseguidos políticos chilenos e de outras nacionalidades fugiram do Chile, da Unidade Popular, atravessando a duras penas a cordilheira dos Andes, a procura de “terra amiga”. A implantação da ditadura na Argentina, em 1976, aprofundaria o clima de hostilidade contra esses exilados, inclusive dentro do marco da Operação Condor. A partir do dimensionamento de uma greve de fome promovida em 1976, Paredes resgata uma história de resistência e solidariedade, em condições extremadas. A mesma teve como protagonistas diretos, além de milhares de refugiados chilenos, a organização cristã Comitê Ecumênico de Ação Social (CEAS), amparada e financiada pelo Conselho Mundial de Igrejas e pela ACNUR.

Jorge Fernández, professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e pesquisador das relações repressivas argentino-brasileiras no contexto das ditaduras de segurança nacional, no texto O Brasil e a Contra-ofensiva Montonera, 1978-1980, perscruta a forma como a Operação Retorno, conhecida como Contraofensiva Montonera, permitiu a coordenação de esforços entre as ditaduras do Brasil e da Argentina tentando impedir que o território do primeiro fosse utilizado como caminho ou plataforma para a passagem dos militantes que, após avaliação feita pela sua direção no exílio, haviam recebido ordens de retomar a luta armada no seu país. A pesquisa de Fernández, assentada em documentos repressivos, mapeia rotas e locais de passagem dos quadros montoneros. Da mesma forma, identifica a informação que circulava entre as forças de segurança de ambas ditaduras e avalia o grau de infiltração que sofria a organização armada. Finalmente, contribui no problemático resgate dos acontecimentos que produziram o desaparecimento de cidadãos argentinos no Brasil, bem como os coloca dentro da perspectiva da coordenação regional da Operação Condor.

Também relacionado com o tema da conexão repressiva regional, o artigo da doutoranda Melisa Slatman, denominado Actividades extraterritoriales represivas de la Armada Argentina durante la última dictadura de Seguridad Nacional (1976-1981), realça o protagonismo da Marinha argentina. A partir de um conjunto de apreciações refl exivas sobre a essência da já citada Operação Condor, o texto defende a necessidade de aprofundar o debate sobre a mesma, a efeitos de aprimorar sua conceituação. Dessa forma, marca distância, de uma perspectiva problematizadora à luz de pesquisas empíricas mais recentes, dos primeiros trabalhos de investigação e sua ênfase em uma certa linearidade de atuação dos protagonistas envolvidos. Tomando como objeto de estudo as atividades repressivas extraterritoriais da Marinha durante a última ditadura de segurança nacional na Argentina, Slatman investiga a inserção das mesmas no marco institucional do Estado Terrorista. A seguir, analisa a constituição e autonomização, na estrutura orgânica da Marinha, do Grupo de Tareas 3.3, responsável pela administração de um dos maiores centros clandestinos de detenção do país: a Escuela de Mecánica de la Armada (ESMA). Finalmente, o estudo analisa a evolução das atividades repressivas extraterritoriais desse Grupo de Tareas, dentro do marco multifacêtico da coordenação regional existente.

No artigo A constituição das memórias sobre a repressão da ditadura: o projeto Brasil: Nunca Mais e a abertura da Vala de Perus, a doutora pela Universidade de São Paulo, Janaína Almeida Teles, oferece um panorama reflexivo sobre a interdição do passado recente, estabelecendo uma narrativa sobre a formação da memória social a partir destes momentos “fundacionais”, que diluíram e esvaziaram os limites de transição pactuada que marca o cenário pós-ditadura no Brasil. Partindo da constatação de que a transição brasileira para a democracia ocorreu sem rupturas evidentes, o que tem possibilitado a persistência de legado ditatorial, até hoje, a autora considera que a reconstituição factual e a avaliação crítica acerca do período autoritário têm sido permeadas por zonas de silêncio e interdições. Para tanto, escolhe como objeto de análise eventos que, segundo ela, são fundamentais na formação da memória sobre a repressão da ditadura brasileira: a publicação do projeto Brasil: Nunca Mais e a abertura da Vala de Perus. Em relação ao primeiro, além de resgatar a história da sua produção do seu contexto, realiza-se, a partir dele, a avaliação do seu impacto no conjunto da sociedade e a comparação com o Nunca Mais argentino – bem como com o impacto que este gerou no seu país. Quanto à Vala de Perus, o texto é muito rico quanto à análise das dificuldades, dos entraves e das limitações colocadas pelo poder público. Merece registro, ainda, além de outras fontes pertinentes, o rico conjunto de entrevistas com protagonistas diretamente envolvidos nos eventos citados.

Priscila Brandão, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, e Isabel Leite, doutoranda da Universidade Federal do Rio de Janeiro, resgatam no artigo Nunca foram heróis! A disputa pela imposição de significados em torno do emprego da violência na ditadura brasileira, por meio de uma leitura do Projeto ORVIL, o processo de criação, execução e divulgação desse controvertido documento. O texto lembra que algumas das afirmações ali contidas têm sido constantemente replicadas no site TERNUMA, com cuja lógica narrativa mantém sintonia. O projeto, esboçado desde o final da ditadura, pretendia contrapor-se à narrativa de uma história recente da ditadura produzida pela esquerda sobrevivente acerca da tortura – principalmente a partir da Anistia – e divulgada através de entrevistas, bibliografia memorialística e, sobretudo, do relatório Brasil Nunca Mais, da Arquidiocese de São Paulo. As perguntas das autoras miram na percepção que de se tinha um determinado grupo de militares, marcadamente ultraconservadores e perfilados no centro do processo do golpe de Estado, na implementação dos mecanismos repressivos e nas estratégias utilizadas para contar e rememorar esse passado.

Em Do luto à luta: um estudo sobre a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil, o cientista político, Carlos Gallo, analisa a luta da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos (CFMDP), cuja atuação no tempo tem mantido coerência na defesa e exigência dos seguintes eixos reivindicativos: a responsabilização do Estado pelos crimes praticados contra os direitos humanos; a apuração das circunstâncias das mortes e desaparecimentos; a responsabilização dos culpados; e o resgate dos fatos e a preservação da memória relacionada aos mesmos. Incansável, a Comissão tem sido referência no esforço pelo combate ao esquecimento induzido e à impunidade resultante da ação estatal, bem como da omissão de importantes setores da sociedade. Como grupo de pressão, a organização, que carrega as bandeiras históricas do Nunca mais e as exigências de “Verdade, Memória e Justiça”, tem ocupado espaço crucial no questionamento das posições do Estado quanto à abertura dos arquivos repressivos, à interpretação sobre a Lei da Anistia, à condenação do Brasil na CIDH / OEA e à demora pela nomeação da Comissão da Verdade. Nesse sentido, o artigo de Gallo analisa o surgimento das demandas dos familiares, a sua organização após a ditadura, o conteúdo das demandas, a forma como a questão dos mortos e desaparecidos foi trabalhada ao longo dos anos e, por fim, os limites às demandas dos familiares durante a sua trajetória.

O artigo Te seguiremos buscando… Derecho a la identidad y prácticas judiciales durante el Terrorismo de Estado en Argentina resulta de um trabalho coletivo multidisciplinar que objetiva um dos temas mais candentes, mobilizadores e singulares da experiência argentina de segurança nacional e do terrorismo de Estado: o sequestro de crianças e a apropriação da sua identidade. Trata-se de uma pesquisa desenvolvida no Archivo General de los Tribunales de Córdoba (Argentina), orientada à divulgação, sistematização e análise das adoções tramitadas nos juizados civis e de menores da cidade de Córdoba durante 1975 e 1983. A pesquisa, baseada em fontes judiciais, resgatou a lógica da tramitação dessas adoções, permitindo avaliar a vinculação do poder judiciário com esse crime. Os autores concluem que a falta de exigências legais existentes na época favoreceram tais “adoções” e que o plano sistemático de apropriação ilegal de crianças desenvolvido pela ditadura se apoiou em mecanismos e dispositivos que facilitaram a inscrição de crianças como filhos próprios e que funcionavam como regra no interior dos processos judiciais.

No artigo de Maricel Alejandra López, Moral y don en las reparaciones económicas a las víctimas del terrorismo de estado en Argentina, a autora propõe pensar o tema das reparações a partir da teoria do “don”, elaborada por Marcel Mauss. Tal teoria é vista como instrumento que a autora considera válido para superar um debate tensionado pelos valores, pelas ações e pelos compromissos que as vítimas e os sobreviventes remarcam sempre como algo político e ético. López lembra que a reparação econômica às vítimas da ditadura é uma das políticas estatais que o Estado estabeleceu em relação aos crimes cometidos pela ditadura contra os direitos humanos. Mas na lógica das vítimas, a vida, a morte e os direitos humanos são parte das “coisas que não têm preço”, embora estejam inseridas em um mundo onde o econômico é sempre relevante. Para muitas das vítimas e dos sobreviventes, toda reparação é algo que não pode ser aceito, pois, supostamente, contradiz valores, coerências e ações. Para López, analisar tais reparações à luz da Teoria do “don”, de Marcel Mauss, pode tornar possível a aceitação do fato da reparação. A base do esquema é o tripé “dar, receber, devolver”, em que o “don” é percebido como ato de reconhecimento social, enquanto que o “receber” representa uma carga redimida pelo “devolver”.

Por fim, o Dossiê encerra-se com a resenha sobre a obra de Caroline Silveira Bauer, Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória, resultado da tese de doutorado defendida no PPG-História da UFRGS, em 2011, e vencedora do Prêmio Teses da FLACSO / CLACSO, em 2012.

Diante de tudo o que foi exposto, agradecemos a todos os autores que encaminharam seus artigos para avaliação, bem como aos pareceristas que muito contribuíram para a qualidade deste Dossiê Ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul que ora apresentamos.

Boa leitura.

Enrique Serra Padrós – Professor do Departamento e Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS.


PADRÓS, Enrique Serra. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 19, n. 35, jul., 2012. Acessar publicação original [DR]

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Relações Civis e Militares e Segurança Nacional / Varia História / 2012

Mais uma vez navegando na transdisciplinaridade, o atual dossiê “Relações Civis Militares e Segurança Nacional”, a exemplo do dossiê anterior, “História e Inteligência”, trafega em temas cujo estudo vem, paulatinamente, crescendo no país e na América Latina. A importância de pesquisas sobre temas vinculados à defesa, estudos estratégicos e segurança tem sido reconhecida em termos nacionais por meio do Ministério da Defesa, por exemplo, que vem ampliando o debate junto à sociedade civil, fomentando pesquisas por meio de editais e prêmios e abrindo interlocução com a CAPES e o CNPq, e no âmbito internacional, pela criação de instituições de pesquisa tais como a Red de Seguridad y Defensa de America Latina (RESDAL).

De uma análise sobre o comportamento dos militares e o uso da violência que remonta à década de 1970, realizada ainda por poucos pesquisadores, a exemplo do trabalho pioneiro de Eliézzer Rizzo de Oliveira, estas pesquisas passaram nos anos de 1980 e 1990 para um enfoque sobre as relações civis-militares, com destaque para a influência exercida por trabalhos como os de João Roberto Martins Filho, Jorge Zaverucha, e a trilogia produzida pelo Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas – CPDOC / FGV, sob responsabilidade de Maria Celina D´Araújo, Celso Castro e Gláucio Ary Dilon Soares. Atualmente, estas análises abarcam também as possibilidades de emprego da força e uso político das forças armadas, a exemplo de alguns artigos que se seguem.

De uma forma geral, trabalhar sobre o conceito de segurança nacional permite uma gama infinita de possibilidades pois, afinal de contas, o que podemos entender como segurança? A segurança implica uma situação percebida como livre de ameaças ou de quaisquer outros fatores conflitivos. Na presença de ameaças ou conflitos identificáveis, a segurança, do ponto de vista institucional das democracias, é percebida como a possibilidade de articulação de mecanismos institucionais capazes de neutralizar essas ameaças ou conflitos, a fim de se alcançar determinado ordenamento e assegurar o conjunto de garantias e direitos constitucionais, bem como de assegurar o funcionamento integral das instituições política.

No entanto, a segurança é interpretada e defendida tanto nas democracias como em regimes ditatoriais, e está relacionada às ameaças internas e externas e aos padrões de relação existente entre as instituições vinculadas ao poder coercitivo e à sociedade.

A segurança pode tanto estar relacionada às ameaças externas, que dizem respeito à própria existência do Estado, preservação de território, sobrevivência de sua população etc., quanto a aspectos internos da sociedade. Quanto mais fechado for o regime, maior será a propensão do governo a enfatizar a segurança interna e preocupar-se com a repressão política dentro do próprio território.

Durante os governos autoritários latino-americanos, o estabelecimento da “segurança nacional” foi a base para o desenvolvimento de uma série de desrespeito aos direitos individuais e humanos, e é possível que esta “herança maldita” desqualifique a utilização do conceito de segurança nacional para a resolução de conflitos em sociedades democráticas. Não obstante, Marco Cepik chama atenção para uma importante questão: embora o conceito de “segurança nacional” careça de legitimidade em um contexto democrático, é impraticável reduzir a segurança coletiva à segurança individual, o que impede o simples abandono do conceito de segurança nacional. Neste sentido, a Segurança Nacional implica um grau relativo de proteção individual e coletiva. Estar seguro significa viver em um Estado minimamente capaz de neutralizar ameaças através de negociações, de obter informações sobre capacidades e intenções dos interesses adversários através dos recursos que lhe estão disponíveis e legitimados pelo exercício soberano e exclusivo do monopólio da força física.

Portanto, considerando a elasticidade e ambiguidade do conceito, optamos por dividir o dossiê em três partes. Os três capítulos iniciais (Enrique Padrós, João Roberto Martins Filho, e Suzeley Mathias e Fabiana Andrade) abordam a segurança nacional a partir da perspectiva da violência e do sistema institucional de repressão. Os dois capítulos seguintes, elaborados por Alessandra Carvalho e Maria Celina de Araújo, abordam o tema da segurança nacional pela perspectiva política, seja no período da ditadura, seja no presente. Os dois capítulos finais (David Mares e David Pion-Berlin) enfatizam tanto as relações civis-militares e a questão da segurança nacional (agora a partir de uma nova lógica interpretativa, não mais vinculada à Doutrina de Segurança Nacional) que perpassam todos os textos, quanto às possibilidades de emprego e uso político dos militares. Neste caso, os dois autores, além de consideram o recente contexto histórico, fornecem sugestões sobre o aperfeiçoamento do emprego das forças armadas na América Latina.

De forma detalhada e abrindo os trabalhos, Enrique Padrós, no texto A ditadura civil-militar uruguaia: doutrina e segurança nacional, realiza uma análise da interpretação que os militares uruguaios fizeram da Doutrina de Segurança Nacional. Para o autor, a doutrina foi o fator basilar da política repressiva estatal que colocou a proteção da segurança nacional como premissa principal, justificadora e legitimadora da disseminação do chamado terrorismo de Estado (TDE). As interpretações sobre conceitos fundamentais da doutrina permitiram aos militares uruguaios instrumentalizar a atuação repressiva junto à sociedade civil.

João Roberto Martins Filho também elabora uma discussão relacionada à Doutrina de Segurança Nacional e procura identificar quais matizes teóricos teriam orientado a política de repressão brasileira durante a ditadura. Para o autor, ao contrário das premissas estabelecidas por vários autores brasileiros e por importantes latino-americanistas, de que os estadunidenses teriam ofertado a maior parte das orientações doutrinárias da nossa política repressiva, a doutrina de guerra revolucionária francesa teria sido ainda mais importante que a dos Estados Unidos em países como Brasil, Chile e Argentina. O trabalho procura acompanhar com detalhe a evolução e aplicação deste ideal no seio das Forças Armadas brasileiras entre 1959 e 1975.

Ainda pensando a política repressiva durante a recente ditadura brasileira, Suzeley Kallil Mathias e Fabiana de Oliveira Andrade, no texto O Serviço de Informações e a cultura do segredo, revisitam a literatura relacionada à criação e desenvolvimento dos serviços de informações brasileiros até o auge da repressão, entendido aqui como a primeira metade da década de 1970, momento de desarticulação da Guerrilha do Araguaia. As autoras analisam o contexto histórico de desarticulação da guerrilha a partir da terceira campanha, conhecida como Campanha Marajoara, e avaliam como a mudança de estratégia castrense no âmbito interno permitiu que a comunidade de informações agisse de forma paralela ao comando hierárquico, mas neste caso, em particular, sem mesmo o conhecimento e anuência dos comandantes regionais. Argumentam que a mudança do modus operandi, favorecida pela capacidade de adaptação à cultura do segredo, teria sido um fator decisivo para que os militares alcançassem, definitivamente, seus interesses.

Entrando na esfera da relação comportamento político e segurança nacional, Alessandra Carvalho. em “Democracia e desenvolvimento” versus “Segurança e desenvolvimento”: as eleições de 1974 e a construção de uma ação oposicionista pelo MDB na década de 1970, analisa a elaboração de uma ação oposicionista pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB) no decorrer da década de 1970, tendo como ponto de inflexão as eleições de 1974 para o poder legislativo federal. A autora avalia como que, para obter o crescimento e a projeção desejada e alcançar seus interesses, foi preciso elaborar um discurso que rompesse com a ênfase no binômio segurança e desenvolvimento defendida pela elite econômica e pelos militares, orientando o discurso para aspectos relacionados ao fortalecimento de instituições democráticas.

Já Maria Celina D´Araújo, em O estável poder de veto Forças Armadas sobre o tema da anistia política no Brasil, demonstra como há um determinado nível de continuum em relação ao poder político dos militares desde a ditadura. Neste sentido, a autora afirma que os militares brasileiros detém um poder estável de veto player, que vem sendo incisivamente aplicado em relação ao tema da anistia. Esta capacidade seria fruto da autonomia militar antes, durante e depois da ditadura, da permanência dos baixos níveis de respeito aos direitos humanos na sociedade brasileira, e do baixo interesse do Congresso e do governo em geral pelo tema das Forças Armadas.

Transitando do tema política e segurança nacional para o tema relações civis-militares e segurança nacional, David Mares, em seu artigo Por que os latino-americanos continuam a se ameaçar: o uso da força militar nas relações intra latino-americanas, analisa a recorrente presença do emprego de um baixo nível de força militar na resolução de tensões, no contexto histórico latino americano do século XX e início do século XXI. Contrariando a máxima observada de forma simplista, de que a América Latina é um continente de paz, o autor identifica a ocorrência da militarização dos países latino-americanos e o emprego das forças armadas não apenas na resolução de disputas inter-regionais, mas também no nível interno, no âmbito da segurança doméstica. Enfoque importante é dado à capacidade e interesse de intervenção na região nos últimos anos por parte dos organismos internacionais responsáveis por arbitrarem / mediarem estes conflitos. O argumento do autor é que, em relação à arquitetura de segurança da América Latina, tem havido um crescente incentivo para a militarização das ações, o que não lhes imprime, necessariamente, eficiência.

Por fim, também no âmbito da temática segurança nacional e relações civis-militares, David Pion-Berlin, em Cumprimento de missões militares na América Latina, ao analisar a correlação de forças e interesses entre poder político e militares na América Latina nos últimos anos, identifica questões que, historicamente, têm provocado o cumprimento ou não-cumprimento dos militares em relação às missões que lhes tem sido atribuídas. Fatores como natureza da missão, experiência, treinamento e compatibilidade de funções, associados aos incentivos e desincentivos morais para sua ação, têm pesado como questões fundamentais para a decisão dos militares de aceitarem tais tarefas. A atuação em torno das ações de manutenção da paz, de ação cívica e de missões de destruição de drogas têm sido historicamente mais aceitas do que as missões anti-crimes e de manutenção da ordem pública, com algum grau de possibilidade de negociação no que tange às ações de contra-insurgência.

Agradecendo cada um dos autores pelas generosas contribuições, e certa de que com este segundo Dossiê Vária História 2012 estamos contribuindo para as pesquisa sobre os temas de segurança, defesa e inteligência no país, convido a todos a desfrutar da leitura.

Notas

[Numeração indisponível no corpo do texto original]

1.OLIVEIRA, Eliézzer Rizzo de. Forças Armadas, política e ideologia no Brasil, 1964-1969. Petrópolis, RJ: Vozes, 1976.  [ Links ] 2. MARTINS FILHO, João Roberto. O palácio e a caserna, 1964-1969. São Carlos, SP: Editora da UFSCar, 1995.     [ Links ] 3. ZAVERUCHA, Jorge. Rumor de sabres: controle civil ou tutela militar? Estudo comparativo das transições democráticas no Brasil, na Argentina e na Espanha. São Paulo: Ática, 1994.     [ Links ] 4. D´ARAÚJO, Maria Celina, CASTRO, Celso e SOARES Gláucio Ary Dilon. Visões do golpe: a memória militar sobre 1964. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 1994;     [ Links ] SOARES Gláucio Ary Dilon, D´ARAÚJO, Maria Celina e CASTRO, Celso.     [ Links ] Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 1994; SOARES Gláucio Ary Dilon, D´ARAÚJO, Maria Celina e CASTRO, Celso.     [ Links ] A volta aos quartéis: a memória militar sobre a abertura. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 1995.
5. BRANDÃO, Priscila. Serviços secretos e democracia no Cone Sul. Niterói: Editora Impetus, 2010, p.23.     [ Links ] 6. CEPIK, Marco. Espionagem e democracia. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 2003, p.63.     [ Links ]

Priscila Brandão – Organizadora. Departamento de História, UFMG. E-mail: [email protected]


BRANDÃO, Priscila. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.28, n.48, jul. / dez., 2012. Acessar publicação original [DR]

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