O livro da hospitalidade:  acolhida do estrangeiro na história e nas culturas – MONTANDON (C)

MONTANDON, Alan. O livro da hospitalidade:  acolhida do estrangeiro na história e nas culturas. São Paulo: Senac de São Paulo, 2011. Resenha de: COMANDULLI, Sandra Patricia Eder. Conjectura, Caxias do Sul, v. 20, n. 1, p. 183-190, jan/abr, 2015.

O livro da hospitalidade: acolhida do estrangeiro na história e nas culturas, no original Le livre l’hospitalité: accueil de l’étranger dans l’histoire et les cultures (2004) foi concebido por Alain Montandon, professor titular de filosofia e de literatura geral e comparada na Universidade Blaise-Pascal, Clermont-Ferrand. No prefácio, Montandon afirma que “a hospitalidade é sinal de civilização e de humanidade”. É “uma maneira de viver em conjunto, por meio de regras, ritos e leis”. A proposta de Montandon é percorrer o tema da hospitalidade “de portas abertas ao leitor”, a quem ele denomina “nosso hóspede”. Para Luiz Octavio de Lima Camargo, doutor em Sciences de l’Education pela Universidade Sorbonne-Paris V e autor da apresentação da edição brasileira, é uma obra enciclopédica que “tem por objetivo trazer a noção da hospitalidade para dentro do terreno da reflexão filosófica e da observação empírica”.

Para Camargo “a justo título, pode ser considerada uma obra, se não fundadora, ao menos sistematizadora dos estudos de hospitalidade, já que define e expande consideravelmente os limites do tema”.

Cerca de oitenta colaboradores, entre eles, filósofos, antropólogos, psicólogos, comparatistas, historiadores, etnólogos, literatos, especialistas em comunicação e sociólogos, oriundos de diversos países e de formações distintas escreveram os textos. A edição brasileira, publicada pela editora Senac (2011), foi traduzida por Marcos Bagno e Lea Zylberlicht. A obra é apresentada em cinco grandes partes, cada uma dividida em seções que agrupam os artigos. No final, há um capítulo sobre os autores, um capítulo de bibliografias – geral, por artigo e indicação de títulos publicados em português – e o índice, dividido em temático, onomástico e de obras citadas.

Esta resenha focaliza os artigos da quinta parte sobre filosofia e política, fazendo-se menção ao assunto de cada um deles. O primeiro é Jacques Derrida – Um pensamento do incondicional, escrito por Ginette Michaud, professora titular do departamento de literaturas de língua francesa da Universidade de Montreal. Michaud divide o conceito de hospitalidade, segundo Derrida, em três momentos reflexivos: a hospitalidade como um princípio ético, incondicional e infinito; a hospitalidade concretizada em responsabilidade e traduzida em palavra e gesto; a língua como hospitalidade, concentrando num silogismo hostipitalidade (1995), o paradoxo de ser hospitaleiro e, ao mesmo tempo, de provocar a hostilidade ao impor a língua ao hóspede. A busca incansável de Derrida, conforme Michaud, é pela hospitalidade “onde nunca saberemos quem acolheu quem e se (condição sem condição) a acolhida encontrou realmente lugar, foi dada e recebida e tornada acontecimento ao chegar”.

Marie Gaille-Nikodimov, professora titular de filosofia, na Universidade de Paris X-Nanterre, é autora dos três textos descritos a seguir. A acolhida problemática da filosofia na cidade propõe uma reflexão sobre as seguintes questões: Onde praticar o ato de filosofar? Em que condições? Onde a filosofia é capaz de melhor se desenvolver? A escola é o lugar, por excelência, de descoberta da filosofia? Deve constituir uma disciplina específica ou, ao contrário, estar presente em todos os cursos oferecidos pela universidade? Para responder essas perguntas, a autora propõe uma reflexão que perpassa a história da filosofia, apoiada em Sócrates, Descartes, Spinoza, Kant e Derrida. O primeiro, diante da crise de valores que atinge Atenas, chama cada um à razão em detrimento das suas crenças e opiniões e, condenado à morte, dirige-se aos atenienses salientando que a sua linguagem não é a mesma que a deles. Descartes, em 1641, nas Meditações metafísicas, reafirma a linha de demarcação entre o domínio da fé e da razão. Spinoza introduz o Tratado teológicopolítico, publicado em 1670, afirmando que “[…] a liberdade de filosofar não apenas pode ser concedida sem prejuízo para a piedade e a paz da república, mas também que não pode ser suprimida sem se suprimir ao mesmo tempo a paz da república e a piedade”. (SPINOZA, 1999 apud GAILLE-NIKODIMOV, 2011, p. 1018). Kant, em O conflito das faculdades  (1794), argumenta que a filosofia deve se submeter à lei da razão e não à lei dos governantes. Por último, a reflexão se volta para o discurso de Derrida, que coloca a questão da hospitalidade à filosofia de um ponto de vista cosmopolítico, ou seja, “em outro espaço diferente da cidade”, considerando-se por um lado “a multiplicidade dos modelos, dos estilos, as tradições ligadas às histórias nacionais ou linguísticas” e, por outro, “exceder constantemente o quadro desta ou daquela língua […] e circular de um espaço linguístico/de conceitualização a outro”.

Em Conflito do direito e das leis não escritas, o texto avança em busca da resposta para a questão: conceder ou não o direito de cidadania aos estrangeiros? Dentre as possibilidades, Nikodimov relaciona algumas, dentre elas: a questão econômica, ou seja, o benefício que o Estado pode ter com a concessão; o direito dos cidadãos de decidirem que tipo de comunidade querem criar e quem a ela pode pertencer; a ideia da existência de leis não escritas, que são o fundamento maior do direito dos refugiados; a hospitalidade como um ato jurídico e não filantrópico ao qual o Estado deve se conformar e, do primado do indivíduo sobre o Estado no qual a igualdade entre os homens fundamenta a obrigação de conceder o direito de cidadania.

O terceiro texto Sobre a ambiguidade dos direitos do homem está pautado na possibilidade de uma hospitalidade de Estado, em que o homem, cidadão privado é o sujeito de direito. A ideia de uma hospitalidade humanista repousaria, segundo Nikodimov, “sobre uma teoria que faz do homem, enquanto espécie, a origem e a finalidade dos direitos”. A partir dessa concepção, a hospitalidade assume um sentido jurídico-político fundamentada no direito cosmopolítico de Kant (1795).

Pretende, no entanto, ir além, ao classificar o homem como um sujeito de direito em relação a uma comunidade de direito internacional e não mais sob as condições de um estatuto jurídico exercido pelo Estado sobre o seu território. A hospitalidade humanista transporia uma fronteira do Estado-nação para a ideia de uma comunidade sem exclusão, ao pressupor a pessoa humana como único sujeito de direito e, assim, conferir a todos os indivíduos a mesma condição jurídica em virtude de seu pertencimento comum à humanidade.

O exílio é o tema que Sylvie Aprile, professora de história contemporânea da Universidade François-Rabelais, de Tours, aborda em Mutações e transferências. Inicialmente, ela cita a passagem da Bíblia no Êxodo, 22, 20 que diz: “Não maltratarás o estrangeiro, nem o oprimirás.

[…] Pois vós fostes estrangeiros no Egito.” A nostalgia está presente no tema do exílio e sua expressão mais comum, a queixa, é expressa pelo verso poético, o romance ou o anátema. O exílio é vivido como uma provação passageira que se configura na relação problemática da língua, na dificuldade do exilado de compreender os signos estranhos à sua volta, na ausência material das lembranças do passado, na falta de enraizamento ao solo estrangeiro, no olhar voltado para o passado e na hostilidade ao presente.

Dois artigos falam da imigração, no continente europeu, com ênfase na França por ser um país com tradição em receber muitos imigrantes. França/Europa foi escrito por Rose Duroux, professora emérita da Universidade Blaise-Pascal, em Clermont-Ferrand e Discurso e contradições por Mireille Rosello, professora de literatura e cultura de expressão francesa na Universidade do Northwestern, Chicago. Duroux faz uma abordagem diacrônica a respeito da imigração na França, fazendo menções históricas e citações quantitativas. As questões propostas por ela relacionam-se com o fato de ser a França o país que é exemplo para o mundo na questão dos Direitos Humanos: como é possível vencer o desafio da hospitalidade, se a imigração é um fato recorrente e crescente? A imigração ocorre devido a motivações econômicas, pessoais e familiares, de um lado, e, de outro, por questões políticas, origens étnicas, religião ou nacionalidade. A hospitalidade está estruturada em três conceitos concomitantes: assimilação, inserção e integração. O grande desafio que se impõe neste século XXI e uma das alternativas, segundo Duroux, para fazer frente à questão da imigração clandestina, seria a supressão dos vistos, a regulamentação da permanência e a abertura das fronteiras aos trabalhadores. Indo além, ela propõe que a Constituição europeia, ainda em preparação, contemple a “utopia positiva”, ou seja, a hospitalidade como o princípio da integração. Mireille Rosello, no seu Discurso e contradições, relaciona a hospitalidade ao contexto em que ela é praticada. No século XVIII, a Revolução Francesa introduziu a ideia dos valores republicanos universais, segundo os quais os direitos de todo o ser humano, independentemente de sua origem, estariam garantidos.

Entretanto, o clima hospitaleiro logo cedeu espaço e deu lugar à insegurança em relação ao que vem de um país não amigável. Contemporaneamente, a França pode não ser mais considerada um modelo de acolhimento, pois se encontra dividida entre um ideal de hospitalidade, e uma razão que se opõe à entrada daqueles que carregam  consigo a miséria. Segundo Rosello, a dificuldade na relação entre hospitalidade e imigração reside na questão: “como uma nação e um convidado (isto é, duas entidades a priori não comparáveis) podem estar ligados por um contrato de hospitalidade adaptado a uma situação contemporânea pós-colonial e transnacional?” Ela aponta as contribuições de Derrida e Baudrillard, segundo os quais a “hospitalidade e imigração às vezes não se entendem nada bem, principalmente, quando foi o próprio poder hospitaleiro da nação que contribuiu para colocar os estrangeiros em posição de solicitantes perpétuos”.

Magali Bessone, professora titular de filosofia na Universidade de Nice Sophia-Antipolis, escreveu os textos Excluído e marginalizado e A subversão heroica do público e do privado. No primeiro, ela afirma que a categoria de exclusão só adquire sentido em relação à de inclusão, de inserção e de integração. Os excluídos têm dificuldade “de definir sua própria situação, porque, com frequência, não têm acesso aos meios de expressão necessários para formular essa definição”. De outro modo, também a categoria dos incluídos encontra dificuldade de definição porque “sempre nos sentimos excluídos em relação a algum outro, sempre estamos excluídos de alguma coisa”. Bessone distingue formas de exclusão exercidas por aqueles que se julgam incluídos por deterem algum tipo de poder: na presença de uma ameaça à sociedade, é o estranho, o diferente que será objeto de exclusão; a “construção de um status de exceção”, como o ocorrido com os judeus na Alemanha nazista, e a criação de “espaços fechados no seio da comunidade, mas sem contato com ela: os guetos, os asilos ou as prisões”. Ela aponta a incoerência do coletivo que ignora as trajetórias particulares do indivíduo, colocando-o sob o domínio da inclusão. Por fim, conclui o texto, afirmando que “a exclusão demonstra a distância entre o que se supõe que os humanos sejam e o que eles são de fato”.

No segundo texto, Bessone enfoca o transcendentalismo, movimento nascido nos Estados Unidos (1836), cujo maior expoente foi Ralph Waldo Emerson, fundamentado na ideia de que “Deus deu aos homens os dons da perspicácia, da inspiração e da intuição” e que “é o instinto e não a razão, que nos conduzirá aos outros, ao mundo, e a nós mesmos, com uma atitude hospitaleira”. O termo transcendentalismo foi adotado em referência a Kant, que mostrou que havia uma “categoria de ideias muito importantes, de formas imperativas, que não provinham da experiência, mas graças à qual a experiência era  tornada possível; que elas eram intuições do próprio espírito; e ele as chamou de as formas transcendentais”. (EMERSON, 1967 apud Bessone, 2011, p. 1120). A hospitalidade, do ponto de vista transcendentalista, “é um modo privilegiado de estar junto, em que a verdade de cada um deve ser pôr a descoberto; dessa forma, ela é eminentemente política e, ao mesmo tempo, moral e religiosa”. As leis da hospitalidade têm o caráter das leis divinas, e o herói é o homem “cuja alma é nobre, e que, obedecendo a Deus, dá provas de uma generosidade hospitaleira”. Deus é a unidade do homem com todos os homens e com a natureza e é, ao mesmo tempo, totalidade e individualidade, o elo entre tudo o que existe. A hospitalidade não é “uma obrigação legal, e sim uma obrigação moral (no sentido kantiano do termo), ou, mais geralmente, uma exigência ética”.

O sonho de universalidade, escrito por Pierre-Yves Beaurepaire, professor assistente de história moderna na Universidade de Orleans, tem como tema a franco-maçonaria, que iniciou na época do Iluminismo (século XVIII) com um projeto de “reerguer a Torre de Babel”, estabelecendo entre seus membros uma ligação baseada na hospitalidade que Beaurepaire chama de planetária. Ele destaca que essa característica sofreu reveses com o passar do tempo. Atualmente, os franco-maçons, para recuperarem a “utopia da aldeia planetária”, investem “nas novas redes de comunicação, para definir os contornos de um novo espaço de hospitalidade maçônica: as ciberlojas, que permitem aos irmãos dispersos pelos quatro cantos do mundo bater à porta de ‘seu’ templo”.

René Schérer, professor emérito em filosofia na Universidade Paris VIII, é o autor de Necessidade do absoluto e esperança do melhor. O propósito do texto é colocar frente a frente a hospitalidade e a utopia, formando uma aliança, segundo ele, “paradigmática”, de reencontro “entre o velho e o novo: a hospitalidade, esse fato imemorável das sociedades humanas, e a utopia, perspectiva em direção do possível, do futuro”. O pano de fundo do texto é a obra Utopia de Thomas More. Schérer pergunta: Deve-se hospitalidade aos irregulares, aos clandestinos, que estão em situação incerta e que não receberam uma decisão positiva por parte dos Estados hospedeiros? Qual é a forma dessa hospitalidade? Dar hospitalidade a todos não seria uma utopia? Ele conduz o exame das possíveis respostas, contrapondo os dois termos: a utopia que “suspende, em uma espécie de epoché reveladora, toda crença no mundo, no real dominante, para melhor compreendê-lo e avaliá-lo”; e a hospitalidade, “o valor que, eminentemente, resiste a essa suspensão, precisamente  porque ela é de alguma forma, imanente a todo deslocamento, à viagem e à acolhida”. Contudo, mesmo concebida como “fechada e resistente”, a utopia já é “hospitaleira para o pensamento que a forma; hospitaleira desde a sua formação em um pensamento”.

Emmanuel Levinas – Rosto e epifania do outro, escrito pelo professor assistente de literatura e cinema latino-americano, na Universidade de Paris XII, Joachim Manzi, encerra a seção de Filosofia e política da obra.

Levinas nasceu em 1906, numa família judaica na Lituânia. Aos dezessete anos, estabeleceu-se na França, onde desenvolveu estudos de filosofia e, em 1995, faleceu. O princípio ético do filósofo, que perdeu seus familiares e foi feito prisioneiro durante o nazismo, está fundado no acolhimento incondicional do outro. Suas duas principais obras são Totalidade e infinito (1962) e Autrement qu’être ou au-dèla de l’essence (1974). Na primeira, Levinas propõe a hospitalidade como sendo “a verdadeira natureza incondicional da acolhida”. Esta acontece quando o outro acolhe antes mesmo que o eu concorde em ser acolhido. Acolher o outro é uma experiência que anula a resistência do eu e permite o início de uma consciência moral, que se manifestará no encontro “face a face com o rosto de outro”. A acolhida é uma relação intersubjetiva que contrasta com a ética racionalista e a dominação do discurso totalizante na sociedade ocidental. Conforme Manzi, o indivíduo, para Levinas, “torna-se cada vez mais heterônomo” ao não poder determinar as leis às quais obedece e a sua liberdade fica subordinada à exterioridade do outro e a de Deus, como ideia do infinito. Levinas “coloca no centro do face a face uma assimetria e uma renúncia de si que impedem qualquer retorno a si”. A subjetividade está sujeita à acolhida do outro e é ela que permite ao indivíduo vir a ser, como se na sujeição ao outro pela hospitalidade, o eu recebesse a si próprio. Se em Totalidade e Infinito a hospitalidade é assimétrica, em Autrement qu’être ou au-dèla de l’essence, Levinas revela “uma nova concepção do indivíduo”, que suprime qualquer pretensão de conquistar a totalidade do outro. A passividade prevalecerá sobre a atividade como uma exposição ao outro “anterior a qualquer proteção e a qualquer vontade”, como se o indivíduo passasse de autóctone para aquele que está fora do seu lugar. Manzi interpreta a dominação do eu pelo outro no pensamento de Levinas como o “traço de um indivíduo ferido, traumatizado, que, tendo sobrevivido ao Holocausto, deve testemunhar sobre ele apesar de tudo”. É a presença do rosto do outro que afirma a fidelidade absoluta do eu com o outro, ao mesmo tempo que desfaz “qualquer ideia de alteridade que o eu pôde ter”. Manzi lembra que Levinas inspirou-se na ideia cartesiana do infinito, enquanto ideia exterior ao pensamento e, segundo a qual, surge ao eu porque lhe foi dada por “Alguém outro, Deus”. É do infinito que vem a resistência do eu que deseja totalizar o outro, e que, ao mesmo tempo, convida o outro a vir ao seu encontro. O face a face com o rosto de outrem leva o discurso filosófico de Levinas “a contradições em aparência insolúveis e, no entanto, sem cessar abordadas corajosamente na sua escrita, porque se encontram precisamente na origem do sentido”. O eu poderia renunciar à resistência e usar sua liberdade para matar o outro e, então, diante do arbitrário e do injusto, o eu “que se lê nos olhos que me olham no momento da acolhida do rosto”, que Levinas associa ao termo epifania, tem a consciência da impossibilidade ética de matar. Em Totalidade e infinito, a epifania do rosto permite que nos olhos do outro esteja também “numa distância infinita” o olhar de todos os outros que interpelam e atraem o eu para o encontro com o outro. Em Autrement qu’être, a presença de um terceiro obriga o eu não apenas a responder pelo outro, mas representa uma exigência para com “todos os outros próximos, pela humanidade”. Para Derrida, a presença de um terceiro colocado entre a relação do eu com o outro é entendida como “o vínculo da ética com tudo que a ultrapassa e a trai, como a ontologia e a política, por exemplo”. (DERRIDA, 1997b, apud MANZI, 2011, p. 1.167). Manzi finaliza o texto, descrevendo a dimensão feminina que está presente no pensamento de Levinas, em que ele interpreta a fecundidade da mulher como uma inteira receptividade a outrem e um abandono sem retorno a si.

O enfoque da hospitalidade na perspectiva da Filosofia e política continua sendo um grande desafio na época contemporânea, em que os movimentos migratórios são crescentes, atingindo níveis que beiram o incontrolável e que as fronteiras parecem cada vez mais permeáveis. Nesse contexto político, como a hospitalidade pode ser praticada? E como fazer da ética um princípio norteador das políticas ligadas à imigração? São questões difíceis com respostas que, pode-se pensar, até impossíveis.

A proposta do estudo sobre a hospitalidade é tornar a acolhida um exercício que deve permear o pensamento e as ações humanas, em processos permanentes de hominização e de civilização.

Sandra Patricia Eder Comandulli –  Mestranda em Filosofia na Universidade de Caxias do Sul. E-mail: [email protected]

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Mare nostrum: sonhos, viagens e outros caminhos / Fauzi Arap

Dramaturgo, diretor e ator de teatro a partir dos anos 1960 (nasceu em 1938 e morreu em 2013), o paulistano Fauzi Arap publicou em 1998 seu livro autobiográfico Mare nostrum: sonhos, viagens e outros caminhos,um relato livre sobre a “verdade” encontrada pelo artista após seu primeiro contato com o LSD. “Por uma temporada me transformei num tagarela que só falava sobre seu assunto favorito, o ácido lisérgico, e não percebia o enorme escândalo que ia provocando”, relata Arap [2], que diz posteriormente ter passado a suspeitar que viveuuma possessão “por uma espécie de arquétipo messiânico” naquela época, em que agia com uma “compulsão de pregador” proveniente da “euforia vinda do sentimento de libertação que eu experimentara, e que fazia o desejo de repartir irresistível”.

Deslumbrado com o que via como possibilidades revolucionárias e transformadoras da experiência com LSD, Arap queria compartilhar as boas novas com o mundo, tornando-se o que o sociólogo Lewis Yablonsky [3] qualifica como “high priest” em seu livro The hippie trip, em um trocadilho com o duplo sentido da palavra “high” nesse contexto, podendo ter tanto o sentido de “grandes” ou “principais” quanto de “chapados” na qualificação da palavra “priest”, pregador.

Acontecia com Arap o mesmo que com outros integrantes de sua geração que se identificavam com a contracultura nos anos 1960 e 1970, sendo os estadunidenses Ken Kesey e Timothy Leary,provavelmente,os representantes mais famosos desse tipo de pregador do ácido lisérgico e da psicodelia. Com meios diferentes, tinham os mesmos princípios e fins: transformar os males de um mundo à beira da catástrofe atômica com a “abertura da mente” das pessoas através do uso de psicodélicos. Os livros Flashbacks,autobiografia de Leary, e O teste do ácido do refresco elétrico, de Tom Wolfe sobre Kesey e seus seguidores, sublinham bem tanto as diferenças quanto as conexões entre vida e obras de ambos.

Yablonsky tinha 43 anos e era professor universitário quando decidiu percorrer comunidades e eventos hippies no fim dos anos 1960, e o resultado está no livro já mencionado, que foi publicado pela primeira vez em 1968. O autor faz um interessante panorama do momento e do movimento contracultural, com entrevistas de diversos ativistas e moradores de comunidades e também com reflexões pessoais sobre as próprias transformações ocorridas durante essas viagens e encontros. Com abagagem de diversas idas a comunidades e de centenas de entrevistas gravadas, além de outras centenas feitas por questionário, de forma quantitativa, Yablonsky,em dado momento [4],afirma que todasas experiências e eventos que ouviu ou com as quais se relacionou durante sua pesquisa tiveram, de alguma maneira, conexões com o “fenômeno do LSD”.

Mesma ênfase dada por David Farber [5], para quem o uso de drogas ilícitas pelos jovens nos Estados Unidos,neste momento,significou uma “rebelião cultural” e uma “nova orientação cultural”.

Também no Brasil, seja no momento ou em análises posteriores, houve quem relacionasse diretamente a contracultura com o consumo de drogas, sobretudo maconha e LSD. Após apresentar uma citação do poeta Chacal, para quem “cada ácido que a gente tomava era parte de uma busca”, Lucy Dias [6] afirma que a contracultura brasileira “criou um novo modo de pensar o mundo”, dentro do qual a“experimentação com os psicotrópicos era elemento fundamental das descobertas estéticas e políticas empreendidas por esse movimento”. Estes consumos e experiências estariam “integrados a uma nova atitude, naqual a experimentação se ligava à expansão das possibilidades da consciência e ao exercício de novas formas de sensibilidade”. Opinião alinhada ao jornalista Luiz Carlos Maciel [7] –ele também certamente um “high priest” brasileiro –,em seu livro As quatroestações, no qual escreve que “as drogas alucinógenas foram privilegiadas pelos hippies porque ajudavam a vislumbrar a nova realidade”. Maciel[8] qualifica como “fundamental” a presença das drogas, “drogas alucinógenas –bem entendido –, do LSD ao ayahuasca”, para a “expansão dessa consciência, em lugar da constrição intelectual”.

O encontro de Fauzi Arap com o LSDdeu-se, portanto, dentro docontexto em que a substância começava a ser conhecida e difundida dentro e fora do Brasil, vista como possível chavepara abrir a porta de um outro presente e futuro, e que não seria reprimida antes de 1970. Assim como em outros casos que venho identificando e analisando para minha pesquisa de Doutorado, sobre drogas e contracultura no Brasil nos anos 1960 e 1970, ocorridos principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, o primeiro acesso do dramaturgo à experiência lisérgica deu-sepor vias médicas. A partir de então, entrou de cabeça nessa busca de autoconhecimento e novas perspectivas, chegando a ser visto e tratado como louco por seus colegas e amigos.

Sintetizado pela primeira vez em 1938 pelo químico suíço Albert Hoffman, o LSD só voltou a receber atenção de seu “descobridor” em 1943, data do famoso passeio de bicicleta posterior a uma ingestão acidental, através da pele, da substância no laboratório. A partir daí a empresa Sandoz, para quem Hoffman trabalhava, passou a buscar utilidades medicinais para o ácido lisérgico a fim de viabilizar sua comercialização em escala internacional. Em troca dos dados resultantesdas experiências, a substância era fornecida gratuitamente para médicos de diversos países –Arap inclusive relata ter tido contato com folhetos de divulgação produzidos pelos suíços. Após sua introdução nos Estados Unidos, no último ano da década de 1940através de doações da Sandoz, o LSD foi bem recebido pela comunidade científica, e no final dos anos 1950 mais de mil artigos científicos haviam sido produzidos, com o número de pacientes envolvidos aproximando-sedos 40 mil [9].

Pelo que pude observar em minhas pesquisas, dois médicos foram fundamentais nesse processo de pioneirismo experimental lisérgico no Brasil durante a década de 1960: Cesário Morey Hossri e Murilo Pereira Gomes. Ambos experimentaram a substância em si mesmos e em seus pacientes, combinando a viagem psicodélica com procedimentos e reflexões provenientes da psiquiatria, da psicologia e, no caso de Hossri, inclusive da parapsicologia.

Em seu livro Prática do treinamento autógeno & LSD, Hossri [10] afirma que a Regional Santo André da Associação Paulista de Medicina criou em 1965 uma seção de “Lisergismo e Parapsicologia”, formada por 32 médicos das cidades de Santo André, Santos e São Paulo com o objetivo de “estudar a fenomenologia lisérgica”. Os resultados das pesquisas teriam revelado que oLSD permite uma “nova abordagem” para o estudo da personalidade humana e pode ser considerado “a droga mais poderosa conhecida hoje como meio ‘revelador do inconsciente’(individual e coletivo) tendo a peculiar propriedade de manter o indivíduo ‘consciente e lúcido’”. Hossri coordenou cursos sobre o uso terapêutico do LSD e também publicou diversos artigos científicos e na imprensa sobre o tema, como uma série de seis artigos escritos na Folha de São Pauloa partir de 12 de maio de 1965, sob o título de “Ácido lisérgico e lucidez”.

Já Murilo Pereira Gomes teve seus primeiros contatos com o LSD em setembro de 1962, como atesta uma reportagem do projeto de jornalismo multimídia Ultraalice [11], naqualé citada uma intervenção dele no XV Congresso Nacional de Medicina. Ali Gomes relata ter experimentado a substância pela primeira vez em setembro de 1962, “atendendo ao convite de um colega”: “Percebi que se abriam de par em par as portas de um campo inteiramente novo e promissor que oferecia a possibilidade de compreender o modo de vivenciar o mundo e a sua patologia”, afirmou então.

Fauzi Arap relata em Mare Nostrumque seu contato com o Dr. Murilo Gomes foi incentivado e mediado por uma “jovem atriz” com quem ele contracenava em uma peça de teatro em 1963, no Rio de Janeiro. Foi ela quem lhe contou a “grande novidade” de que havia “um novo tipo de terapia que se valia de um novo tipo de substância”. “Poucos, na época, saberiam dizer o que era o tal de ácido lisérgico. Em minha ignorância, imaginei tratar-se de algum tipo de remédio muito eficaz, e não mais que isso”, prossegue Arap, apontando que o que conhecia sobre o assunto no momento baseava-sena leitura de alguns artigos publicados pelo escritor Paulo Mendes Campos na revista Mancheteepelos livros de Aldous Huxley.

Segundo seu relato, no momento havia “uma série de artistas plásticos paulistas que vinham se submetendo à experiência para terapia e experiências visuais”, e no Rio de Janeiro quem conduzia esse tipo de procedimento era o médico Murilo Pereira Gomes. Sua amiga informou-lheque o tratamento acontecia com sessões a cada quinze dias e que além delas havia também entrevistas preparatórias e de avaliação. Em seu primeiro encontro com Gomes, o médico teria prometido a Arap [12] que este encontraria “sua essência” no uso terapêutico do LSD –que se dava num consultório, com ingestão através de injeção muscular.

O relato dessa primeira experiência ocupa sete páginas de Mare Nostrum e inclui gargalhadas, medos, um passeio de carro até um parque com o médico, uma experiência de regressão até o útero materno e a sensação final de importantes descobertas, de ter atingido uma “dimensão mágica”: “Uma superconsciência, um self, um si mesmo, tanto faz. E o LSD me propiciara a oportunidade de descobrir que essa consciência preexistia, quem sabe desde o momento da fecundação”, descreve.

Murilo Pereira Gomes também foi quem conduziu a primeira experiência do escritor Paulo Mendes Campos. Publicada na revista Manchete e depois no livro Cisne de feltros [13],a série de textos “Experiência com LSD” narra que o interesse do escritor pelo tema também surgiu através da leitura das obras de Huxley sobre a mescalina. Nesse caso,a ingestão deu-sepor “bolinhas coloridas” na sala do apartamento do médico, e os efeitos surpreenderam o escritor sobretudo por conta de uma mudança na percepção do tempo: “o tempo não está interessado em nós e portanto não podemos nós estar interessados nele”. “Certo ou errado, o primeiro contato com o ácido lisérgico me deu a impressão muito razoável de se tratar de um elemento útil à pesquisa da natureza humana”, concluiu.

Segundo Arap, o Dr. Murilo Gomes conduziu outras experiências com escritores e artistas, e inclusive Clarice Lispector teria participado. Relata também que foi apresentado em 1965 pelaatriz Maria Alice Vergueiro a um psiquiatra que atendia num consultório na Avenida Paulista e também trabalhava com LSD –neste caso o uso também se dava por comprimidos. O diretor de teatro não seguiu a relação com este médico, mas vemos por esse depoimento que havia diversos médicos trabalhando com a substância no Rio e em São Paulo.

“Foi com o uso do LSD, no ano de 1963, que eu vi descortinar-se toda uma realidade paralela que eu estava acostumado a ignorar em meu cotidiano”, afirma Arap na introdução [14] de Mare Nostrum. Posteriormente [15], ele aponta que o LSD passou a lhe servir de “reaferidor de minha consciência, e até mesmo de apoio para que eu conseguisse reconhecer meus limites”. “Ele vinha sendo o veículo que me facultava o aprofundamento necessário para fazer leituras da realidade descondicionadas do senso comum”, complementa.

Céu ou inferno, o LSD evidencia a natureza subjetiva de nossa viagem. No fundo a ética do viajante acaba refletida na experiência. Ninguém escapa de si mesmo através de uma viagem lisérgica. E até por isso não existe vício. O desejo de repetir a experiência, quando acontece, é mais um anseio natural por completá-la ou aprofundá-la, o mesmo desejo que leva alguns a estenderem suas sessões de análise por oito ou dez anos. Nem porisso psicanalistas são acusados de serem o vício de seus pacientes. É claro que pode acontecer uma crise, a exemplo do que acontece na Psicanálise, pela desorganização temporária dos valores e da racionalidade do sujeito. Mas isso é fatal em qualquer transformação profunda [16].

Instruído por seu “guia”, o Dr. Murilo Gomes, o dramaturgo diz ter descoberto “um sentido subjacente à vida, muito mais abrangente que qualquer ideologia materialista ou teoria científica, e um sentido surpreendente para a palavra cura, que converge para a mesma ideia difundida por seitas que acreditam no milagre como caminho”. “Ao lado de Murilo, descobri um patamar não-físico de existência, no qual a palavra doença perde totalmente o sentido, diante da possibilidade de sua transmutação alquímica na compreensão do que seria sua concreção”, escreveu na introdução do livro [17].

Arap frequentou o consultório de Gomes entre 1963 e 1965, prosseguindo por conta própria em suas experiências posteriores –em algumas ocasiões, passou a exercer ele mesmo com amigos o papel de “guia”. Ocupa espaço importante no livro o relato de uma casual e talvez mística conversa entre o dramaturgo e o artista plástico Mário Gruber, na qual este lhe conta sobre a morte de Gomes, de quem também era discípulo –isso ocorreu logo depois, em 1966. Em paralelo ao crescimento profissional, no meio teatral, o livro mostra a evolução espiritual de Arap, que agregou a seu “barômetro espiritual”, como disse Baudelaire, uma série de outros elementos e experiências provenientes do espiritismo, da astrologia, da ayahuasca, da meditação, do candomblé etc.

Além disso, o livro rememora o trabalho do artista comNise da Silveira, psiquiatra que se tornaria referência para o posterior movimento antimanicomial brasileiro.

Escrito de forma pouco formal e bastante fluida, Mare Nostrum é a descrição das descobertas decorrentes dabusca espiritual do autore das buscas decorrentes de sua descoberta do LSD. Reflexões filosóficas e místicas são entremeadas por relatos de alguns eventos e momentos da vida do jovem ator no contexto de efervescência política e cultural dos anos 1960 e 1970 no Brasil. Em sua trajetória tão única, Arap repetiu os passos de tantos outros integrantes de sua geração, ávidos por mudanças no mundo, na família, no cotidiano, em si mesmos. Em meio a tantos outros relatos e livros de artistas que viveram os anos contraculturais como ele, o texto de Arap é único em sua forma e conteúdo, sendo uma leitura tão interessante quanto prazerosa.

Notas

  1. Resenha submetida à avaliação em junho de 2017 e aprovada para publicação em novembro de 2017.
  2. ARAP, Fauzi. Mare Nostrum: sonhos, viagens e outros caminhos.São Paulo: Senac, 1998. p. 45.
  3. YABLONSKY,Lewis. The hippie trip. Califórnia: toExcel, 2000.
  4. YABLONSKY, op. cit., p. 224.
  5. FARBER, David. The intoxicated state/ Illegal nation: drugs in the sixties counterculture.In:BRAUNSTEIN, Peter;DOYLE, Michael William. Imagine nation: the American Counterculture of the 1960s and 70s. Nova York, London: 2002. p.18
  6. DIAS, Lucy. Anos 70: enquanto corria a barca. São Paulo: Senac, 2003.p.97.
  7. MACIEL, Luiz Carlos. As quatro estações. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001.p. 40.
  8. Ibid., p. 154.
  9. LEE, Martin A.;SHLAIN, Bruce. Acid dreams: the complete social history of LSD. NovaYork: Grove Press, 1992.
  10. HOSSRI, Cesário Morey. Prática do treinamento autógeno & LSD.São Paulo: Martin Claret, 1984.p. 161.
  11. MAC CORD, Ciro. Um resgate da pesquisa psicodélica no Brasil. Ultralice: projeto de conclusão de curso em Design Gráfico,2009. Disponível em http://projetoultralice.blogspot.com.br/2009/05/materias-um-resgate-da-pesquisa.html.
  12. ARAP, op. cit., p. 30.
  13. CAMPOS, Paulo Mendes. Cisne de feltro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.p. 113.
  14. ARAP, op. cit. p.25.
  15. Ibid.p.207.
  16. ARAP, op. cit., p. 271
  17. Ibid., p.26.

Júlio Delmanto – Doutorando em História Social. Universidade de São Paulo (USP). [email protected].


ARAP, Fauzi. Mare nostrum: sonhos, viagens e outros caminhos. São Paulo: Senac SP, 1998. Resenha de: DELMANTO, Júlio. O LSD dentro da busca espiritual de Fauzi Arap. Outros Tempos, São Luís, v.14, n.24, p.273-278, 2017. Acessar publicação original. [IF].