Sublimação e unheimliche – PARENTE (Ph)

PARENTE, Alessandra. Sublimação e unheimliche. São Paulo: Pearson, 2017. Resenha de: SILVEIRA, Léa. A mulher entre o ouro e a carne. Philósophos, Goiânia, v. 23, n. 2, p.-91-104, jul./dez., 2018.

Il crut que dans son corps elle avait um trésor.

La Fontaine

A questão das neuroses condensou-se para Freud, como sabemos, em torno de um problema específico de defesa psíquica que ele, a certa altura, nomeou Verdrängung (recalque) e que cedo o conduziu ao enfrentamento teórico do modo pelo qual tal defesa se relacionava à cultura: suas exigências, suas condições psíquicas, sua existência mesma. Por que motivos, afinal, um indivíduo vem a rejeitar aquilo que ele próprio deseja? Eis algo que Freud, por mais que tivesse se identificado com os valores burgueses da Viena finde-siècle, não tomou por dado. Nem sequer, a meu ver, por um dado de sua época. Pelo contrário, ele perseguiu tal problema a partir dos mais diversos ângulos e fez disso o pensamento de uma vida. É assim que, para mencionar apenas um exemplo, ao relatar o caso Dora, ele expressa seu pasmo muito exatamente diante de um não reconhecimento da sexualidade. E escreve, nesse sentido:

Toda pessoa que, numa ocasião para a excitação sexual, tem sobre-tudo ou exclusivamente sensações desprazerosas, eu não hesitaria em considerar histérica, seja ela capaz de produzir sintomas somáticos ou não. Explicar o mecanismo dessa inversão de afeto é uma das tarefas mais importantes – e, ao mesmo tempo, mais difíceis – da psicologia da neurose (FREUD, 1905[1901]/2016, p.201).

Decerto, com Dora e os “Kas”1 temos também o problema da cegueira (ou surdez) possível do analista, mobilizada já como problema clássico na história das ideias psicanalíticas relacionadas à transferência, uma vez que Freud teria falhado em perceber o endereçamento do desejo de Dora. Lacan (1952[1951]/1998) vê isso em uma peculiaridade do momento em que a moça parece rejeitar o Sr. K. Trata-se do momento em que Dora entende que o Sr. K. não tinha acesso ao gozo da Sra. K., ao gozo do corpo daquela mulher. Lacan explora, com isso, o vislumbre do final do relato do caso, que ocorre a Freud só-depois: quanto mais o tempo passava, mais Freud se convencia de que o erro técnico, a partir do qual Dora rompera bruscamente o tratamento, consistiu em não pontuar o investimento erótico homossexual da moça na Sra. K2. É certamente em função dessa cegueira que Freud atribui a Dora, na interpretação de seus sintomas, “correntes afetivas masculinas” (p. 245). Mas, em qualquer caso, isso não dissipa o fato de que a pergunta de Freud, aquela com a qual ele se espanta, é: não seria de se esperar que uma mulher, ao desejar, assumisse o seu desejo enquanto tal? Se isso não acontece, conclui, é preciso tomar o fato na condição de enigma, pois ele não pede menos do que isso.  Se a cultura representa um campo importante no sentido de fornecer motivações para a rejeição do desejo, uma reflexão sobre ela é, então, inescapável para Freud. Tal reflexão terá desdobramentos sem os quais dificilmente poderíamos ter alguma expectativa de fazer uma leitura de nosso próprio tempo. Ela não será, no entanto, de modo algum suficiente para se pensar o que é o recalque. Não é raro vermos o leitor que se restringe a O mal-estar na cultura desencaminhar-se nesse sentido. Mas o que eu gostaria de destacar, tendo em vista meu propósito nessa resenha, é o fato de que essa reflexão – necessária e, para Freud, insuficiente – é marcada, de uma maneira fundante, por uma ambiguidade. Para mim, quando se trata de dizer isso, há uma passagem que se destaca como nenhuma outra. Está em A moral sexual ‘cultural’ e o nervosismo moderno, primeiro texto que Freud dedica diretamente ao problema do antagonismo entre cultura e indivíduo. Poder-se-ia defender que um dos movimentos importantes que têm lugar entre esse texto e o do Mal-estar… é aquele que corresponde a uma estruturalização de tal antagonismo. Lá, o adoecimento cobrado pela cultura é destacado sobretudo como algo que caracterizaria a Europa da transição do XIX para o XX; aqui, tornar-se-á correlato de todas as suas formas. De todo modo, é no texto de 1908 que lemos:

A experiência ensina que há, para a maioria das pessoas, um limite, além do qual sua constituição não pode acompanhar as exigências da civilização. Todas as que querem ser mais nobres do que sua constituição lhes permite sucumbem à neurose; elas estariam melhores se lhes fosse possível ser piores (FREUD, 1908/2015, p.373-4).

Isso se desenha assim para Freud especialmente porque a construção da cultura envolve um investimento de energia psíquica subtraído das perversões constitutivas do ser humano, sendo este um argumento que resultará na célebre formulação de que a neurose é o negativo da perversão.  Assim, apesar de por vezes Freud situar a arte como um caminho de reconciliação com os sacrifícios exigidos pela cultura3, qualquer estudo sobre o tema em sua teoria deve estar advertido de que sua reflexão sobre a estética não poderia deixar de reverberar essa ambiguidade. Se por um lado, o resultado do processo sublimatório consiste, diz Freud, em alcançar metas valorizadas socialmente, por outro lado o que ele mobiliza, como formação do inconsciente, é, de saída, potencialmente subversivo na medida em que aquilo que o caracteriza são as tendências de oposição à cultura. A sublimação corresponde a um destino pulsional que precisa trabalhar contra a pulsão; ou, dito de outro modo, corresponde a um trabalho da pulsão contra si mesma.

A ambiguidade que Freud enxerga, talvez a despeito de seu próprio desejo, na realização estética, na medida em que ela é também uma tensão constitutiva da cultura, é um problema que atravessa todo o livro Sublimação e Unheimliche, de Alessandra Parente. Assim, a autora escreve, na introdução, sobre o caráter paradoxal da sublimação: “[…] o conteúdo que emerge do inconsciente, servindo como matéria essencial para a criação, não pode mostrar sua natural face subversiva, a menos que seja amainada por ornamentos ou superfícies formais que reiteram o estado vigente das coisas” (PARENTE, 2017, p.38).  O livro toma para si a tarefa de explorar aspectos sociais e históricos presentes no período de elaboração da teoria freudiana, de modo que a autora pretende expor não apenas a maneira como Freud concebia a cultura, mas a maneira como concebia a forma assumida pela cultura na época em que viveu e que viu nascer a nova disciplina. Ela se compromete, então, com a investigação das implicações psíquicas, sociais e políticas de tais concepções. À luz dessa chave, a primeira parte do livro mostra o modo pelo qual o modelo político-cultural do Império Austro-Húngaro aparece no conceito de sublimação. A. Parente defende que aparece nesse conceito freudiano um patriarcalismo que não teria percebido seu próprio fim, fim este que teria sido gestado pela Reforma Protestante e pela Revolução Francesa. O término não elaborado dessa ordem patriarcal, cujo representante paradigmático teria sido Francisco José I, teria promovido como resultado o surgimento de um espírito melancólico.  No sentido psicanalítico, a melancolia, assim defende Freud, está relacionada a uma situação em que o Eu perde o objeto amado e não reconhece essa perda, introjetando o objeto e, consequentemente, deixando de fazer o trabalho de luto que se sucederia. Além disso, o não reconhecimento da perda seria disparado por uma culpa relacionada ao fato de o sujeito direcionar ao objeto um sentimento de ódio ou o desejo de matá-lo. Em virtude dessa ausência de reconhecimento, a hostilidade que se voltaria para o objeto inflete-se agora, na melancolia, para o próprio Eu que se regozija tanto com a manutenção do objeto quanto com sua própria punição. “A sombra do objeto caiu sobre o Eu” (FREUD, 1917/2011, p.61) foi a bela formulação que Freud encontrou, em Luto e melancolia, para esse estado de coisas. Do ponto de vista econômico (no sentido da metapsicologia), isso corresponde a uma inflação do Eu, já que lhe torna mais difícil realizar investimentos de libido em outros objetos. Essa hipertrofia do Eu, sustenta agora A. Parente, está relacionada com a sublimação.  A referência à melancolia permite à autora proceder a um diagnóstico da cultura da época, em favor do que ela convoca as análises que W. Benjamin fornece dos dramas do Barroco alemão. No Trauerspiel, o traço marcante seria a fragilidade dos soberanos, a exposição do abalo que incidira sobre o poder monárquico. Qual é a reação dos cidadãos do Império Austro-Húngaro diante desse abalo? Eles preferem, diz a autora, alhear-se das discussões políticas e investir em uma “cultura dos sentimentos” que supervaloriza as artes e a beleza. Tudo se passa aqui como se, quanto mais complexas e investidas fossem as percepções dos objetos internos, mais os indivíduos se afastassem do âmbito público. Neste lugar, estaria então localizada a função da sublimação: ela estaria a serviço de dar vazão ao mundo interno sem tocar a questão dos problemas públicos. Isso corresponde, por óbvio, a uma crítica do conceito freudiano de sublimação, pois, na medida em que consiste em um processo conduzido pelo Eu com o intuito de, simultaneamente, obter reconhecimento social e realizar de modo parcial desejos sexuais e agressivos do artista, ela submete conteúdos que seriam resistentes à civilização a uma adaptação, contribuindo, assim, para a manutenção do “estado vigente das coisas”.  Já com o Unheimliche4, o que se passa seria algo bem diferente porque sua expressão pelo artista trabalharia o conteúdo do trauma sem integrá-lo, afastando-se de valores que são reconhecidos pela sociedade de maneira não crítica e não problemática. O encaminhamento da reflexão estética na direção dessa noção teria, por esse motivo, desalojado Freud do lugar de um liberalismo conservador.  Para A. Parente, a condição cultural que tem lugar com a Primeira Grande Guerra reflete-se no encaminhamento do pensamento de Freud, que então sofreria uma alteração significativa. Após a Guerra ele retoma sua teoria do trauma, elabora o conceito de pulsão de morte e escreve Das Unheimliche. Por esse motivo, a autora declara que seu segundo objetivo no livro é mostrar a importância desse acontecimento para a reconfiguração da teoria freudiana da cultura, o que significaria que essa reconfiguração alcançaria também o conceito de sublimação que Freud mobilizava até então. Nesse período, ele teria reconhecido limites em tal conceito, tendo sido por isso que: 1- não publicou o artigo metapsicológico que teria escrito sobre a sublimação e 2- escreveu o texto O inquietante. Isso faria parte de um cenário em que a condição psíquica prevalecente deixa de ser a melancolia e passa a ser o pânico.

Como órfãos de uma cultura perdida”, escreve a autora, “os homens que vagavam melancolicamente pela vida finalmente são obrigados a olhar para o vazio deixado após a guerra e para sua condição de desamparo. Juntando migalhas, tecem narrativas desconexas, potentes e vigorosas. Ao contrário do verniz que encerava o processo sublimatório, é possível ver uma inconsistência e uma precariedade mais fiéis à seiva inconsciente (p. 40).

A tese central do livro precisa então ser assinalada ao redor disso: há uma inflexão relevante entre a sublimação e o Unheimliche na teorização que Freud dedica à arte. Eles seriam dois processos de simbolização distintos e o entendimento da transição entre ambos precisa ser referido à repercussão que a Primeira Grande Guerra teria tido no pensamento freudiano. Tal chave dará ensejo a diversas incursões por obras artísticas e, especialmente, a autora recupera essa tensão entre o destaque conferido ao ouro na pintura de G. Klimt e a exposição crua da carne na de E. Schiele. Suas obras podem ser vistas como signos de uma amplitude de contexto cultural que, segundo A. Parente, ecoa na argumentação que Freud tece entre esses dois períodos cuja separação teria sido marcada com a Grande Guerra. A passagem entre o mestre e o discípulo – isto é: entre Klimt e Schiele – sinaliza uma ruptura da nudez para com a extravagância dourada e permite perceber a queda do véu da ornamentação, conduzindo decisivamente a obra de arte à exploração do Unheimliche, o que corresponderia a uma potência mais ampla de deslocamento e disrupção relativamente à ordem social estabelecida.  Há muitos percursos possíveis para a leitura desse livro tão rico. Porém, em torno de sua tese central, A. Parente não entrega o ouro fácil. Ela exige bastante de sua leitora porque a costura da argumentação precisa ser feita constantemente. Nossos fios de coser são convidados a passear pelas duas partes constitutivas do livro, demarcadas entre si a partir dos dois momentos identificados na reflexão estética de Freud, e que acabam de ser assinalados aqui. Em torno do primeiro momento – ou seja, da primeira parte do livro –, temos sete capítulos que elaboram sucessivamente os seguintes recortes: o teatro na Viena finse-siècle, a relação entre modernidade e melancolia, o declínio da imagem do pai, o feminino na obra de Klimt, a abordagem romântica da sublimação, a relação entre Freud e Goethe, o estatuto da escrita freudiana. Já na segunda parte do livro, nos deparamos com cinco outros capítulos, sendo que o primeiro deles situa a obra de Freud diante de sua desilusão com a guerra, o segundo aborda a articulação entre o sentimento de pânico e a condição de desamparo, o terceiro investiga a figura do Unheimliche na obra de E. T. A. Hoffmann, o quarto fornece uma leitura da produção de E. Schiele e o último retorna ao Édipo mediante a referência a H. von Hofmannsthal.  Diante das etapas assim desenhadas, podemos levantar algumas questões. Por exemplo: como podemos identificar em Klimt o modelo sublimatório nos termos propostos (p. 179) e ao mesmo tempo reconhecer em sua obra um profundo questionamento do poder patriarcal (p. 180)? Isso não seria prova de que a sublimação pode trazer resultados que ultrapassam a expectativa da aceitação social? Quando se diz que a Guerra imprime também uma mudança no próprio estilo de Freud, que análise concreta seria possível fazer desse estilo? Como o esforço de referir a teoria psicanalítica à história de seu tempo, especialmente mediante o estudo das obras de arte selecionadas, permitiria avançar a sua compreensão e o modo pelo qual ela dispõe seus conceitos? Chegamos, ao final do livro, no contexto de uma discussão sobre a peça A torre, de Hofmannstahl, a um comentário de Totem e tabu que está longe de ser trivial. Mas, dali, olhamos para um certo abismo, desamparados em busca de “considerações finais” que estivessem a serviço de dizer que um certo itinerário se encerrava ali de um certo modo, ainda que abrisse atalhos para tantas outras coisas. É especialmente importante ficar atenta ao fato de que a argumentação do livro vai se voltar para o tema do feminino. Uma das pistas mais relevantes nesse sentido, além do destaque dedicado a Klimt e Schiele – e, consequentemente, a essa questão – é a epígrafe do capítulo 3, que traz um pequeno trecho de 1907 das Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena. Nele, lemos muito a  contragosto, para dizer o mínimo, que, “na opinião de Freud, a verdade é que a mulher nada ganha pelo estudo e que, no todo, a sorte delas não há de melhorar com isso. Acresce que as mulheres não podem alcançar a realização do homem na sublimação da sexualidade” (citado por PARENTE, 2017, p.141). Não se pode acusar Freud de ter sido incoerente com esse posicionamento nos textos que publicou durante sua vida. Pois conhecemos bem – nós, suas leitoras – o modo pelo qual ele se esforça por destituir as mulheres das condições ética e estética. Mas, por mais que seja difícil para nós hoje equacionar essas duas coisas, também devemos em larga medida a Freud a construção de um território em que o pensamento feminista se tornou possível. Dívida que começa, é claro, no que concerne à psicanálise, com a coragem das mulheres que ocuparam seu divã. A exemplo de Dora, com quem abri essa resenha, eram sobretudo mulheres que colocavam em cena, ainda que de modo deformado, seu desejo na clínica de Freud durante seu período inicial. Convém lembrar, a esse respeito, as seguintes palavras de J. Mitchell: só podemos entender o significado da obra de Freud

[…] se compreendermos primeiro que eram exatamente as formações psicológicas produzidas dentro das sociedades patriarcais que ele estava revelando e analisando. A oposição à história assimétrica sobre os sexos, proposta por Freud […], pode muito bem ser mais agradável no igualitarismo que ela assume e revela, mas não faz sentido algum para uma defesa mais profunda de que sob o patriarcado as mulheres são oprimidas – uma argumentação que só as análises de Freud podem nos ajudar a compreender (1974/1988, p.7).

Isso significa, dentre tantas coisas, que é ainda urgente rever, comentar, repensar Totem e tabu nessa sua direção fundamental de estabelecer uma equivalência entre cultura e masculinidade e da qual, a meu ver, Lacan não soube se desvencilhar o suficiente. A. Parente acena para essa tarefa ao encerrar seu livro, de modo que a peça de Hofmannstahl dá ensejo a localizar essa pergunta pelo legado do mito freudiano e a marcar, talvez, mais um ponto de tensão entre o território do Unheimliche e o do patriarcado, embora ainda pareça pouco vincular, como faz a autora, a posteridade de Totem e tabu apenas ao tema da insurgência.  A questão da mulher é um dos pontos mais pungentes em que a obra de Freud parece ser refém de seu contexto. Não é o caso de avançar aqui em sua exploração, mas ela força a esta pergunta de base, tão centralizada pelo livro de A. Parente: em que medida a obra reverbera seu contexto histórico, em que medida é independente dele?  No que diz respeito ao segundo dualismo pulsional, não podemos deixar de lembrar a argumentação que L. R. Monzani constrói em Freud: O movimento de um pensamento. Para ele, o conceito de pulsão de morte não pode ter sua inteligibilidade referida à Grande Guerra5, pois tratar-se-ia, com tal conceito, de um elemento presente na obra de Freud desde o início em virtude da própria caracterização da pulsão como alguma coisa que possui a tendência a eliminar a si mesma. Lemos, assim, que “[…] a ideia de uma tendência à inexcitabilidade total e absoluta era um dos ordenadores fundamentais da rede teórica elaborada por Freud, que atravessa toda a sua obra de um extremo ao outro […]” (MONZANI, 1989, p.228). Pensar a pulsão de morte como resposta a um acontecimento histórico seria, assim, para Monzani, perder de vista a lógica interna que guia o movimento do pensamento. No livro de A. Parente as cartas são, a meu ver, claramente apresentadas em um sentido oposto.    Aqui o historicismo é assumido em torno de um pressuposto metodológico articulado com a leitura de W. Benjamim, de cujas teses sobre a história ela destaca a ideia de que a “substância histórica” está presente na estruturação dos conceitos. Tal estratégia envolve, como qualquer estratégia, perdas e ganhos. Que se ganha, espero ter conseguido mostrar um pouco. É preciso acrescentar, todavia, que a autora sinaliza nesse sentido para a aposta de que o resgate da história dos conceitos possui a capacidade de indicar forças que teriam sido abafadas pelas circunstâncias em que foram construídos. Por outro lado, se se defende que conceitos são amplamente tributários do contexto vivido por aquele que os pensou e construiu, então corre-se o risco de não se poder empregá-los sob a pena da óbvia objeção de serem datados. Qual a medida de sua sobrevivência? Por que alguns teriam uma vida para além da situação em que nasceram enquanto outros não? Por que aceitamos, por exemplo, um conceito metapsicológico de inconsciente, enquanto rejeitamos as teses de Freud sobre a inferioridade da mulher? Não são todos – tal conceito e tais teses – situados no mesmo contexto histórico? Se levássemos o ponto até suas últimas consequências, não seria, aparentemente e afinal, nem despropositada nem ingênua a pergunta: que direito tem a psicanálise de ser psicanálise após Freud? Esse tipo de impasse não restou, é claro, desapercebido por A. Parente. A solução encontrada por ela parece ser formulada aproximadamente do seguinte modo: “Conceitos e noções representam ideias que atravessam os tempos, mas só ganham feições nas malhas concretas da história” (PARENTE, 2017, p.51). Mas, se é assim, a pergunta pelo estatuto do Unheimliche não permanece em aberto? Se a noção de inquietante tem na Primeira Grande Guerra sua condição de possibilidade, possuiria ela alguma força para “atravessar os tempos”? O problema poderia também ser organizado de uma maneira não menos necessária por ser aparentemente trivial: por que continuamos a reconhecer que têm lugar processos de sublimação, apesar de a melancolia ter sido atrelada ao período que antecedeu a Primeira Guerra? São questões que, a meu ver, podem, dentre tantas outras, ser construídas com o livro de A. Parente de modo a favorecer o debate e a continuidade da investigação.

Referências

FREUD, Sigmund. (1905[1901]) Análise fragmentária de uma histeria. In:____. Obras completas. Volume 6. (Trad. P. C. de Souza) São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

FREUD, Sigmund. (1908) “A moral sexual ‘cultural’ e o nervosismo moderno”. In: ____. Obras completas. Volume 8. (Trad. P. C. de Souza) São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. (Trad.: M. Carone). São Paulo: Cosacnaify, 2011.

FREUD, Sigmund. (1927) O futuro de uma ilusão. (Trad.: R. Zwick) Porto Alegre: L&PM, 2012.

LACAN, Jacques. (1952[1951]) Intervenção sobre a transferência. In: ____. Escritos (Trad.: V. Ribeiro). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

MITCHELL, Juliet. (1974) Sobre Freud e a distinção entre os sexos. In: ____. Psicanálise da sexualidade feminina. (Trad.: L. O. C. Lemos). Rio de Janeiro: Campus, 1988.

MONZANI, L. R. Freud: O movimento de um pensamento. Campinas: Editora da Unicamp, 1989.

PARENTE, Alessandra. Sublimação e Unheimliche. São Paulo: Pearson, 2017.

Notas

1 Dora estava envolvida em um enredo que implicava, além de seu próprio pai, duas pessoas casa-das entre si que Freud nomeia “Sra. K” e “Sr. K”.

2 “Quanto maior o tempo que me separa do fim desta análise, mais provável me parece que meu erro técnico consistiu na seguinte omissão: eu não percebi a tempo e não comuniquei à paciente que a mais forte das correntes inconscientes de sua vida psíquica era o impulso amoroso homosse-xual (ginecófilo) relativo à Sra. K” (FREUD op. cit., p.317).

3 Cf., por exemplo, Freud 1927/2012, p.51-2

4 O termo é por vezes traduzido por “inquietante”, outras por “estranho” e ainda por “sinistro” ou por “ominoso”.

5 Cf. nota 38, p.318

Léa Silveira – Professora de Filosofia da Universidade Federal de Lavras (UFLA), Lavras, MG, Brasil.  E-mail: [email protected]

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Filogênese na metapsicologia freudiana – CORRÊA (C-FA)

CORRÊA, Fernanda Silveira. Filogênese na metapsicologia freudiana. Campinas: Editora Unicamp, 2015. Resenha: SILVEIRA, Léa. Freud e o peso do gelo. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v.22, n.1, jan./jun., 2017.

Su, straniero, ti sbianca la paura!

E ti senti perduto!

Su, straniero, il gelo che dà foco,

che cos’è?

(Turandot, ópera de G. Puccini, libreto de G. Adami e R. Simoni)

Conhecemos bem a advertência com que V. Goldschmidt encerra seu ensaio sobre o tempo na interpretação de sistemas filosóficos, aquela que se refere ao recurso a textos póstumos no estudo da história da filosofia. Para se situar no tempo lógico e assim pretender alcançar o movimento e a estrutura do pensamento, o intérprete deve privilegiar a “obra assumida” e se precaver contra o perigo de camuflar a obra publicada a partir de argumentos apenas manuscritos. “Notas preparatórias, onde o pensamento se experimenta e se lança sem ainda determinarse”, ele escreve, “são léxeis sem crença e, filosoficamente, irresponsáveis; elas não podem prevalecer contra a obra, para corrigi-la, prolongá-la, ou coroá-la, e desse modo, falseá-la” (Goldschmidt, 1970, p.147). Ora, nenhum preceito poderia talvez ser mais equivocado, em termos de método de leitura, quando se trata de ler Freud. Se bem que seja controversa a possibilidade de aplicação de uma metodologia estrutural stricto sensu à obra freudiana, certo é que, concordando-se ou não com tal possibilidade, ninguém negaria hoje a importância de se considerar o famoso Projeto de uma psicologia, seja qual for o viés de leitura que se imprima ao lugar dessa consideração, para a compreensão do pensamento de Freud. Quer se trate de traçar a gênese dos conceitos da metapsicologia, de recuperar o movimento pelo qual Freud direcionou seus esforços iniciais para conferir inteligibilidade à neurose, ou mesmo de compreender algumas das diretrizes implicadas em sua ontologia do psíquico, nenhuma dessas discussões filosóficas maiores relativas à psicanálise poderia hoje, é seguro dizer, passar ao largo desse rascunho de 1895, descoberto na correspondência endereçada a W. Fliess e publicado pela primeira vez apenas em 1950, mais de dez anos após a morte de Freud. Muito provavelmente essa afirmação seja tomada como algo bastante trivial. O que talvez não seja trivial ou muito veiculado é que temos desde 1985 acesso a um segundo rascunho póstumo de Freud (1987). Ou, à guisa de afirmação menos inflada, talvez não seja muito conhecido o alcance do conteúdo desse segundo rascunho em sua obra, o que coloca, por si só, uma questão curiosa e bem legítima: será que há algo nele que incomoda os leitores de Freud? Conteria ele elementos de um pensamento que não se quer reconhecer como freudiano? Não pretendo responder a essa pergunta aqui, mas fato é que não é comum ver as pesquisas sobre a teoria freudiana, mesmo aquelas empreendidas no âmbito da filosofia, enfrentarem a tão espinhosa hipótese filogenética exposta sistematicamente neste que seria o décimo segundo artigo metapsicológico, mas presente de um modo mais ou menos fragmentado ao longo de toda a obra.

Insisto no ponto. Freud é um pensador célebre, entre tantas coisas, por ter escrito obras ousadas. Apesar disso, por vezes nos esquecemos do que deve ter sido, para um neurologista formado no século XIX no modelo anátomo-patológico da Universidade de Viena, publicar um livro voltado para a defesa da existência de um sentido nos sonhos e para a apresentação de um método que permitiria alcançá-lo. Ou, para alguém que tentava instaurar e consolidar um novo campo de saber e de prática, apresentar em 1905 não apenas uma defesa da existência da sexualidade infantil (o que já não era original), mas a defesa de que as características dessa sexualidade seriam distintas da sexualidade adulta, sustentando que os comportamentos sexuais desviantes – chamados à época “perversos”, listados e classificados na Psychopathia sexualis, de Krafft-Ebing 1 – seriam, não uma degenerescência, mas nossa condição de partida. O que dizer então da defesa de que a origem da cultura residiria no assassinato do pai de agrupamentos humanos arcaicos e, por essa via, de que o sentimento de culpa estaria instalado no cerne daquilo que somos hoje e desde sempre como civilização? Reconhecido o caráter prima facie insólito destas e de tantas outras formulações freudianas, esse reconhecimento não nos impede de dizer que aquela dentre as teses de Freud que tem todos os pré-requisitos para ser qualificada com o virtuosismo desse apanágio, o da ousadia, e que está profundamente vinculada a esta última pergunta (sobre a origem da cultura), permanece pouco debatida.

A hipótese filogenética é todavia onipresente em sua obra, como uma espécie de novelo cujo fio poderia nos ajudar a sair do labirinto ou fazer com que nos percamos ainda mais nele.

Isso não significa, obviamente, que não haja uma bibliografia relevante sobre o tema. Ela apenas não deixa de soar marginal quando temos em vista o vigor e a amplitude da pesquisa que se faz sobre a psicanálise freudiana. No próprio momento em que o rascunho veio à luz, I. Grubrich-Simitis, que o descobriu 2, transcreveu e editou, o fez ser acompanhado de um importante ensaio (1985), mais de apresentação e contextualização do que de interpretação. Em datas anteriores à descoberta do manuscrito, J. Laplanche e J.-B. Pontalis (1988) dedicaram à questão das fantasias originárias, que é uma questão vinculada à hipótese filogenética, um comentário que está no centro de toda uma compreensão da reflexão freudiana e F. Sulloway (1992) trouxe um encaminhamento que se distancia bastante da leitura dos psicanalistas franceses numa tentativa de fortalecer a defesa de que Freud seria, antes de tudo, um biólogo. Entre nós, o texto de L. R. Monzani (1991) é um elemento incontornável do debate e o monumental Freud, pensador da cultura, de Renato Mezan (1985), apresenta elementos e análises que convergem para a tese de que a hipótese filogenética deve ser compreendida, antes de mais nada, como uma fantasia de Freud, fantasia que seria, de seu ponto de vista, prescindível para a teoria psicanalítica.

Mas a nenhum desses textos pode ser atribuído o objetivo de explorá-la até o fim e de uma maneira interna – isto é, considerando-se as premissas e as elaborações que encontramos na própria pena de Freud. Esse é, a meu ver, o principal mérito do livro A filogênese na metapsicologia freudiana : a autora, Fernanda Silveira Corrêa, enfrenta essa questão e o faz até extrair as últimas consequências das teses assumidas por Freud a esse respeito, sem deixar de vinculá-las a um contexto teórico mais vasto.

O que é a hipótese filogenética? Grosso modo, trata-se do lugar para onde converge a ideia de que as neuroses testemunham o desenvolvimento psíquico da espécie humana, ou, da raiz e fundamento, para emprestar uma expressão do breve ensaio sobre Totem e tabu de G. Lebrun, da seguinte ideia: “o primitivo é o arquivista do original, o neuropata é o seu hermeneuta ” (Lebrun, 1983, p.98). No manuscrito encontrado em 1983, ela é chamada a responder pela origem da fixação da libido, a qual constitui uma disposição que contribui decisivamente para a determinação da neurose. Ocorre que Freud sustenta que essa fixação tanto pode ser contingente, resultante de uma história específica e individual, quanto inata. A necessidade de considerar a possibilidade de a fixação ser inata pode ser compreendida lendo-se outro texto de Freud, que é o relato do caso clínico do Homem dos Lobos. Tratase ali, entre outras coisas, da tentativa de sustentar que o coito entre os pais fora observado pela criança, tentativa que Freud arremata com um non liquet ao qual se sucede a afirmação de que ela, a observação, caso não tenha tido lugar na vida do indivíduo, foi, certamente, herdada3 Mas, então, indaga-se Freud, se a fixação pode ser inata, seria porventura possível perguntar-se pelo modo como ela se constitui exatamente como herança? Por motivos que precisariam ser considerados em outro lugar, Freud quer mostrar que o próprio inato é adquirido – se não pelo indivíduo, então pela espécie. Eis como ele apresenta esse ponto:

Onde se leva em consideração o elemento constitucional de fixação não se afasta o adquirido: ele retroage para um passado ainda mais remoto, já que se pode justamente afirmar que disposições herdadas são restos de aquisições dos antepassados. Com isso, chega-se ao problema da disposição filogenética atrás da individual, ou ontogenética, e não há contradição quando o indivíduo adiciona às suas disposições herdadas, baseadas em vivência anterior, as disposições recentes derivadas de vivências próprias (Freud, 1987, p.71).

Partindo dessa ideia, ele tenta estabelecer um paralelo entre duas séries, que são a sequência cronológica conforme a qual as neuroses surgem na vida individual (algumas eclodem caracteristicamente na primeira infância, outras na puberdade, por exemplo) e uma sequência filogenética que instalaria aquelas fixações constitutivas das disposições e que, por sua vez, seria dividida em duas gerações de indivíduos: uma que teria vivido o advento da 4 era glacial e outra posterior que teria se organizado psiquicamente por referência ao pai opressor da horda primitiva. Seriam tais os momentos desta sequência filogenética: 1a era glacial que interrompe a convivência amistosa com o meio ambiente, produzindo-se a angústia; 2a limitação da procriação decorrente da escassez de alimentos; 3o desenvolvimento da inteligência e da linguagem e a convergência dessas novas capacidades para o pai opressor; 4a efetiva castração dos filhos pelo pai; 5o estabelecimento de um laço erótico homossexual entre os filhos que teriam conseguido escapar ao domínio paterno; 6o assassinato do pai. Esses acontecimentos, vividos por nossos antepassados mais distantes, teriam sido transmitidos, como traços de memória (Freud, 2008, p.96), ao longo das gerações (sem que se encontrem, aliás, nem em Darwin nem tampouco em Lamarck, argumentos em favor da possibilidade dessa herança). Nossa neurose de cada dia seria o signo mais palpável dessa improvável transmissão.

  1. S. Corrêa mostra em seu livro que Freud associa aspectos centrais de sua teoria às heranças filogenéticas, tais como a vinculação entre prazer sexual e angústia, o caráter perverso-polimorfo da sexualidade humana, a erotização da dor e a disposição libidinal passivo-masoquista, o amor homossexual e o narcisismo masculino, a disposição para a mania e a melancolia. A serviço dessa investigação, a análise de cada fase filogenética exige que a autora confronte o rascunho com diversos outros textos de Freud dedicados às problemáticas que são centralizadas a cada vez, o que resulta na argumentação geral de que ele é coerente com o restante da obra, ou, dito de outro modo, de que o manuscrito não está nela como um corpo estranho. No desenvolvimento dessa conexão, a autora constrói diversas soluções próprias, que transcendem a letra de Freud sem transcenderem o espírito de seu pensamento. Vale-se em muitos momentos para isso de uma aproximação entre Freud e Nietzsche. É interessante acompanhar o modo pelo qual ela recorre à perspectiva genealógica para pensar a tensão entre a psicologia do pai primitivo e a da segunda geração, situando a psicologia dos filhos, estruturante da vida coletiva, como uma psicologia de ressentidos.

Destaco outro feito importante alcançado pelo livro de F. Corrêa. Além de indicar consistentemente a relevância do manuscrito sobre a filogênese para a compreensão de teses freudianas centrais, ele traça um vínculo teórico entre este rascunho e aquele outro de 1895, o rascunho do Projeto…

O caminho que permite à autora fazer isso passa pelo seguinte. Para sustentar que no ser humano a libido se transforma em angústia conforme um processo que, em larga medida, barra a satisfação sexual, será necessário, do ponto de vista da teoria do aparelho psíquico, supor um caminho de esforço de retomada da própria possibilidade dessa satisfação.

Quando Freud monta no Projeto…

um aparelho determinado empiricamente pelas próprias representações, isso corresponderia a uma forma de pensar o que poderia ser esse caminho, considerando-se que ele não pode ser determinado a partir de uma dimensão biológica da qual a sexualidade humana exatamente se afastou. O livro de F. S. Corrêa encontra uma articulação engenhosa – tanto mais que em 1895 a sexualidade infantil não está presente no horizonte teórico de Freud – entre, de um lado, esse processo de passagem de uma sexualidade passiva (pré-humana) que seria dada biologicamente e uma sexualidade objeto de uma construção representacional, e, de outro lado, o processo de construção ontogenética do aparelho psíquico que está no centro das preocupações do Projeto…

e que é um processo de acordo com o qual a alucinação (passiva) envolvida nas vivências originárias de satisfação e de dor deve ceder espaço para a ação. Escreve a autora, nesse sentido:

Freud então supõe duas coisas: um aparelho, por um lado, determinado por suas experiências de satisfação, passivo, no sentido de que se satisfaz com suas marcas das experiências; por outro, que tem de resgatar sua atividade, agora, não mais determinada pela ação biológica, mas pelas próprias representações. (Corrêa, 2015, p.148)

A percepção dessas relações permite à autora enveredar seu comentário para a exploração das semelhanças entre as duas fases da “história” 5 filogenética e as teorias da vivência de satisfação e da vivência de dor, bem como as consequências de se projetar retroativamente a sexualidade infantil perversa – e então o próprio conceito de fantasia – sobre as teses do Projeto…

Tudo isso lhe permite problematizar uma leitura mais convencional da teoria freudiana da cultura (muito pautada em O mal-estar na cultura ) na medida em que temos aí elementos para compreender que, para Freud, não é a cultura que conduz à inibição da sexualidade infantil, mas o contrário: “é a inibição da sexualidade infantil que propicia a energia para a civilização” (Corrêa, 2015, p.150). Essa inibição é pensada como algo determinado filogeneticamente. Isso significa que, na perspectiva freudiana, o ato sexual genital só é possível do ponto de vista psíquico como resultado da incidência dos poderes reativos (herdados) da vergonha e da repugnância. Sem eles, a sexualidade humana – na medida em que se encontrasse um caminho, para nós hoje insondável, para a reprodução da espécie – teria permanecido perversa polimorfa, tal como exigido pela era glacial.

Não apenas a inibição da sexualidade infantil teria origem filogenética, mas a própria sexualidade infantil em sua peculiaridade. Na primeira fase da sequência filogenética, explica a autora, a era glacial dá origem à angústia de anseio.6 “O eu, ameaçado em sua existência (…) absteve-se do investimento dos objetos sexuais e transformou a libido sexual em angústia, temendo ainda mais o real. Não se trata de uma perda do objeto, mas sim da abstenção do investimento deste” (Corrêa, 2015, p.110). Freud se referiria aqui, desse modo, a uma perda que seria anterior à própria vivência de satisfação e diria respeito a uma ruptura inaugural do ser humano com a função sexual biológica, estabelecendo-se um laço intrínseco entre pulsão 7 sexual e angústia. Essa ruptura inicial, filogenética, teria condicionado as fases subsequentes na história da espécie e possibilitado o próprio desenvolvimento psíquico, aí incluída a inscrição psíquica de objetos aos quais a libido viria se vincular. O que está em jogo aqui é, evidentemente, uma ruptura radical com a ideia de instinto. Mas a autora afirma que, por ter dado lugar a novas formações, a disposição produzida nos tempos glaciais teria se tornado permanente e, de uma disposição temporária, então contextualizada na era glacial, teria se tornado uma disposição herdada: o afastamento da ordem biológica “possibilitou novas formações (…) que serão descritas nas próximas fases da história filogenética, e que, por isso, de temporário se tornou permanente, se tornou disposição herdada, inata, presente em todos os seres humanos.” (Corrêa, 2015, p.125). A meu ver, isso parece trazer três dificuldades: 1Ora, o fato de x dar lugar a y não constitui, por si só, argumento para a defesa da permanência de x. Certamente, a construção é feita de modo retroativo: se as neuroses são tais e tais, as disposições que se tornaram permanentes foram estas.

Mas o raciocínio de Freud não parece fornecer uma justificativa para a transformação de algo temporário em algo permanente. 2Em se assumindo os pressupostos que Freud assumiu, por que a herança não teria, por sua vez, se alterado ao longo da própria história da espécie? Por que as disposições teriam permanecido as mesmas ao longo de dezenas de milhares de anos? Especialmente, por que teriam permanecido as mesmas após o término da glaciação? 3-A tese da herança não retorna à biologia? Como a herança poderia, ela mesma, não ser um fato biológico? Aquilo que se tratava aqui de alijar não retorna na posição mesma de fundamento? Se toda a questão é o afastamento da sexualidade humana da biologia, a hipótese filogenética não acaba exigindo um retorno a ela? Tudo indica que nos deparamos, ademais, com um jogo de recuos na argumentação de Freud. Se as disposições são herdadas, se todas elas estão presentes em todos os indivíduos divergindo entre eles apenas por uma questão de intensidade, se é a intensidade que, por sua vez, determina a escolha da neurose, obviamente torna-se necessário perguntar o que determinaria a intensidade da disposição.

Lebrun sugere em sua leitura, aliás também inspirada em Nietzsche, que a repetição da filogênese pela ontogênese – “herdada” por Freud de E. Haeckel e então traduzida pelo primeiro para disposições libidinais e traços psíquicos – nunca passa, na reflexão do psicanalista, de um pressuposto, por maior que seja sua potência heurística. Um pressuposto que precisa ser explicitado enquanto tal. Porque reconhecê-lo assim nos permite bem situar uma questão como a seguinte: em que medida a hipótese filogenética freudiana (assim como a argumentação de Totem e tabu ) constitui uma estratégia pretensa e explicitamente natural e tacitamente metafísica para a reprodução desse paralelo constitutivo da história do Ocidente entre, de um lado, masculino, pensamento e cultura, e de outro lado, feminino, afeto e natureza? Freud não opera aqui de fato, como sustenta Lebrun, uma sobreposição entre valores sócioculturais e normas vitais? Todos os pontos aqui ligeiramente levantados convocam a uma reflexão filosófica sobre a obra de Freud (e com ela). Sua discussão exige uma leitura adequada do rascunho do décimo segundo artigo metapsicológico. Para tal tarefa, encontramos, de uma maneira muito viva, elementos cruciais no livro de F. S. Corrêa, livro que contribui com brilho para a continuidade de uma tradição brasileira de estudos localizados na interseção entre filosofia e psicanálise. Ele é ferramenta sofisticada da qual o leitor brasileiro pode se valer, de modo privilegiado, para medir por si mesmo o peso que Freud atribui ao gelo na determinação e na compreensão dos fenômenos psíquicos.

Notas

1 Obra publicada em 1886.

2 Em 1983, na correspondência de Freud com S. Ferenczi, que foi quem sugeriu inicialmente os pressupostos da hipótese filogenética

3 Lemos: “As cenas de observação do ato sexual entre os pais, de sedução na infância e de ameaça de castração são indubitavelmente patrimônio herdado, herança filogenética, mas podem também ser aquisição da vivência individual. (…) O que vemos na história primitiva da neurose é que a criança recorre a essa vivência filogenética quando sua própria vivência não basta. Ela preenche as lacunas da verdade individual com verdade pré-histórica, põe a experiência dos ancestrais no lugar da própria experiência” (Freud, 2010, pp.129-30).

4 Freud parece supor apenas uma.

5 O início do livro traz uma discussão voltada para justificar a escolha de caracterizar a hipótese filogenética como história, em vez de mito.

6 É a tradução da autora para Sehnsuchtangst.

7 F. S. Corrêa prefere “impulso” para verter Trieb, embora empregue por vezes o adjetivo “pulsional

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Léa Silveira – Universidade Federal de Lavras, Minas Gerais. E-mail: [email protected]

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