Thinking through the body: Archaeologies of corporeality – HAMILAKIS (CA)

HAMILAKIS, Yannis; PLUCIENNIK, Mark; TARLOW, Sarah. Thinking through the body: Archaeologies of corporeality. New York: Kluwer Academic / Plenum Publishers, 2002, 262 p. Resenha de: SILVA, Sergio Francisco Serafim Monteiro da. Clio Arqueológica, Recife, v.34, n1, p.194-201, 2019.

Conforme os editores, o livro está baseado na oficina Thinking through the Body, ministrada na Universidade de Wales, Lampeter, em junho de 1998. Com o mesmo nome da oficina, este volume apresenta o potencial de novas contribuições interdisciplinares para o estudo do corpo e da corporeidade, ilustradas pelos estudos teóricos e filosóficos reunidos nas “arqueologias do corpo”, similarmente ao que ocorreu com a antropologia e a história nos seus vieses de “antropologia do corpo” e “história do corpo”, que dispensam apresentações neste espaço de resenha. Pensar através do corpo pode ser similar ao pensar através dos objetos de cultura material, dentro da produção do conhecimento arqueológico.

O livro trata do “corpo”, considerado aqui como um tópico ou tema que tem dispendido debates e discussões nas humanidades e nas ciências sociais, contando com a influência de expressivos teóricos, como Bourdieu, Merleau-Ponty, Foucault, Douglas e Butler, entre outros. Os capítulos apresentam diferentes (mas relacionáveis) abordagens sobre o corpo, como por exemplo, o significado cultural do corpo humano, como um símbolo, artefato, meio ou uma metáfora.

Este volume apresenta três seções. A primeira seção, Bodies, subjects and selves, apresenta exemplos voltados ao significado do corpo e sua relação com o [eu], o self, sujeito ou, mais especificamente, com o indivíduo – já que estas são ideias relacionadas ao conceito de pessoa. O corpo, como proposto por Sarah Tarlow em Bodies, selves and individuals, pode ser compreendido de variadas formas. No caso dos corpos dos mortos, estes providenciam aos arqueólogos uma aparente fundamentação para interpretar as sociedades antigas.

O tratamento dado ao corpo do morto por sociedades do passado pode ter sido análogo ao tratamento dispensado ao mesmo em vida, representando um ‘status terminal fossilizado’ de um indivíduo. O tratamento do cadáver contém elementos relacionados ao status, saúde ou religião do morto, sobre identidade e enculturação do corpo. De várias maneiras, nesta seção, busca-se desfamiliarizar e problematizar o corpo quanto a sua constituição, seus limites e suas capacidades.

Uma dessas problematizações pode ser encontradas no texto de Foucault, ‘Neitzsche, genealogy, history’, de 1971, p. 153: nada no homem, nem mesmo o seu próprio corpo, é suficientemente estável para servir como base para o autoreconhecimento ou para compreender outro homem. O passado e os corpos do passado, estudados pelos arqueólogos, diferem das ideias modernas que temos sobre os corpos.

Torna-se um desafio aos arqueólogos pensar que a decomposição do corpo possa ter sido mais perturbadora em alguns contextos históricos que em outros.

Provenientes de tempos muito antigos, os corpos não aparentam ser mais pessoas, de algum modo, familiares a nós. O corpo humano, dentro da arqueologia, o ser humano, tem sido sinônimo de ‘pessoa’, ‘indivíduo’, ‘sujeito’ e ‘self’, termos utilizados de forma intercambiável. Mas estes termos podem ser discutidos de forma adequada na arqueologia, em consonância mínima com os pressupostos do antropólogo e sociólogo francês Marcel Mauss e da antropóloga britânica Jean Sybil La Fontaine sobre as noções de pessoa e self e de pessoa e indivíduo.

Nesta primeira seção, as arqueologias interpretativas, pós-processuais, são entendidas como incapazes de se livrar do legado do humanismo, sob o argumento de que isso é violentar a humanidade e as pessoas do passado e do presente. Nesse aspecto, Julian Thomas trata das arqueologias humanistas – pós-processuais, do anti-humanismo e os corpos neolíticos. As partes corporais, segundo Chris Fowler, funcionam como indicadoras de personalidade e de materialidade, simultaneamente, durante o neolítico de Manx. As vestimentas são tratadas como detentoras de moralidades e as usadas pelos mortos na Europa medieval são objeto de estudo de Jos Bazelmans. Ainda, a estética corporal durante o século XIX na Grã-Bretanha é estudada por Sarah Tarlow.

O alarido em torno do corpo nas várias disciplinas do conhecimento refere-se à ideia moderna de corpo como projeto dentro dos estudos sociológicos – o corpo instrumentalizado; do desenvolvimento significativos na filosofia, humanidades e ciência sociais da crítica feminista e dos estudos de gênero – a historicização do corpo, o corpo sexual; do interesse pelo corpo dentro da significância dos aspectos experimentais do passado humano, como a alimentação observada como forma de subsistência dentro de um dado contexto ecológico, como a significância social e política do consumo de alimentos.

Na arqueologia, o estudo do corpo humano se dá mediante a) a antropologia física – situada dentro do guarda-chuva paradigmático da atual bioarqueologia – voltada desde o séc. XIX ao estudo da evolução humana, das categorizações dos “tipos raciais humanos”, aspectos demográficos, de “saúde”, modificações corporais ao longo da pré-história e os estudos em paleopatologia, incluindo traumas, violência e desnutrição; b) representações das formas visuais humanas: nesse sentido, o primeiro texto, mais simples, sobre o corpo humano na arqueologia deriva de uma conferência sobre gênero e arqueologia – Reading the body: Representations and Remians in the Archaeological Record, de Rautman (2000) – , com influência do feminismo e das representações e remanescentes de corpos humanos; c) a fenomenologia aplicada ao estudo do corpo – a arqueologia fenomenológica, arqueologia dos sentidos – com os estudos de experiências rituais em paisagens monumentais a partir de dispositivos corporais sensoriais e do estudo de aspectos integrativos da experiência humana, como a emoção, memória, identidade e experiências corporais particulares como beber, comer, dar a luz, fazer sexo, praticar violência e a guerra.

A segunda parte trata da experiência e corporeidade. O gesto é estudado na arqueologia como um meio de compreender o sentir através do corpo e isso é apresentado por Christine Morris e Alan Peatfield nos estudos sobre a Idade do Bronze em Creta. Ainda a arqueologia dos sentidos relaciona o passado com a história oral no estudo de Yannis Hamilakis. Os modos de comer e de ser no epipaleolítico de Natufian foram discutidos por Brian Boyd. Um estudo de John Robb sobre o tempo e a biografia traz em discussão a osteobiografia da vida útil – vida cotidiana – dos italianos neolíticos.

Na última seção do volume, os corpos são discutidos na e como cultura material. Objetos de cultura material em folhas de ouro da Idade do Ouro na Escandinávia, associados a um gênero específico, podem ser questionados, conforme Ing-Marie Danielsson. A cova de Oseberg, em Vestfold, um dos mais conhecidos casos da Escandinávia, cuja escavação resultou na recuperação de esqueletos femininos, posteriormente reinumados, foi apresentado e discutido por Elisabeth Arwill- Nordbladh. Mark Pluciennik relaciona arte, artefato e metáfora na análise de registros rupestres da Grotta Addaura II (10.000 a 12.000 anos atrás) e cenas da Grotta dela Cala dei Genovesi, em Levanzo. Trata de estética e representação de corpos humanos e não humanos e artefatos no epipaleolítico e neolítico do sul da Itália. Em Marking the body, marking the land, Paul Rainbird estuda similaridades e continuidades temporais nas tatuagens, pinturas nas cerâmicas e gravuras rupestres na Oceania, Pacífico.

Seus modos de interação entre as comunidades insulares incluíam as tatuagens corporais e tatuagens nas rochas e nos artefatos. As futuras agendas sobre o corpo incluem a ideia da sua incorporação à arqueologia, pela historicização do corpo: este passou por mudanças e reconfigurações ao longo da história humana, incluindo a formulação de certos códigos e normas de comportamentos e performances corporais, nos espaços públicos e privados, certos hábitos de alimentação, as várias genealogias da formação do corpo e sua instrumentalização.

As fenomenologias do corpo na arqueologia são desenvolvidas pelas noções de Heidegger de habitação e de ser no mundo, da Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty ou o desenvolvimento no âmbito da geografia: incluem-se, também as categorias culturalmente influenciadas ou determinadas pelos espaços perceptivo, existencial, arquitetônico e cognitivo dos seres humanos. O biopoder e as biopolíticas do corpo, cujos conceitos são provenientes de Foucault, são importantes para o desenvolvimento das arqueologias da corporeidade. Práticas e processos concretos e materiais atuam sobre o corpo humano: práticas biopolíticas, tecnologias e instituições instrumentalizam os movimentos, a forma de alimentação e a visão dos seres humanos, por meio de gastropolíticas, por exemplo. Também, o corpo fisiológico, como simbolismo e metáfora, pode ser usado para compreender as várias características do mundo natural e cultural: os corpos compreendidos como ‘cultura material’. Os corpos de pessoas vivas podem ser mercantilizados e objetivados em trabalho, materiais, arte, prazer sexual.

Corpos inteiros ou suas partes podem ser mais artefatos do que indivíduos, podem ser fetichizados, como os corpos preservados nos museus, relíquias de santos. Produtos corporais e suas partes podem ser segregados, tabu, usados em magias, trocados, consumidos ou empregados em tratamentos de beleza.

As ‘deformações’ corporais incluem aqui a deformação do crânio e dos pés, avulsões, tatuagens, escarificações: corpos como veículos de identidade e expressão. Os remanescentes humanos, conforme as crenças religiosas, podem ser extensivamente tratados e manipulados post-mortem. Nesse sentido, os corpos e os outros aspectos da personae podem sofrer mudanças nas suas biografias quanto ao poder e suas referências simbólicas. As figuras femininas paleolíticas e os registros rupestres são exemplos de como os corpos humanos ─ suas representações ─ tem sido claramente importantes referências em vários períodos e em várias sociedades.

Existiriam numerosas formas pelas quais os arqueólogos poderiam pensar sobre o passado através do corpo. Essas formas estão representadas pelas novas oportunidades de integração por meio de recentes desenvolvimentos teóricos sobre a corporalidade e a sua importância para as interpretações sobre o passado e os modos de vida. Sobre esse aspecto, o livro editado por Robert Schmidt e Barbara Voss, Archaeologies of Sexuality, em 2000, estabelece relação profícua com Thinking through the Body. Indica parâmetros que direcionam os estudos sobre sexo e sexualidade – e sua linguagem e conceitos – na produção do conhecimento arqueológico vinculado à solução de problemas científicos voltados ao corpo, em primeiro lugar.

Sergio Francisco Serafim Monteiro da Silva – Departamento de Arqueologia, UFPE. E-mail: [email protected]

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Assim caminhou a humanidade – NEVES et al (CA)

NEVES, Walter Alves; RANGEL JUNIOR, Miguel José; MURRIETA, Rui Sergio (Orgs.). Assim caminhou a humanidade. São Paulo: Palas Athena, 2015, 318 p. Resenha de: SILVA, Sergio Francisco Serafim Monteira da. Clio Arqueológica, Recife, v.34, n3, p.171-193, 2019.

Conforme os organizadores de Assim Caminhou a Humanidade, o Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo seria o único no Brasil, em 2015, capaz de sanar a carência de publicações em português mais atualizadas sobre o tema da evolução humana. O ensino da Biologia, Antropologia, Arqueologia no nível da graduação e a divulgação científica ao grande público, seriam o foco desta publicação. A partir de um curso de pós-graduação e da disponibilidade de réplicas de hominínios da coleção Thomas Van der Lann, foi proposto o plano deste livro, onde os alunos também protagonizaram seus subtemas.

Entre algumas das publicações internacionais inacessíveis a esse ‘grande público’ brasileiro estariam, por exemplo, o The Human Lineage, de Cartmill e Smith; o The Human Career, de Richard Klein; o Handbook of Human Symbolic Evolution, de Lock e Peters; Human Evolution, Trails from the Past, de Cela- Conde e Ayala; The Human Evolution Source Book, de Ciochon e Fleagle; ou o Handbook of Paleoanthropology, em três volumes, editados por Winfried Henke e Ian Tattersall, por exemplo2. Outras, assemelhadas ao Assim caminhou a humanidade, em português, estão o Como nos tornámos humanos, de Eugénia Cunha e duas traduções, Evolução Humana, de Roger Lewin e O despertar da cultura: a polêmica teoria sobre a origem da criatividade humana, de Richard G.Klein e Blake Edgar3. Este último apresenta alguns rudimentos do The Human Career.

Sobre o mesmo tema, de uso para o ensino e a aprendizagem nas universidades e escolas nos EUA, está o Our Origins (Discovering Physical Anthropology), de Clark Spencer Larsen, do Departamento de Antropologia, da The Ohio State University e as três primeiras partes do Anthropology, de Willian A. Haviland, da University of Vermont. Também, de uso em sala de aula, destaca-se o livro Exploring Physical Anthropology, capítulos 1, 10 a 14, de Suzanne Walker- Pacheco, da Missouri State University4. Esta autora também utiliza réplicas de hominínios fósseis para ilustrar seu texto e as atividades propostas para os alunos. Nas livrarias menos acessíveis ao ‘grande público’, também disponibilizaram no Brasil, a custos módicos, o Evolution, the human story, livro ricamente ilustrado, de autoria de Alice Roberts5.

Retornando ao nosso livro em português sobre evolução humana, Assim caminhou a humanidade, vamos localizar algumas autodescrições, feitas na apresentação e na introdução. Reinaldo José Lopes, repórter e colunista da Folha de S. Paulo, acrescenta que este livro perfaz, provavelmente, o relato mais completo em língua portuguesa sobre o conhecimento que temos dos nossos parentes, também primatas e da nossa própria história como espécie. O livro trata da gênese dos primatas (incluindo aqui, a do homem anatomicamente moderno) e de forma sucinta e clara, foca nos métodos e formulações de hipóteses que caracterizam toda forma de ‘boa ciência’. Os ‘decentemente alfabetizados’ poderão ler e entender este livro. O passado remoto, para ser reconstruído, gera perguntas à ciência, que nem sempre são trivialmente respondidas, como a questão de como nos tornamos bípedes ou o que teria ocasionado a extinção dos neandertais. Reinaldo agradece os organizadores pelo lançamento do livro, com crítica a uma demora pelo seu lançamento e considera a importância do livro para o desenvolvimento e fundamentação mais adequados dos textos jornalísticos sobre evolução humana.

Na Introdução, os organizadores adiantam que o livro é uma forma de divulgar em linguagem acessível, aquilo que há demais importante e atual sobre o estudo da evolução humana, área do conhecimento científico que progride rapidamente e na qual as informações podem se tornar ultrapassadas em questão de meses. Assim, no final de cada capítulo, propõem um tema para discussão em um quadro que denominaram ‘O que há de novo no front’, para minimizar a velocidade e o atraso que caracterizam o estudo da evolução humana. Talvez esse atraso possa ser minimizado pelo poder da ditadura Genômica (comparativa) e os avanços inquestionáveis da Bioinformática (e possivelmente da Proteômica) aplicada à própria Genômica. Observar a morfologia (plausível no contexto da arqueologia, paleoantropologia, em fósseis e fragmentos de ossos e dentes) ou observar o genoma inteiro (plausíveis no contexto da genética médica, em contextos clínicos ou hígidos): compreender o todo da evolução.

Assim, os livros citados nos primeiros parágrafos desta resenha já estariam, de certo modo, ‘atrasados’ em relação ao desenvolvimento líquido da evolução humana (teoria evolutiva moderna). Esse ato retroativo, o voltar ao passado e compreender o avanço do presente e o futuro é absolutamente líquido. As novidades estariam – pois já não estão mais, obviamente – nos artigos científicos publicados entre 2013 e 2014 na área da evolução humana. A atualização é uma prerrogativa do livro e uma forma de presumivelmente mantê-la está na previsibilidade de novas hipóteses a serem verificadas no futuro. Nessa linha, os conceitos sobre espécie, especiação e gênero não são imutáveis e estão sempre em processo de construção. Desse modo, o livro está segmentado em sete capítulos relacionáveis ou sinergeticamente vinculados, sempre contendo um campo para temas novos e sugestões para leitura.

O primeiro capítulo, Nós primatas, apresenta as características físicas gerais dos primatas, sua classificação (anatômica e molecular) e diversidade; o campo especial do estudo da primatologia; o comportamento social dos primatas em sociedades complexas, variáveis e estáveis (sociobiologia dos primatas); a competição e a cooperação entre os primatas, em especial em relação as hierarquias de sexo; elementos de uma ‘cultura’ primata associados à vocalização e uso de ferramentas; os riscos de extinção dos primatas e formas de preservação de suas populações no nível global. O ‘nós’ inclui, obviamente, o Homo sapiens.

A história evolutiva dos primatas é desenvolvida no segundo capítulo. Os aspectos biológicos estão amalgamados aos estratos, à geomorfologia, ao tempo e à mudança. É traçado um panorama do cenário para a origem dos primatas, com registros paleontológicos de cerca de 56 milhões de anos atrás, no Eoceno. Neste capítulo, um texto selecionado trata da cladística para a classificação dos seres vivos e outro sobre anatomia do esqueleto. Na sequência, são discutidas a deriva continental e as mudanças climáticas; a causa do aparecimento dos primatas; os primatas ‘arcaicos’; os euprimatas do Eoceno; o surgimento dos primeiros antropoides; a origem e diversidade das famílias dos antropoides na África, Europa e América; as questões ambientais relacionadas a evolução dos antropoides; questões sobre a origem dos proconsulídeos (o conhecido Proconsul africanus, por exemplo); os hominoides (o Dryopithecus e o Sivapithecus), a origem dos mais antigos tarsiiformes e os paleoambientes dos primeiros dos primeiros hominoides.

Uma descrição sintética das principais pesquisas e descobertas dos fósseis de australopitecíneos, pré-australopitecíneos e os primeiros Homo desenvolve-se em Primeiros Bípedes, o terceiro capítulo. O surgimento da nodopedalia e da bipedia como características dos hominínios; o aparato mastigatório dos hominínios; a diversidade dos pré-australopitecíneos. Neste capítulo são apresentadas as características de três gêneros de pré-australopitecíneos que viveram entre 7 e 4,4 milhões de anos atrás (Sahelanthropous, Orrorin e Ardipithecus). Um texto incluso apresenta as técnicas de datação dos registros fósseis. O capítulo segue apresentando as origens, diversificação e morfologia dos australopitecíneos, incluindo os australopitecíneos gráceis entre 4,5 e 1,78 milhão de anos atrás (Australopithecus anamensis, A. afarensis, A. africanus, A. garhi, Kenyanthropus platyops e A. sediba) e australopitecíneos robustos, entre 2,7 e 1 milhão de anos atrás (Paranthropus aethiopicus, P. boisei e P. robustus). Quanto a diversidade  dos primeiros primatas bípedes, consideram-se 4 espécies de préaustralopitecíneos e 10 de australopitecíneos, aí incluindo o A. bahrelghazali e a coabitação entre eles durante o Mioceno, Plioceno e Pleistoceno, entre 7 e 1 milhão de anos atrás. Hipóteses menos controversas indicam a relação de especiação entre A. afarensis, A. africanus, A. sediba e Homo sp. São apresentadas questões sobre o Orrorin e a sua relação ancestral com humanos e chimpanzés, a evolução da dieta dos australopitecíneos e a bipedia diversificada entre os autralopitecíneos a partir de análise de ossos dos membros inferiores de um A. sediba.

No capítulo IV é introduzida a questão da origem e dispersão do gênero Homo. A nomeação do ‘homem habilidoso’, o Homo habilis é dada por Louis Leakey aos registros fósseis anatomicamente semelhantes aos australopitecíneos e associados a artefatos líticos encontrados em Olduvai, na África, sendo este continente considerado o centro de dispersão do gênero Homo. O H. habilis estaria situado em cerca de 2,4 a 1,4 milhão de anos e produziu artefatos líticos associados a indústria lítica Olduvaiense, representados por talhadores do tipo ‘choppers’ e lascas simples. Entre eles destacam-se no capítulo o fóssil KMN-ER 1813 (H.habilis) e o KMN-ER 1470 (H. rudolfensis ou Kenyanthropus rudolfensis). Sobre o Homo erectus, foi citado o fóssil KMN-ER 3733, de 1,8 milhão de anos, encontrado no Lago Turkana, Quênia, África e o D2700 (variação de H. erectus ou de H. habilis), encontrado a 1,8 milhão de anos em Dmanisi, na República da Geórgia, no Cáucaso fora da África. A questão do H. habilis ou formas transicionais ou erectíneas fora da África, com cérebros menores e industrias líticas reduzidas é consolidada.

No mesmo capítulo, o Homo erectus aparece no registro fóssil na África há 1,6 milhão de anos e se expande até a Indonésia por volta de 27 a 70 mil anos. O fóssil LB1, crânio de Homo floresiensis, espécie com nanismo insular, teria habitado a Ilha de Flores entre 74 e 17 mil anos. Sua indústria lítica moderna contrasta com a pequena capacidade craniana de 385 a 417cm3. Este constituiria mais uma variação do Homo, para além do H. habilis e do H. erectus (ou uma de suas variações). Na China o H. erectus foi datado em 700 mil anos. Possuía estatura inferior a 1,60m. Na Europa, o H. erectus aparece entre 1,2 milhão de anos (Atapuerca, Espanha) a 450 mil anos (Ceprano, Itália).

O capítulo possui uma seção destinada à descrição da morfologia do H. erectus (incluindo o caso do ‘garoto de Turkana’, o WT-15000, COM 1,6 milhão de anos e com idade biológica estimada entre 8 e 12 anos e com estatura de 1,70m). Produziam artefatos Olduvaienses e Acheulenses (Modo 2, retocados dos dois lados). As marcas de cortes em ossos indicam descarnamento de carniças e de carcaças de animais também recém-abatidos pelo H. erectus. Entre 1,5 e 1 milhão de anos, o H. erectus utilizou o fogo. Neste capítulo é feita uma introdução ao estudo do Homo heidelbergensis , cujo holótipo teria sido encontrado nos depósitos fluviais do rio Neckar, a cerca de 10km a sudoeste de Heidelberg, na Alemanha, em 1907 e datado entre cerca de 569 a 609 mil anos. A este novo Homo, seguiram-se os de Petralona e Arago (Europa), Bodo, Ndutu, Kabwe e Elandsfontein (África) e Kocabas, Hathnora , Dali e Maba (Ásia), todos com definição de espécie um tanto complexa. Produziram artefatos líticos de indústrias Acheulenses e Musterienses e abrigos de rochas e galhos por volta de 380 mil anos. No quadro referente ao algo novo no front, os autores do capítulo apresentam evidência favorável a presença do H. erectus em Dmanisi; o H. erectus é associado ao surgimento da indústria lítica Acheulense e ao uso controlado do fogo entre 790 mil (Israel) e 1 milhão de anos atrás (África do Sul).

O capítulo V trata do tema Os Neandertais. Esta espécie de Homo teria se originado, juntamente com os denisovanos, há cerca de 500 mil anos a partir da população de Homo heidelbergensis que habitava a região da Eurásia. Na África, a população de H. heidelbergensis originou há 200 mil anos o Homo sapiens. Esta espécie de homem anatomicamente moderno dispersou-se pela região de Israel há 120 mil anos e para os demais continentes por volta de 50 mil anos. O H. neanderthalensis na Europa foi substituído pelo sapiens em um período de 10 mil anos aproximadamente. Essa dinâmica de extinções e especiação é descrita neste capítulo. O holótipo do H. neanderthalensis é a calota craniana do Neandertal 1, descoberta na caverna de Feldhofer, vale do rio Neander, Alemanha, em 1856. O artigo faz referência a produção de cerca de 250 artigos sobre o Homo piltdownensis (classificado assim por Arthur Keith), um fóssil criado por volta de 1908 (fragmentos de neurocrânio humano, mandíbula de Pongo e dentes de um Pan fóssil) e cuja fraude foi descoberta em 1953. A encefalização nesse caso teria  ocorrido antes da mudança na dieta. A descoberta da fraude, do pseudofóssil, denota, segundo os autores, a autocorreção da ciência. Sobre os neandertais, ocuparam a Europa Ocidental, Oriente Médio, Rússia (Sibéria), sem, contudo, aparecerem no registro fóssil africano ou do sul da Ásia. Habitaram essas regiões entre as eras glacial e interglacial, no Pleistoceno Superior, entre 170 mil e 30 mil anos. Seus crânios são menos neotênicos que os do H. sapiens, com tórus supraorbitário característico, face projetada para a frente, abertura nasal ampla, capacidade craniana e volume craniano elevados, neurocrânio longo e baixo, dentes volumosos (taurodontia) e incisivos em forma de pá, occipital proeminente (occipital bun, ou coque occipital), ausência de queixo e espaço retromolar. Sua morfologia e volume corporal associava-se a adaptação a ambientes frios. Teriam deficiência no balanço corporal, denotada pelas características da cóclea no ouvido interno em corridas e ênfase no sistema visual, pelas dimensões orbitárias; antebraços e pernas mais curtos que os do H. sapiens; estaturas variando de 1,69m a 1,60m; tórax em forma de tonel; pelve larga. Essas características apontam adaptação a ambientes frios. Pesquisas com mtDNA de um H. neanderthalensis de 38 mil anos possibilitaram identificar um ancestral comum com o H. sapiens a cerca de 600 + 140 mil anos. Em pesquisas com DNA nuclear o gene FOXP2, relacionado à fala, está presente no neandertal e no sapiens. Em 2010, segundo pesquisadores do Instituto Max Planck, um novo sequenciamento de DNA de neandertal indicou compartilhamento de 99,84 por cento entre esta espécie e o H.sapiens. A origem do H. neanderthalensis estaria relacionada ao Homo antecessor, espécie derivada do Homo erectus na região mediterrânica. O capítulo salienta, para fins de síntese, considerar os H. neanderthalensis como uma variante do H. heidelbergensis na Europa e o H. sapiens uma variante do H. heidelbergensis na África. A árvore filogenética do gênero Homo torna-se complexa com a introdução dos denisovanos, geneticamente mais próximos do H.heidelbergensis.

Na árvore filogenética proposta no capítulo V indica que possivelmente em diferentes regiões da Eurásia, populações de H. sapiens, H. neanderthalensis, H.floresiensis, H. erectus, denisovanos teriam coexistido por um breve período de tempo, entre 20 mil e 30 mil anos, ou pouco mais. O capítulo trata da tecnologia lítica e domesticação do fogo entre as várias espécies. Estima que os neandertais, em relação ao comportamento, viviam em grupos pequenos, resultando em baixa diversidade genética. Vivendo em regiões de clima glacial, sua expectativa de vida não chegava aos 40 anos, possuíam deficiências nutricionais severas, traumas e injúrias constantes e que eram alvo de cuidados por longos períodos. Análises dos esqueletos e dentes dos neandertais indicaram que possuíam alto nível de atividade física e demandavam elevado consumo de calorias, com dieta onívora.

Deveriam organizar estratégias de subsistência (caça, pesca, coleta, cozimento dos alimentos, consumo, usos e processamento de plantas) e convivência complexas e cooperativas. O capítulo ilustra possibilidades para o desenvolvimento do pensamento simbólico entre os neandertais, pelo uso de pigmentos e conchas perfuradas. Entretanto, os autores do capítulo afirmam que existe dificuldade em aceitar a ideia de que os neandertais realizavam sepultamentos pela ‘ausência de artefatos claramente simbólicos’ no local da inumação. Trata-se de um problema, visto que a deposição mortuária de La Chapelle-aux-Saints possuía ossos de um mamífero em associação. Entretanto, a necessidade da presença de ‘artefatos claramente simbólicos’ para caracterizar deposições funerárias em qualquer população humana não é uma regra.

Ainda neste capítulo, de novo no front há a possibilidade de formas híbridas resultantes de intercruzamentos entre neandertais e sapiens; as expressões diferenciadas de mesmos genes em humanos modernos e neandertais; indicadores de possíveis intercruzamentos entre neandertais e H. sapiens arcaico.

No capítulo VI, Origem e dispersão dos humanos modernos, os autores retomam a história geral dos estudos da origem do ser humano e do pensamento simbólico e representações resultantes. Em formato linear e cronológico, o Histórico neste capítulo cita vários eventos relacionados ao estudo das origens do ser humano: antes do séc. XVIII, com viés religioso, com a criação das espécies por divindade sua explicação e repetição continuada por centenas de anos (e mesmo na história do presente): no séc. XIX, com a divulgação de ‘A Origem das Espécies’, de Charles Darwin, com a formulação da evolução das espécies e o mecanismo da seleção natural; o foco no registro fóssil, desde a primeira metade do séc. XIX, seguindo-se ao achado fortuito da calota do vale do rio Neander em 1856, holótipo do H. neanderthalensis; de remanescentes de H. sapiens (Cro-Magnon 1, 2 e 3) de Les Eyzies, na França, em 1868, de Chancelade, em 1880 e de Combe-Capelle, em 1909, na França; em toda a Europa o homem anatomicamente moderno estava presente por volta de 35 mil anos; em 1897 surge a caverna de Altamira, na Espanha e entre 1871 e 1901 as cavernas de Grimaldi, na Itália são escavadas; os sítios com artefatos líticos e em osso da República Checa, escavados entre 1881 e 1904; em Java foram localizados remanescentes de H.sapiens de 6 mil anos entre 1888 e 1890; em 1912, foram descobertas as cavernas de Les Trois Frères, em Ariège, com registros rupestres e artefatos líticos e em osso; surgem as importantes cavernas de Lascaux e Chauvet, na França, ambas com registros rupestres.

Este capítulo cita e associa o desenvolvimento do método arqueológico no início do século XX a Gordon Childe e Mortimer Wheeler e as novas direções técnicas nas pesquisas que se seguiram. A origem e dispersão do H. sapiens puderam ser estudadas a partir das descobertas de outros sítios que incluíram, entre outros, Singa, Sudão (1924); Skhul V, Israel (1932); Qafzeh 6, Israel (1933); Hofmeyer, na África do Sul (1952); Liujiang, China (1958); Omo I, Etiópia (1967); Kow Swamp, Austrália (1967); Laetoli, Tanzânia (1976); e Oase 2, na Romênia (2003).

São descritas as características anatômicas cranianas e ‘pós-cranianas’ do H.sapiens. A morfologia do nosso crânio e ‘pós-crânio’ pode ser caracterizada pela capacidade cefálica elevada (acima de 1300cc), neurocrânio alto, escama do occipital arredondada e sem tórus, dimorfismo sexual relativo, face ortognata ou mais retraída, presença de fossas caninas, presença de queixo, arco superciliar e  bordas supraorbitárias substituem o tórus supraorbitário, ausência de espaço retromolar, antebraço e pernas mais longos (em relação aos neandertais), abertura nasal anterior mais estreita que nos neandertais, quadril e tronco mais estreitos (em relação aos neandertais e H. erectus), entre outras. Associados a essa análise morfológica comparada, os estudos moleculares têm sido mais intensivos e modificam paradigmas antigos a cada semana. As inferências genéticas caracterizam os fósseis de uma forma que as análises morfológicas diretas dos fósseis (mesmo a morfometria geométrica comparada e a análise epigenética) não possibilitariam alcançar: seus resultados são mais contundentes.

A reconstrução das relações entre populações pré-históricas cada vez mais prescinde das análises de mtDNA e do cromossomo Y, usados para reconstituir longas linhagens de descendência (feminina). Arvores que expressem relações evolutivas entre populações podem ser construídas considerando-se a similaridade observada entre variantes novas existentes entre as populações, fixadas pela deriva genética, ou a mudança aleatória da frequência gênica em populações de diferentes tamanhos. Nesse sentido, o mtDNA e o cromossomo Y (sua contraparte masculina), são adequados para verificar a extensão da relação entre ancestralidade e descendência entre populações humanas que compartilham um único ancestral (‘Eva mitocondrial’). Tanto o mtDNA, quanto o cromossomo Y, indicam que o ser humano teve origem na África e depois se dispersou (pelos haplogrupos M e N e os seus haplogrupos diversificados, A, B, C, D e X, presentes nos grupos humanos americanos). As técnicas de extração do DNA em  ossos antigos consideram a abundância do mtDNA em relação ao DNA nuclear. É evidente que o controle ineficaz de agentes contaminantes por gerenciamentos laboratoriais deficientes prejudica e inviabiliza quaisquer análises biomoleculares.

Ainda, no penúltimo capítulo, as contribuições da arqueologia podem gerar explicações diferentes sobre um certo fenômeno evolutivo e de mudança comportamental. A origem do H. sapiens pode ser explicada mediante as hipóteses da origem multirregional ou trellis model (anos 1970); pela saída da África ou Out of África e pela hibridização. Esses modelos são explicados e consideradas as suas limitações e alcances explanatórios para a nossa origem.

Todos levam em consideração a origem africana do H. erectus, sua dispersão pelo Velho Mundo a partir de 1,8 milhão de anos. As variações nos modelos surgem em relação à forma de evolução da espécie humana moderna: no primeiro caso, do trellis model, os humanos evoluíram em um continuum a partir de um ancestral (H. erectus), ocupando os 4 continentes; no Out of África, os humanos originaram-se de populações africanas de H. heidelbergensis e foram substituindo as outras espécies de hominínios existentes; no terceiro modelo, os humanos originaram-se do H. heidelbergensis, na África, com expansão para os 4 continentes caracterizada por trocas gênicas com as outras espécies de hominínios existentes.

Sobre a antiguidade do H. sapiens, o capítulo cita os achados do sítio Omo, na Etiópia, com remanescentes de 200 mil anos; no sítio Herto, também na Etiópia,   com 154 a 160 mil anos; nos sítios Qafzeh e Skhul, em Israel, com fósseis datados entre 130 mil e 90 mil anos, já em área de transição entre África, Ásia e Europa.

Assim, os humanos saíram da África pelo Oriente Médio, antes de chegar à Europa e Ásia. Outros registros fósseis indicam a presença na Europa de neandertais entre 150 mil e 30 mil anos e de H. sapiens após 40 mil anos. Na Romênia, República Checa e na França (Cro-Magnon), as datações para o H. sapiens alcançam 35 mil, 31 mil e 27 mil anos, respectivamente. Na China, em Zhoukoudien, Tianyuan e Liujiang, as datações indicam 30 mil, 40 mil e 68 mil anos para a presença do H. sapiens moderno. Na Indonésia, em Niah, foram datados entre 39 mil e 45 mil anos. Em Laetoli, Tanzânia, África, o crânio Ngaloba LH 18 foi datado em 120 mil anos. Um fóssil de H. sapiens encontrado em Singa, Sudão, apresentou idade entre 120 mil e 150 mil anos. Na perspectiva genética, com o emprego de métodos moleculares (análise de mtDNA, n DNA e cromossomo Y) o H. sapiens originou-se na África entre 220 mil e 120 mil anos. Então, o H. sapiens teria surgido a cerca de 200 mil anos, no nordeste da África.

As rotas de dispersão do H. sapiens perfazem um dos temas tratados neste capítulo. São sugeridas algumas das rotas de dispersão humana a partir da África, que levam em consideração a presença de registros fósseis humanos nos continentes e as suas relações, ‘movimentos migratórios’, ‘ondas migratórias’, ‘recolonizações’, ‘contatos’, ‘dispersões’, ‘hipóteses de colonização’. São consideradas as datações, morfologia comparada do registro fóssil e dados de modelos genéticos. O continente americano teria sido o último a ser ‘colonizado’ Entre 30 mil e 13 mil anos, o nível do mar possibilitava a passagem de hominínios entre o Alasca e a Sibéria e nesse caso, remanescentes da sua presença foram datados entre 15 mil e 13 mil anos.

Outro aspecto tratado no capítulo VI é a ‘explosão criativa do Paleolítico Superior’, caracterizado pela presença de vestígios representativos das formas de pensamentos simbólicos ou expressões simbólicas do pensamento, sob a forma de objetos de cultura material (e imaterial). Nesse subtema, a questão está na ‘evolução do comportamento simbólico’, uma ‘especificidade humana’ do H.sapiens. Essa ‘revolução’ teria ocorrido no Paleolítico Superior, por volta de 50 mil anos. Para os autores do capítulo, a palavra ‘cultura’ somente poderia ser empregada ‘em todo o seu potencial’ a partir de 50 mil anos. Existiria um ‘antes’ e um ‘depois’ de uma ‘explosão criativa’, que teria gerado inúmeros registros arqueológicos da sua ocorrência e que ‘evolui’ até os dias atuais. A identificação de uma mudança cognitiva há 50 mil anos caracteriza o modelo explicativo (especulativo) de Richard Klein, o modelo neuronal. Existiriam ‘genes’ ligados ao ‘desenvolvimento cerebral’ e a sua ‘evolução abrupta’ teria levado a essa ‘revolução cultural’. Esta perspectiva merece uma refinada revisão que não cabe nesta resenha. A palavra cultura (e não o conceito de cultura) é aclamado, sem aspas e sem restrições. Antes – de 50 mil anos – deve ser usada como ‘cultura’, com ‘restrições’.

Um dos pontos apresentados em defesa de uma ‘verdadeira cultura humana’ está na variabilidade ou substituição da matéria prima (lítica) escolhida para a construção dos artefatos; ferramentas cada vez ‘melhor trabalhadas’; substituição das lascas por lâminas; uso do fogo para queima controlada da argila, outra matéria prima da revolução cultural; construção de ferramentas compostas por mais de uma matéria prima; pontas ósseas elaboradas com propósitos específicos (abater, sangrar, agarrar, transpassar, amortecer); propulsores; uso de recursos marinhos para alimentação e adorno; construção de embarcações e instrumentos próprios para a pesca; uso de pigmentos e elaboração de tintas (a partir do momento no qual os neandertais podem ter feito uso de pigmentos, esta prática não está mais associada ao comportamento simbólico complexo do H. sapiens, exclusivamente); as formas de ‘arte’ expressas pelas representações antropomorfas tridimensionais e pelos registros rupestres de cenas diversificadas da vida cotidiana e dos outros animais e objetos. ‘Arte’ significa a demonstração de algum ‘grau de simbolismo’, com ‘complexidade significativamente maior’. As pinturas rupestres ‘bem acabadas’, esculturas que sugerem ‘xamanismo’ e as ‘pequenas esculturas simbolizando a figura feminina com traços de fertilidade exagerados’ (vênus de Brasseimpouy, de Willendorf I, de Lespugne), as figuras de animais esculpidas ou gravadas em osso e marfim (cabeça de cavalo de Mas de A’ zil, hiena de Madeleine-Dordogne e um mamute de Madeleine-Dordogne) e e os primeiros registros de ‘atividade religiosa’.

Os sepultamentos humanos são um componente social importante da revolução criativa pós 50 mil anos. Mesmo não sendo exclusivos desse período, somente nele é que passaram a ocorrer em grande número e aumentar sua incidência no registro arqueológico. Em Cro-Magnon ocorrem nos sepultamentos, conchas e dentes perfurados, com ocre abundante. Os sepultamentos foram denominados pelos autores de ‘sepultamentos ritualísticos’, numericamente expressivos no Paleolítico Superior. Outra característica da ‘revolução’ (ou ‘mutação’, no sentido genético) estaria no aumento da complexificação da organização social. Recursos ambientais escassos implicavam em grupos sociais pequenos, com menos de 30 pessoas. Recursos abundantes, grupos sociais expandidos a mais de 200 pessoas.

Instituem-se áreas específicas nos assentamentos para a elaboração de certos artefatos e práticas. O capítulo considera a ‘explosão cultural’ do Paleolítico Superior como ‘avassaladora’ em relação as suas evidências no registro arqueológico. Distinguem-se comportamento moderno de comportamento não-moderno, mediante a explicação do modelo neuronal de Klein. Entretanto, objeções à cronologia fixa dos 50 mil anos existem. Na África do Sul, os sítios de Blombos e de Pinnacle Point apresentaram conchas perfuradas, com ocre, artefatos em osso, uso controlado do fogo para a construção de objetos e caça especializada de moluscos entre 76 mil anos e 164 mil anos. Portanto, 50 mil seria pouco para a ‘explosão criativa’. Um modelo não-neural associa a origem da expressão simbólica ao surgimento gradativo e cumulativo dos comportamentos simbólicos  no período de aproximadamente 150 mil anos. Para justificar essa hipótese, considerou-se a presença de oferendas e adornos em sepultamentos e uso de pigmentos encontrados em Qafzeh, Israel, com 100 mil anos, como sinônimos de comportamento simbólico complexo. A acumulação lenta de hábitos complexos pode estar relacionada a concentração de pessoas em grandes assentamentos e sua relação com outros assentamentos, propiciando o comportamento simbólico. O comportamento simbólico complexo depende, então, de uma condição demográfica favorável. Poderia existir sempre, dentro do H. sapiens, entretanto, nem sempre em condições de ser impulsionado. Funciona como uma hélice do DNA ou um cromossomo Y: seria biocultural, sociobiologicamente determinado.

Sim, a ‘evolução da capacidade cultural do ser humano é um dos temas mais intrigantes do estudo da história do H. sapiens’ e pode ser ‘datada’ com instrumentos da arqueologia, paleoantropologia, da genética e da linguística, dentro de um ‘arcabouço filogenético’. Pronto: 170 mil anos. Somente depois a quantidade de ‘cultura’ aumentaria.

Finalmente, no capítulo VII, o Neolítico: domesticação e origem da complexidade social, acredita-se que somente as novas descobertas arqueológicas e paleoantropológicas poderão ser capazes de alimentar o amplo e dinâmico debate sobre a evolução humana. Trata do homem ‘herói’, já morfologicamente moderno e capacitado culturalmente. Os modos diversos e as cronologias sobre a manipulação e domesticação de plantas, animais e a criação de novos materiais a partir do processamento da matéria prima pelo calor interessam. O manejo dos  ciclos reprodutivos de plantas e animais deve satisfazer as necessidades do novo humano moderno. As privações anteriores a 170 mil ou a 50 mil anos são suplantadas pelo aparecimento da ‘complexidade social’. Entre as feições principais do Neolítico estão a domesticação de plantas e animais e o surgimento de vilas e cidades. A emergência da complexidade implica em desdobramentos sociopolíticos, culturais e ecológicos. A narrativa apresentada, segundo os autores deste capítulo, restringe-se a domesticação e a complexidade social.

Domesticação refere-se a mudanças genéticas e fenotípicas, ao manejo humano, a ação humana. Distinguem-se a não-domesticação, a pré-domesticação e a domesticação propriamente dita. Pode ser considerada como processo evolutivo, com contingências biológicas e ambientais seletivas que transformam uma população em um momento da sua história evolutiva. Assim iniciam-se os pressupostos ou aspectos elementares da domesticação neste capítulo. A complexidade social é tratada a partir da possibilidade de reuso condicional do discurso de Elman R. Service (a sequência bando-tribo-chefias-estados), de Gary M. Feinman, com a presença de elites gerenciadoras da sociedade, em estruturas hierárquicas estáveis que funcione como um nexo organizacional e estruturante do coletivo. Nesse sentido, sociedades caçadoras-coletoras, sem clãs, não seriam complexas, mas igualitárias, com tarefas generalistas, sem hierarquização social.

A complexificação (vertical e a horizontal) está associada a compartimentação, especialização, diferenciações funcionais, hierarquização dentro da estrutura social. O capítulo ainda trata da chamada “Revolução Neolítica” no âmbito do  surgimento da agricultura, considerando e descrevendo as características de zonas específicas (Crescente Fértil, Egito, Bacias dos rios Yangtzé e Amarelo, Planalto na Nova Guiné, África Subsaariana, Amazônia, Norte da América do Sul, Mesoamérica e Leste dos Estados Unidos). Os debates apresentados no capítulo referem-se ao porque do aparecimento da Revolução Neolítica, relacionando-o a teoria da sociedade afluente original, do antropólogo Marshall D. Sahlins, da Uinversidade de Chicago.

Nos primórdios da agricultura, a caça e a coleta também deveriam coexistir, antes do processo de aumento crescente da produção de alimentos por muitas sociedades humanas. As primeiras domesticações teriam se originado em ambientes plenos em recursos da natureza e não em ambientes estressantes, bem mais tardios, representados pelo sedentarismo crescente, surgimento de epidemias nos períodos mais recentes, associadas ao convívio com os animais domesticados.

Os autores vislumbram, segundo o arqueólogo Brian D. Hayden, a possibilidade da projeção de informações etnográficas nos contextos pré-históricos para a compreensão das reuniões entre grupos humanos para a realização de banquetes (a partir de 50 mil anos), tocas, distribuições ou mesmo a destruição de alimentos e bens relacionados a posições de prestígio social. Alcançava-se prestígio entre os líderes locais e estímulo à produção e acúmulo de excedentes. Pelo menos, entre 10 mil e 2 mil anos, teria ocorrido um rompimento, justaposição ou sobreposição do modo de vida nômade dos caçadores-coletores ao das populações agricultoras.

A alta concentração demográfica associada a domesticação de plantas e animais  passa a caracterizar a ‘complexidade social’ em várias regiões do planeta. Entre 9.500 anos e 5.000 anos, mudanças climáticas teriam favorecido a domesticação de plantas e de animais. Neste contexto estariam Jericó e ÇatalHoyuk. O livro é, minimamente, imprescindível nas escolas e universidades brasileiras.

Notas

2 CARTMILL, Matt; SMITH, Fred H. (Eds.) The Human Lineage.New Jersey: Wiley-Blackwell, 2009; KLEIN, Richard G. The Human Career. Human Biological and Cultural Origins. Chicago: The University of Chicago, 2009; CELA-CONDE, Camilo J.; AYALA, Francisco J. Human Evolution. Trails from the Past.

Oxford: Oxford University Press, 2010; LOCK, Andrew; PETERS, Charles R. (Eds.) Handbook of Human Symbolic Evolution. Oxford: Blackwell, 1999; HENKE, Winfried; CIOCHON, Russell L.; FLEAGLE, John G. (Eds.) The Human Evolution Source Book. 2ed.New Jersey: Pearson, 2006; TATTERSALL, Ian (Eds.) Handbook of Paleoanthropology. New York: Springer, 2007, 3 vols.

3 CUNHA, Eugénia. Como nos tornámos humanos. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010; LEWIN, Roger. Evolução Humana. Tradução de Danusa Munford. São Paulo: Atheneu, 1999; KLEIN, Richard G.; EDGAR, Blake. O despertar da cultura. A polêmica teoria sobre a origem da criatividade humana. Tradução de Ana Lúcia Vieira de Andrade. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2005.

4 LARSEN, Clark Spencer. Our Origins. Discovering Physical Anthropology. New York: W.W.Norton & Company, 2008; HAVILAND, Willian A. Anthropology. 7 ed. New York: Harcourt Brace Colege Publishers, partes I a III, 1994; WALKER-PACHECO, Suzanne E. Exploring Physical Anthropology. 2 ed. Englewwood: Morton Publishing Company, 2010.

5 ROBERTS, Alice.Evolution. The human story. New York: DK Dorling Kindersley, 2011.

Sergio Francisco Serafim Monteiro da SilvaDepartamento de Arqueologia, UFPE. E-mail: [email protected]

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Human Bones and arqueology – UBELAKER (CA)

UBELAKER, Douglas. Human Bones and arqueology. Washington: Cultural Recourses Management Series, Interagency Archeological Service, Heritage Conservation and Recreation Service, Department of the Interior, 1980. Resenha de: SILVA, Sergio Francisco Serafim Monteiro da. Clio Arqueológica, Recife, v.33, n.1, p.209-215, 2018.

O livro Human Bones and Archeology, de Douglas Ubelaker, foi publicado inicialmente em 1980, com a preparação conjunta do U.S Department of the Interior, e do Heritage Conservation and Recreation Service e a Interagency Archeological Services, em Washington, D.C, nos EUA. Voltado ao problema dos ossos humanos na arqueologia, em especial aqueles relacionados aos primeiros habitantes da América do Norte, estudados por arqueólogos, antropólogos e bioarqueólogos ainda hoje produtivos, como William Bass, Don R. Brothwell, Jane Buikstra e o próprio Douglas H. Ubelaker, o texto expõe estudos de casos que possibilitam ao leitor perceber os principais aspectos relativos à produção de conhecimento científico em arqueologia quando são escavados sítios com presença de remanescentes humanos.

A análise do contexto arqueológico tem sido de fundamental importância para a compreensão primeira dos processos formadores do registro arqueológico, sendo possível a reconstrução de perfis funerários de populações do passado. Os dados mortuários de natureza biológica, como o sexo, idade, estatura, ancestralidade, doenças, traumas e anomalias, constituem importantes recursos para a reconstrução de perfis biológicos dessas populações, auxiliando nos processos de interpretação arqueológica sobre os seus modos de vida.

Entre 1906 e 1979, pelo menos no período em que Ubelaker escreve Human Bones and Archeology, uma série de documentos legais estabeleceram regras para o tratamento do patrimônio cultural dos EUA, incluindo o arqueológico.

Diferentemente, no Brasil, verifica-se que na Constituição Federal de 1988, art.216, são descritos os bens que constituem patrimônio cultural. Também a Lei Federal No. 3.924, de 26 de julho de 1961, no seu art. 2º estabeleceu como monumentos arqueológicos ou pré-históricos, entre outros, os poços sepulcrais, os cemitérios e sepulturas nos quais se encontrem vestígios humanos de interesse arqueológico ou paleoetnográfico. Ainda, o Cap. II, item 1 do decreto-lei no. 25/37, art. 2º da lei federal 3.924/61 e a portaria IPHAN no. 230/02, em relação aos sítios históricos, inclui os cemitérios antigos nesse rol do patrimônio arqueológico brasileiro.

Human Bones and Archeology, remete o leitor aos problemas relativos às pesquisas com sepulturas e os remanescentes humanos também para o caso especificamente brasileiro na atualidade: as intervenções de salvamento; as questões indígenas e quilombolas de territorialidade e identidade; a urgência de órgãos gestores da administração pública e privada em resolver problemas com ossos humanos em terrenos de empreendimentos e frente a obras de arquitetura, que irão impactar o registro arqueológico com presença de remanescentes ósseos humanos e outros vestígios de interesse arqueológico.

Estudar ossos humanos na arqueologia constitui um fazer restrito a nichos universitários e de difícil acesso à sociedade de maneira geral, mesmo aos agentes sociais vinculados com a indústria cultural. A exposição museológica de remanescentes humanos em instituições e eventos dentro do Brasil é relativamente rara, encontrando exemplos nas exposições temporárias de corpos humanos dissecados e plastinados provenientes da Alemanha e China e exposições temporárias e permanentes em museus estaduais, municipais, institutos de pesquisa e bienais de arte sobre temas relacionados à evolução humana, a arqueologia e etnologia.

A perspectiva da biocultura, conceito/fenômeno da sociobiologia humana, sob os auspícios do do guarda-chuva paradigmático da Bioarchaeology, iniciado nos anos 1940 e extensivamante propagado por Jane Buikstra e Clark Spencer Larsen desde a década de 1960 nos EUA, prevalece nos dias atuais sob várias formas de abordagens teórico-metodológicas, em interdisciplinaridade com as ciências sociais, a medicina, as ciências forenses e correlatas (as Bioarqueologias social, da tuberculose, da violência, da infância, entre outras). Interessa a reconstrução do comportamento de populações do passado.

A abordagem comportamental em arqueologia moderna encontra expressividade neste trabalho visionário de Douglas Ubelaker. A atualidade do tema tratado mostra a pertinência da sua tradução no Brasil. Aqui, sítios arqueológicos históricos e pré-históricos, sob a responsabilidade do IPHAN e dos arqueólogos, tem sido sistematicamente destruídos no âmbito das reformas e empreendimentos urbanos e rurais. A participação de empresas de arqueologia nesse processo se dá de forma a cumprir as exigências da legislação federal, sendo recorrente a ausência de produção científica relacionada aos remanescentes humanos escavados nos projetos de intervenção e a ausência de profissionais capacitados para a escavação sistemática de estruturas arqueológicas contendo remanescentes de esqueletos humanos.

Douglas Ubelaker, cuja produção bibliográfica contínua em Antropologia Biológica, Forense e Arqueologia é suficientemente extensa, descreve de forma clara e sintética os métodos e técnicas sobre como os sepultamentos e esqueletos humanos devem ser analisados, como determinar o sexo, a idade, a estatura, evidências de doenças e as modificações artificiais dos ossos. Em seguida, ilustra com casos em Maryland, na Costa do Equador, Illinois e Columbia Britânica, enfocando a complexidade do contexto arqueológico de deposições funerárias nos cemitérios pré-históricos, as possibilidades interpretativas sobre nutrição, história das doenças, estrutura social, estatura e status social, acompanhamentos funerários inusitados e o desgaste dentário de origem artificial.

No livro podemos encontrar referências comparadas entre problemas enfrentados por nossos antepassados e aqueles que enfrentamos hoje quanto a nossa alimentação, doenças e modos de adaptação humana ao ambiente. As respostas oferecidas no passado, diante das que oferecemos hoje aos problemas de convivência entre nós mesmos e entre o ambiente, incluindo os seus agentes patogênicos, os recursos alimentares e a devastação antrópica crescente, por exemplo, podem servir de inspiração para podermos amenizar o impacto que causamos às nossas sociedades e ao ambiente em que vivemos.

Para Bennie C. Keel, consultor de arqueologia, que faz um prefácio para o texto de Douglas Ubelaker, os estudos dos remanescentes ósseos humanos na arqueologia são um dos mais provocativos e menos compreendidos aspectos dessa ciência. Esses estudos possuem motivos e métodos que foram apresentados por Ubelaker neste livro (ou livreto) com a finalidade de esclarecer o público, reduzindo os equívocos sobre essa área da Arqueologia.

Embora os ossos humanos representem uma parte diminuta do patrimônio cultural norte americano, alguns possuem importantes significados que somente poderão ser compreendidos considerando-se os seus contextos arqueológicos. Os vestígios arqueológicos são portadores de importantes informações sobre o passado, constituindo materiais frágeis e insubstituíveis, segundo Bennie Keel. Portanto a proteção desse patrimônio – registro do passado – constitui uma missão conjunta entre o Heritage Conservation and Recreation Service (HCRS) e o público. Assim como no Brasil, nos EUA existia, nos anos 1980, o problema da proteção e conservação dos sítios arqueológicos – que, evidentemente, tem se estendido até os dias atuais.

Portanto, aquelas pessoas que conhecem algum sítio arqueológico, podem ajudar na sua proteção e conservação, entrando em contato com uma Secretaria de Preservação Histórica da Capital do seu estado ou, no caso do Brasil, com as superintendências regionais do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), distribuídas em todos os estados do país desde 2009. A partir do registro e da proteção e em relação a possíveis perturbações de sítios arqueológicos, com presença de remanescentes ósseos humanos, são extremamente necessários aqueles profissionais experientes nas técnicas de escavação – os arqueólogos, cuja profissão foi reconhecida em abril de 2018 no Brasil. Somente com essas iniciativas, as gerações futuras, tanto nos EUA, quanto no Brasil, poderão ter conhecimento sobre o seu próprio passado.

Lembramos somente ao leitor que este texto foi produzido em 1980 e que algumas considerações devem ser feitas em relação à cultura, política e mentalidade nos EUA naquele período, em especial aos parâmetros de cientificidade então aceitos pelo Smithsonian Institution e ao autor, cuja obra científica, ainda em construção, é merecedora de respeito e inspiração.

Ainda, o caráter extremamente atual do texto, especialmente em correlação com os eventos de descaso e vandalismo sistemático e contínuo em relação aos sítios arqueológicos com presença de ossos humanos no Brasil, especialmente na Região Nordeste, onde esses vestígios extremamente frágeis são sinônimo de crime e de perda da propriedade para as instituições governamentais, torna a leitura e divulgação desta publicação, por enquanto esgotada, emergencial.

Sérgio Francisco Serafim Monteiro da Silva – Departamento de Arqueologia, UFPE. E-mail: [email protected]

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orensic approaches to buried remains – HUNTER et al (CA)

HUNTER, John; SIMPSON, Barrie; COLLS, Caroline. Forensic approaches to buried remains. Oxford: Wiley Blackwell, 2013. 259 p.  Resenha de: SILVA, Sérgio Francisco Serafim Monteiro da. Clio Arqueológica, Recife, v.29, n.1, 2014.

Imagem da capa da obra resenhada – página159

Forensic Approaches to Buried Remains, editado pela John Wiley & Sons, foi escrito a três mãos por John Hunter, professor do Instituto de História Antiga e Arqueologia da Universidade de Birmingham, que desenvolve estudos sobre a Arqueologia Forense desde 1988. Publicou mais de 10 livros sobre a relação entre a Arqueologia e as Ciências Forenses e vários artigos e capítulos de livros. Em coautoria com Barrie Simpson, um ex-oficial de investigação sênior e um ativo médico forense, expert na análise de locais de crime e no uso de abordagens interdisciplinares, e Caroline S. Colls, uma especialista em Arqueologia Forense e do Conflito, professora de Ciências Forenses da Universidade de Staffordshire, Hunter aprimora as suas mais recentes observações sobre o tema, publicadas com Roberts e Martin em 2002 (Studies in Crime: A introduction to Forensic Archaeology) e com Margaret Cox em 2006 (Forensic Archaeology – Advances in theory and practice).

Convém notar que Hunter, além de estar comprometido com trabalhos de pesquisa arqueológica em todo o Reino Unido, tendo realizado atividades de campo na Bósnia, no Iraque e em Falklands, rotineiramente ministra palestras para policiais e profissionais forenses. Foi um dos fundadores do Forensic Search Advisory Group, validando o atual sistema de atuação da Arqueologia Forense no Reino Unido.

Os autores deste volume, cuja temática abrange o estado da arte do desenvolvimento tecnológico usado pelas Ciências Forenses, a Arqueologia e a Antropologia Forenses e, durante uma investigação criminal, são consultores da Manlove Forensics Limited (http:// manloveforensics.co.uk/staff-and-affiliates), uma empresa inglesa independente, que oferece serviços das Ciências Forenses, com consultorias, exames e atendimento de locais de crimes, cujos laboratórios localizam-se em Wantage, Oxfordshire, no Reino Unido, com clientes em vários países. A participação de pesquisadores e docentes das universidades inglesas como consultores e palestrantes em empresas de Arqueologia, Ciências Forenses e áreas afins ou cursos em faculdades e centros de ensino particulares não é incomum, sendo esse tipo de parceria também encontrado no caso do Brasil (p. ex.), nos cursos de especialização e extensão das Faculdades Oswaldo Cruz, em São Paulo e Centro de Extensão Universitária Keynes, no Paraná.

Este volume, de uma coleção que trata de temas voltados aos fundamentos das Ciências Forenses, reúne em oito capítulos os principais problemas da Arqueologia e da Antropologia em meio forense. Com perfil eminentemente prático, o texto trata de problemas mais recorrentes na área forense e da Arqueologia, verificando as similaridades e discrepâncias entre esses fazeres, procurando, sempre que necessário, indicar a melhor forma de tornar possível uma atuação multidisciplinar ou interdisciplinar conjunta entre os arqueólogos e os demais profissionais forenses.

O livro possui uma introdução sobre os remanescentes humanos e as questões a eles vinculadas: em relação ao tempo, sua interpretação, a Arqueologia Forense, os procedimentos legais, a dinâmica da decomposição dos cadáveres, os métodos de busca e as suas adaptações (da Arqueologia ao meio forense), os métodos de recuperação dos remanescentes humanos e adaptações esperadas e as inumações em massa. Os autores preocuparam-se com o problema da teoria, do mapeamento do ambiente e do sensoriamento remoto na busca por inumações criminosas. Na aplicação de métodos de busca, são descritos instrumentos geofísicos, o uso de cães farejadores de cadáveres, a escavação mecânica e a dificuldade de se abordar corpos em meios aquáticos; são detalhados os aspectos sobre o planejamento, registro, arquivamentos e o balanço das probabilidades de buscas. São apresentadas as possibilidades sobre a presença de sítios sem a presença de corpos e as circunstâncias relacionadas a esse problema. Ao tratar do problema da estratigrafia (contaminação de estratos, casos com presença de queima, casos de exumações tradicionais), os autores enfatizam as técnicas de documentação, mapeamento e registro fotográfico do que será destruído pela escavação.

Nos dois capítulos finais os autores enfatizam os principais procedimentos relacionados a recuperação, coleta de amostras e datação dos vestígios: são retomadas em Ecologia Forense a Entomologia e a Palinologia; em Tafonomia os problemas do reconhecimento das modificações naturais e antrópicas; a importância da Antropologia Física e da Datação (relativa e absoluta). Ao final, os autores procuram explanar os níveis da investigação dos sepultamentos múltiplos, abordando as possibilidades da sua origem, o seu caráter político, religioso e a importância dos arquivos históricos para buscar soluções.

A “Arqueologia Forense” de Hunter, exaustivamente descrita em suas publicações entre 1994 e 2006, seria melhor compreendida como uma “Arqueologia em meio forense”, extremamente dependente da inserção em trabalho de equipe, com tempos diferentes (o tempo da legislação da investigação criminal), subordinações inusitadas a agentes de polícia, juízes e a constante necessidade de interação, em campo, com profissionais nem sempre colaborativos. Os procedimentos legais na história do presente representam um desafio ao arqueólogo. A este é sempre requerida a adaptação de métodos e técnicas, recorrer aos princípios da Tafonomia (a dinâmica da decomposição x conservação dos materiais orgânicos e materiais inorgânicos), aos métodos de prospecção e recuperação e a abordagem complexa dos enterramentos em massa ou covas coletivas.

Ainda o termo forensic conduz a Arqueologia à modernidade, aos códigos de leis, aos locais de crimes, nos quais a evidência arqueológica pode ser apresentada durante audiências nos tribunais. Normalmente a Arqueologia Forense envolve a investigação de covas clandestinas pela adaptação de modelos de técnicas arqueológicas para localizar esses sítios com enterramentos resultantes de homicídios com ocultação e abandono de cadáveres, acidentes e desastres em massa ou incêndios ― locais de crimes inidôneos e não preservados ― e empreender estratégias de escavação para recuperar os remanescentes humanos que eles possam conter. A natureza do fazer arqueológico inclui a análise estratigráfica e esta é requerida quando existe a necessidade de identificar e explanar a ordem das sequências dos eventos que resultaram no local do evento investigado: interessam a opinião ou a atuação operacional do arqueólogo, pelo menos aos policiais e às cortes no Reino Unido, Netherlands e na Escandinávia, que tem sido rotineiramente aceita nesses casos.

Como uma ciência relativamente nova, a Arqueologia Forense já apresenta razoavelmente bem estabelecido o uso de técnicas exclusivamente arqueológicas nos locais de crimes, estando em constante desenvolvimento de técnicas e protocolos mais adequados para cada caso (p. ex. para a recuperação de vítimas inumadas em covas coletivas), provenientes da Geofísica, prospecção remota e da Tafonomia. São adaptadas técnicas convencionais da Arqueologia, envolvendo trabalho de campo e escavação. Quando evidências materiais inusitadas estão em questão, a Arqueologia Forense ainda deve contar com disciplinas que auxiliem na análise entomológica, de DNA, patológicas, de fibras, sangue, tecidos, polens, solos, entre outros. Em Arqueologia Pré-histórica, são estudadas populações anônimas, cujas classificações estão fundadas em fatores genéricos, como doença, dieta, traumas, longevidade e curvas de mortalidade. Em contraponto, mas similarmente, no contexto forense, interessa a identificação das vítimas cujos remanescentes foram escavados. Nessa perspectiva, a Arqueologia articula-se a uma ampla equação probatória das Ciências Forenses, como uma disciplina irritantemente conectiva: para Hunter o arqueólogo não está nem em uma área nem em outra. Então a disciplina arqueológica é líquida e permeável, existindo na percolação com outras ciências, com extrema mobilidade e adaptabilidade.

Mas as considerações mais controversas de Hunter neste livro, especificamente nos dois primeiros capítulos, estão expressas nos seguintes argumentos: a) a Arqueologia Forense pode ser definida e existe, como no caso do Reino Unido; b) a Arqueologia norteamericana emergiu como uma disciplina secundária sob a égide da Antropologia Física, enquanto que, no Reino Unido, a Arqueologia e a Antropologia emergiram ambas como disciplinas primárias, com a Antropologia voltada mais predominantemente ao “social” do que ao “físico”; c) os arqueólogos forenses são especialistas em técnicas de campo, mas com conhecimentos de Antropologia Física, ao passo que os antropólogos forenses são especialistas no exame do tecido ósseo, mas com um conhecimento básico de habilidades de campo e de escavação; d) como todo o trabalho forense é aberto a interrogatório no Tribunal de Justiça, cada competência individual caracteriza-se por estar sempre dentro do seu(s) campo(s) de conhecimento específico e habilidades. Como consultores científicos da Manlove, os autores vislumbram uma investigação criminal no século 21 preocupada com protocolos, qualidade, normas e prestação de contas.

O Institute of Archaeologists (IfA, e-mail: [email protected]), nome comercial do Institute of Field Archaeologists, da University of Reading, Reino Unido, promove a prática da Arqueologia e disciplinas afins, propondo normas e ética profissional para a conservação, gestão, compreensão e promoção da fruição do patrimônio. IfA é uma organização profissional para todos os arqueólogos e outros envolvidos na proteção e compreensão do ambiente histórico e do patrimônio inglês. Essa organização, citada pelos autores, pode ser comparada no Brasil, brandamente, à Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB).

O livro em questão complementa os primeiros ensaios na área, feitos por Morse, Crusoe e Smith em 1976, Morse, Duncan e Stoutamire, entre 1976 e 1983, e Bass e Birkby, em 1978.

O contexto arqueológico é significativo e tão importante quanto os remanescentes humanos, tratados com hermetismo por Komar e Buikstra, em 2007, com pouca expressividade da contribuição da Arqueologia no manual de Arqueologia e Antropologia Forense de Blau e Ubelaker, lançado a partir de 2009 e de forma interdisciplinar, com a importante atuação dos arqueólogos, nos manuais de Arqueologia Forense de Hoshower, Dupras e seus colaboradores, Connor e Cox e outros especialistas, publicados entre 1998 e 2007. Esses manuais constituem referências complementares importantes para cada leitor de Forensic Approaches to Buried Remains. Aqui, John Hunter não pode ser esquecido, especialmente por suas contribuições à Arqueologia Forense na Inglaterra, citadas mais acima.

Hunter e seus colegas procuraram detalhar as tecnologias mais adequadas, criadas nos últimos anos, para a prática em campo da Arqueologia, especialmente aquelas voltadas ao meio forense, na busca de soluções para eventos criminais. Trata-se de um livro que apresenta casuísticas na área da Arqueologia Forense, indicando os motivos favoráveis e os desfavoráveis para se utilizarem determinados equipamentos. O conhecimento tecnológico da Arqueologia é fundamental na busca de corpos e para a sua recuperação.

O livro é um convite ao conhecimento sobre uma das instâncias do estado da arte da Arqueologia moderna.

Sergio Francisco Serafim Monteiro da Silva  – Departamento de Arqueologia e Preservação Patrimonial, UFPE.

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Pré-História do Nordeste do Brasil – MARTIN (CA)

MARTIN, Gabriela. Pré-História do Nordeste do Brasil. 2ed. Recife: Editora da UFPE, 1997. p.450. Resenha de: TEIXEIRA, Ivana; OLIVEIRA, Luciane Monteiro; SILVA, Sérgio Francisco Serafim Monteiro da. Clio Arqueológica, Recife, n.12, p.219-221, 1997.

Ivana Teixeira, Luciane Monteiro Oliveira, Sérgio Francisco Serafim Monteiro da Silva – Alunos do Mestrado em Arqueologia da Universidade de São Paulo.

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