Educação básica: tragédia anunciada? – MARTINS; NEVES (TES)

MARTINS, André S.; NEVES, Lúcia M.V.(Orgs.). Educação básica: tragédia anunciada?. São Paulo: Xamã, 2015, 208p. Resenha de: MOTTA, Tarcísio. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.14, n.2, mai./ago. 2016.

Esta resenha foi elaborada a partir da transcrição editada da análise que realizei durante o lançamento do livro Educação básica: tragédia anunciada?, ocorrido no dia 30 de novembro de 2015, no auditório do Museu da República, Rio de Janeiro.

Meu papel aqui é pensar algumas questões a partir da leitura do livro, mas principalmente dizer que deve ser lido e divulgado, pois, assim como os outros trabalhos do Coletivo de Estudos de Política Educacional, é uma obra fundamental para nós que lutamos por uma sociedade mais justa, que queremos uma educação pública, democrática, laica, gratuita, socialmente referenciada e não sexista.

Antes de mais nada, quero apontar para duas questões fundamentais que o livro aborda e que tem a ver com o método e não exatamente com o conteúdo. A primeira questão é a tremenda aula sobre o que é o Estado. Geralmente, lemos análises que naturalizam o Estado como uma entidade burocrática que paira acima da sociedade, ou análises que tratam o Estado como mero instrumento de um determinado grupo ou classe social. O livro não faz nem uma coisa nem outra, porque consegue trabalhar com a complexidade do que é o Estado na atual fase do capitalismo no Brasil. Consegue perceber como está atravessado por interesses de classes e frações de classes que se organizam na sociedade civil, que inscrevem os seus interesses no aparelho do Estado e demonstra na prática, com aquilo que é o objeto de trabalho e de vida dos educadores, exatamente como esse processo acontece.

A segunda questão é que o livro é uma tremenda aula de história, sem abordar exatamente um período muito longo da história. Um dos grandes desafios dos historiadores – e falo do lugar de professor de história na educação básica – é conseguir mostrar para os alunos que onde parece haver só continuidade há descontinuidades, e onde parece haver descontinuidade há semelhanças que precisamos perceber. Acho brilhante a abordagem das duas conjunturas do capitalismo na contemporaneidade: o neoliberalismo ortodoxo dos anos 1980 e início dos anos 1990 e as mudanças que vieram conformar o que os autores denominam de neoliberalismo da terceira via. Em um período tão curto de tempo para nós que somos historiadores, o livro vai demonstrando como esse projeto vai se construindo com políticas específicas, com articulações, com a mudança no caráter e papel dos sujeitos políticos coletivos e como isso incide sobre as políticas educacionais enquanto política pública. Portanto, além do conteúdo sobre a educação propriamente dita, o livro é uma tremenda aula sobre o que é o Estado na sociedade brasileira e sobre a história recente do capitalismo com suas continuidades e descontinuidades, detalhes que são fundamentais para entender todo esse processo. É um livro cheio de vida, mesmo tratando de organismos, entidades e sujeitos políticos coletivos.

Estamos atualmente diante de um desmonte cada vez mais severo do projeto de educação proposto pela sociedade brasileira no contexto da redemocratização: a educação pública, gratuita, laica e socialmente referenciada, cujo marco de discussão é o ano de 1986, conforme aponta o livro. Nessa última década, cada um desses termos vem sofrendo um duro ataque.

A educação pública está sob ataque por conta da miríade de formas de privatizações que vivemos hoje. Desde a venda e compra dos pacotes de tecnologias da informação até a entrega direta da administração escolar para OSs ou para a própria polícia militar, tal qual vem ocorrendo em Goiás. Uma mistura de privatização com militarização.

A proposta de uma educação democrática vem sendo apropriada e modificada sob a perspectiva de uma democratização consentida na gestão das escolas. Os governos atualmente conseguem tolerar a eleição dos diretores das escolas públicas, mas controlam essa eleição com os cursinhos preparatórios para esses mesmos diretores, tentam limitar a possibilidade da construção das próprias candidaturas, interferem diretamente nesse processo com a cooptação dos conselhos escola-comunidade. O ataque à gestão democrática não está mais no cancelamento ou na declaração de inconstitucionalidade das leis que obrigavam a eleição de diretores, mas justamente na aplicação de uma política meritocrática que obriga a que a escola tenha um padrão determinado para atingir metas determinadas, impedindo a discussão do sentido e objetivo da própria escola com a comunidade, o que implicaria associar a lógica da democracia com a lógica da autonomia.

A educação que defendemos, além de pública, gratuita e democrática, é uma educação de qualidade, um termo que também foi apropriado e, nesse sentido, o livro é ótimo, pois demonstra como essa apropriação reduziu a ideia de qualidade, reduziu o horizonte escolar a formação para o trabalho simples. Disputar o conceito de qualidade é fundamental para nós na atualidade.

A educação laica está sob o ataque de setores do fundamentalismo religioso que interferem nos planos municipais de educação pelo país afora. Interferem para retirar o que denominam de ideologia de gênero, visando abolir das escolas qualquer possibilidade de discutir questões que são tão caras a nós.

A ideia de uma educação socialmente referenciada está sob ataque quando estamos diante de um projeto ou de projetos que se multiplicam com o nome de escola sem partidos, ou escola sem ideologia, numa lógica de um pretenso conhecimento técnico e neutro, impossível de ser praticado nas escolas. Buscam com isso retirar das escolas a possibilidade de serem lugares de desvendamento do mundo.

O livro, de certa forma, recheia esse meio do caminho. Ele permite compreender historicamente a frase que diz que a crise da educação na verdade é um projeto, demonstrando e esclarecendo esse projeto de fabricação de um determinado modelo de educação que, ao fim e ao cabo, pretende manter o status quo, de uma educação para o consenso, de uma lógica do empreendedorismo, da responsabilidade social e o quanto isso é perverso. Muitos colegas educadores das escolas públicas não percebem a perversidade desse tipo de discurso.

O livro vai além ao dar nomes aos sujeitos coletivos que poderiam ter atuado para resistir a esse projeto, mas não o fizeram. Lembro aqui, por exemplo, o quanto lutamos no Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro (Sepe), em 2005 e 2007, para desfiliar o Sepe da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) exatamente porque percebíamos que estas entidades não estavam mais à altura dos desafios colocados pela conjuntura. Mas isso nos obrigava a buscar a unidade com outros setores para romper o isolamento nacional nas lutas em defesa da educação. Hoje percebemos o quanto faz falta algum tipo de instituição que, do ponto de vista dos educadores, articule um projeto alternativo de educação. O Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes) é sempre parceiro em diversas lutas, mas, do ponto de vista da educação básica, faz muita falta um sujeito político coletivo que possa resistir a esse processo e construir um projeto contra-hegemônico que ultrapasse os muros da escola, que esteja nos sindicatos e que articule os educadores, que hoje estão no Paraná levando bombas, em São Paulo apoiando a ocupação de escolas ou no Rio de Janeiro ocupando as ruas resistindo bravamente.

Estou ansioso e esperançoso para ler a próxima parte da pesquisa, porque nós, professores da educação básica, vivemos as consequências deste processo. Fui professor da rede estadual e da rede municipal de Duque de Caxias nesse período, e um olhar atento sobre essa realidade pode ajudar a entender as relações sociais e políticas que causavam todas as angústias que nós vivemos naquele período. Tomara que a equipe consiga vencer as dificuldades de publicação para que essa segunda parte da análise sobre a educação básica possa ser veiculada.

Hoje, temos que conviver diretamente com alguns resultados dessa ‘tragédia anunciada’ discutida no livro, tais como a redução drástica do papel docente e do professor visto apenas como um mero entregador de conhecimentos prontos. No Rio de Janeiro, temos um exemplo que é muito característico desse projeto, que utiliza a tecnologia da informação para anunciar uma ferramenta que se anuncia como participativa, mas na prática diminui drasticamente a função docente: a “Educopédia”, uma plataforma ‘colaborativa’, onde os professores da rede municipal podem participar, oferecer e construir aulas, mas que na prática é utilizada para possibilitar a adoção de professores polivalentes para darem aulas de diversas matérias em sextos anos experimentais, iniciativa que vem se ampliando por toda a rede. Uma situação cruel e perversa. Alguns colegas ficaram felizes por produzir algo na Educopédia, mas a intencionalidade desse processo, além de vender mais tecnologia (que não é vista como apoio, mas como a lógica principal da educação), é retirar e reduzir o papel docente.

Outro elemento é a propaganda em torno da educação integral. Hoje todos defendem a educação integral. Na campanha de 2014 bastou que eu fizesse uma pequena crítica aos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), para que muitas pessoas passassem a criticar a minha posição sobre a educação pública. Eu estava só tentando dizer que, com a criação dos CIEPs houve o surgimento de duas redes; eu não estava criticando o projeto dos CIEPS ou a proposta de educação integral. Na verdade, isso demonstra que se criou um grande consenso que tem impedido que as pessoas se debrucem sobre os detalhes das experiências em que estão inseridas e sobre os limites da educação integral existente. Passar na linha vermelha e ver os escolões que estão sendo construídos na Maré, que serão chamados de educação integral, sem que nem mesmo os professores saibam como será feita essa educação integral, porque em nenhum momento o projeto foi discutido com aqueles que vão estar lá construindo aquela escola, é o ‘X’ da questão.

Para terminar, em um encontro com Roberto Leher, reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ele disse algo que coincide com o princípio e a lógica desse livro fantástico que está sendo lançado. Citando Marx, em “Crítica ao Programa de Gotha”, ele diz que, do ponto de vista marxista, nós devemos lutar sempre contra a ideia de que o Estado assuma o papel de educador. Ou seja, aqueles que lutam pela emancipação humana, que querem que a escola seja um espaço de ideias e desenvolvimento de valores emancipatórios, devem lutar para que o Estado dê condições para que a escola funcione, mas não podemos admitir que Estado tenha o papel de educador do povo, educador das massas, exatamente porque ele não é neutro e está atravessado pelas relações sociais de classe. E este livro mostra, de forma brilhante, como no Brasil, nesta primeira conjuntura do capitalismo neoliberal de terceira via, o Estado se propôs a ser educador a partir de uma perspectiva de classe.

Para lutar contra isso, nós educadores, precisamos apostar ainda mais na organização coletiva das escolas, na gestão radicalmente democrática, na autonomia dos profissionais da educação, na participação da comunidade escolar para definir as metas e obstáculos a serem ultrapassados, demandando do poder público as condições para que a educação de qualidade aconteça realmente. Não tenho dúvida de que a divulgação deste livro será muito importante para vencermos essa necessária e urgente luta.

Tarcísio Motta – Colégio Pedro II, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Direita para o social e esquerda para o capital: intelectuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil – NEVES (ES)

NEVES, Lúcia Maria Wanderley (Org). Direita para o social e esquerda para o capital: intelectuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil. São Paulo: Xamã, 2010. Resenha de: SOUZA, Silvana Aparecida de. Direita para o social, esquerda para o capital. Educação & Sociedade, Campinas, v.32 no.117 out./dez. 2011.

Lançado em outubro de 2010, na 32ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), pela editora Xamã, com cuidadoso prefácio de Roberto Leher e apresentação de Eurelino Coelho, Direita para o social e esquerda para o capital: intelectuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil é organizado por Lúcia Maria Wanderley Neves, professora aposentada da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV-FIOCRUZ) e coordenadora do Coletivo de Estudos de Política Educacional ligado àquela instituição. Com larga experiência e apoiada no referencial teórico marxista/gramsciano – a partir do qual tem desenvolvido um continuum de estudos e pesquisas em políticas e educação no Brasil, em suas relações com o processo permanente de reestruturação do modo de produção capitalista -, Lúcia Neves é autora, coautora e organizadora de diversos outros livros na área educacional.

Os demais autores do livro – André Silva Martins, Daniela Mot a de Oliveira, Ialê Falleiros, Marcela Alejandra Pronko, Marcelo Paula de Melo, Marco Antonio Carvalho Santos, Maria Teresa Cavalcanti de Oliveira e Vanja da Rocha Monteiro – integram o Coletivo de Estudos de Política Educacional coordenado por Lúcia Neves.

Tendo como recorte as relações superestruturais que produzem e reproduzem a alienação na sociedade capitalista, o título do livro per si já é bastante provocador e, por isso, um convite instigante à leitura.

Escrito de forma coletiva, seus autores, em uma demonstração de domínio do pensamento do italiano Antonio Gramsci, tratam do processo de formação e de atuação instrumental dos intelectuais orgânicos ou tradicionais, individuais ou coletivos1 na sociedade, sobretudo no momento histórico atual.

Para além do alto domínio conceitual e teórico, os autores demonstram, do ponto de vista histórico, a constituição e os determinantes do processo de propagação das ideias que fundamentam “a nova pedagogia da hegemonia”;, mais especificamente na sociedade capitalista contemporânea. Tratam do contexto da Guerra Fria, apontando um conjunto de ações desenvolvidas na época de ouro do capitalismo para efetivar uma verdadeira campanha cultural, cujo objetivo era difundir na intelectualidade ocidental não só a aceitação como a exaltação do “americanismo”; como modo de vida. O objetivo de tal campanha era fazer com que o poder de formação de opinião das massas que a intelectualidade detém se voltasse a favor do American way of life.

A partir daí, os autores listam uma série de instituições de natureza pública e/ou privada, criadas na América Latina e no Brasil, com o objetivo de orientar as políticas públicas, a tomada de decisão dos governos e constituir um quadro de servidores públicos de carreira formados a partir de uma concepção desenvolvimentista, mas, antes de tudo, anticomunista.2

Na década de 1970 teve início um processo de crise no interior do capitalismo que levou ao fortalecimento da doutrina neoliberal e que propiciou, em pouco tempo, a “mundialização do capital, com seus exorbitantes ganhos financeiros e suas desastrosas consequências no aprofundamento das desigualdades sociais”; (Neves, 2010, p. 66).

Data desse período a origem da Terceira Via, que se apresentou como alternativa indispensável para “suprimir o potencial de conflito dos primeiros regimes de direita radical (Thatcher e Reagan), eliminando a oposição ainda existente à hegemonia neoliberal”; (idem, ibid., p. 70), quando passou a ocorrer a formação de uma nova subjetividade coletiva que resultou em uma nova sociabilidade, que tem se traduzido em uma prática política da direita para o social e da esquerda para o capital.

Nesse contexto, o grupo, que é profícuo em cunhar expressões – condição que acaba por caracterizar sua forma bem humorada de produzir explicações que retratem sofisticadamente o real -, utilizando-se metaforicamente de um fenômeno da natureza, chama de “pororoca do novo mundo”; o encontro de correntes políticas distintas, à direita para o social e à esquerda para o capital, que atualmente se traduz na chamada Terceira Via.

A partir de então, os autores se propõem a explicitar os fundamentos teóricos que dão sustentação ao projeto neoliberal da Terceira Via no Brasil e, para tanto, realizam a análise dos princípios da “pedagogia da hegemonia”;. Para esta tarefa, selecionaram obras clássicas de vários teóricos, de diferentes áreas, que sustentam, com alguma diferença entre eles, que a atual fase do capitalismo se configura como um mundo novo. Isso está de acordo com a teoria do fim das classes e de que o trabalho não é mais categoria central para explicação da realidade e sim o conhecimento, a linguagem, a informação ou a cultura. Os teóricos analisados são: Alain Touraine, Adam Schaff, Robert Putnam, Peter Drucker, Boaventura de Souza Santos, Manuel Castells, Edgar Morin, Zygmunt Bauman, Michel Hardt e Antonio Negri.

Na última parte do livro os autores se ocupam da análise da influência dos “intelectuais coletivos”; com atuação na formação política e escolar da sociedade brasileira contemporânea, tendo escolhido para o estudo de caso a Fundação Getúlio Vargas (FGV) e o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE), ambos pelo papel formador dos quadros intelectuais brasileiros, tanto para a área pública quanto para a privada.

No que diz respeito à FGV, que, desde sua criação em 1944, forma gestores para o setor público e para o campo empresarial privado, sua influência é extensa na definição de políticas públicas no país, pois muitos de seus professores e pesquisadores ocuparam e ocupam cargos importantes no governo federal; a Fundação, por intermédio de seus vários institutos, tem prestado permanentemente consultoria e assessoria econômica a governos brasileiros; possui vasta e diversificada linha editorial de revistas científicas, entre as mais conceituadas do país na área de Administração e Economia; organiza e realiza uma diversidade enorme de eventos, congressos e seminários nacionais e internacionais; nos últimos anos, cresceu sobremaneira sua atuação na prestação de serviços de consultoria para o setor privado, assim como na oferta de serviços educacionais (cursos de curta duração, de graduação e pós-graduação, nas modalidades presencial e a distância), formando gestores agora também para a chamada economia social, solidária ou ligada ao Terceiro Setor.

Já o IBASE foi inicialmente administrado por exilados e políticos cassados pela ditadura militar, que retornaram ao país com a anistia política de 1979, e tinha por principal objetivo prestar assessoria aos movimentos sociais comprometidos com a democratização do Brasil. No entanto, com o passar do tempo, seus objetivos foram mudando e hoje o Instituto atua, sobretudo, junto às organizações não governamentais (ONG) voltadas à prestação de serviços sociais para segmentos populacionais considerados “excluídos”.

Assim, a pesquisa demonstra que tanto a FGV quanto o IBASE, na condição de organizações da sociedade civil, atuam, cada uma a seu modo, como intelectuais coletivos na legitimação da nova pedagogia da hegemonia, de acordo com os preceitos da Terceira Via.

É com esta análise da influência dos intelectuais coletivos que os autores optam por terminar o livro sem tecer as conhecidas “considerações finais”, ou mesmo uma síntese, presente no encerramento da maioria de estudos dessa natureza. Porém, considerando que Direita para o social… constitui uma sequência articulada às discussões realizadas em trabalho anterior (A nova pedagogia da hegemonia), arriscaria dizer que a forma como o livro termina sugere que teremos uma espécie de trilogia, pois é sabido que o Coletivo de Estudos de Política Educacional continua cada vez mais bem articulado e está com nova pesquisa em andamento, que, norteada pelo mesmo referencial teórico, agora contempla a análise do chão da realidade escolar pública brasileira.

Enfim, o livro coordenado por Lúcia Neves se apresenta como uma referência importante para o debate da esquerda educacional brasileira, por sua relevância teórica, pela pertinência das relações que estabelece, mas, sobretudo, por não perder a perspectiva da ruptura com a lógica destrutiva do capital.

Notas

1. Antonio Gramsci entendia por intelectuais indivíduos ou organizações formadoras, organizadoras e/ou propagadoras, em diferentes linguagens, da cultura e das ideias que fundamentam uma determinada concepção de mundo e de classe. Portanto, em acordo com a conceituação gramsciana, um partido, um sindicato, a Igreja ou qualquer outra organização podem assumir, em qualquer momento, a condição de intelectual coletivo.

2. Observe-se que, de acordo com a teoria gramsciana, a sociedade civil pode dar certa direção às políticas públicas, por meio de organizações que se convertem em intelectuais coletivos, o que, em sua teoria de Estado, denomina-se “aparelhos privados de hegemonia”. No entanto o autor esclarece que a classe dominante tem melhores condições de fazer isso do que a classe que luta no plano contra-hegemônico (Gramsci, 2000).

Referências

GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. v. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.         [ Links ]

NEVES, L.M.W. (Org.). A nova pedagogia da hegemonia: estratégias do capital para educar o consenso. São Paulo: Xamã, 2005.         [ Links ]

NEVES, L.M.W. (Org.). Direita para o social e esquerda para o capital: intelectuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil. São Paulo: Xamã, 2010.         [ Links ]

Silvana Aparecida de Souza – Doutora em Educação e professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). E-mail: [email protected]

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Trabalho intensificado nas federais: pós-graduação e produtivismo acadêmico – SGUISSARDI; SILVA JUNIOR (ES)

SGUISSARDI, Valdemar; SILVA JUNIOR, João dos Reis. Trabalho intensificado nas federais: pós-graduação e produtivismo acadêmico. São Paulo: Xamã, 2009. 271p. Resenha de: Educação & Sociedade, Campinas, v.32 no.115 abr./jun. 2011.

A publicação do livro Trabalho intensificado nas federais: pós-graduação e produtivismo acadêmico, pela editora Xamã, não poderia ter sido mais oportuna. A precarização do trabalho docente e de pesquisa, especialmente nas instituições federais de ensino superior (IFES), chegou às raias do insuportável, com consequências avassaladoras não só para o professor, mas para o próprio desenvolvimento científico brasileiro. Em poucas palavras, além de prejudicar a condição do professor-pesquisador, também falhou no crescimento e eficácia científico-tecnológica. Aliás, é necessário registrar que a editora tem mantido importante portfólio de publicações que contribuem decisivamente para a discussão desse tema fundamental da educação no Brasil.

Os autores, João dos Reis Silva Júnior e Valdemar Sguissardi, possuem vasto conhecimento sobre o assunto, não só por publicações anteriores,1 mas fundamentalmente pela atuação como educadores. Silva Júnior é professor e pesquisador do Departamento de Educação e da Pós-Graduação, na mesma área, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com pós-doutorado em Sociologia Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Sguissardi também foi professor da UFSCAR, tendo-se aposentado como professor titular. Seus mestrado e doutorado em Ciências da Educação foram realizados na Universidade de Paris X (Nanterre).

Na pesquisa que empreenderam, os autores centraram o foco no setor de pós-graduação das instituições federais do Sudeste, polo mais concentrado de universidades e local onde a intensidade da precarização do trabalho docente e de pesquisa é mais evidente, embora saibamos que esse mal afeta – miseravelmente – todo o país.

A principal característica do estudo, e que merece ser ressaltada em primeiro lugar, é a tese dos autores de que “o movimento reformista na esfera educacional é parte das mudanças da racionalidade capitalista propiciadas pela mundialização do capital” (p. 255). Ou seja, o movimento reformista em geral não é estudado de modo isolado, como se não fizesse parte de um todo social que tem um sentido e um significado concretos. Sem desconsiderar as especificidades de cada país, a reforma é analisada como um movimento mundial, que mantém traços de identidade em todos eles, a partir da racionalidade da transição para essa mundialização do capital. Sem esquecer jamais que este processo se dá sob a influência do poder dos Estados Unidos.

Em relação à reforma educacional no Brasil, duas hipóteses principais orientaram o estudo dos autores: por um lado, as mudanças no processo acadêmico-científico e a intensificação do trabalho do professor-pesquisador; por outro, a centralidade da pós-graduação como polo gerador da efetiva reforma universitária das IFES, que resulta no produtivismo acadêmico, instrumental e ideológico. Portanto, a reforma promoveu mudanças na identidade da instituição universitária e de seus professores. Essas mudanças forjaram a emergência de uma “nova” universidade e as consequências disso para os professores estenderam-se para outros tempos de sua vida, invadindo a esfera pessoal e familiar. Essa extrapolação foi um de seus principais prejuízos.

Para a demonstração dessas hipóteses, Sguissardi e Silva Júnior desenvolveram suas reflexões com base na historicidade do tema e do foco teórico e empírico de vários autores do século XIX até os dias atuais. O resultado desse caminho de pesquisa demonstrou que o núcleo da ideologia do produtivismo acadêmico, como política de Estado e de cultura institucional, tem, no mínimo, duas graves implicações: no âmbito filosófico, o pragmatismo; no âmbito econômico, a mercadorização da ciência e da inovação tecnológica. Consequência: a pós-graduação – nestes moldes – tornou-se o polo gerador de uma reforma da instituição universitária que tende a colocá-la a reboque do mercado.

Os autores denunciam que este processo é sutil, mas extremamente eficaz, pois, ao usar a pós-graduação como núcleo gerador das mudanças na prática universitária, provoca um efeito multiplicador até a base da pirâmide educacional. Dito de outro modo, as reformas educacionais nos demais níveis e modalidades – da reforma do Estado à reforma da municipalização escolar – são orientadas por documentos produzidos pelos mesmos mentores que orientam a reforma no ensino superior. Portanto, os documentos que pautam a reforma, da educação infantil à pós-graduação e à indução da pesquisa pelo CNPq e sua regulação pela CAPES, são quase todos produzidos pelos mesmos especialistas e pesquisadores. Não é, enfim, um processo aleatório. Ao contrário, é um movimento geral muito bem articulado e amarrado.

Essa radical mudança da identidade da universidade promove continuamente um acréscimo do trabalho imaterial produtivo (pesquisa aplicada) do professor.

É este trabalho que garante boas notas aos programas de pós-graduação, segundo os critérios estabelecidos pelo CNPq. A perversidade do mecanismo é, grosso modo, o seguinte: o professor-pesquisador, por sua “própria vontade”, a fim de atingir as metas estabelecidas, aumenta em muitas horas seu trabalho semanal. E a universidade, que “deveria ser o lugar privilegiado da desalienação” (p. 264), promove justamente o oposto: por indução das políticas governamentais, “predomina o pragmatismo e, com ele, a utilidade alienante a que se submete grande parte dos professores” (idem).

O prefaciador do livro, Francisco de Oliveira, ressalta estes aspectos centrais da obra com sua habitual erudição, oferecendo ao leitor não só uma síntese privilegiada da pesquisa dos autores, como um quadro histórico do surgimento de universidades multisseculares tais como Bolonha, Sorbonne e Oxford, localizando o surgimento tardio das universidades brasileiras: “O Brasil é um país ‘tardio’: capitalismo tardio, independência tardia, abolição tardia, industrialização tardia e… universidade tardia” (p. 12). Com base nos dados fornecidos por Silva Júnior e Sguissardi, Oliveira aproveita a oportunidade para demonstrar que, no Brasil, enquanto se elevam os coeficientes de produção intelectual por docente, rebaixam-se os recursos para a universidade, numa contradição “bem brasileira” (p. 13).

É importante registrar que esses dados fornecidos pelos autores trazem um panorama das universidades hoje, com o propósito de dar ao leitor a compreensão da função estratégica das IFES. Isso é um aspecto fundamental do livro, pois apresenta uma parte bastante árida – porém, absolutamente necessária – da minuciosa pesquisa empreendida por eles, apresentando os números da precarização do trabalho docente nas IFES do Sudeste. A riqueza dos quadros estatísticos merece ser avaliada com tempo e dedicação, pois podem servir de base a uma ampliação ainda maior das reflexões suscitadas pelo livro. E isso apenas nos dois primeiros capítulos. Nos capítulos como um todo, são pelo menos cinco as questões mais importantes trabalhadas, e respondidas, pela pesquisa dos autores: a forma como as instituições concretizam as diretrizes e metas oficiais, como sujeito coletivo, por meio da prática universitária; os traços mais significativos do processo da identidade institucional pós-reforma; o trabalho e a identidade do professor universitário transformado em função da reforma; a reação do professor à racionalidade utilitária e pragmática da reforma no âmbito cotidiano; e as consequências da precarização do trabalho do professor-pesquisador para sua vida pessoal.

Para finalizar, os autores fazem uma instigante referência à cegueira, citando o polêmico romance de José Saramago, Ensaio sobre a cegueira. Sguissardi e Silva Júnior quiseram caracterizar em seu livro a “cegueira branca” de parte significativa dos professores-pesquisadores na “crua realidade da nova universidade em construção dos tempos FHC-Lula”, que se preocupam em enriquecer seu currículo Lattes e cumprir à exaustão os deveres de ofício. O livro, fruto de árduo trabalho de investigação, contribui para a percepção de que esse professor também “se fatiga, adoece e ‘morre’ um pouco a cada minuto de suas práticas universitárias” (p. 254). Tomara que seja possível – pois é urgente – desvelar a mente, ler, refletir e tomar consciência da gravidade das questões denunciadas pelos autores.

Nota

1. Publicaram conjuntamente o livro Novas faces da educação superior no Brasil –reforma do Estado e mudança na produção (São Paulo: Cortez; EDUSF, 2001). Silva Júnior publicou também Pragmatismo e populismo na educação superior no Brasil de FHC e Lula(São Paulo: Xamã, 2005) e Reformas do Estado e da educação no Brasil de FHC (São Paulo: Xamã, 2003). Sguissardi também publicou Universidade, fundação e autoritarismo: o caso da UFSCAR (São Carlos: EDUFSCAR; Estação Liberdade, 1993) e organizou duas coletâneas: Avaliação universitária em questão – reformas do Estado e da educação superior (São Paulo: Autores Associados, 1997) e Educação superior: velhos e novos desafios (São Paulo: Xamã, 2000).

Paulo Douglas Barsotti – Doutor em História Econômica e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). E-mail: [email protected]

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As esquinas perigosas da História: Situações revolucionárias em perspectiva marxista | Valério Arcary

Em nossos dias, o tema da revolução socialista é capaz de provocar constrangimento em boa parcela da intelectualidade e das organizações políticas da esquerda brasileira. Vivemos em um período no qual a maioria das organizações de esquerda reduziu as expectativas de transformações políticas e sociais e decidiu seguir o conselho que sugere “contrair o horizonte utópico”.

Para Valério Arcary, no entanto, o tema da revolução social continua atual. Ele julga que a democracia, mesmo assentada no sufrágio universal, é incapaz de esgotar as possibilidades e as necessidades, sentidas pelo proletariado, de promover transformações sociais e políticas. Leia Mais