De que lado você samba? Raça/ política e ciência na Bahia do pós-abolição | Gabriela dos Reis Sampaio, Wlamyra Ribeiro de Albuquerque

Os historiadores da escravidão no Brasil têm feito milagres com os documentos dos períodos colonial e imperial para escrever uma valiosa história dos escravizados. Está menos estabelecida, contudo, a questão sobre o que aconteceu com esses mesmos indivíduos com o advento da abolição e, especialmente, com o advento da República. E a natureza ambígua da Primeira República no Brasil ― imposta por um golpe militar contra uma monarquia que presidira a abolição ― torna a realidade dessa transição política ainda mais ambivalente. De que maneira os ideais republicanos abriram espaço para garantir direitos e autonomia aos negros, e de que maneira os mesmos ideais foram usados para impor a continuidade e o controle? Gabriela dos Reis Sampaio e Wlamyra Ribeiro de Albuquerque examinam ambos os lados desse debate para concluir que os primeiros anos da era republicana trouxeram tanto novos espaços como novos controles para a população negra; mas a análise elegante das autoras imprime uma ênfase decisiva no último aspecto e expõe as atitudes repressivas das elites republicanas para manter suas posições no topo das hierarquias racial e política. Conforme elas escrevem com eloquência, Leia Mais

África/margens e oceanos: perspectivas de história social | Lucilene Reginaldo, Roquinaldo Ferreira

Resenhar coletâneas é sempre uma tarefa difícil devido à multiplicidade de temáticas e argumentos, e ainda mais quando a obra em questão se insere em um campo fora da especialidade do resenhista. A importância do livro África, margens e oceanos me impôs, porém, o abandono da cautela, justificada pelo fato de que ele não interessa apenas aos africanistas. Publicada como parte da coleção Várias Histórias ― uma das mais tradicionais da historiografia brasileira ― e inserida na renomada tradição da história social da Unicamp, esta obra oferece ao leitor uma saborosa seleção da produção brasileira sobre a história da África entre os séculos XVI e XX, com participação ainda de estudiosos dos EUA e de Portugal. Leia Mais

Escritos de Liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista | Ana Flávia Magalhães Pinto

A narrativa sobre a circulação e experiências de homens negros livres, letrados, pensadores ativos na vida social no Rio de Janeiro e em São Paulo nas últimas décadas de vigência da escravidão é o tema predominante nessa obra, que teve sua origem no trabalho de pesquisa para o doutorado da autora, defendido na Universidade de Campinas em 2014. Agora vertida em livro e compondo o 46º volume da coleção Várias Histórias.

Marcada por um trabalho procedimental baseado na micro-história, a pesquisa é fartamente ancorada em um trabalho diligente e preciso sobre a documentação escolhida, explorada sob a autoridade de quem oportuniza ao leitor superar a visão, dominante em certa historiografia, de que se tratava de homens únicos e/ou isolados em sua geração e sociedade. Oferece-nos a autora desse livro a oportunidade de acessar, em sua proposta narrativa, uma prosopografia de negros brasileiros em atividade política e conexões urbanas, nas últimas décadas do século XIX, marcada pela “politização da raça a partir de escritos de liberdade (p.24). Leia Mais

Da senzala aos palcos: Canções escravas e racismo nas Américas, 1870-1930 | Martha Abreu

Num formato ainda raro entre nós, este livro digital que integra a Coleção História Illustrada explora as possibilidades que esta mídia oferece de conjugação de texto, som e imagem. Além das mais de 200 fotos, ilustrações de partituras, anúncios de espetáculos, notícias de jornais – o e-book traz dezenas de fonogramas e alguns vídeos com gravações de canções e espetáculos musicais do início do século XX que permitem ao leitor/ouvinte uma extraordinária experiência de interação com as fontes que sustentam o empreendimento historiográfico. A narrativa é leve, mas muito potente, favorecendo a recepção do trabalho por um público mais amplo que o acadêmico.2

A autora é Professora Titular de História das Américas da Universidade Federal Fluminense e consagrada pesquisadora da cultura popular, música negra, memória da escravidão e relações raciais no pós-abolição nas Américas. Além de inúmeros livros e artigos, já havia produzido, também de forma pioneira, vários vídeos de pesquisa que nos fazem refletir sobre novos suportes para o discurso historiográfico e ensino de História. Leia Mais

Darwinismo, raça e gênero: projetos modernizadores da nação em conferências e cursos públicos (Rio de Janeiro, 1870-1889) | Karoline Carula

A década de 1870 assinala o momento da chegada ao Brasil das “ideias novas”, como destacou Silvio Romero. Entre estas ideias, uma, o darwinismo, logrou grande sucesso entre os pensadores que buscavam fazer do Brasil um país moderno e civilizado. O darwinismo sofreu diversas apropriações e direções discursivas, sendo isto perceptível nas discussões que ocorriam nos jornais e revistas da Corte. Como exemplo dessa ampla difusão do darwinismo, temos o encontro do cientista francês Louis Couty com um fazendeiro de nome Tibiriçá. Dizia Couty (1988, p.98): “Estava eu percorrendo os títulos dos livros que via sobre a mesa de meu anfitrião, [Charles] Darwin, [Herbert] Spencer” e admitia “sem surpresa que os via ali, e que os via trazerem as marcas de uma leitura prolongada”.

O leitor que abrisse os jornais, como a Gazeta de Notícias ou o Jornal do Commercio , entre as décadas de 1870 e 1880, encontraria várias chamadas para conferências e cursos públicos na Corte que tratavam dos mais diversos assuntos discutidos pela ciência na época, quase todos perpassados pela perspectiva do darwinismo. O homem de letras desse período tinha uma ampla programação de ciência para realizar nos espaços públicos da capital do Império. Decorriam disso discussões e sociabilidades novas, permeadas pelas várias interpretações da teoria de Charles Darwin. Esse assunto é objeto de exame do livro Darwinismo, raça e gênero , escrito por Karoline Carula e publicado pela Editora Unicamp. O livro é resultado de sua pesquisa de doutoramento em história social defendida na Universidade de São Paulo. Atualmente, Carula é professora de história na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Leia Mais

Estilo moderno: humor, literatura e publicidade em Bastos Tigre | Marcelo Balaban

Integrante da coleção História Illustrada da Editora da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), é o segundo livro de autoria de Marcelo Balaban, professor do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB).1

Estilo moderno: humor, literatura e publicidade em Bastos Tigre concede centralidade à discussão dos sentidos da modernidade para Tigre e seus pares literatos. As primeiras décadas do século XX foram marcadas por transformações e indeterminações diversas, inclusive sobre a própria definição do que seria o moderno. Ascendia um novo tipo de gênero literário relacionado aos novos tempos: o humor trocadilhesco, o calemburgo, a sátira politicamente informada, o risonho em substituição ao choramingo da literatura tradicional. Leia Mais

Filogênese na metapsicologia freudiana – CORRÊA (C-FA)

CORRÊA, Fernanda Silveira. Filogênese na metapsicologia freudiana. Campinas: Editora Unicamp, 2015. Resenha: SILVEIRA, Léa. Freud e o peso do gelo. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v.22, n.1, jan./jun., 2017.

Su, straniero, ti sbianca la paura!

E ti senti perduto!

Su, straniero, il gelo che dà foco,

che cos’è?

(Turandot, ópera de G. Puccini, libreto de G. Adami e R. Simoni)

Conhecemos bem a advertência com que V. Goldschmidt encerra seu ensaio sobre o tempo na interpretação de sistemas filosóficos, aquela que se refere ao recurso a textos póstumos no estudo da história da filosofia. Para se situar no tempo lógico e assim pretender alcançar o movimento e a estrutura do pensamento, o intérprete deve privilegiar a “obra assumida” e se precaver contra o perigo de camuflar a obra publicada a partir de argumentos apenas manuscritos. “Notas preparatórias, onde o pensamento se experimenta e se lança sem ainda determinarse”, ele escreve, “são léxeis sem crença e, filosoficamente, irresponsáveis; elas não podem prevalecer contra a obra, para corrigi-la, prolongá-la, ou coroá-la, e desse modo, falseá-la” (Goldschmidt, 1970, p.147). Ora, nenhum preceito poderia talvez ser mais equivocado, em termos de método de leitura, quando se trata de ler Freud. Se bem que seja controversa a possibilidade de aplicação de uma metodologia estrutural stricto sensu à obra freudiana, certo é que, concordando-se ou não com tal possibilidade, ninguém negaria hoje a importância de se considerar o famoso Projeto de uma psicologia, seja qual for o viés de leitura que se imprima ao lugar dessa consideração, para a compreensão do pensamento de Freud. Quer se trate de traçar a gênese dos conceitos da metapsicologia, de recuperar o movimento pelo qual Freud direcionou seus esforços iniciais para conferir inteligibilidade à neurose, ou mesmo de compreender algumas das diretrizes implicadas em sua ontologia do psíquico, nenhuma dessas discussões filosóficas maiores relativas à psicanálise poderia hoje, é seguro dizer, passar ao largo desse rascunho de 1895, descoberto na correspondência endereçada a W. Fliess e publicado pela primeira vez apenas em 1950, mais de dez anos após a morte de Freud. Muito provavelmente essa afirmação seja tomada como algo bastante trivial. O que talvez não seja trivial ou muito veiculado é que temos desde 1985 acesso a um segundo rascunho póstumo de Freud (1987). Ou, à guisa de afirmação menos inflada, talvez não seja muito conhecido o alcance do conteúdo desse segundo rascunho em sua obra, o que coloca, por si só, uma questão curiosa e bem legítima: será que há algo nele que incomoda os leitores de Freud? Conteria ele elementos de um pensamento que não se quer reconhecer como freudiano? Não pretendo responder a essa pergunta aqui, mas fato é que não é comum ver as pesquisas sobre a teoria freudiana, mesmo aquelas empreendidas no âmbito da filosofia, enfrentarem a tão espinhosa hipótese filogenética exposta sistematicamente neste que seria o décimo segundo artigo metapsicológico, mas presente de um modo mais ou menos fragmentado ao longo de toda a obra.

Insisto no ponto. Freud é um pensador célebre, entre tantas coisas, por ter escrito obras ousadas. Apesar disso, por vezes nos esquecemos do que deve ter sido, para um neurologista formado no século XIX no modelo anátomo-patológico da Universidade de Viena, publicar um livro voltado para a defesa da existência de um sentido nos sonhos e para a apresentação de um método que permitiria alcançá-lo. Ou, para alguém que tentava instaurar e consolidar um novo campo de saber e de prática, apresentar em 1905 não apenas uma defesa da existência da sexualidade infantil (o que já não era original), mas a defesa de que as características dessa sexualidade seriam distintas da sexualidade adulta, sustentando que os comportamentos sexuais desviantes – chamados à época “perversos”, listados e classificados na Psychopathia sexualis, de Krafft-Ebing 1 – seriam, não uma degenerescência, mas nossa condição de partida. O que dizer então da defesa de que a origem da cultura residiria no assassinato do pai de agrupamentos humanos arcaicos e, por essa via, de que o sentimento de culpa estaria instalado no cerne daquilo que somos hoje e desde sempre como civilização? Reconhecido o caráter prima facie insólito destas e de tantas outras formulações freudianas, esse reconhecimento não nos impede de dizer que aquela dentre as teses de Freud que tem todos os pré-requisitos para ser qualificada com o virtuosismo desse apanágio, o da ousadia, e que está profundamente vinculada a esta última pergunta (sobre a origem da cultura), permanece pouco debatida.

A hipótese filogenética é todavia onipresente em sua obra, como uma espécie de novelo cujo fio poderia nos ajudar a sair do labirinto ou fazer com que nos percamos ainda mais nele.

Isso não significa, obviamente, que não haja uma bibliografia relevante sobre o tema. Ela apenas não deixa de soar marginal quando temos em vista o vigor e a amplitude da pesquisa que se faz sobre a psicanálise freudiana. No próprio momento em que o rascunho veio à luz, I. Grubrich-Simitis, que o descobriu 2, transcreveu e editou, o fez ser acompanhado de um importante ensaio (1985), mais de apresentação e contextualização do que de interpretação. Em datas anteriores à descoberta do manuscrito, J. Laplanche e J.-B. Pontalis (1988) dedicaram à questão das fantasias originárias, que é uma questão vinculada à hipótese filogenética, um comentário que está no centro de toda uma compreensão da reflexão freudiana e F. Sulloway (1992) trouxe um encaminhamento que se distancia bastante da leitura dos psicanalistas franceses numa tentativa de fortalecer a defesa de que Freud seria, antes de tudo, um biólogo. Entre nós, o texto de L. R. Monzani (1991) é um elemento incontornável do debate e o monumental Freud, pensador da cultura, de Renato Mezan (1985), apresenta elementos e análises que convergem para a tese de que a hipótese filogenética deve ser compreendida, antes de mais nada, como uma fantasia de Freud, fantasia que seria, de seu ponto de vista, prescindível para a teoria psicanalítica.

Mas a nenhum desses textos pode ser atribuído o objetivo de explorá-la até o fim e de uma maneira interna – isto é, considerando-se as premissas e as elaborações que encontramos na própria pena de Freud. Esse é, a meu ver, o principal mérito do livro A filogênese na metapsicologia freudiana : a autora, Fernanda Silveira Corrêa, enfrenta essa questão e o faz até extrair as últimas consequências das teses assumidas por Freud a esse respeito, sem deixar de vinculá-las a um contexto teórico mais vasto.

O que é a hipótese filogenética? Grosso modo, trata-se do lugar para onde converge a ideia de que as neuroses testemunham o desenvolvimento psíquico da espécie humana, ou, da raiz e fundamento, para emprestar uma expressão do breve ensaio sobre Totem e tabu de G. Lebrun, da seguinte ideia: “o primitivo é o arquivista do original, o neuropata é o seu hermeneuta ” (Lebrun, 1983, p.98). No manuscrito encontrado em 1983, ela é chamada a responder pela origem da fixação da libido, a qual constitui uma disposição que contribui decisivamente para a determinação da neurose. Ocorre que Freud sustenta que essa fixação tanto pode ser contingente, resultante de uma história específica e individual, quanto inata. A necessidade de considerar a possibilidade de a fixação ser inata pode ser compreendida lendo-se outro texto de Freud, que é o relato do caso clínico do Homem dos Lobos. Tratase ali, entre outras coisas, da tentativa de sustentar que o coito entre os pais fora observado pela criança, tentativa que Freud arremata com um non liquet ao qual se sucede a afirmação de que ela, a observação, caso não tenha tido lugar na vida do indivíduo, foi, certamente, herdada3 Mas, então, indaga-se Freud, se a fixação pode ser inata, seria porventura possível perguntar-se pelo modo como ela se constitui exatamente como herança? Por motivos que precisariam ser considerados em outro lugar, Freud quer mostrar que o próprio inato é adquirido – se não pelo indivíduo, então pela espécie. Eis como ele apresenta esse ponto:

Onde se leva em consideração o elemento constitucional de fixação não se afasta o adquirido: ele retroage para um passado ainda mais remoto, já que se pode justamente afirmar que disposições herdadas são restos de aquisições dos antepassados. Com isso, chega-se ao problema da disposição filogenética atrás da individual, ou ontogenética, e não há contradição quando o indivíduo adiciona às suas disposições herdadas, baseadas em vivência anterior, as disposições recentes derivadas de vivências próprias (Freud, 1987, p.71).

Partindo dessa ideia, ele tenta estabelecer um paralelo entre duas séries, que são a sequência cronológica conforme a qual as neuroses surgem na vida individual (algumas eclodem caracteristicamente na primeira infância, outras na puberdade, por exemplo) e uma sequência filogenética que instalaria aquelas fixações constitutivas das disposições e que, por sua vez, seria dividida em duas gerações de indivíduos: uma que teria vivido o advento da 4 era glacial e outra posterior que teria se organizado psiquicamente por referência ao pai opressor da horda primitiva. Seriam tais os momentos desta sequência filogenética: 1a era glacial que interrompe a convivência amistosa com o meio ambiente, produzindo-se a angústia; 2a limitação da procriação decorrente da escassez de alimentos; 3o desenvolvimento da inteligência e da linguagem e a convergência dessas novas capacidades para o pai opressor; 4a efetiva castração dos filhos pelo pai; 5o estabelecimento de um laço erótico homossexual entre os filhos que teriam conseguido escapar ao domínio paterno; 6o assassinato do pai. Esses acontecimentos, vividos por nossos antepassados mais distantes, teriam sido transmitidos, como traços de memória (Freud, 2008, p.96), ao longo das gerações (sem que se encontrem, aliás, nem em Darwin nem tampouco em Lamarck, argumentos em favor da possibilidade dessa herança). Nossa neurose de cada dia seria o signo mais palpável dessa improvável transmissão.

  1. S. Corrêa mostra em seu livro que Freud associa aspectos centrais de sua teoria às heranças filogenéticas, tais como a vinculação entre prazer sexual e angústia, o caráter perverso-polimorfo da sexualidade humana, a erotização da dor e a disposição libidinal passivo-masoquista, o amor homossexual e o narcisismo masculino, a disposição para a mania e a melancolia. A serviço dessa investigação, a análise de cada fase filogenética exige que a autora confronte o rascunho com diversos outros textos de Freud dedicados às problemáticas que são centralizadas a cada vez, o que resulta na argumentação geral de que ele é coerente com o restante da obra, ou, dito de outro modo, de que o manuscrito não está nela como um corpo estranho. No desenvolvimento dessa conexão, a autora constrói diversas soluções próprias, que transcendem a letra de Freud sem transcenderem o espírito de seu pensamento. Vale-se em muitos momentos para isso de uma aproximação entre Freud e Nietzsche. É interessante acompanhar o modo pelo qual ela recorre à perspectiva genealógica para pensar a tensão entre a psicologia do pai primitivo e a da segunda geração, situando a psicologia dos filhos, estruturante da vida coletiva, como uma psicologia de ressentidos.

Destaco outro feito importante alcançado pelo livro de F. Corrêa. Além de indicar consistentemente a relevância do manuscrito sobre a filogênese para a compreensão de teses freudianas centrais, ele traça um vínculo teórico entre este rascunho e aquele outro de 1895, o rascunho do Projeto…

O caminho que permite à autora fazer isso passa pelo seguinte. Para sustentar que no ser humano a libido se transforma em angústia conforme um processo que, em larga medida, barra a satisfação sexual, será necessário, do ponto de vista da teoria do aparelho psíquico, supor um caminho de esforço de retomada da própria possibilidade dessa satisfação.

Quando Freud monta no Projeto…

um aparelho determinado empiricamente pelas próprias representações, isso corresponderia a uma forma de pensar o que poderia ser esse caminho, considerando-se que ele não pode ser determinado a partir de uma dimensão biológica da qual a sexualidade humana exatamente se afastou. O livro de F. S. Corrêa encontra uma articulação engenhosa – tanto mais que em 1895 a sexualidade infantil não está presente no horizonte teórico de Freud – entre, de um lado, esse processo de passagem de uma sexualidade passiva (pré-humana) que seria dada biologicamente e uma sexualidade objeto de uma construção representacional, e, de outro lado, o processo de construção ontogenética do aparelho psíquico que está no centro das preocupações do Projeto…

e que é um processo de acordo com o qual a alucinação (passiva) envolvida nas vivências originárias de satisfação e de dor deve ceder espaço para a ação. Escreve a autora, nesse sentido:

Freud então supõe duas coisas: um aparelho, por um lado, determinado por suas experiências de satisfação, passivo, no sentido de que se satisfaz com suas marcas das experiências; por outro, que tem de resgatar sua atividade, agora, não mais determinada pela ação biológica, mas pelas próprias representações. (Corrêa, 2015, p.148)

A percepção dessas relações permite à autora enveredar seu comentário para a exploração das semelhanças entre as duas fases da “história” 5 filogenética e as teorias da vivência de satisfação e da vivência de dor, bem como as consequências de se projetar retroativamente a sexualidade infantil perversa – e então o próprio conceito de fantasia – sobre as teses do Projeto…

Tudo isso lhe permite problematizar uma leitura mais convencional da teoria freudiana da cultura (muito pautada em O mal-estar na cultura ) na medida em que temos aí elementos para compreender que, para Freud, não é a cultura que conduz à inibição da sexualidade infantil, mas o contrário: “é a inibição da sexualidade infantil que propicia a energia para a civilização” (Corrêa, 2015, p.150). Essa inibição é pensada como algo determinado filogeneticamente. Isso significa que, na perspectiva freudiana, o ato sexual genital só é possível do ponto de vista psíquico como resultado da incidência dos poderes reativos (herdados) da vergonha e da repugnância. Sem eles, a sexualidade humana – na medida em que se encontrasse um caminho, para nós hoje insondável, para a reprodução da espécie – teria permanecido perversa polimorfa, tal como exigido pela era glacial.

Não apenas a inibição da sexualidade infantil teria origem filogenética, mas a própria sexualidade infantil em sua peculiaridade. Na primeira fase da sequência filogenética, explica a autora, a era glacial dá origem à angústia de anseio.6 “O eu, ameaçado em sua existência (…) absteve-se do investimento dos objetos sexuais e transformou a libido sexual em angústia, temendo ainda mais o real. Não se trata de uma perda do objeto, mas sim da abstenção do investimento deste” (Corrêa, 2015, p.110). Freud se referiria aqui, desse modo, a uma perda que seria anterior à própria vivência de satisfação e diria respeito a uma ruptura inaugural do ser humano com a função sexual biológica, estabelecendo-se um laço intrínseco entre pulsão 7 sexual e angústia. Essa ruptura inicial, filogenética, teria condicionado as fases subsequentes na história da espécie e possibilitado o próprio desenvolvimento psíquico, aí incluída a inscrição psíquica de objetos aos quais a libido viria se vincular. O que está em jogo aqui é, evidentemente, uma ruptura radical com a ideia de instinto. Mas a autora afirma que, por ter dado lugar a novas formações, a disposição produzida nos tempos glaciais teria se tornado permanente e, de uma disposição temporária, então contextualizada na era glacial, teria se tornado uma disposição herdada: o afastamento da ordem biológica “possibilitou novas formações (…) que serão descritas nas próximas fases da história filogenética, e que, por isso, de temporário se tornou permanente, se tornou disposição herdada, inata, presente em todos os seres humanos.” (Corrêa, 2015, p.125). A meu ver, isso parece trazer três dificuldades: 1Ora, o fato de x dar lugar a y não constitui, por si só, argumento para a defesa da permanência de x. Certamente, a construção é feita de modo retroativo: se as neuroses são tais e tais, as disposições que se tornaram permanentes foram estas.

Mas o raciocínio de Freud não parece fornecer uma justificativa para a transformação de algo temporário em algo permanente. 2Em se assumindo os pressupostos que Freud assumiu, por que a herança não teria, por sua vez, se alterado ao longo da própria história da espécie? Por que as disposições teriam permanecido as mesmas ao longo de dezenas de milhares de anos? Especialmente, por que teriam permanecido as mesmas após o término da glaciação? 3-A tese da herança não retorna à biologia? Como a herança poderia, ela mesma, não ser um fato biológico? Aquilo que se tratava aqui de alijar não retorna na posição mesma de fundamento? Se toda a questão é o afastamento da sexualidade humana da biologia, a hipótese filogenética não acaba exigindo um retorno a ela? Tudo indica que nos deparamos, ademais, com um jogo de recuos na argumentação de Freud. Se as disposições são herdadas, se todas elas estão presentes em todos os indivíduos divergindo entre eles apenas por uma questão de intensidade, se é a intensidade que, por sua vez, determina a escolha da neurose, obviamente torna-se necessário perguntar o que determinaria a intensidade da disposição.

Lebrun sugere em sua leitura, aliás também inspirada em Nietzsche, que a repetição da filogênese pela ontogênese – “herdada” por Freud de E. Haeckel e então traduzida pelo primeiro para disposições libidinais e traços psíquicos – nunca passa, na reflexão do psicanalista, de um pressuposto, por maior que seja sua potência heurística. Um pressuposto que precisa ser explicitado enquanto tal. Porque reconhecê-lo assim nos permite bem situar uma questão como a seguinte: em que medida a hipótese filogenética freudiana (assim como a argumentação de Totem e tabu ) constitui uma estratégia pretensa e explicitamente natural e tacitamente metafísica para a reprodução desse paralelo constitutivo da história do Ocidente entre, de um lado, masculino, pensamento e cultura, e de outro lado, feminino, afeto e natureza? Freud não opera aqui de fato, como sustenta Lebrun, uma sobreposição entre valores sócioculturais e normas vitais? Todos os pontos aqui ligeiramente levantados convocam a uma reflexão filosófica sobre a obra de Freud (e com ela). Sua discussão exige uma leitura adequada do rascunho do décimo segundo artigo metapsicológico. Para tal tarefa, encontramos, de uma maneira muito viva, elementos cruciais no livro de F. S. Corrêa, livro que contribui com brilho para a continuidade de uma tradição brasileira de estudos localizados na interseção entre filosofia e psicanálise. Ele é ferramenta sofisticada da qual o leitor brasileiro pode se valer, de modo privilegiado, para medir por si mesmo o peso que Freud atribui ao gelo na determinação e na compreensão dos fenômenos psíquicos.

Notas

1 Obra publicada em 1886.

2 Em 1983, na correspondência de Freud com S. Ferenczi, que foi quem sugeriu inicialmente os pressupostos da hipótese filogenética

3 Lemos: “As cenas de observação do ato sexual entre os pais, de sedução na infância e de ameaça de castração são indubitavelmente patrimônio herdado, herança filogenética, mas podem também ser aquisição da vivência individual. (…) O que vemos na história primitiva da neurose é que a criança recorre a essa vivência filogenética quando sua própria vivência não basta. Ela preenche as lacunas da verdade individual com verdade pré-histórica, põe a experiência dos ancestrais no lugar da própria experiência” (Freud, 2010, pp.129-30).

4 Freud parece supor apenas uma.

5 O início do livro traz uma discussão voltada para justificar a escolha de caracterizar a hipótese filogenética como história, em vez de mito.

6 É a tradução da autora para Sehnsuchtangst.

7 F. S. Corrêa prefere “impulso” para verter Trieb, embora empregue por vezes o adjetivo “pulsional

Referências

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____________. (2008). “Moisés y la religión monoteísta” (1939 [1934-38]) In: Obras completas, volume XXIII. Traducción de J. L. Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu.

____________. (2010). “História de uma neurose infantil (‘O homem dos lobos’, 1918 [1914])”. In: Obras completas, volume 14. São Paulo: Companhia das Letras.

GOLDSCHMIDT, V. (1970). “Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos sistemas filosóficos”. In: A religião de Platão (1949). São Paulo: Difusão Europeia do Livro.

GRUBRICH-SIMITIS, I. (1987). “Metapsychology and metabiology – On Sigmund Freud’s draft Overview of the transference neuroses”. In: Freud, S. A phylogenetic fantasy – Overview of the transference neuroses. ([1915]1985). Translated by A.Hoffer and P. T. Hoffer. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press.

LAPLANCHE, J. & Pontalis, J.-B. (1988). Fantasia Originária, Fantasias das Origens, Origens da Fantasia (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

LEBRUN, G. (1983) “O selvagem e o neurótico”. In: Passeios ao léu. São Paulo: Brasiliense.

Mezan, R. (1985).Freud, pensador da cultura. São Paulo: Brasiliense.

Monzani, L. R. (1991). “A fantasia freudiana”. In: B. Prado Jr. (ed.). Filosofia da psicanálise. São Paulo: Brasiliense.

SULLOWAY, F. (1992).Freud biologist of the mind – Beyond the psychoanalytic legend. Cambridge, Massachusetts/London: Harvard University Press.

Léa Silveira – Universidade Federal de Lavras, Minas Gerais. E-mail: [email protected]

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Organizar e proteger: trabalhadores, associações e mutualismo no Brasil (séculos XIX e XX) – BATALHA; MAC CORD (TES)

BATALHA, Claudio; MAC CORD, Marcelo (Orgs.). Organizar e proteger: trabalhadores, associações e mutualismo no Brasil (séculos XIX e XX). Campinas: Editora Unicamp, 2015, 280p. Resenha de: VELASQUES, Muza Clara Chaves. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.14, n.2, mai./ago. 2016.

O livro Organizar e proteger: trabalhadores, associações e mutualismo no Brasil (séculos XIX e XX) oferece ao leitor alguns dos estudos históricos mais recentes sobre o tema. Organizado por representantes de duas gerações de historiadores do trabalho, Claudio Batalha e Marcelo Mac Cord, a publicação dá continuidade à coleção Várias Histórias, criada pelo Centro de Pesquisa em História Social da Cultura (Cecult) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Desde a sua origem, o Cecult (1995) foi um dos principais espaços de renovação da história social, dinamizando as reflexões teóricas e da produção da história no uso das metodologias e fontes, com destaque para as investigações das experiências dos trabalhadores brasileiros nos estudos do século XIX e da primeira metade do século XX.

As formas de atuação dos trabalhadores nos seus locais de trabalho; o contato dos trabalhadores pobres com outros sujeitos históricos e as estratégias de resistência no embate entre as classes sociais; os espaços de sociabilidade, lazer e formas de expressão da vida cotidiana dos trabalhadores; e os laços de solidariedade, resistência e costumes são temas presentes nas dissertações e teses produzidas pelo Centro. Observa-se nestas produções a herança dos trabalhos que inauguraram, a partir de fins dos anos 1970, no Brasil um novo olhar da história social na interpretação dos temas da história da cultura e da história do trabalho, em um estreito diálogo com a produção do historiador inglês E. P. Thompson.1

Nos anos 1980, com o fim da ditadura civil-militar no país, assistimos à reestruturação das universidades públicas e, com elas, um novo fôlego na divulgação das pesquisas na área das ciências humanas. Nos núcleos acadêmicos de pesquisas históricas este movimento teve um importante papel através das revistas que ajudaram a impulsionar o diálogo entre os pesquisadores brasileiros e, consequentemente, fomentaram a produção historiográfica. No prolongamento deste movimento, como canal de divulgação das atuais pesquisas, a coleção Várias Histórias tem colaborado para a maior visibilidade do campo da história social, buscando divulgar uma produção que ajudou a desconstruir a hegemonia das explicações mais generalizantes e ortodoxas, principalmente nos estudos da escravidão, pós-abolição, trabalho escravo, trabalho livre e experiências operárias. O livro Organizar e proteger deve ser visto a partir deste contexto.

Com capítulos articulados com base nas análises de um objeto comum – as experiências associativas dos trabalhadores dos séculos XIX e XX –, o livro apresenta uma discussão pouco conhecida para o público que está fora dos círculos das pesquisas no campo da história. Batalha e Mac Cord, ao reunirem importantes estudos de especialistas da história social do trabalho na discussão das formas de organização de ajuda mútua dos trabalhadores ao longo do Império e primeiros anos da República brasileira, trouxeram questões essenciais a respeito da cultura associativa nas cidades do Rio de Janeiro, Recife, Salvador, Maceió, Florianópolis, Campinas, além de algumas cidades do estado de Minas Gerais. Os autores dos nove capítulos da obra acabaram compondo um quadro que nos permite compreender a complexidade das associações mutualistas e das relações destas com os trabalhadores livres e escravos.

Partindo da proposição, explicitada na introdução do livro, de que as formas associativas que se multiplicaram na Europa, no decorrer do século XIX , são herdeiras das concepções iluministas do século XVIII, podemos observar nelas a defesa da vida pública e de ampliação da participação social, acompanhadas pelo sonho da meritocracia. Compreendem-se assim as bases do pensamento que conduziu a construção das diversas associações na Europa que reuniam “inteligências, virtudes e vontades” em seus grêmios literários e científicos, influenciando as experiências associativas nas colônias e ex-colônias europeias. A ideia de civilização e progresso somada aos valores e às práticas associativas terão grande peso na construção da sociedade liberal. Na sua origem europeia, o associativismo de início do século XIX refletia a fragmentação social vigente. As classes ‘subalternas’ não compunham os quadros de associados das organizações das elites letradas, e a burguesia proprietária não ficou de fora das experiências associativistas. Reuniam-se em entidades de classe que protegiam seus interesses econômicos e de atuação política. Trabalhadores também se organizaram em entidades de classe, pois entendiam que eram fundamentais para suas estratégias de sobrevivência.

Segundo os organizadores da obra, até o início dos anos 1980, os debates históricos, com raras exceções, trataram de ler o associativismo no Brasil como uma “espécie de pré-história da classe operária”. A partir de fins da mesma década, uma nova geração de historiadores debruçou-se nas pesquisas sobre o mutualismo no Brasil. Arquivos e fontes inéditos para o estudo das associações começaram a ser investigados, trazendo abordagens e interpretações renovadas sobre o associativismo, o que resultou em análises que puderam compreender as variadas formas que as práticas da ajuda mútua assumiram na nossa sociedade dos séculos XIX e XX.

Neste sentido, essas três últimas décadas foram suficientes para promover um acúmulo de conhecimento histórico sobre as formas de associativismo dos trabalhadores brasileiros e, em especial, sobre o mutualismo, como explicam os organizadores. Entendendo que as práticas do mutualismo no Brasil não são uma mera transposição dos modelos da experiência europeia, Batalha e Mac Cord chamam a atenção para as primeiras décadas do século XIX, onde encontramos a forma ‘clássica’ do associativismo no Brasil. Esta pode ser vista tanto na constituição das lojas maçônicas anteriores à independência, nas formas organizativas das elites letradas e proprietárias do Império dos anos 1830, como nas sociedades de trabalhadores artífices do mesmo período, que promoviam o auxílio mútuo e o aperfeiçoamento profissional para os seus membros.

Em um mergulho nas páginas de Organizar e proteger, fica claro para o leitor que a opção dos autores por um modelo de pesquisa que privilegia o estudo de caso permite que se chegue à principal chave de leitura para a compreensão do mutualismo como fenômeno histórico da sociedade brasileira. A chave encontra-se no olhar para as especificidades do objeto pesquisado. Os recortes de tempo e espaço nas análises revelam a dinâmica caleidoscópica das associações de ajuda mútua nas diferentes cidades estudadas.

Os autores do livro aprofundam a crítica às ‘verdades’ históricas consolidadas pela produção historiográfica anteriormente produzida, unindo-se aos avanços das pesquisas atuais sobre o mutualismo. Para Batalha e Mac Cord, os novos estudos opuseram-se às leituras que naturalizaram uma evolução das corporações de ofício como se estas necessariamente desembocassem no mutualismo e, na sequência, na formação dos sindicatos. Insistiram também na crítica à afirmação de que a construção da consciência de classe dos trabalhadores só era possível apenas a partir das organizações sindicais e partidos operários. Como importante contribuição do processo histórico da formação da classe trabalhadora no Brasil, o livro traz em seus capítulos a ampliação desse debate. As variações das conjunturas politico-sociais que envolveram as experiências mutuais impedem qualquer leitura cristalizada em busca de uma forma única do mutualismo no Brasil.

É possível compreender na leitura dos capítulos que as associações mutualistas foram criadas por diferentes grupos sociais. Algumas mutuais possuíam em seus quadros de sócios membros com identidades muito próximas, mas podia existir também em seu interior um distanciamento social muito grande entre seus membros. Esta contradição construía uma dinâmica de disputas e hierarquias no interior das associações, que também não foram por todo o tempo uma exclusividade dos trabalhadores. Ao oferecer serviços e benefícios, acabavam abrigando outros membros de origens distintas. No processo de surgimento das sociedades mutualistas ao longo da segunda metade do século XIX, as diversas experiências associativas de trabalhadores criaram identidades mais precisas no processo de manutenção de suas solidariedades e solução de conflitos.

Nas associações coloniais traduzidas por meio das irmandades leigas, pode-se ver a religião como um importante elo de união entre os trabalhadores. Junto a elas, os sentidos da solidariedade, da confiança na proteção mútua, assim como a ajuda material, mantinham hierarquias e obrigações que influenciaram as ações mutualistas na continuidade do século XIX. As experiências religiosas das irmandades mantiveram-se ativas nas formas de inclusão e exclusão social e racial existentes nas associações durante o Império, demonstrando que não só as corporações de ofício tiveram esse poder.

Outra nova questão é entendermos que a lógica associativa nem sempre esteve ancorada pelo primado da necessidade. Trabalhadores pobres sempre recorreram às mutuais, cooperativas ou sindicatos, onde podiam contar com as formas de assistência oferecidas, porém as condições de vida e trabalho podiam ser secundarizadas ou combinadas à priorização de elos que lhes conferiam identidades sociais. Logo, o mutualismo não pode ser lido apenas como a busca pela assistência na sua função previdenciária. Valores, ações festivas, rituais e outras práticas de construção de vínculos ainda menos estudadas, promovidas pelas sociedades de ajuda mútua, estavam presentes neste universo investigado pelos historiadores do livro.

Outra questão de destaque apresentada em alguns capítulos é como a condição social e a cor definiam a manutenção dos vínculos e hierarquias numa conjuntura de escravidão e fim da escravidão. Ser negro, em muitos casos, era fator de exclusão das associações. Porém, na luta contra a exclusão, observamos entidades de auxílio mútuo constituídas exclusivamente por homens pretos. Neste sentido, é grande a contribuição das pesquisas para o entendimento do complexo momento de convivência do trabalho escravo e livre para a história do trabalho. Em muitos casos, as sociedades mutualistas eram também um espaço de afirmação de identidade étnica e, muitas vezes, um indicador de status de seus sócios.

A não admissão de escravos ou libertos como sócios às vezes possuía o significado de estabelecer uma prática que procurava garantir ocupação para os sócios no mercado de trabalho e acentuar a diferenciação em relação ao trabalho escravo.

Ao resgatar as atas das reuniões e relatórios de atividades das mutuais, seus regimentos e jornais de época, as vozes dos trabalhadores puderam ser lidas e o entendimento sobre o processo de formação da classe operária ganhou profundidade. Se não existe uma simetria regional e temporal que defina esse processo uniformemente, as experiências reveladas pelas fontes apontam para relações cada vez mais ricas em suas complexidades. Fugindo dos esquemas deterministas vemos que as antigas irmandades religiosas, as sociedades mutualistas e os sindicatos operários compartilharam experiências. Não era raro no século XIX ver filiados que mantinham seus antigos laços com as irmandades religiosas e as associações de auxílio mútuo. E mais, alguns construíram elos com os sindicatos operários criados no século seguinte que incluíam vínculos com movimentos grevistas.

As investigações das experiências dos operários com as irmandades religiosas e profissionais de pretos no século XIX revelaram que o intercâmbio de práticas e ideias existiu entre eles em um nível que unia membros de diferentes cidades do país nos primeiros anos da República.

Batalha, que influenciou fortemente a geração de historiadores que compõem os capítulos do livro, afirma que não existe a possibilidade de compreensão de uma identidade da classe operária composta pelo trabalho regular e organizado sem entendermos as primeiras sociedades de artesãos que desenvolveram a ideia de valorização dos ofícios qualificados e da visão positiva de trabalho, que tratava de distinguir os trabalhadores dos pobres (sempre associados ao vício e ao ócio).

Tal discurso contribuía para um processo de construção de identidade de classe, reforçado pelas propostas dos cursos profissionalizantes desenvolvidos por algumas mutuais que herdaram esta prática das corporações de ofício para melhor qualificar os associados para o trabalho.

O papel do Estado também tem destaque nas discussões que os estudos apresentam no livro. As formas de controle que as autoridades públicas exerciam sobre as associações marcam não apenas o sentido da regulamentação do associativismo na questão da livre iniciativa, mas dizem respeito principalmente aos limites impostos pelo controle das formas de organização dos trabalhadores.

Ao colocar de lado a leitura da história política clássica, trazendo a ampliação da categoria ‘cultura’ como modo de vida (incluindo aí as experiências de sujeitos comuns nas relações cotidianas de vida e trabalho), a história do trabalho é capaz de ouvir os trabalhadores. Podemos afirmar que a leitura de Organizar e proteger oferece enorme contribuição para que isto ocorra. Mesmo partindo de concepções historiográficas nem sempre idênticas, os autores reforçam a necessidade de o pesquisador olhar para os sujeitos comuns da história. Essa atitude na pesquisa pode servir para os investigadores de diferentes áreas, principalmente para os estudiosos dos processos de trabalho da saúde.

Entender que as relações de trabalho atuais estão permeadas por preconceitos étnicos e que estes carregam formas históricas das experiências de organização dos trabalhadores, compreender que os laços de organização dos trabalhadores nem sempre são determinados pelo topo das esferas hierárquicas da administração ou da gestão do trabalho – ou ainda pela escala da formação educacional – nos aproximam da possibilidade de maior compreensão e construção do que é o trabalhador técnico da saúde na história e nos dias de hoje. Tais relações de trabalho e formas de organização dos trabalhadores transitam pelas demandas que atravessam costumes, tradições, valores, laços de solidariedade, trajetórias de vida e experiências coletivas. Não esquecendo que os trabalhadores, em suas lutas, a partir de suas necessidades e das identidades construídas, foram capazes de reinventar antigas formas de organização e autoproteção na luta por seus direitos.

Notas

1 The making of the English working, de E.P. Thompson, teve sua primeira edição em 1963 na Inglaterra, tornando-se a partir de então uma obra seminal para os estudos da história social do trabalho. A primeira edição no Brasil data de 1987 e foi lançada pela editora Paz e Terra em três volumes.

2Autores e seus respectivos capítulos: Mônica Martins (“A prática do auxílio mútuo nas corporações de ofícios no Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX”); Aldrin A. S. Castellucci (“O associativismo mutualista na formação da classe operária em Salvador, 1832–1930”); David P. Lacerda (“Mutualismo, trabalho e política: a Seção Império do Conselho de Estado e a organização dos trabalhadores na cidade do Rio de Janeiro, 1860–1882”); Ronaldo P. de Jesus (“Associativismo entre imigrantes portugueses no Rio de Janeiro Imperial”); Osvaldo Maciel (“Mutualismo e identidade caixeiral: o caso da Sociedade Instrução e Amparo de Maceió, 1882–1884”); Marcelo Mac Cord (“Imperial Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais: mutualismo, cidadania e a reforma eleitoral de 1881 no Recife”); Claudia Maria Ribeiro Viscardi (“O ethos mutualista: valores, costumes e festividades”); Rafaela Leuchtenberger (“A influência das associações voluntárias de socorros mútuos dos trabalhadores na sociedade de Florianópolis, 1886–1931”); Paula Christina Bin Nomelini (“O mutualismo e seus diversos significados para os trabalhadores campineiros nas primeiras décadas do século XX”).

Muza Clara Chaves Velasques – Fundação Oswaldo Cruz, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Operários da empreitada: os trabalhadores da construção da estrada de ferro Noroeste do Brasil (São Paulo e Mato Grosso/ 1905-1914) | Thiago Moratelli

Thiago Moratelli, natural de Bauru, quilômetro zero da Noroeste do Brasil (NOB), graduou-se em História pela Universidade do Sagrado Coração e é mestre em História Social do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas, onde defendeu sua dissertação em 2009, que resultou neste brilhante livro sobre os trabalhadores da construção da NOB.

Durante a graduação, Moratelli estagiou no Museu Ferroviário de Bauru e passou a visitar o Sindicato dos Trabalhadores das Empresas Ferroviárias de Bauru, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, para consultar fontes sobre os sindicatos de ferroviários, objeto de seu trabalho de graduação, em um contexto ainda impactado pelo processo avassalador de privatização da Rede Ferroviária Federal que provocou demissões em massa na NOB. Leia Mais

O agente comunitário de saúde: práticas educativas – MIALHE (TES)

MIALHE, Fábio Luiz (Org.). O agente comunitário de saúde: práticas educativas. Campinas: Editora Unicamp, 2011, 152 p. Resenha de: MOROSINI, Marcia Valéria Guimarães Cardoso. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.10 n. 2, p. 347-351, jul./out.2012

O livro organizado por Fábio Luiz Mialhe é uma coletânea de cinco artigos que abrangem temas que transitam entre a organização do modelo de atenção no marco da atenção primária no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), os desafios da educação em saúde, o trabalho educativo dos agentes comunitários de saúde (ACS) e o ensino em serviço.

No primeiro artigo, “A Saúde da Família no Brasil e seus agentes”, Samuel Jorge Moysés identifica e problematiza as tensões que perpassam a Estratégia Saúde da Família (ESF), localizada entre a perspectiva de reorientação do modelo de atenção e de conservação da segmentação sanitária, típica dos pacotes seletivos de atenção à saúde. Suas análises discutem os avanços obtidos com a implementação da ESF no âmbito do SUS, especialmente quanto a alguns indicadores de saúde, mas enfatizam as contradições ainda existentes no que diz respeito à organização do trabalho em saúde e às possibilidades do trabalho em equipe e da transformação das práticas de atenção à saúde, no sentido da integralidade e da equidade.

O segundo artigo, “Educação em Saúde no mundo contemporâneo”, de autoria de Fernando Lefèvre e AnaMaria Cavalcanti Lefèvre, debate a representação hegemônica de saúde, associada ao corpo doente, refletindo sobre os aspectos da sociedade contemporânea que reforçam o fenômeno da individualização da doença, especialmente a imperiosa orientação ao consumo crescentemente individualizado de mercadorias e serviços, no qual a assistência à saúde e seus produtos restauradores se inserem. Os autores propõem uma mudança de perspectiva na qual a saúde/doença possa ser vista como resultante de uma sociedade que estruturalmente gera adoecimento; criticam a hiperespecialização em curso no campo da saúde e defendem haver um conflito entre a lógica leiga e a lógica técnica/ sanitária na saúde, que poderia ser enfrentado por meio da pedagogia do diálogo de Paulo Freire, promovendo a interação dessas lógicas e a sua modificação mútua.

Helena Maria Scherlowisk Leal David, autora do terceiro artigo, “Educação em Saúde e o trabalho dos agentes comunitários de saúde”, recupera elementos importantes do trabalho do agente comunitário de saúde, no qual destaca a centralidade da dimensão pedagógica e da prática educativa. A autora ressalva, entretanto, referindo-se a Bornstein (2007) e Luckesi (1980), que a mediação educativa realizada pelo ACS pode ser tanto transformadora quanto conservadora, sendo esta última preponderante nos serviços de saúde, o que indica uma inconsistência entre discurso e prática na atenção básica.

A autora analisa ainda outras contradições que se produzem na interseção entre a origem comunitária do ACS, a visão de mundo e o conhecimento deste trabalhador, produzidos na relação com a realidade, e a perspectiva tecnicista, baseada na racionalidade biomédica que predomina no âmbito dos serviços e dos profissionais de saúde. Ela anuncia que, mesmo não sendo reconhecido ou valorizado, o trabalho do ACS como um educador popular em saúde é o papel que melhor expressa as possibilidades de compreensão, crítica e transformação da realidade praticadas pelos ACS na relação com os outros sujeitos da comunidade. Por fim, David indica a necessidade de se reinventar a prática educativa, explorando outras possibilidades de aproximação entre ciência e senso comum, experimentadas, por exemplo, na perspectiva da construção compartilhada do conhecimento, e conciliando em bases críticas o projeto histórico com as transformações produzidas no cotidiano da vida das classes populares.

A discussão sobre o trabalho educativo dos ACS ganha novos dados no artigo seguinte, “Os discursos dos agentes comunitários de saúde sobre suas práticas educativas”. Nesse texto, David e Mialhe apresentam os resultados de uma pesquisa sobre o tema, desenvolvida no município de Piracicaba, no estado de São Paulo, analisando informações obtidas por meio de entrevistas semiestruturadas com oitenta ACS integrantes das equipes de Saúde da Família desse município.

A pesquisa utiliza uma abordagem ‘qualiquantitativa’, baseada no método do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), segundo Lefèvre e Lefrève (2005), no qual o pensamento expresso na fala dos sujeitos é tratado como uma variável Os autores reforçam a necessidade de as práticas educativas desenvolvidas pelos ACS serem revistas de forma a superarem os limites da adequação normatizadora e das decisões individuais e passarem a compreender outros macrodeterminantes que concorrem para o processo saúde-doença. Indicam também que, para a construção de um novo modelo de prática educativa, é preciso que os gestores apoiem os processos de educação permanente para todos os trabalhadores da Saúde da Família, assim como a qualificação profissional dos ACS por meio do Curso Técnico de Agente Comunitário de Saúde.

David e Mialhe concluem o capítulo afirmando que o trabalho educativo do ACS se enriquece na medida em que este se aproxima e se torna capaz de expressar as contradições presentes nas condições de vida das classes menos favorecidas, sendo esta a única justificativa para mantê-lo como membro das equipes de saúde da família.

O último artigo, “Ensino em serviço para o desenvolvimento de práticas educativas no SUS pelos agentes comunitários de saúde”, de autoria de Lúcia Rondelo Duarte, fecha a coletânea apresentando o relato de várias experiências – o trabalho “A construção de um programa de educação com agentes comunitários de saúde”, o Projeto Club Pink de promoção da saúde e um projeto envolvendo alunos do Curso de Graduação em Enfermagem e agentes comunitários de saúde, visando à melhoria da qualidade de vida desses no trabalho.

Entre as questões abordadas pela autora, destaca-se a posição que assume em relação à formação dos ACS, quando esta afirma que as habilidades e potencialidades desses trabalhadores serão mais bem desenvolvidas por meio de programas educativos que priorizem suas necessidades e das comunidades em que atuam, assim como, sejam construídos com eles e não para eles. Nesse sentido, a autora aponta a importância de haver partido de um diagnóstico inicial das percepções, dificuldades e angústias dos ACS acerca do processo de trabalho e das atividades que realiza.

O texto trata ainda do trabalho educativo dos ACS e do papel dos enfermeiros na supervisão dos agentes, discorrendo sobre promoção da saúde, empoderamento, educação permanente e autoestima. Essas noções, entretanto, são tomadas de forma naturalizada, sem contemplar as contradições que as acompanham, o que termina por dificultar uma análise crítica destas em relação a elementos importantes também presentes no artigo, como a concepção ampliada do processo saúde-doença, a educação popular em saúde, a construção compartilhada do conhecimento e a emancipação.

De maneira geral, a coletânea centra-se em temas relevantes e atuais para a compreensão dos conflitos que permeiam o trabalho do agente comunitário de saúde, iluminando o papel educativo desse trabalhador e o seu potencial transformador.Dessa forma, oferece contribuições importantes para a compreensão das contradições e dos desafios percebidos nas práticas cotidianas dos agentes comunitários de saúde na principal política de orientação do modelo de atenção à saúde no SUS – a Estratégia Saúde da Família.

Referências

BORNSTEIN, Vera J. O agente comunitário de saúde na mediação de saberes. Tese de Doutorado (Saúde Pública) – Rio de Janeiro, Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fiocruz, 2007.

LEFÈVRE, Fernando; LEFRÈVE, Ana Maria C. O discurso do sujeito coletivo: um novo enfoque em pesquisa qualitativa (desdobramentos). Caxias do Sul: Educs, 2003.

LUCKESI, Cipriano C. Filosofia da educação. São Paulo: Cortez, 1980.

Marcia Valéria Guimarães Cardoso Morosini – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fiocruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]>

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