Platão não estava doente – PERINE (RFA)

PERINE, Marcelo. Platão não estava doente. São Paulo: Loyola, 2014. Resenha de: VALVERDE, Antonio José Romera. Revista de Filosofia Aurora, v.27, n.41, p.619-627, maio/ago., 2015.

A um tempo em que as publicações na área de Filosofia se multiplicam, merece grande destaque o estudo perspectivo, profundo, maduro, delineado por fina análise prospectiva dos meandros da tradição oral ou tradição indireta da obra de Platão, apresentado no livro Platão não estava doente, de Marcelo Perine.

A grandiosidade da obra é identificada de início pela sutileza do título, ao inverter a conhecida frase de Fédon — “Platão, creio, estava doente” (Fédon 59 B) —, registro da ausência do filósofo no momento das exéquias de Sócrates, tomada no título como metáfora da tradição indireta e como parte da doutrina platônica. Segundo Perine, a frase

traduz uma estratégia de ocultamento, pela qual Platão sinaliza claramente que a sua obra escrita não pretende se apresentar como um conjunto de documentos históricos, testemunho de diálogos efetivamente ocorridos, ao mesmo tempo em que lhe permite fazer do condutor dos diálogos, na maioria deles Sócrates, uma dramatis persona de si mesmo.

Perine esclarece ainda que,

como na tradição direta dos escritos Platão se esconde deliberadamente, mas revela o seu pensamento sob a máscara dos personagens literários que criou, também na tradição indireta o seu pensamento se encontra camuflado, seja pelo caráter alusivo de muitas passagens dos seus escritos, seja pelo testemunho dos seus discípulos imediatos e longínquos.

Vez que na “obra dialógica o nome de Platão aparece apenas três vezes” (p. 11-12).

O livro em pauta é o mais perfeito arremate de “um projeto de pesquisa aprovado pelo CNPq, em 2002, sobre ‘Oralidade e escritura em Platão: o estado atual do debate’”. Árdua pesquisa, disseminada aos poucos de modo regular, durante praticamente dez anos, na forma de artigos publicados em periódicos da área de filosofia, além da participação sistemática de Perine em “fóruns acadêmicos, como os bienais encontros da ANPOF e os Simpósios Interdisciplinares de Estudos Greco-romanos, organizados anualmente na PUC-SP, comunicações e conferências sobre temas e perspectivas da interpretação de Platão segundo os cânones hermenêuticos da Escola Tübingen-Milão” (p. 241). Assim, o livro é a resultante de atilada percepção do problema em pauta, a jogar luzes para além de lugares observados por outros pesquisadores e avançando a linha de pesquisa adiante do que até então se conseguira, ao amalgamar e sintetizar tais avanços. O que valida a antecipação do juízo de reconhecimento do pleno mérito do livro, que veio para se somar de modo muito expressivo à bibliografia de estudos platônicos no Brasil.

Como se estivesse com um pantógrafo em mãos, Perine traça, amplia, reduz, reproduz e analisa, em detalhes, as verossimilhanças e os ocultamentos presentes nos diálogos platônicos contrapostos à parte não escrita da obra de Platão. E muito mais. No mesmo movimento, para assegurar por números de aparecimento de termos singulares da obra platônica, o autor recorre ao Lexicon (RADICE et al., 2003) para contar ao leitor quantas vezes, por exemplo, o termo homologia — e outros tantos significativos — foi escrito por Platão em suas obras. É uma novidade no campo dos estudos filosóficos — ao menos nos nacionais — a superar o modo mais ou menos rotineiro de percorrer conceitos, diga-se, sem medi-los numericamente em sua força persuasiva, ora subjacente ora explícita nos textos autorais.

O acerto de contas entre o desenvolvimento da pesquisa e sua transformação sintética na forma livro alinha e resolve os indícios e a parte documental acerca da tese evocada por Perine, reconhecível pela afirmação de Gadamer: “O problema geral da interpretação platônica, tal como se nos apresenta hoje, funda-se sobre a obscura relação existente entre a obra dialógica e a doutrina de Platão que só conhecemos por uma tradição indireta” (p. 17). A propósito, as referências mais utilizadas por Perine para sustentar sua tese são aquelas retiradas das obras de Reale, Migliori, Szlezák, Gaiser, Krämer, Gadamer e Trabattoni, por ordem de volume de citações, respectivamente, roteirizando a importância dos estudiosos do circuito Tübingen-Milão para a compreensão da tradição indireta de Platão. Além de balizar a argumentação com múltiplas e intensas referências a Aristóteles — desde a descoberta aristotélica da “rememoração, intelecção e reconhecimento” — e, em escala menor, a Diógenes Laércio, dentre outros; de modo a espelhar o que a tradição filosófica antiga constituíra acerca da filosofia platônica. O resultado é o amalgamar, sob fina exposição de aspectos da História da Filosofia Antiga, da contextualização histórico-filosófica pormenorizada do que se desenvolve no livro.

O livro contém doze capítulos, aditados de dois Apêndices e “Conclusão”. Talvez, para melhor orientação na leitura e ambientação para recepção do problema proposto, sob muitos aspectos inovador para parte do público de filosofia, a sugestão deste Leitor é que a leitura se inicie pelo Capítulo Décimo Segundo, intitulado “A recepção da Escola Tübingen-Milão no Brasil”. Após, se retorne aos três primeiros que formam, de certo modo, a estrutura teórica de apresentação da “tradição platônica indireta”, pelas vertentes da “invenção da filosofia”, em Platão, e dos nexos entre “violência e diálogo” desde a persuasão. Em seguida, que se retome os capítulos restantes, os Apêndices e a “Conclusão”.

No Capítulo Primeiro, “A tradição platônica indireta: fonte, problemas e perspectivas”, de par com o fato de a obra escrita de Platão ser a “primeira dos filósofos antigos conservada integralmente”, Perine observa que

Platão elabora a sua filosofia e escreve sua obra no momento em que a transição da cultura oral para a cultura escrita estava praticamente concluída, portanto no momento em que uma nova “forma mental” estava se instalando definitivamente entre os gregos, não só por força da revolução cultural ligada à escrita alfabética, mas também pela revolução filosófica provocada pela atuação de Sócrates e dos sofistas, que levou ao primeiro plano dos interesses uma nova agenda cultural (p. 15-16).

Para explicitar, analisar e inferir as consequências da constatação, Perine demarca a questão da tradição indireta ou doxográfica como o conjunto dos testemunhos que foram transmitidos sobre as exposições orais de Platão, na maioria dos casos no interior da Academia… [pois] Trata-se de um conjunto de notícias que, redigidas inicialmente pelos discípulos de Platão, em seguida foram transmitidas independentemente das suas obras literárias publicadas.

Na sequência evoca a afirmação do platonista contemporâneo, H.-G. Gadamer: “O problema geral da interpretação platônica, tal como se nos apresenta hoje, funda-se sobre a obscura relação existente entre a obra dialógica e a doutrina de Platão que só conhecemos por uma tradição indireta” (p. 16-17). A propósito, do mesmo Gadamer, Perine cita — de passagem — a consideração acerca da tradição indireta: “é de uma magreza verdadeiramente esquelética” (p. 12).

Ainda no Primeiro Capítulo, Perine explora os aspectos relativos ao “contexto antigo da questão” da tradição indireta nas obras escritas de Platão o Fedro e a Carta VII. Porque o “Fedro é unanimemente considerado pelos tubinguenses-milaneses um diálogo-chave para compreender a reserva de Platão relativamente à escrita e, portanto, para explicar a opção de Platão pela oralidade dialética quando estão em questão ‘as coisas de maior valor’”. Porque, também, “no assim chamado excurso filosófico da Carta VII (340 B-345 C) Platão parece retomar algumas questões desenvolvidas no Fedro em relação ao escrito e explica alguns dos seus pontos de modo bastante didático” (p. 18-19). Os passos seguintes cuidam da abordagem do “contexto moderno da questão”, desde os problemas do “paradigma schleiermacheriano” até a “posição de Franco Trabatonni”, concluindo com considerações acerca dos cruciais “problemas de crítica das fontes” (p. 24-32). Nessa parte do livro, como em outras, a capacidade de síntese do Autor e a minúcia de detalhes histórico-filosóficos, perspectivadas a partir do enfoque do problema central, são admiráveis.

No Segundo Capítulo, “Platão e a invenção da filosofia”, após considerações acerca do período histórico, “imediatamente posterior ao período conhecido como Idade do Ferro”, passando pela inevitável informação recente, de 1939, Perine relembra que “desde a Idade do Bronze os gregos dispunham de um sistema silábico de comunicação escrita, fortemente calcado no sistema fenício, conhecido como Linear B”. Se a “fala iletrada favorecera o discurso descritivo da ação; a pós- -letrada alterou o equilíbrio em favor da reflexão”, segundo Havelock, citado pelo autor, e, além de outros fatores culturais, políticos e econômicos, “foi no interior desse clima espiritual que floresceu, primeiramente nas colônias gregas, uma nova forma de pensamento… a da filosofia” (p. 35-37).

Porém, quem são os agentes dessa nova forma de pensamento — a filosófica? No item “Sábios, cientistas ou filósofos?”, Perine responde de modo a elucidar o lugar e o papel de cada um desses atores na construção da filosofia. No item “Os logoi sokratikoi”, analisa a importância de Sócrates para a “vida filosófica” e a “filosofia”, pois “a ideia de filosofia que se poderia depreender da atuação de Sócrates não era, em primeiro lugar, a de um saber ou de um conjunto de conhecimentos, mas de um estilo de vida”. Tal sentido foi traduzido na frase pronunciada perante o tribunal que o condenaria: “Uma vida sem exame não vale a pena ser vivida”. Para concluir que de “todos os socráticos, o maior foi Platão, a ponto de relegar todos os outros ao título genérico de ‘socráticos menores’” (p. 37-48).Contudo, o mais decisivo no Capítulo em questão é a compreensão dos logoi sokratikoi elevados ao status de filosóficos. Passagem de um tipo de sabedoria ao status de filosofia.

O Terceiro Capítulo, “Persuasão, violência e diálogo”, opera como um fechamento da sustentação teórica do livro. Capítulo denso e intrincado que explora os temas nomeados com elegância e fundamentação filosófica elevada, a partir do “campo semântico de peitho”, termo registrado, segundo o Lexicon, em 584 oportunidades na obra de Platão (p. 57), migrando para o complexo problema do diálogo como forma de superação da persuasão. A tríade temática completa-se com o tema da violência, que tal qual a personagem homônima da tragédia Prometeu Acorrentado, de Ésquilo — personagem muda —, praticamente não se manifesta ou é tematizado ipsis litteris, porém subjaz eloquente em seu arrebatador silêncio, como o subtexto necessário à urdidura e à trama do Capítulo. Lembro que o tema da violência é caro ao Autor, vez que sua tese doutoral defendida na Gregoriana, em 1986, cuidou dos nexos e disparidades entre Filosofia e violência, a partir da filosofia de Eric Weil (cf. PERINE, 2013).

O texto escrito sob o gênero resenha deve, em geral, mais insinuar que mostrar todo o conteúdo da obra resenhada, de modo a seduzir pelo convencimento os futuros leitores ao exercício da boa leitura. Assim, abrevio a apresentação, lembrando que é na sequência dos capítulos quarto ao décimo primeiro que se encontra o núcleo duro da tese defendida no livro. Através desses, o Autor percorre criticamente os aspectos fundantes da tese em curso e sua explicitação por meio de argumentos construídos com toda solidez conceitual necessária. São os seguintes os títulos dos capítulos — do Quarto ao Décimo Primeiro: “O Fedro: um convite à vida filosófica”; “Tempo e ação no Político”; “Medida, paixões e dialética no Político”; “O filósofo, a política e a cidade segundo a natureza”; “O Filebo e as doutrinas não escritas”; “Gadamer e a Escola Tübingen-Milão”; “Quem são os inimigos de Filebo?” e “Fedro e Protarco e o filosofar dialético” (p. 75-231).

Contudo, merece destaque especial o Capítulo Nono, que engastalha-se ao capítulo anterior do livro, “O Filebo e as doutrinas não escritas”, para tratar com muita propriedade da importância de Gadamer e dos fundadores da Escola de Tübingen no desenvolvimento dos estudos da tradição indireta de Platão, desde o fato singular de serem amigos em comum, “Werner Jaeger, Julius Stenzel, e, particularmente, o grande filólogo Wolfgang Schädewalt”, professor em Tübingen entre 1950 e 1958, “que pode ser considerado o mentor dos principais expoentes da Escola” (p. 173), passando pela análise de minúcias da Carta VII, da dialética não escrita de Platão e da jornada do diálogo da Escola de Tübingen-Milão, realizada “trinta anos depois do colóquio organizado por Gadamer para discutir as teses da Escola de Tübingen”, cuja jornada de abertura coube a Thomas Szlezák. Porém, o capítulo encerra-se com uma interrogação relevante para o contexto dos estudos da tradição indireta. Perine questiona se ao “final das contas, Gadamer aderiu ou não ao novo paradigma hermenêutico da Escola de Tübingen-Milão?” (p. 187). Afirma em seguida que a “resposta é mais complexa do que parece”, remetendo à afirmação do próprio Gadamer supracitada, para assegurar que aquela afirmação “não pode ser tomada como uma adesão às teses da Escola”, vez que Gadamer escreveu em outra passagem:

mesmo quando se trata de doutrinas como a dos números ideais, das quais tomamos conhecimento apenas mediante a tradição indireta, deve-se manter firme que, pelas razões metodológicas adotadas, a via régia da compreensão de Platão é a que passa pelos diálogos (p. 187).

— Eis, por certo, uma ótima questão destinada aos estudiosos da obra de Platão pela vertente da tradição indireta.

Se é válido o testemunho, registro que a primeira vez que assisti a uma apresentação do Prof. Perine acerca da tradição oral em Platão foi durante a aula ministrada por ele como parte das exigências para ascensão na carreira docente à categoria de Professor Associado do Departamento de Filosofia da PUC-SP, na tarde do dia vinte e nove de junho de 2001. Na oportunidade, Prof. Perine leu e comentou quarenta páginas acerca da tradição indireta de Platão, sob ávido interesse da banca examinadora, da plateia e de familiares presentes. Certamente, a apresentação consistia em resultados iniciais da pesquisa levada a termo e transformada em livro. Por certo, também, o texto lido foi assimilado ao livro, sem identificação direta em nota de rodapé, como é caso do registro de alguns dos capítulos, anteriormente publicados em revistas científicas.

Destaque-se também a rica e atualíssima “Bibliografia”, de par com o “Índice Remissivo de Autores Antigos Citados” e o “Índice de Nomes e Autores – Com Exceção de Sócrates e de Platão”. Além das oportuníssimas e fecundas notas de rodapé. Tal padrão editorial poderia ser adotado para edições de livros de Filosofia, a superar o modelo de edições comerciais tão em voga nos dias atuais.

Importante observar que, na obra em pauta, Perine, mesmo inovando e ampliando a compreensão do problema da tradição indireta de Platão, guia-se basilarmente pela ótica do eixo Tübingen-Milão. Pois não cede em momento algum à possibilidade de outras interpretações, mesmo que de passagem, como a apresentada por Foucault (2010, p.223-234) na “Aula de 16 de fevereiro de 1983. Segunda hora”, acerca da “recusa platônica da escrita”.

Parafraseando o título de um livro em homenagem ao poeta Drummond, esta resenha poderia intitular-se “Platão rima TübingenMilão-São Paulo”. A um modo justo de inserir a cidade de São Paulo no eixo Tübingen-Milão. Afinal, tem sido na cidade de São Paulo que floresce o estudo da tradição oral do Filósofo grego, estudada e analisada, em detalhe, pelo Prof.

Perine. Contudo, o registro final da leitura da obra aponta para a trama mais que ao desenlace, pois, como quer Lima Vaz, a “bibliografia platônica é um campo sem fim justamente porque o texto de Platão e tudo o que nos foi legado em seu nome forma um tesouro inesgotável… Mas muitas (riquezas) ficam por descobrir” (p. 239-240).

Será muito oportuna, para compreensão estendida do livro, — a leitura da “Entrevista. Marcelo Perine”, cedida a Antonio Gonçalves Filho, publicada no “Caderno Cultura do Estadão” (PERINE, 2014b). Ainda acerca de Platão não estava doente, ver também a entrevista do Prof. Perine à TV PUC (PERINE, 2014c).

Referências

FOUCAULT, M. O Governo de si e dos outros: curso no Collège de France (1982- 1983). Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

PERINE, M. Filosofia e violência: sentido e intenção na filosofia de Eric Weil. 2. ed. revista e atualizada. São Paulo: Loyola, 2013.

PERINE, Marcelo. Platão não estava doente. São Paulo: Loyola, 2014a. (Estudos Platônicos).

PERINE, M. ‘Platão não estava doente’ usa personagens para revelar pensamento camuflado. Estadão, 13 jun. 2014b. Entrevista concedida a Antonio Gonçalves Filho. Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/noticias/ literatura,platao-nao-estava-doente-usa-personagens-para-revelar-pensamento-camuflado,1511490. Acesso em: 15 jan. 2015.

PERINE, M. Lançamento do livro “Platão Não Estava Doente”. TV PUC, 5 set. 2014c. Entrevista. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=A_ IKmibkuoQ>. Acesso em: 15 jan. 2015.

RADICE, R. et al. Lexicon. Milano: Biblia, 2003.

Antonio José Romera Valverde – Doutor em Educação. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, SP, Brasil. Fundação Getúlio Vargas (FGV), São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected]

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A política à meia luz: ética, retórica e ação no pensamento de Maquiavel – NUNES (RFA)

NUNES, Edison. A política à meia luz: ética, retórica e ação no pensamento de Maquiavel. São Paulo: EDUC, 2008. Resenha de: VALVERDE, Antonio José Romera. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.22, n.30, p.299-302, jan./jun, 2010.

Se, como escreveu Otto Maria Carpeaux, “a bibliografia moderna sobre Maquiavel é imensa; menos em língua portuguesa”, com a publicação de A política à meia luz: ética, retórica e ação no pensamento de Maquiavel, de Edison Nunes, há que se rever a métrica de tal constatação, sobremaneira pela excelência da reflexão expressa acerca da densa obra do Secretário Florentino.

A originalidade é percebida desde a dedicatória, in memoriam, a Lorenzo di Piero de’ Medici, Clemente Settimo, Zanobi Buondelmonti e Cosimo Rucellai – respectivamente, ao príncipe ao qual Maquiavel dedicou Il Principe, ao papa que encomendou as Istorie Fiorentine, e aos amigos do Orti Oricellari, locus dos debates filosóficos políticos, que animaram a escrita dos sumarentos Discorsi sopra la prima Deca di Tito Lívio.

Objeto de tese doutoral, o livro de Nunes é resultante do trabalho árduo de fino pesquisador e de hábil escritor a suplantar conhecidos truísmos acerca da escrita e do estilo linguístico do Cidadão Florentino. O autor exerce o duro ofício de estudar Maquiavel e perspectivá-lo – desde a retórica e a ética até a ação política. O que não é tarefa para neófito, pois implica parcimônia e destreza metodológicas para vencer o ardil da construção maquiaveliana, que se movimenta de forma ora disjuntiva ora dilemática, às margens do contraditório, sob uma forma de raciocínio distinta da lógica estreita das deduções previsíveis, além de acertar contas filosóficas com o passado e a projetar o futuro da ciência política moderna, no movimento de acompanhar a teoria e a prática do dinamismo próprio do objeto de pesquisa: a política num tempo de criação, o tempo instaurador do Renascimento, sob o arco do Humanismo Cívico.

Grande parte da originalidade do livro em pauta reside na explicitação crítica da incorporação da retórica de talhe aristotélico, e pela recomposição da trama e da urdidura da extensa obra maquiaveliana, nos nexos entre retórica e conhecimento. A retórica como eloquência, como queriam os humanistas cívicos florentinos, considerada uma das ideias-força a mobilizar, desde Petrarca, o reconhecimento de que tal instituição era necessária para dar expressão às novas concepções e ações políticas surgidas nas cidades ao norte da Itália, do século XII e seguintes, como registrou Otto de Freising. As cidades redivivas ansiavam por autonomia em relação ao Império e à Igreja, autogoverno, retomada do regime político republicano e liberdade cívica. Porém, se Petrarca, na aurora do Humanismo Cívico Florentino, como querem Hans Baron e Eugenio Garin, principiou por criticar a dureza da retórica de Aristóteles, pois este “falava” mal, o resgate dos antigos romanos pelo “falar” bem, contra a dureza técnica do Estagirita, significou retomar, exemplarmente, Cícero, filósofo e político, e, por conseguinte, o entrelaçar das concepções de vita contemplativa e de vita activa, sob nova conjugação política. E para os humanistas cívicos, a segunda sempre tendeu a ser mais relevante. Nunes destaca a antecedência dessa discussão política, no encontro dos tempos, pelas recorrências constantes a Dante. No mesmo passo em que a política é analisada sob o viés trágico.

Se o sugestivo título da obra alude a um conhecido tango, o ritmo da exposição dos argumentos, à contra luz do que se escreveu criticamente sobre Maquiavel – sem milongas –, nada deixa a desejar. Lançando mão de metáfora orgânica, o autor ilumina o que a primeira parte do título sugere, mesmo não tendo sido escrita para este fim: “A figura resultante é a de uma árvore que, a partir do tronco, desse a ver apenas a um de seus galhos e, deste, um ramo que se desdobra novamente apenas para fazer surgir o único fruto visado; o restante permanece lá, somente que encoberto, como fundo” (NUNES, 2008, p.139) – felicíssima imagem.

Dividido em três capítulos amalgamados entre si, “A política e a condição humana”, “Conhecimento e retórica: os modos da verdade” e “Ação, responsabilidade e ética”, a matizar os meandros sinuosos e caleidoscópicos do pensamento ético político do Florentino. Algumas concepções de tempo, fortuna, os conflitos de humores dos grandes e do povo, as fontes e os modos de conhecimento da política, o lugar da retórica, os fins éticos da ação política, os nexos e os estranhamentos entre lei natural e virtude de talhe civil, a ação política e o espelhamento da responsabilidade, são temas recorrentes analisados ao correr da refinada análise.

O anêmico pensamento político brasileiro – se deveras existe, como inquiriu Raymundo Faoro – aditou muito com a edição deste livro original, esclarecedor sob muitos aspectos e traspassado de erudição. Em especial, o universo acadêmico, quase sempre em compasso de espera dos modismos europeus e norte-americanos. Se os ideólogos da política brasileira do passado, como Tavares Bastos, com pretensões difusas a certa envergadura liberal, não enfrentaram nem assimilaram, no detalhe, o pensamento de Maquiavel, os pesquisadores acadêmicos, durante grande parte do século passado, andaram a reboque de tal pensamento político e só recentemente principiaram por encará-lo por sua altura intelectual e inventividade. Praticamente, só foi possível ler Maquiavel, sem as peias da fortuna crítica, a pendular entre maquiavelismo e antimaquiavelismo, desde o pós-Segunda Guerra Mundial. Não que não fosse possível lê-lo e assimilá-lo, anteriormente. Mas lê-lo pela obra em si, sem apropriações indébitas e incompreensões, fruto de prejulgamentos, é fenômeno acadêmico dos últimos 50 anos. Neste ponto, a obra de Nunes é modelar, sobremaneira pela correta assimilação da tradição crítica e síntese para além dela, a remeter o leitor aos escritos exemplares de Claude Lefort e de Gennaro Sasso. Sem descuidar das assertivas maquiavelianas compostas entre si “con una lunga sperienza delle cose moderne ed una continua lezione delle antiche avendo io con gran diligenzia lungamente excogitate et examinate, et ora in uno piccolo volume ridotte…”, recolhida de Il Principe (“Nicolaus Machiavellus magnifico Laurentio Medici iuniori salutem”. MACHIAVELLI, 1999, p.107-108), e ainda “perché in quello io ho espresso quanto io so e quanto io ho imparato per una lunga pratica e continua lezione, delle cose del mondo” (Nicolló Machiavelli a Zanobi Buondelmonti e Cosimo Rucellai Saluete. MACHIAVELLI, 1994, p.101), dos Discorsi.

À página final de A Política à meia luz, há uma passagem acerca do primeiro epitáfio ensaiado pelos amigos de Maquiavel: “movido pelo amor, sujou muita neve”. Cumpre lembrar o epitáfio da lápide de seu túmulo na Igreja Santa Croce, escrito a pedido da esposa, ao lado de outros homens ilustres de Florença: “Tanto nomini nullum par elogium”.

Referência

MACHIAVELLI, n.Il Principe e altre opere politiche. Milano: Garzanti, 1994.

————-. Opere. Tomo I. A cura de Rinaldo Rinaldi. Torino: UTET, 1999.

Antonio José Romera Valverde – Professor do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), do Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos da EAESP-FGV, São Paulo, SP – Brasil. E–mail: [email protected]

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