Bourdieu ou l’Héritage républicain récusé – ÉLIARD (ES)

ÉLIARD, Michel. Bourdieu ou l’Héritage républicain récusé. Toulouse, France: Presses Universitaires du Mirail, 2014. [Collection Sociologiques]. Resenha de: BASILIO, Juliana Regina. Os dilemas da escola republicana. Educação & Sociedade, Campinas, v.36 n.130 jan./mar. 2015.

Considerado um marco na construção da teoria da dominação cultural a que o primeiro autor dedicaria a maior parte de sua vida, o livro Os Herdeiros, de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, muito contribuiu para fazer avançar a nossa compreensão sobre o lugar social da escola contemporânea. É ali que aparece pela primeira vez o conceito de capital cultural, apoiado por resultados de uma pesquisa empírica de fôlego. Não é, portanto, surpreendente que seu cinquentenário tenha dado ocasião para um retorno reflexivo sobre essa obra, marcado por seminários e várias publicações. O livro do professor Michel Éliard, Bourdieu ou l’Héritage républicain récusé (Bourdieu ou a recusa do legado republicano), é uma das muitas iniciativas desse tipo que tiveram lugar na França entre 2013 e 2014.

Michel Éliard é professor emérito da Universidade de Toulouse II – Mirail, França, onde trabalhou desde 1967, depois de colaborar em alguns dos trabalhos desenvolvidos no Centre de Sociologie Européenne. Participou, em particular, da pesquisa que deu origem a obra Os Herdeiros, tendo também coautorado o livro Les étudiants et leurs études (Paris: La Haye, Mouton) publicado no mesmo ano. Éliard fala, portanto, com a autoridade de quem se diz conhecedor dos bastidores e o tom confessional, ainda que um tanto ressentido, com que se rende à tarefa de discutir o livro revela isso:

Je n’ai jamais raconté mon rôle dans cette histoire mais le cinquantenaire de ce best-seller est l’occasion de donner ma part de vérité sur l’origine d’un livre qui continue à défrayer la chronique et qui, en 2014, le fera peut-être encore. (Éliard, 2014, p.38)

É nomeando-se como defensor da escola republicana que Éliard analisa a obra de Bourdieu. Seu argumento pode ser resumido da seguinte maneira: (i) a escola pública francesa é um legado precioso da III República, resultado de uma longa luta que se inicia com a Revolução de 1789; (ii) negar seu valor positivo implicaria na destruição da própria escola pública; (iii) a sociologia da escola, proposta por Bourdieu, faz uma crítica a essa escola, negando seu valor positivo, e, por isso, colabora para sua destruição.

Temos aqui, portanto, a afirmação da escola pública como um bem para a sociedade. Uma ideia, aliás, compartilhada por muitos outros autores. O que é mais surpreendente, e talvez menos sustentável, é a ideia de que críticas aos limites do modelo de escola republicana, forjado no século XIX, colocariam a perder esse legado.

Essa é uma chave importante para entender o livro que, desde o título, está organizado para tratar a obra de Bourdieu como um caso de recusa do legado republicano. A própria iconografia é mobilizada para estruturar esse argumento. Assim, a capa do livro traz a fotografia do autor e a de Condorcet, lado a lado. Se Condorcet aparece imponente, com um olhar focado e pose feita, Bourdieu aparece sentado, meio curvado, com os cotovelos sobre as pernas, as mãos juntas encostadas entre o queixo e a boca, a testa franzida e um olhar perdido, sem pose. Nada ao acaso, Condorcet (1743-1794), matemático e filósofo iluminista, que construiu um projeto de reforma da instrução pública na França em 1792, representa, ali, perante um Bourdieu que parece mergulhado em incertezas, o orgulho e a convicção da positividade do legado republicano.

Bourdieu ou l’héritage républicain récusé é composto de nove capítulos mais introdução e conclusão. Penso que podemos lê-lo em duas partes: uma primeira, composta pelos capítulos que apresentam, cada um a seu turno, os livros em que Bourdieu desenvolve progressivamente sua análise da escola: Les Héritiers (cap. II), La Réproduction (cap. III), La Noblesse d’État (cap. IV), e o livro póstumo Sur l’État (cap. VI). A segunda parte dedica-se de maneira mais minuciosa aos processos que levaram à construção da escola republicana francesa no decorrer da terceira república, às características específicas dessa instituição e, por fim, à discussão sobre a importância, para a classe trabalhadora, do controle do estado sobre o valor do diploma (caps. VIII e IX).

Ao longo do texto, Éliard confronta a crítica bourdieusiana aos limites da escola republicana com a defesa do seu legado positivo. A partir do capítulo VIII, no entanto, o argumento fica mais claro e compreendemos que, segundo Éliard, atribuir a perpetuação das desigualdades sociais à escola republicana, como faz a obra de Bourdieu, significa contribuir para sua decadência (p.12).

Além dessa crítica de fundo, que equivale a dizer que Bourdieu não compreendeu a natureza dessa instituição preciosa e particular, o autor procura mostrar que as conclusões de Os Herdeiros não são devidamente amparadas pelos resultados de pesquisa apresentados no livro. Os questionários utilizados não seriam suficientes para provar as hipóteses de Bourdieu e Passeron (p.39). Aplicados apenas aos estudantes dos cursos de filosofia e sociologia, não poderiam sustentar a generalização dos resultados para outras áreas. Além disso, haveria falhas na análise histórica, já que os autores teriam negligenciado a importância da conquista representada pela expansão do ensino gratuito e laico para a luta de classes.

Éliard desenvolve nesse ponto uma visão alternativa sobre a relação das classes trabalhadoras com a escola. Ele argumenta que a escola republicana é diretamente responsável pelo acesso das camadas menos privilegiadas à escola, ao garantir a autonomia desses grupos com relação à escola privada. Como consequência, a escola republicana ofereceria a importante contribuição de permitir a todos a apropriação das “conquistas culturais da humanidade”, isto é, da “cultura burguesa” (p.48).

Ele procura mostrar que à medida que foi tendo acesso à escola – por meio principalmente das fileiras profissionais -, a classe trabalhadora movimentou-se para que sua qualificação fosse reconhecida e para que os salários fossem atrelados a ela. A luta social que garantiu essas conquistas seria, para o autor, um atestado da capacidade emancipadora da classe trabalhadora. As reformas das décadas de 1960 e 1970, que instauraram o colégio único, aboliram as fileiras técnicas no nível de ensino que corresponde ao que se considera no Brasil como a segunda parte do ensino fundamental em nome da igualdade de chances. Residiria aí, para Éliard, o grande problema enfrentado pela escola republicana no final do século XX, já que a criação da escola única teria destituído os trabalhadores de armas muito eficazes para enfrentar a dominação capitalista.

Seria por não reconhecer a importância dessa conquista que Bourdieu e Passeron puderam tomar a origem social como variável explicativa para as desigualdades de desempenho escolar, abrindo caminho, segundo Éliard, não só para as reformas das décadas de 1960 e 1970, mas para os experimentos mais recentes em políticas de discriminação positiva que, segundo ele, além de não terem contribuído para a diminuição das desigualdades, teriam abalado o próprio edifício da igualdade de direitos.

O argumento de Éliard revela com bastante precisão a posição ambígua em que se encontram os analistas da escola republicana pelo menos desde que autores como Bourdieu revelaram sua contribuição à reprodução social: como enfrentar os seus limites sem abdicar dos seus benefícios? Acredito que esse livro apresenta esse problema embora não contribua para avançar na sua solução.

Referências

BOURDIEU, P.; PASSERON, J.-C.; ÉLIARD, M. Les étudiants et leurs études. Paris: La Haye, Mouton, 1964. [ Links ]

BOURDIEU, P.;. PASSERON, J.-C Les Héritiers: les étudiants et la culture. Paris: Les Éditions de Minuit, 1964. [Collection le sens commun]. [ Links ]

BOURDIEU, P.;. PASSERON, J.-C La reproduction: éléments pour une théorie du système d’enseignement. Paris: Les Éditions de Minuit, 1970. [Collection Le sens commun]. [ Links ]

BOURDIEU, P. La Noblesse d’Etat: grandes écoles et esprit de corps. Paris: Les Éditions de Minuit, 1989. [ Links ]

BOURDIEU, P. Sur L’État. Cours au Collège de France, 1989-1992. Paris: Seuil, 2012. [Collection Raisons d’agir]. [ Links ]

ÉLIARD, M. Bourdieu ou l’Héritage républicain récusé. Toulouse, France: Presses Universitaires du Mirail, 2014. [Collection Sociologiques]. [ Links ]

Juliana Regina Basilio – Doutoranda Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP., Brasil. Bolsista Capes e Fapesp. E-mail de contato: <pepebasilio@gmail.com>.

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Tragtenberg: 10 anos de encantamento – VALVERDE (ES)

VALVERDE, Antonio José Romera (Org.). Tragtenberg: 10 anos de encantamento. São Paulo: Educ; Fapesp, 2011. Resenha de: HELOANI, Roberto. Maurício Tragtenberg: 10 anos de encantamento. Educação & Sociedade, Campinas, v.35 n.126 jan./mar. 2014.

O livro Maurício Tragtenberg: 10 anos de encantamento, organizado por Antonio José Romera Valverde, teve sua origem no evento homônimo que ocorreu na PUC-SP, em novembro de 2008. O acontecimento contou não só com a participação de professores e pesquisadores ligados à academia, como também com a presença de ex-alunos, artistas, sindicalistas, além de representantes dos mais variados setores civis da sociedade. Como se explica tão vasta e diversificada confluência? Será devido à genialidade e vastíssima cultura deste grande intelectual e mestre? A sua capacidade de sintetizar e reinterpretar ideias que vão de Weber a Bakhunin, tangenciando e, às vezes, passando por Marx? Decerto, tal fato é de suma relevância, mas não explica tudo. O carisma, o humanismo e o profundo sentimento de solidariedade e compaixão de Maurício Tragtenberg por certo também foram decisivos.

A riqueza do material, organizado neste livro que tenho a honra de resenhar, está relacionada ao tipo de abordagem crítica que Tragtenberg fazia de temas complexos da política, da economia, do mundo do trabalho, do sindicalismo e da defesa de minorias. A crítica independente e a liberdade de pensamento são marcas características desses escritos, um traço muito raro nos dias de hoje.

Os escritos expressam a capacidade que Maurício – como gostava de ser chamado – tinha de transpor seu conhecimento, de forma inteligível e provocativa, para públicos diferenciados. Se Maurício Tragtenberg debruçava-se sobre complexas e alentadas obras clássicas, muitas delas escritas em idiomas estrangeiros, entre eles o alemão, o inglês, o italiano e o francês, com a mesma dedicação e respeito escrevia para o povo e pelo povo em jornais dirigidos à grande massa de trabalhadores, como o Notícias Populares, no qual escreveu por muitos anos uma coluna intitulada “No Batente”, ou mesmo os artigos enviados a veículos como a Folha de S. Paulo e o Jornal da Tarde, voltados a um público mais intelectualizado. Isso dá uma ideia exata do que estamos querendo dizer.

No entanto, devo destacar aqui que Tragtenberg, com sua grande erudição e o amor aos livros, tinha um profundo respeito à inteligência e à capacidade de crítica dos trabalhadores. Naquele contexto, muitos trabalhadores foram movidos a pensar e a refletir criticamente sobre a exploração do trabalho, a política, a economia e a organização sindical. Ao comunicar-se de forma clara com todos os públicos e ao fazer sua opção pela defesa da causa dos trabalhadores, das minorias e dos desfavorecidos, o professor, sem ser professoral, ia se distanciando da recorrente “pedantocracia universitária” e do “salto alto da vida acadêmica”.

Ao mesmo tempo – como já dissemos – , Maurício Tragtenberg colaborou com o jornal Folha de S. Paulo, direcionado a outro tipo de leitor, fazendo história com artigos em que divertidamente colocava Weber e Maquiavel, redivivos, respondendo às suas perguntas, como repórter, no que concerne à realidade do Brasil.

Também como colaborador do O São Paulo e da Folha de S. Paulo (FSP), este grande mestre soube demonstrar que o compromisso com a ética deve estar acima de interesses pessoais ou de questões raciais. Apesar de ascendência judaica, sempre reconheceu a necessidade da criação de um Estado palestino: “[…] Da mesma maneira que defendemos o direito de Israel subsistir como Estado, defendemos o direito dos palestinos construírem seu Estado […]” (O São Paulo, 19 jul. 1982). Ou ainda: “[…] O fato é que sob o nazismo houve o holocausto judaico, isso não justifica haver holocausto de libaneses, drussos, palestinos. O terrorismo israelita no Líbano, com bombas de bilha, de fragmentação, de fósforo, de nada contribui para manter a tradição humanística judaica” (FSP, 21 set. 1982).

É esta figura humana de importância ímpar o centro de reflexão dessa bela obra. Como menciona Antonio Valverde, o livro compõe-se de quatorze capítulos. Treze de análises de aspectos focais da obra deste sociólogo e um depoimento. Logo de início aparece o capítulo “A obra de Maurício Tragtenberg – in memoriam”, do professor da Universidade Estadual de Maringá, Antonio Ozaí da Silva, que realça o compromisso deste intelectual que tratava de temas históricos sociológicos, políticos e educacionais “sempre com o compromisso militante e uma perspectiva política crítica à sociedade capitalista e às concepções autoritárias sobre o socialismo”. É uma análise da obra de Maurício que nos lembra da forte influência do autor em tantos intelectuais, professores e militantes e deságua na “reafirmação de uma concepção de socialismo libertário”.

Doris Accioly e Silva constitui o capítulo “Polifonia e unidade na obra-trajeto de Maurício Tragtenberg”. Neste instigante texto, a autora propõe uma releitura da obra deste mestre, considerando-se a categoria “afinidades eletivas”. Ademais, nos lembra que “A obra de Maurício Tragtenberg espelha alguns dos traços que Ítalo Calvino (1994) definiu como inerentes aos clássicos: a virtude de ser sempre atual e permeável a novas interpretações, podendo ser localizada na genealogia de outros clássicos […]”, e também dá destaque para a profunda coerência de pensamento e ação desse profícuo escritor.

No capítulo seguinte, José Henrique de Faria, no texto intitulado “Burocracia, poder e ideologia”, nos ensina qual era a tese central do grande mestre no que concerne à Teoria Geral da Administração (TGA): esta é uma ideologia! Isto faz com que esta TGA seja “uma teoria dominante”.

Em seguida, Ana Paula Paes de Paula assina um texto cujo título já diz uma verdade em si: “A magia de Maurício Tragtenberg”. Assim, a autora esclarece ao leitor qual a posição de um dos melhores tradutores de Weber no que concerne à burocracia: é como pensador libertário que Tragtenberg procura analisar Weber: a crítica da burocracia que faz se baseando em Weber está ligada ao projeto emancipatório anarquista no qual aposta. Lembra-nos que, além de ser um árduo defensor da autogestão, na figura das organizações horizontais, também segue a tendência anarquista no que concerne ao desenvolvimento de iniciativas de natureza educacional, discutidas por Proudhon, Robin e Ferrer.

Por sua vez, Lucia Bruno, no texto “O político e o econômico na obra de Maurício Tragtenberg”, demonstra como o referido autor nunca se esqueceu da relação entre a esfera do político e a do econômico. Mais que isso, lembra-nos que a ideia de que são os próprios trabalhadores autonomamente organizados que devem conduzir suas lutas nega a ideia de “vanguarda” sempre combatida por Maurício, que terá a coragem de criticar o bolchevismo, mormente na sua vertente estalinista.

Com sinceridade e honestidade intelectual, Maria Ester de Freitas resgata aspectos da obra e vida de Maurício no capítulo “Tragtenberg e a questão ideológica da Teoria Geral da Administração”. Ela afirma que o seu ex-professor na Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP) era um docente cuidadoso com os estudantes: dava aulas maravilhosas, não faltava, nem atrasava e, não raro, passava do horário ou continuava aula no corredor com seus discípulos. Era um orientador prestimoso, mesmo quando não era o docente-orientador oficial. Contudo desabafa: “Foi um privilégio e uma honra ter vivido uma época em que podíamos conviver com professores desse porte. A mim parece que vivemos uma onda obscurantista na profissão e na academia, senão pela proibição das ideias diferentes, pela própria definição na base de perfis profissionais aventureiros e mercenários, cujo compromisso é tão somente relacionado com a produtividade a qualquer preço”.

Em seguida, Afrânio Mendes Catani dá início ao seu capítulo com o título: “Walter Rathenau analisado por Maurício Tragtenberg”. Conta-nos a sua história como aluno de Tragtenberg e depois como colega na FGV/SP. Ademais, faz considerações interessantes e pouco conhecidas a respeito de um dos mais importantes empresários alemães que, além de ensaísta social, também era importante filósofo, político e economista em sua época (1867-1922). Maurício demonstrava grande interesse por essa figura ambígua e procurava estudá-la em uma pesquisa na FGV/SP. Este é o foco deste capítulo fascinante.

Em “Travessia”, Antonio Jose Romera Valverde defende a tese de que Maurício Tragtenberg “adentrou estruturas diversificadas de pensamentos e de poros da microfísica do poder para construir uma visão política pontual, aprofundada e sobejamente sintética dos conflitos explícitos e latentes do mundo contemporâneo e, particularmente, do Brasil”.

Evaldo Vieira, em seu capítulo, faz o papel de pescador: “pesca” trechos significativos em algumas obras de Maurício Tragtenberg que permitem ao leitor fazer suas próprias reflexões. Assuntos atuais, tais como vestibular, repetência diploma, mercado, educação política, entre outros. Não é sem razão que o seu capítulo assim é denominado: “Maurício Tragtenberg: assim vale a pena”.

Paulo-Edgar Almeida Resende se conduz por belas memórias e por passagens eruditas no capítulo que bem expressa a coragem do protagonista dessa obra: “Maurício Tragtenberg: ousou saber, ousou dizer”. Resende conta, às vezes em detalhes, a convivência com Maurício, na PUC/SP, dez anos depois.

“Maurício Tragtenberg é um parresiasta contemporâneo”. É assim que Edson Passetti refere-se ao mestre. No capítulo intitulado “Um parresiasta no socialismo libertário”, o autor explica que a parrésia, na antiga democracia ateniense, era uma atitude de homens livres diante da verdade dos governantes. Era a marca de homens que expressavam suas ideias com franqueza, sem medo das consequências, mesmo diante de superiores hierárquicos. O parresiasta era incisivo e, portanto, às vezes, incômodo. Qualquer semelhança não é mera coincidência.

O texto “Um convite: pensar é resistir”, assinado por Flávia Schilling e Cintya Ribeiro, nos instiga a pensar: “educar é basicamente introduzir um sujeito numa determinada ordem de discurso?” As autoras problematizam no que concerne à educação, liberdade e formação e, brilhantemente, recorrem a um pensador que nunca foi estranho ao mestre Maurício Tragtenberg: Michel Foucault.

Ainda, Gustavo Gutierrez, em seu texto “Maurício Tragtenberg como um autor complexo”, faz alusão àquilo que considera como categorias eleitas por Tragtenberg como capitais, ou seja, burocracia e controle; público, privado e gestão; e, logicamente, marxismo heterodoxo. Assim Gutierrez faz verdadeira varredura epistêmica de um autor que enxergava no construto “heterodoxo” a opção por uma liberdade crítica.

Fechando esta bela obra, Ediógenes Aragão dos Santos nos brinda com um comovente e vívido depoimento. Esta, agora docente da Unicamp, relata que conheceu Maurício Tragtenberg em 1961, em um ginásio estadual, no qual assistia, como ouvinte, aulas de História. Sua admiração foi crescendo por “um intelectual erudito, libertário, solidário com as lutas dos trabalhadores” e acrescenta que não foi por mero acaso que se tornou, como ele, professora de História, formada pela Universidade de São Paulo (USP) em plena ditadura militar, colando grau sozinha, sem a sua turma.

Depois de resenhar tão importante obra, o que posso dizer?

Só me resta acrescentar que a melhor homenagem que posso prestar ao Maurício Tragtenberg – que conheci no mestrado, na FGV/SP, quando tínhamos saborosas conversas – é divulgar o seu pensamento e honrar o seu lugar. Para mim, ter resenhado um texto tão belo e tão justo, historicamente falando, é motivo de alegria, apreensão e orgulho concomitantemente. Espero poder corresponder – nem que seja um pouco – , em minha carreira acadêmica, à imagem de um mestre que, para mim, foi mais do que isso: tornou-se um verdadeiro pai intelectual.

Digo isso, pois, em 1994, quando essa maravilhosa pessoa aposentou-se da Unicamp e da FGV/SP, eu, mediante concurso público, vim a ocupar a vaga outrora pertencente a este grande intelectual e educador. Não sei se mereço tal honra e se tenho competência para essa “démarche“. Contudo, espero não tê-lo decepcionado muito.

Roberto Heloani – Faculdade de Educação e Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Campinas (SP) – Brasil. Contato com o autor: <rheloani@gmail.com>

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Políticas educacionais e Estado federativo: conceitos e debates sobre a relação entre município, Federação e educação no Brasil – ARAÚJO (ES)

ARAÚJO, Gilda Cardoso de. Políticas educacionais e Estado federativo: conceitos e debates sobre a relação entre município, Federação e educação no Brasil.Curitiba: Appris, 2013. 371p. Resenha de: BARBOSA, Luciane Muniz Ribeiro. Políticas educacionais e Estado federativo. Educação & Sociedade, Campinas, v.34 no.125 out./dez. 2013.

O livro Políticas educacionais e Estado federativo: conceitos e debates sobre a relação entre município, federação e educação no Brasil é uma adaptação da tese de doutorado de Gilda Cardoso de Araujo. Trata-se de pesquisa resultante de estudo teórico, de natureza histórica e conceitual, sobre a configuração das instituições políticas municipais e federativas, a forma de assimilação destas no Brasil e de sua articulação com a organização da educação nacional.

Por que e para que mais um estudo sobre municipalização do ensino? Essas são questões que a própria autora nos apresenta e se compromete a responder não somente com dados que evidenciam o município como o responsável pela maior parte das matrículas do ensino fundamental na atualidade, ou diante do fato de que tal municipalização já estaria consagrada como um dos eixos da política educacional brasileira. As respostas que revelam a pertinência do estudo relacionam-se com o fato de que a discussão sobre a municipalização do ensino tornou-se algo comum e específico da área da educação. Entretanto, a produção existente não dialoga com a longa tradição do pensamento político que articulava a organização do Estado brasileiro com a discussão sobre a organização da educação nacional, desprezando também a análise da formação das instituições políticas municipais e federativas e configurando o processo de municipalização do ensino como que descolado dos problemas relativos ao Estado e à sua organização política e administrativa.

Daí se depreende o objetivo da obra de Gilda Cardoso de Araujo: apresentar os fundamentos, em um quadro conceitual e histórico, do processo de municipalização no Brasil, analisando o município e a Federação como instituições políticas, bem como a relação destas com a organização da educação como uma tarefa do Estado nacional.

No primeiro capítulo “Federação e município: uma articulação necessária” apresenta-se a ideia da Federação como uma construção histórica com estreita relação com o município como instituição política. Inicialmente, analisa-se o que se constitui “esse nosso desconhecido federalismo”, ressaltando que a história do Estado brasileiro está associada à própria história da ideia da Federação e que esta, como instituição política, possui um histórico “que contribui para o direito à educação como modernamente inscrito e realizado na política educacional brasileira” (p. 37).

Com base nesses pressupostos, debate-se a relação entre poder local, Federação e educação, questionando sobretudo a constante associação realizada entre descentralização federativa e democracia. Tal análise é apresentada mediante o resgate: das abordagens clássicas dos formuladores do federalismo americano, como James Madison, Alexander Hamilton e John Jay; das contribuições de Alexis de Tocqueville, ao distinguir duas espécies de centralização: a governamental e a administrativa e ao defender que a soma das duas em um só poder se tornaria prejudicial para o desenvolvimento das nações; e da proposta de federalismo total de Pierre-Joseph Proudhon, com o desafio de se estabelecer um equilíbrio entre a autoridade e a liberdade. As contribuições de tais autores fundamentam teoricamente todo o trabalho, revelando-se presentes nos debates de temas como: federalismo; poder local; poder nacional; maior ou menor descentralização do Estado.

No segundo capítulo – “Instituições políticas: municipalismo e federalismo” – são apresentadas as origens históricas e conceituais da instituição municipal, acompanhando sua trajetória iniciada em Roma e sua chegada ao Brasil e ressaltando os momentos em que ela se insere na organização federativa do país, assim como as complexidades, contradições e equívocos resultantes desse processo.

Município e Federação são destacados e analisados em cada momento histórico, com realce para as discussões que envolveram tais temas nos debates constituintes e sua explicitação nos textos constitucionais. Dessa maneira, é possível compreender como a Federação brasileira, originada como resposta à centralização unitária do período colonial e imperial, deixa de ser considerada como grande questão nacional na Era Vargas, substituindo-se o debate pelo tema do municipalismo, reflexo das demandas por autonomia local; ou, ainda, como o Estado Novo, instaurado em 1937, culminou como um processo de centralização autoritária, perdendo-se o sentido da ideia de Federação descentralizada, anteriormente erigida pela Constituição de 1891. Também é possível entender a trajetória (permeada de equívocos conceituais e históricos) de construção da proposta de Federação tridimensional e a defesa do municipalismo, impulsionada pela campanha municipalista e tendo ganhado força especialmente na Constituinte de 1946; a maneira como a Federação tridimensional é secundarizada no regime militar, marcado pelo excessivo controle do poder central, assim como sua retomada vigorosa na década de 1980, momento de um novo processo constituinte e reabertura política do país.

O terceiro capítulo – “Município, Federação e Educação: instituições políticas” – aborda a articulação da organização do ensino com o municipalismo e com o federalismo brasileiro. As origens da relação entre município e educação, desde a Baixa Idade Média, são evocadas para se expor a trajetória dessa relação e o tipo de educação que chegou às vilas brasileiras no século XVI. Na sequência, a história da educação brasileira é apresentada, destacando-se o movimento pendular entre centralização e descentralização política e administrativa que marcou a relação entre as esferas de poderes no Brasil.

O debate histórico e conceitual apresentados no segundo capítulo, assim como o rigor com que os dados da história da educação são apresentados permitem a compreensão do processo de municipalização do ensino no Brasil, não apenas como expressão de um debate em torno de temas como centralização ou descentralização, autoritarismo ou democracia, mas sim como um processo histórico de autonomia municipal estreitamente vinculado “à complicada história de Federação no Brasil” (p. 233).

Ressalta-se, ainda, que a história das instituições políticas do século XIX e XX, base para a constituição do município como ente federado e para as teses municipalistas da área da educação, revela o já destacado movimento pendular entre centralização e descentralização política e administrativa no país, desconsiderando-se, entretanto, o debate sobre as desigualdades regionais na oferta da educação elementar, tema que, na avaliação da autora, permanece como a grande questão a ser resolvida pelas políticas públicas atuais.

O quarto capítulo – “Município, Federação e Educação: ideias políticas” – cumpre com o grande desafio de situar o tema da organização do ensino como intrinsecamente vinculado ao tema da organização do Estado nacional. Dado que as ideias de município, Federação e educação foram abordadas por diferentes correntes teóricas e políticas, verifica-se que, somente mediante a análise dessas correntes, torna-se possível superar os equívocos presentes nos pressupostos que envolvem o debate sobre a descentralização do ensino.

Para tanto, a autora apresenta a origem do debate sobre as três categorias de análise (município, federalismo e educação) na tradição liberal, examinando as obras e pensamento político de Tavares Bastos e Rui Barbosa e suas propostas de implantação da descentralização federativa. Na sequência, analisa como o debate anterior foi incorporado pela tradição evolucionista e positivista, expondo a defesa de Alberto Sales pelo separatismo como solução para a crise do Império e para a organização política e administrativa do país, e o uso que Júlio de Castilhos fez do separatismo como bandeira política positivista no Rio Grande do Sul. As obras e os pensamentos de Alberto Torres e Oliveira Vianna, representando a tradição autoritária, são utilizadas para a apresentação do debate sobre a organização do Estado e da educação nacionais com base em seus argumentos sobre a necessidade de se adequar as instituições políticas à realidade brasileira. Por fim, são analisadas as ideias de Anísio Teixeira e Carlos Correa Mascaro, destacando suas propostas específicas sobre o processo de municipalização do ensino, não distantes, contudo, do debate teórico e político sobre a centralização ou descentralização como forma de organização do Estado brasileiro.

O resgate de tais autores para a área de educação mostra-se de grande relevância, dado seu sentido “de recolocar a Federação na sua relação com o poder local (município) e com a educação, como um problema nacional e não apenas educacional […], problematizando-os mediante o enfoque da teoria política brasileira” (p. 238).

Encontra-se ainda, nas “Conclusões”, um excelente resgate das principais ideias apresentadas nos capítulos da obra, ressaltando os momentos e fatos históricos relevantes para o debate teórico e conceitual do municipalismo, federalismo e educação, assim como os equívocos presentes na redução desse debate aos temas da centralização ou descentralização.

Longe de se configurar como um estudo de abordagem “muito ideologizada ou muito concreta” sobre o tema da municipalização do ensino, predominantes na área, a obra de Gilda Cardoso de Araújo cumpre com o objetivo proposto de se apresentar como um estudo de enfoque teórico e conceitual sobre os temas do municipalismo, federalismo e educação. Trata-se de um trabalho de fôlego e coragem, ao apresentar os equívocos nos quais os estudiosos da área costumam incorrer ao analisar tais temas, superando-os com minuciosa pesquisa bibliográfica e detalhada análise histórica e conceitual.

Em um momento em que tanto se discute a relevância e as complexidades de se constituir um Sistema Nacional de Educação, assim como os objetivos e conteúdos de um Plano Nacional de Educação que seja de fato nacional, federativo e democrático, a obra de Gilda Cardoso de Araújo revela-se de fundamental relevância, preenchendo importante lacuna na área da educação.

Luciane Muniz Ribeiro Barbosa – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. São Paulo (SP) – Brasil. Contato com a autora: <lumuniz@usp.br>

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Sociologia da leitura – HORELLOU-LAFAGE; SEGRÉ (ES)

 

HORELLOU-LAFARGE, Chantal; SEGRÉ, Monique. Sociologia da leitura. Cotia: Ateliê Editorial, 2010. Resenha de: MAZZA, Dévora. Por uma sociologia da leitura. Educação & Sociedade, Campinas, v.34 no.123 abr./jun. 2013.

A ideia principal do livro Sociologia da leitura, de Chantal Horellou-Lafarge e Monique Segré (2010), assenta-se na importância da leitura como atividade integrada à vida cotidiana, que se tornou indispensável nas sociedades contemporâneas a ponto de “parecer” natural. As autoras rompem com essa visão naturalista e desenvolvem uma análise meticulosa e refinada da leitura como uma pratica sócio-histórica que se configura na tensa relação com as culturas, os hábitos dos diferentes grupos, os meios tecnológicos, as instituições, as políticas públicas e a lógica do mercado.

Interessantemente, as autoras problematizam: “O que é a leitura hoje? Quais as novas formas adquiridas por essa prática […] apesar da permanência da percentagem de iletrados? De que maneira os(as) leitore(as) se apropriam da leitura, se levarmos em conta sua classe social, sua idade, sua identidade sexual e seu nível de instrução?” (p. 18).

A fim de explorar estas questões, o livro se organiza em cinco capítulos. No Capítulo I – “A leitura e seu suporte” –, as autoras abordam questões relativas ao nascimento dos grandes sistemas de escrita há cerca de seis mil anos. Em dissertação que perpassa da escrita para a leitura e da cultura oral para a cultura escrita, apresentam, na sequência, o desenvolvimento das técnicas de fabricação do livro, que foi da argila à imprensa e assim subsequentemente até o surgimento do livro eletrônico; abordam a evolução e especialização dos ofícios ligados à produção, circulação e consumo do livro, evolução esta que tem início no livro como um objeto raro e reservado a poucos e que é lentamente transformado em um produto de massa, disponível, como qualquer outra mercadoria, nas prateleiras de livrarias, supermercados, bancas de revistas, feiras e brechós.

No Capítulo II – “A leitura e as instituições” –, as pesquisadoras vinculam o nascimento do leitor ao papel desempenhado pela Igreja e pelo Estado na Antiguidade. A partir deste quadro, o aprendizado da leitura é compreendido como uma ferramenta de propaganda e difusão tanto das ideias religiosas, quanto dos assuntos do Estado. Neste cenário de interesses contraditórios, a leitura vai se constituindo como prática que concomitantemente emancipa, enquadra, cria fronteiras sociais e é alvo de censura e de políticas públicas indutivas de formas de pensar, agir, sentir, relacionar. Nesse tópico, torna-se claro que a leitura, que inicialmente era privilégio reservado às elites e aos adultos, vai lentamente se estendendo a outras classes, frações de classes e grupos etários.

No Capítulo III – “Ler, um aprendizado escolar determinante” –, as autoras discutem o papel específico da escola e dos métodos de ensino e aprendizagem da leitura na França, tendo em vista o domínio da língua oral, da escrita e da leitura pela criança. Se, por um lado, a escola se afirmou como a instituição que tem como função “ensinar tudo a todos” (COMENIUS, 1996), por outro lado, os resultados alcançados sugerem que a construção da leitura como um costume compartilhado por todos chama uma ação conjunta da família e de outros espaços, meios e agentes. Sobre este tema, as autoras apontam que:

A relação entre instituição escolar e atividade de leitura é complexa: varia conforme os indivíduos e seu meio social de origem, e conforme suas representações da instituição e dos professores. A escola dá condições de adquirir as aptidões necessárias para ler, é uma instância que dá legitimidade às leituras, mas, devido às normas que transmite, às coerções diretas e indiretas que exerce, corre o risco, ao mesmo tempo, de criar entraves para uma possibilidade de leitura como prazer e distração. (p. 89)

Como conciliar, na instituição escolar, a leitura prescrita e necessária – considerada como um dever, em todas as atividades ensinadas – com a leitura-prazer, reconhecida como uma distração e um gosto? São problematizações suscitadas pela leitura do livro.

No Capítulo IV – “Uma prática cultural diferenciada” –, o livro realiza uma discussão que relaciona o ato de ler, os leitores e os suportes de leitura de acordo com as diferenças de classes sociais, grupos profissionais, sexo, faixa etária e nível de escolaridade. A partir disso, sugere que hoje é mais difícil afirmar que uma determinada classe, ou um grupo, seja herdeira ou detentora da cultura considerada legítima, tal como afirmou Bourdieu e Passeron (1964) nas pesquisas realizadas sobre os hábitos de leitura dos estudantes universitários franceses.

Pela perspectiva sociológica, é possível apontar as regularidades e as singularidades que cercam a leitura. As regularidades apontam que os leitores hoje se diferenciam pelo conteúdo de suas leituras e que, “apesar de sua relativa banalização, o livro continua sendo um bem reservado àqueles que gozam do beneficio da cultura” (p. 105), que, “quanto mais se ascende na hierarquia social, mais aumenta o número de livros lidos” (p. 105), que “as atividades masculinas, em particular voltadas para o ‘mundo das coisas materiais’, reclamam leituras técnicas e científicas” (p. 119), que as atividades das mulheres “mais ligadas ao mundo das ‘coisas humanas’ […] envolvem leituras documentais sobre os problemas de saúde e doença, a educação, a infância, a crise da adolescência” (p. 120). As singularidades sugerem que, pelo contato e pela divulgação, os interesses de diversas categorias sociais e grupos etários, em matéria de leitura, tendem a se assemelhar. Nesse sentido, a leitura deixa de ser uma prática distintiva, se transformando em prática de usos sociais diversos.

No Capítulo V – “As modalidades da leitura” –, as autoras afirmam que o amor pela leitura não é um dom inato, mas um exercício que vira necessidade na medida em que é incorporado como hábito. O gosto pela leitura, a relação sensorial com o livro, “a dor da vida sem os livros” (p. 122) são sentimentos ignorados pelos não leitores. As maneiras de ler dependem das condições de leitura, dos momentos e tempo que lhe são concedidos, e do papel simbólico que lhe é atribuído. A leitura pode acontecer como um ato individual, particular, que se efetiva no silêncio, e nos espaços secretos e íntimos, ou como prática coletiva, comentada, realizada em reuniões em encontros públicos e serões. Pode ser leitura de um livro do começo ao fim ou uma atividade fragmentada, quebrada, descontínua. Pode ser leitura de texto, de figuras, fotos, quadrinhos.

A modalidade de leitura que se generalizou na atualidade enquadra-se no processo gradativo de recalque das paixões e emoções e na passagem das coerções impostas de fora para a autocoerção (ELIAS, 1969). Ela configura-se como ato solitário exercitado no âmbito privado, segundo um padrão burguês. Ao mesmo tempo, é importante considerar a leitura como “atividade dinâmica, em constante evolução; onde as maneiras de ler, compreender e interpretar variam segundo as aptidões e investimentos individuais e coletivos e os modos de apropriação dos textos são frutos de criação, invenção e movimento” (p. 144).

Nesse sentido, a leitura é um processo que alterna liberdade, criação e coerção. Liberdade, porque o texto é sempre inacabado e aberto; criação, porque suscita o trabalho imaginário do leitor e a cooperação ativa; coerção, posto que o texto emoldura-se em pontos de ancoragem que induzem à compreensão (p. 139-140). Apesar disso, é possível afirmar que a apropriação de um texto depende sempre dos horizontes e expectativas do leitor.

Em paralelo, as autoras apontam que o livro convive com uma profusão de suportes de leituras e resiste a uma multiplicidade de tecnologias da comunicação e informação, tais como cinemas, computadores, televisão, jogos eletrônicos, sites de buscas e de relacionamentos. Ainda assim, a leitura continua se afirmando como uma atividade errante que permite rotas de fuga, difusão de ideias e polissemia de sentidos.

O livro faz-nos compreender que a leitura se realiza nas fronteiras movediças dos determinismos sociais, da cultura de massa, da lógica de produção, circulação e consumo do livro como mercadoria, e, ao mesmo tempo, provoca voos que alimentam a reflexão crítica, a imaginação criadora e os movimentos libertários.

Por fim, como afirma Rancière (2010, p. 44):

[…] o livro é uma fuga bloqueada: não se sabe que caminho traçará o estudante, mas sabe-se de onde ele não sairá – do exercício de sua liberdade. Sabe-se, ainda, que o mestre não terá o direito de se manter longe, mas à sua porta. O estudante deve ver tudo por ele mesmo, comparar incessantemente e sempre responder à tríplice questão: o que vês? O que pensas? O que fazes com isso? E, assim, até o infinito.

Boa leitura!

Referências

BOURDIEU, P.; PASSERON, J.C. Les héritiers. Les etudiants et la culture. Paris: Minuit, 1964.         [ Links ]

COMENIUS, J.A. Didactica magna: tratado da arte universal de ensinar tudo a todos. Introd., trad. e notas de Joaquim Ferreira Gomes. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996 .         [ Links ]

ELIAS, N. La civilization dês moeurs. Paris: Livre de Poche, Pluriel, 1969.         [ Links ]

HORELLOU-LAFARGE, C.; SEGRÉ, M. Sociologia da leitura. Trad. de Mauro Gama. Cotia: Ateliê Editorial, 2010. (Titulo original: Sociologie de La Lecture).         [ Links ]

RANCIÈRE, J. O mestre ignorante. Cinco lições sobre emancipação intelectual. Trad. de Lilian do Vale. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.         [ Links ]

Débora Mazza – Pós-doutora em Sociologia e professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. E-mail: dmazza@unicamp.br

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Mobilidade humana e a diversidade sócio-cultural – MAZZA; SIMSON (ES)

MAZZA, Débora; Von SIMSON, Olga. Mobilidade humana e a diversidade sócio-cultural. Jundiaí: Paco Editorial, 2011. Resenha de: SIMAI, Szilvia; BAENINGER, Rosana. Educação & Sociedade, Campinas, v.33 n.121  out./dez. 2012.

A ideia principal do livro está assentada na importância das migrações, tanto em nível local quanto em nível global, para a (trans)formação de culturas. O livro deixa claro que a própria cultura, por sua vez, está “migrante”. Avança ainda no estudo da multiplicidade de contextos culturais sobre a migração. Foi produzido por vários estudiosos que abordam questões relativas à cultura e suas interrelações com a mobilidade humana. Para tanto, utilizam uma variedade de situações, disciplinas e metodologias, contemplando aspectos relevantes da presente conjuntura da migração e cultura: questões da trajetória do deslocamento; fronteiras; identidades; contatos transnacionais; memória cultural; transmissão da identidade através das gerações; as questões de diferença cultural e hibridismo; histórias orais da migração; o papel das novas tecnologias de ligação entre culturas e a promoção cultural da polinização cruzada.

A coletânea tem duas partes principais. A primeira parte mostra muito bem como o estudo da migração envolve inúmeras possíbilidades de rotas disciplinares e de metodologias de pesquisa. A forma mais comum de encontrar estudos migratórios é no âmbito das ciências sociais. Na verdade, no Brasil, a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) e a Associação Brasileira de Estudos Populacionais (Abep) têm grupos de trabalho que tratam da migração internacional; outras áreas humanísticas e das artes, contudo, não parecem reconhecer o seu interesse distinto no campo. Essa fronteira é destruída no livro por estudiosos, unificando as ciências sociais e as artes. E assim, nessa perspectiva, na primeira parte do livro, os autores apresentam uma rica coleção interdisciplinar sobre a mobilidade humana. Alguns artigos do livro usam uma abordagem mais moderna das ciências sociais para trazer elementos de estudos de mídia, de sociologia e de psicologia social. O lado mais forte da obra é a inclusão de campos muito pouco discutidos, como a análise literária de Albert Camus em uma conceituação filosófica da estranheza e alteridade através de análise semiótica e pós-colonial. Destaque-se também a voz que é dada às crianças como protagonistas de suas vidas, isso mostra a capacidade do livro em trazer elementos inovadores e sofisticados para análise de estudos migratórios. A obra traz ainda o uso do cinema como uma forma de retratar experiências migratórias, bem como as novas formas de internacionalizações e suas migrações, envolvendo trajetórias migratórias acadêmicas, o que enriquece nossa compreensão acerca das mobilidades humanas contemporâneas como experiências vividas.

A segunda parte do livro focaliza e reconstrói movimentos migratórios internacionais para o Brasil, destacando a importância da mulher nesses contextos migratórios. Italianas, portuguesas, alemãs, japonesas e latino-americanas compõem o universo social das migrações no Brasil. Nesse aspecto, o livro é oportuno e inovador, ao dar visibilidade às mulheres imigrantes e sua importância nas constituições dos fenômenos migratórios históricos e contemporâneas.

A presença da mulher imigrante é retratada de maneira exemplar no livro, desde as vivências familiares nas ex-colonias portuguesas até as mulheres latinas hoje na cidade de São Paulo. A leitura da coletânea permite um percurso pela presença da mulher imigrante a partir de diferentes olhares: na música, na família imigrante, nas gerações de imigrantes, nas relações de gênero, na educação, na formação de identidades das mulheres imigrantes; aspectos que refletem e dinamização do processo cultural.

O livro faz-nos compreender que a mobilidade humana traz desafios intermináveis e dificuldades vividas por todos os migrantes e, de uma forma ou de outra, características comumente compartilhadas. Contudo, no fim, estes desafios se tornam parte de processos identitários e da construção social das migrações e dos indivíduos neles envolvidos. Como Hemingway afirma: “O mundo quebra todo mundo e, posteriormente, alguns ficam mais fortes nos locais quebrados”.

Szilvia Simai – Doutora em Psicologia Social e pesquisadora do Núcleo de Estudos de População da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: szilvia.simai@gmail.com
Rosana Baeninger – Doutora em Ciências Sociais e professora do Departamento de Demografia e Núcleo de Estudos de População da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: baeninge@nepo.unicamp.br

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Fundeb, federalismo e regime de colaboração – MARTINS (ES)

MARTINS, Paulo de Sena. Fundeb, federalismo e regime de colaboração. Campinas: Autores Associados, 2011. Resenha de: SILVA, Isabelle Ffiorelli. A “política de fundos” e os contornos federativos do estado brasileiro. Educação & Sociedade, Campinas, v.33 n.121 out./dez. 2012.

A pesquisa no campo das políticas educacionais, realizada por Paulo de Sena Martins em seu livro Fundeb, federalismo e regime de colaboração, traz uma análise acerca da adoção da “política de fundos” no país, tratando-a como inerente aos contornos do nosso Estado federado cooperativo. As características de nossa Federação e suas possibilidades de aperfeiçoamento são constantemente imbricadas com a formulação e implantação da “política de fundos”, cujas origens remontam ao período marcado pelo Movimento dos Pioneiros, mas somente adotada como política pública a partir dos anos de 1990.

O livro resulta da tese de doutoramento defendida em 2009 na Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, cujo objetivo projetado e, a meu ver, alcançado foi compreender a capacidade dos fundos de assegurarem o regime de colaboração entre os entes federados e a busca pela equidade na distribuição dos recursos para os diferentes sistemas de ensino estaduais e municipais. Trata-se da análise de uma política pública, de seu processo decisório na formulação das leis regulamentadoras da principal política de financiamento da educação brasileira, a denominada “política de fundos”. Para isso, o autor utilizou textos teóricos, além do exame da legislação e de documentos técnicos, especialmente as notas taquigráficas das audiências públicas realizadas pelas comissões especiais e pela Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, que analisaram as Propostas de Emenda Constitucionais (PECs) do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) e do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).

Na introdução são apresentadas as questões que irão permear toda a obra. Enfatiza-se o contexto de elaboração e negociação das leis e sua incidência na versão final aprovada, lançando mão de documentos técnicos para analisar o processo de tramitação das PECs do Fundef e do Fundeb, e tendo como tônica o mecanismo de fundo como possibilidade de fortalecer o Estado federativo cooperativo. Para tanto, são apresentadas as “falhas” detectadas no Fundef e as alternativas de aprimoramento no fundeb, tais como o cumprimento da regra de complementação da União e a necessidade de dar mais autonomia aos conselhos, a fim de aperfeiçoar a fiscalização e o controle social. Demonstra como o envolvimento da sociedade civil se deu de formas distintas na formulação da lei que regulamenta ambos os fundos, sendo que, no Fundef, a atuação crítica de entidades representativas da comunidade educacional foi muito mais no processo de execução do fundo por estarem relativamente desarticuladas no contexto de sua elaboração. Já na tramitação do Fundeb, tal comunidade obteve papel fundamental em vários momentos de embate, principalmente quanto à questão da inclusão das creches no novo fundo.

No primeiro capítulo, o autor inicia sua análise apresentando as tipologias de Estado federal e como a Federação brasileira se estruturou com base nas relações entre poder central e poderes estaduais e locais. Utiliza, para tanto, importantes autores da ciência política, do direito, da educação, da história e da economia. Considera que as regras distributivas de uma federação cooperativa devem estar em estreita relação com as regras distributivas do financiamento educacional; assim, as regras de redistribuição dos recursos destinados à educação no âmbito de cada estado, segundo as matrículas e as ponderações referentes às etapas, modalidades e tipos de estabelecimento, devem expressar um equilíbrio federativo, com efetivo regime de colaboração na repartição de competências concorrentes. Para ele, um Estado federado que se pretenda cooperativo deve buscar constantemente seu equilíbrio, no sentido da conciliação das autonomias locais com os interesses nacionais.

A Constituição brasileira é sempre mencionada pelo autor para afirmar o princípio do federalismo cooperativo, por meio da regulamentação e operacionalização de um regime de colaboração, também previsto na carta magna, entre os entes federados na implantação e manutenção das políticas públicas concorrentes. Não desconsidera que as ações dos envolvidos na gestão e financiamento das políticas públicas carecem de um processo de negociação permanente. Entretanto, a União tem papel importante de promover a equalização e a redistribuição, assumindo o papel de apoio técnico e financeiro aos entes subnacionais, visando corrigir as desigualdades de capacidade de gastos e de gestão das políticas públicas, em especial da educação. Aliás, toda política pública deve refletir o compromisso com o equilíbrio federativo! Nesse sentido, afirma categoricamente que a tradução do federalismo cooperativo nas políticas educacionais deve ser concretizada pela efetivação do regime de colaboração.

No segundo capítulo, o autor elenca os mecanismos de gestão intrínsecos ao federalismo o os analisa no âmago do Estado brasileiro, utilizando-se da legislação, sua constituição e reação na conflituosa arena política, e destacando seus reflexos no provimento do serviço público educacional. Mostra, desde o Ato Adicional de 1834 até a Constituição de 1988, o movimento de centralização e descentralização do poder político e suas repercussões na autonomia e equilíbrio federativos, ocorrendo tanto avanços como recuos a depender se o período político pendia para maior abertura política ou não. As garantias legais ao financiamento educacional foram propostas principalmente no contexto de promulgação da República Federativa, tais como a criação de uma taxa escolar, de impostos próprios provinciais, da vinculação de impostos, além de uma contribuição direta cobrada a cada família, embora ciente de que os instrumentos jurídicos foram (e ainda são) muitas vezes distorcidos ou ignorados.

O autor vai clarificando que, no bojo de uma gradativa evolução federativa, surgem os germens para os mecanismos de gestão e distribuição de recursos para a educação, por meio da adoção da vinculação de impostos (consagrada já nos anos de 1930) e da política de fundos (recuperada e regulamentada nos anos de 1990). Elucida-nos que, no primeiro meio, a discussão da inclusão sustentava a defesa dos “entusiastas pela educação” da obrigatoriedade do ensino para absorver as camadas sem acesso à educação; já no segundo meio, a questão da equidade orienta a luta pela democratização da educação, buscando a universalização de todas as etapas da educação básica e, ainda, das condições de sua qualidade. Nesse ínterim, surge a proposta de criação de um fundo escolar, sendo retomada em 1995 e reavivada pela tramitação da PEC que regulamenta o Fundef, redundando na aprovação da Lei n. 9.424, em 1996. Considerada como “minirreforma tributária” pelo formulador da proposta, Barjas Negri, Martins também reconhece seu potencial equitativo e o defende mediante seu aprimoramento pari passu com o pacto federativo. Assim, pondera que, apesar do contexto dos anos de 1990 estarem direcionados à gestão gerencial, os fundos contábeis surgem como estratégia política para alcançar a equidade, viabilizar a autonomia federativa, consolidar o controle social e aprimorar o regime de colaboração.

No terceiro e último capítulo da obra, o autor analisa o processo de tramitação das leis que regulamentam o Fundef e o Fundeb. Nos debates ocorridos no primeiro caso, as problemáticas que permearam os debates foram o gasto-aluno baseado no orçamento disponível, ao invés de orientado pela qualidade da educação, o risco de superlotação de salas e a prioridade do fundo para uma determinada etapa, em revanche com o conceito de equidade educacional. Já nos debates ocorridos no segundo caso, foram utilizados argumentos baseados nos efeitos previstos e/ou detectados do Fundef na educação infantil, na educação de jovens e adultos, no ensino médio e na secundarização da questão da valorização do magistério. Tais efeitos foram analisados em relação ao princípio da equidade, relação esta que denuncia a incapacidade do Fundef em interferir nas disparidades regionais e estaduais, sem a efetivação da complementação da União e a operacionalização do regime de colaboração. Nesse caso, “o fundo não suprime as diferenças, mas cria as condições para diminuí-las”, na medida em que absorve mecanismos capazes de superar a incomunicabilidade entre os fundos estaduais. Outro limite apontado referente ao funcionamento do Fundef consiste na definição anual do valor mínimo por aluno, que sempre foi desrespeitado e até mesmo congelado nos anos de 1998 e 1999, ilustrando a atuação coadjuvante do fundo no ajuste fiscal promovido naquele contexto de reforma do Estado.

Se tomarmos a ciência política como “óculos” de análise da política de fundos, tal obra se enquadra na análise da principal política pública para a gestão e financiamento da educação brasileira, mais especificamente na análise de seu processo de discussão, tomada de decisão e consequente formulação, mais do que a análise de seus efeitos produzidos durante e após sua implantação. Embora na obra encontremos pesquisas analisando os resultados e efeitos gerados pelo Fundef, após seus dez anos de funcionamento, principalmente no terceiro capítulo, a ênfase de esforços analíticos recai na avaliação do processo de formulação, tramitação e aprovação das leis que regulamentaram a política de fundos, explicitando seus avanços e retrocessos inerentes aos contornos do nosso Estado federado. Contudo, como possível coadjuvante no equilíbrio federativo, a política de fundos é defendida e aceita como política pública educacional, em constante aprimoramento inerente ao desenho do Estado democrático brasileiro.

Isabelle Fiorelli Silva – Doutoranda em Educação na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professora no Departamento de Educação da Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: isabellefiorelli@hotmail.com

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Currículo, território em disputa – ARROYO (ES)

ARROYO, Miguel. Currículo, território em disputa. Petrópolis: vozes, 2011. 374p. Resenha de: FAFVACHO, André Picanço. O que há de novo nas disputas curriculares? Educação & Sociedade, Campinas, v.33 n.120  jul./set. 2012.

A concepção de currículo como campo de disputa não é nova, pois veio à tona, internacionalmente, nos anos de 1970 e, no Brasil, nos anos de 1980. Revelou-se, desde então, um importante balizador para a análise das relações de poder que envolvem os currículos. O próprio professor Miguel Arroyo contribuiu fortemente para o debate dessa época.

Se o referido tema não é novo, qual é o acréscimo que traz o último livro de Arroyo, Currículo, território em disputa? O autor destaca que o currículo não é apenas território de disputas teóricas. Quem disputa vez nos currículos são os sujeitos da ação educativa: os docentes-educadores e os alunos-educandos. Os professores e alunos não se pensam apenas como ensinantes e aprendizes dos conhecimentos dos currículos, mas exigem ser reconhecidos como sujeitos de experiências sociais e de saberes que requerem ter vez no território dos currículos.

Arroyo aponta ainda duas novidades: 1) o currículo oficial está cada vez mais pressionado pelos coletivos populares, que exigem o direito de ver suas narrativas também pronunciadas pela escola; 2) entretanto, esses coletivos, por sua vez, não lutam mais pela escolarização em si; aos poucos passaram a entender que o processo de sua afirmação como sujeitos de direitos não se dá exclusivamente pela escola (promessa apregoada por muito tempo). Agora, a luta é por pertencimento social amplo, por acesso aos bens materiais e culturais, simbólicos e memoriais, na diversidade de espaços sociais, onde o direito à escola adquire outra relevância. Assim, os coletivos populares, embalados por um amplo movimento de afirmação, inverteram a antiga lógica: articulam o seu direito à escola à conquista e ocupação de outros espaços e, com isso, pressionam o currículo oficial para incorporar o resultado de suas lutas.

Isso não significa que o currículo oficial perdeu sua força controladora, mas sim que algo realmente forte inaugurou-se: a possibilidade de que as histórias-memórias dos diversos sujeitos sejam contadas, ainda que por meio de outras linguagens. Assim, não se trata de uma vitória final dos coletivos populares sobre o Estado, mas de uma nova estratégia de luta que tem alterado o lugar da escolarização na visão desses coletivos, e também na visão da academia, que vendia a ideia de que a escolarização retiraria os brasileiros da subcidadania. Também não se trata de uma prática completamente difundida e consolidada entre os professores, mas apenas de um desenho alternativo de currículo onde os saberes da docência tenham vez.

Obviamente, a escola continua importante para esses sujeitos, mas os saberes, as conquistas, as experiências e tudo mais que as novas lutas são capazes de produzir podem, estrategicamente, se converter em prática curricular, em conteúdo político, em ato a ser valorizado dentro da escola. Tal situação tem ameaçado fortemente o currículo oficial, uma vez que se vê brotar no seu interior algo maior que ele mesmo: a inesperada ação dos movimentos sociais que adentra os processos de escolarização por outra via: a do acesso pelo direito. Isso justifica a forte reação estatal: Parâmetros Curriculares Nacionais, Provinha Brasil, Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), Diretrizes Curriculares Nacionais, Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), entre outros; tudo com o intuito de reforçar o caráter conteudista e cognitivista da escolarização, bem como retirar o poder da nova estratégia, essa que une saberes, direito e escolarização.

Para ilustrar as questões apresentadas até aqui, me remeto, parte a parte, ao livro de Arroyo.

Na primeira parte, intitulada “Os professores e seus direitos a ter vez nos currículos – autorias, identidades profissionais”, Arroyo acredita que a atividade do professor não se reduz, de forma alguma, a validar o controle das instâncias superiores sobre a escola. Entretanto, essas instâncias tiveram o poder de bloquear a arte de educar dos professores, isto é, de governar o campo das possibilidades de se ensinar de outras maneiras, com práticas inventadas, criadas e imaginadas pelos professores, ou seja, bloquearam a autoria profissional do professor e seus saberes docentes. Para o autor, dois grandes momentos históricos foram responsáveis, no Brasil, por esse bloqueio: a ditadura de 1964 e as atuais políticas neoliberais; ambas produziram a secundarização da autoria docente, substituindo-a por controles de mercado e controles científicos, com o intuito de matematizar e estatistizar os resultados escolares através de modelos de competências, reduzidos ao treinamento e fórmulas descontextualizadas de metas avaliativas. Contudo, para Arroyo, a autoria docente não foi totalmente eliminada, uma vez que a arte de educar não se separa do mundo da vida, das práticas reais das pessoas, de suas mazelas, de seus desejos. Embora alguns queiram negar essa relação, não se pode desconsiderar que são os eventos sociais, culturais e políticos que convocam a docência para a ação. E é isso que desbloqueia a arte de educar ou a autoria docente.

segunda parte do livro, “Os saberes do trabalho docente disputam lugar nos currículos”, denuncia que, lamentavelmente, contra os avanços de se educar partindo das vivências humanas ou desumanas dos sujeitos, vê-se nascer, nos dias de hoje, financiada pelas reformas educacionais, a função aulista do professor. Tal fato substitui a necessária função educadora da docência – que é a própria arte de educar – pelo frio cumprimento de metas do ensino por competência e de avaliação de resultados. Isso ocorre porque as políticas públicas da educação entendem que os saberes daqueles que frequentam a escola pública são desqualificados, sem crédito, sem valor; são saberes pobres, de pobres; pretendem educar os alunos para a empregabilidade, para esse tipo de trabalho que mais desumaniza do que humaniza. Para Arroyo, infelizmente, perdemos a possibilidade de substituir esse trabalho embrutecido e embrutecedor por um trabalho cujo princípio é a transformação do homem para que ele se integre à vida, ao mundo, enfim, às práticas sociais; perdemos a oportunidade de educar a partir do trabalho cujo princípio é educativo. O trabalho como princípio educativo é, para Arroyo, o elo perdido dos saberes docentes, mas também o elo a ser encontrado.

Na terceira parte do livro, Arroyo defende a tese de que “Os sujeitos sociais e suas experiências se afirmam no território do conhecimento”, isto é, apesar de haver o impedimento às experiências sociais para se integrarem ao conhecimento considerado legítimo, os coletivos sociais mostram que os saberes têm, sim, sua origem na experiência social e não apenas na artificialidade das questões epistemológicas. Se isso for negado ou ignorado, produziremos, além de injustiça social, uma injustiça cognitiva, diz Arroyo, citando Zygmunt Baumn. Manter essa separação entre experiência social e conhecimento legítimo é sustentar a brutal hierarquização dos saberes, é desperdiçar experiências sociais, é desconsiderar que todo conhecimento tem sua origem na experiência social; é, enfim, empobrecer os currículos pela negação das experiências sociais e da sua diversidade.

Na quarta parte do livro, “As crianças, os adolescentes e os jovens abrem espaços nos currículos”, o autor apresenta duas questões potentes para esse debate. A primeira é que a pedagogia, a partir das novas vivências das crianças e jovens, foi interrogada na sua visão messiânica, romântica de criança e promotora de destinos, dando lugar a outra pedagogia capaz de (1) revelar às crianças-adolescentes suas próprias configurações na realidade, uma vez que hoje se torna cada vez mais difícil separar infância de adolescência, cabendo à pedagogia se interessar por esse “hífen” que não separa, mas une; (2) traduzir o perverso e tenso real vivido por essas infâncias, posto que elas não mais acreditam nas antigas ilusões que a pedagogia, por vezes, ainda tenta sustentar; (3) revelar às crianças-adolescentes seus direitos negados.

A segunda questão reside no embate entre as concepções inovadoras e as concepções conservadoras para a educação da infância e adolescência. Vê-se nascerem propostas cada vez mais propedêuticas, sequenciais, lineares e etapistas, enfim, propostas pobres de experiências, competindo com propostas ávidas por revelar o humano nomeado através da palavra, o que, em termos educacionais e benjaminianos, poderia ajudar a criança a saber mais de si, nomear-se, revelar-se e revelar o outro. No que concerne especificamente aos jovens, eles já sabem, e não se deixam mais enganar que serão incluídos socialmente por meio da escolarização. Já sabem que, para que essa velha promessa possa se efetivar, o lugar-escola, os tempos, os espaços, a organização e a estrutura escolar deveriam se alterar e nada se alterou. Sabem que são vistos como Outros “in-incluíveis“, ou seja, aqueles que não sabem reconhecer os esforços do poder público para a melhoria de sua educação. Mas, quais são mesmo os esforços? Os jovens resistem a conviver em um sem-lugar, isto é, resistem a habitar em um espaço que, em qualquer momento, foi para eles pensado.

Na quinta e última parte do livro, Arroyo se ocupa com “O direito a conhecimentos emergentes nos currículos”. Indigna-se com o fato de que as crianças-adolescentes “passarão anos na educação fundamental, complementarão a educação média e sairão sem saber nada ou pouco de si mesmos” (p. 262). Arroyo preconiza que saber de si é reconhecer-se vivo numa temporalidade, espacialidade e memorialidade específicas. Pode ser, também, saber-se sem-lugar e reivindicar valorizado o que foi tomado como desvalor; não apenas para ter o reconhecimento do outro, mas para ter o direito de contar a própria história, a exemplo dos coletivos afrodescendentes, indígenas e quilombolas. Pode ser, ainda, a capacidade pedagógica dos docentes de escutarem esse saber de si, auxiliando esses coletivos com novas propostas pedagógicas. Um exemplo: o tempo dos coletivos marginalizados não é o mesmo tempo da escola; o tempo deles é o aqui e agora, enquanto o da escola é o futuro. Não seria o caso de a escola praticar o tempo presente, que não é um nem outro tempo, mas o reconhecimento de como outras identidades foram parar no esquecimento, propondo que esses coletivos libertem seus saberes da condição folclórica a que foram submetidos? O que está em jogo na luta pelo saber de si mesmo é (des)romantizar a pedagogia e, portanto, os sujeitos da pedagogia: professores e alunos; acordá-los desse sono durante o qual se acredita, erroneamente, que cada um nasceu para o que é.

Para finalizar, é bom lembrar que o livro de Arroyo é rico em exemplos de didáticas de reconhecimento de sujeitos, isto é, de didáticas mais radicais e mais significativas para a docência de hoje.

Desejo a todos uma ótima leitura e que cada um possa apreciar os escritos de Arroyo a sua maneira.

André Picanço Favacho – Doutor em Educação e professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), E-mail: afavacho@uol.com.br

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Vida e morte do grande sistema escolar americano: como os testes padronizados e o modelo de mercado ameaçam a educação – RAVICH (ES)

RAVITCH, D. Vida e morte do grande sistema escolar americano: como os testes padronizados e o modelo de mercado ameaçam a educação. Trad. de Marcelo Duarte. Porto Alegre: Sulina, 2011. Resenha de: OLIVEIRA, Sara Badra de; MENEGÃO, Rita de Cássia Silva. Educação & Sociedade, Campinas, v.33 no.119 Campinas abr./jun. 2012

Em seu livro Vida e morte do grande sistema escolar americano, Diane Ravitch expõe de forma acessível e detalhada a evolução das reformas de mercado no sistema escolar dos Estados Unidos nas últimas décadas, criticando seus pressupostos ideológicos e denunciando seus resultados, que contribuíram para agravar a crise da educação pública americana.

Como acadêmica e propositora de políticas inserida no aparelho de Estado, a autora analisa as reformas que ela antes endossara com entusiasmo, e que agora passa a criticar diante das evidências de seus resultados. Ravitch é pesquisadora-doutora da Universidade de Nova Iorque. Em 1991, ela aceitou o convite do então secretário Lamar Alexander para ser sua conselheira e secretária-adjunta no Departamento de Educação dos Estados Unidos. Também esteve envolvida como conselheira nos governos Bill Clinton e George W. Bush e participou ativamente de movimentos pelas referências curriculares, responsabilização e escolha escolar.

A primeira edição do livro lançada no Brasil contém agradecimentos da autora, apresentação escrita por José Clovis de Azevedo e mais onze capítulos seguidos das notas com bibliografia e do índice. No primeiro capítulo, “O que eu aprendi sobre a reforma escolar”, Ravitch analisa sua trajetória profissional, os cargos políticos exercidos, os trabalhos acadêmicos desenvolvidos e as soluções outrora defendidas, e como ela foi retirando seu apoio das populares soluções baseadas na lógica do mercado.

No segundo capítulo, “Sequestrado! Como o movimento pelas referências curriculares se transformou no movimento de testagem”, ela expõe como a responsabilização baseada em teste tornou-se o principal motor da reforma escolar, substituindo o movimento pelas referências curriculares. Em “A transformação do Distrito 2”, é descrita a experiência desse distrito, que foi eleito símbolo nacional de como ampliar a escala da reforma, tornando-se uma fórmula a ser transposta para outros sistemas. Os capítulos seguintes, “Lições de San Diego” e “A lógica de mercado em Nova Iorque”, descrevem detalhadamente as experiências que foram influenciadas pelo Distrito 2, explicitando o caráter empresarial das reformas de responsabilização e das políticas organizacionais aplicadas no distrito de San Diego e na cidade de Nova Iorque.

O capítulo seis, “NCLB: testar e punir”, expõe as características e determinações principais da lei federal que selou a era da responsabilização baseada em dados, assumindo um papel de interferência nas escolas locais como nunca antes na história do federalismo americano. Em “Escolha escolar: a história de uma ideia” fica claro que, desde 1980, a questão da “escolha”1 escolar povoa a arena de discussões e propostas para a educação, materializando-se sobretudo nos vouchers e nas populares escolas administradas por concessão.2 No capítulo oito, “O problema com a responsabilização”, Ravitch condensa as críticas, sempre sinalizadas ao longo do livro, às reformas de mercado, mostrando um conjunto de pesquisas e evidências contrárias à responsabilização baseada em teste.

Em “O que a Sra. Ratliff faria?”, a autora recorre à lembrança de sua antiga e inspiradora professora para expor como a lógica da atual reforma desvaloriza o que ela considera ser um bom professor e passa a girar em torno de uma noção específica de “professor eficiente”, explicando como isso afeta nas políticas de gerenciamento dessa força de trabalho. O capítulo dez, “O clube dos bilionários”, explica o funcionamento da poderosa rede de filantropia privada que apoia a reforma, conferindo-lhe enorme fôlego e limitando o alcance das vozes e movimentos de resistência.

Por fim, no último capítulo, “Lições aprendidas”, Ravitch exalta sua posição de defensora da escola pública, conclui que as atuais reformas colocam a educação pública em perigo e sinaliza o que ela acredita que seja uma educação de qualidade e o caminho que se deve percorrer para alcançá-la, deixando claro que não existem “panacéias” ou fórmulas mágicas quando se trata de educação.

A autora adota uma postura sincera e corajosa ao rever suas posições e admitir que as soluções de mercado não estão alcançando as melhorias esperadas no desempenho dos alunos. Os EUA permanecem estagnados em avaliações nacionais (Naep) e internacionais (Pisa).3 Para além dos números, a crítica mais fundamental de Ravitch é que essas soluções de mercado estão erodindo os valores públicos e a própria educação pública, que ela advoga como uma instituição essencial para a democracia e para a constituição de uma nação economicamente forte e repleta de oportunidades.

Ela manteve sua posição em defesa da escola pública e das referências curriculares. Permanece endossando que o sistema educacional defina claramente seus objetivos, através de um currículo rico e coerente que englobe uma formação abrangente, além das habilidades básicas, que têm sido o alvo restrito dos testes atuais. No início do livro, ela analisa como as novas reformas se distanciaram dessa preocupação fundamental com o currículo e passaram a acreditar que mudanças na gestão e na estrutura do sistema seriam prontamente a solução para os problemas da educação. Os princípios empresariais de gestão e contratação de profissionais, escolha, recompensas e punições para incentivar a força de trabalho, decisões e metas baseadas em um bom sistema de dados, passam a ser soluções por si mesmas, negligenciando as dimensões pedagógica e política da educação.

A questão da reforma escolar tem sido politicamente popular nos Estados Unidos desde os anos de 1980. Em 1983, o relatório A Nation at Risk (Anar)4 foi emblemático, pois mostrou em tom direto e incendiário o fracasso do sistema educacional em cumprir seu papel como instituição acadêmica a serviço do desenvolvimento do país. Ao sinalizar a necessidade urgente de mudança, o Anar influenciou o início do movimento pela reforma baseada em referências curriculares. No entanto, devido às controvérsias acaloradas que surgiram em torno do currículo nacional de história, esse movimento ruiu em 1994, sendo substituído por esforços de reforma cujo foco não era mais o que os estudantes deveriam aprender.

O foco das atuais reformas restringe-se à responsabilização baseada em teste, ignorando preocupações essenciais sobre qual educação se espera e como fazer para melhorar as escolas públicas que enfrentam dificuldades. Ao invés de lidar com esses problemas espinhosos, parece mais fácil entregar a administração das escolas à iniciativa privada, sob o argumento de que ela fará melhor do que a administração pública engessada e ineficaz. A criação das escolas administradas por concessão, iniciada nos anos de 1990, representa especialmente essa crença.

Além dessa forma de privatização, os princípios empresariais são injetados no aparelho do Estado, que passa a utilizar um sistema de dados – os testes de múltipla escolha de habilidades básicas dos estudantes – como base para decisões de responsabilização, que envolvem recompensas e punições para escolas e seus profissionais, conforme atinjam as metas de desempenho. A elevação das pontuações dos testes passa a ser o objetivo educacional, representando a medida da eficiência de professores e escolas.

Esquivando-se da questão da produção da desigualdade na sociedade, os reformadores acreditam que professores eficientes sejam capazes de resolver o problema da disparidade de desempenho entre estudantes de diferentes grupos sociais. Equipes constantes de professores eficientes poderiam ser formadas se os administradores pudessem demitir à vontade os ineficientes e vincular o pagamento aos escores dos estudantes. Porém, à medida que o profissional é julgado com base em resultados mensuráveis, sua experiência e qualificações são desvalorizadas. Para alcançar esses objetivos, tenta-se eliminar os sindicatos e a estabilidade do professor, considerados uma barreira à gestão eficaz dos recursos humanos e das condições de trabalho.

A infusão de ideias de mercado na educação pública é acompanhada pela injeção de grandes somas de dinheiro por poderosos empresários e suas grandes fundações, que assumem para si a tarefa de reformar a educação. Assim, a reforma abre suas portas para o domínio de profissionais de diversas áreas, sobretudo do meio empresarial, contribuindo para a desvalorização da profissão docente.

As fundações financiam desde organizações que terceirizam professores5 até escolas públicas, empresas de escolas por concessão, treinamento de diretores de escolas e superintendentes distritais, programas públicos e movimentos políticos que defendam seus interesses de mercado, formando uma rede de filantropia privada que passa a definir a agenda política da reforma educacional dos governos. A filantropia da virada do milênio não arrisca deixar o planejamento das reformas para seus beneficiários; são as próprias fundações que definem o que e como realizar, e quais organizações são apropriadas para suas doações, cobrando um retorno de seu investimento através de medidas concretas de efetividade.

As principais fundações dos EUA – Gates, Walton e Broad – representam juntas uma força além do alcance das instituições democráticas. Por serem organizações privadas, não estão sujeitas à supervisão e revisão do público, o que condena a educação ao capricho dos financiadores e empreendedores e ao sabor da instabilidade do mercado. A definição da agenda de reforma é ideologicamente dominada por esses atores, que desqualificam qualquer posição contrária como avessa à mudança e defensora do engessado status quo.

Ravitch expõe as experiências emblemáticas de dois distritos que capturaram a atenção dos reformadores de mercado, o Distrito 2, da cidade de Nova Iorque, e San Diego. Ansiosos por encontrar um programa de reforma que pudesse alcançar escores de testes mais altos, os reformadores ficaram animados com a estratégia implementada em finais de 1980 no Distrito 2, crentes de que haviam encontrado um molde pronto para ser facilmente imposto por líderes firmes com intuito de atingir resultados rápidos. A reforma do Distrito 2 influenciou posteriormente a reforma de San Diego, em 1998, e da cidade de Nova Iorque, em 2001.

A verticalidade dessas reformas chamava a atenção. O superintendente de San Diego acreditava que mudanças eficazes são impostas rapidamente a partir de um centro gestor, e concentrou-se em demitir professores e diretores que não cumpriam prontamente as ordens centrais, demandar maiores escores nos testes, atacar a burocracia, lutar contra o sindicato dos professores e abrir escolas por concessão.

Em Nova Iorque, o prefeito e seu secretário de Educação foram mais ousados, conseguindo obter em 2002 o controle direto sobre as escolas da cidade. Empenharam-se em promover a “escolha” escolar, através do estímulo às escolas por concessão e às pequenas escolas de ensino médio, e programas de responsabilização envolvendo incentivos e sanções. Em 2007, o Departamento de Educação de Nova Iorque adotou um programa de pagamento por mérito, que oferecia bônus às escolas que atingissem progressos anuais em seus escores de testes.6

Ravitch critica a política verticalizada dessas reformas, que desconsideram a complexidade do processo educacional, cujas mudanças ocorrem de forma incremental, conforme os atores locais se apropriem de significados compartilhados e desenvolvam relações de confiança (cf. Bryk et al., 2010) em suas comunidades profissionais. Além disso, o controle direto sobre as escolas elimina os mecanismos de revisão pública de decisões, necessários em uma democracia para garantir a legitimidade e credibilidade das decisões políticas.

Em 2002, o governo Bush teve força suficiente para aprovar uma nova legislação federal para a educação, a lei No Child Left Behind (NCLB),7 graças ao apoio bipartidário que girava em torno da necessidade de maior responsabilização para as escolas. Essa lei selou a era da responsabilização baseada em dados, que exacerbou a importância dos testes, tornando-os fins em si mesmos. O destino de profissionais e escolas passou a ser decidido com base na pontuação dos estudantes nos testes de habilidades básicas de leitura e matemática.

A lei deixava os estados americanos livres para administrarem seus próprios testes e definirem seus próprios níveis de proficiência. A meta era que todas as escolas e distritos realizassem progressos anuais para cada grupo de estudantes em direção ao objetivo de 100% de proficiência até 2014. As escolas que fracassassem em alcançar o progresso estariam sujeitas a vários graus de sanções, entre os quais seus profissionais poderiam ser demitidos, a escola poderia ser fechada ou (eufemisticamente) “reestruturada”, convertendo-se em escola por concessão. Não há uma estratégia de orientação e apoio para as escolas que necessitem de melhoria. Pressupõe-se que as ameaças de demissão dos profissionais e de fechamento das escolas sejam suficientes para incentivá-los a melhorar. Caso não sejam, acredita-se que a administração privada será mais eficaz em alcançar bons resultados para os estudantes necessitados.

Exigir metas inatingíveis, combinadas à ausência de estratégias de assistência, contribui para aumentar cada vez mais o número de escolas públicas que se encontram em risco de serem fechadas ou transformadas em escolas por concessão, o que representa uma contagem regressiva para a demolição da educação pública. A reforma gera sutilmente um círculo vicioso, à medida que sua programação abala a confiança nas instituições públicas e na profissão docente, embasando mais demanda para privatizar a administração das escolas, assim como para desprofissionalizar a educação.

Os reformadores acreditam que as escolas por concessão, livres da regulamentação estatal, sejam capazes de alcançar melhores resultados e injetar dinamismo e competição no sistema, contribuindo para estimular a melhoria das escolas públicas regulares. Deixar a administração das escolas aberta ao grande fluxo de iniciativas privadas produziria uma saudável variedade no sistema educativo, proporcionando escolha às famílias dos estudantes que não conseguissem progredir nas escolas regulares. Desregulamentação, competição e escolha pareciam soluções óbvias.

O apelo para a criação de escolas administradas por concessão já era forte na década anterior à NCLB, fazendo parte de legislações estaduais e da legislação federal do governo Clinton, e permanece forte no governo Obama, apesar da ausência de evidências que comprovem a superioridade do setor como um todo. As pesquisas não mostram um padrão que permita afirmar que as escolas por concessão sejam melhores em alcançar bons resultados para os estudantes. Só é possível afirmar que a variedade na qualidade dessas escolas é enorme, incluindo desde aquelas excelentes a escolas precárias controladas por pessoas corruptas e incompetentes.

No entanto, não surpreende a insistência dos políticos em adotar esse modelo para a reforma, pois o entusiasmo pelas soluções de mercado e a posição ideológica contrária ao setor público superaram a busca por evidências empíricas. Ravitch sinaliza que o verdadeiro debate sobre as escolas por concessão é ideológico e não será esgotado com a incansável guerra de dados.

Assim como certas escolas públicas regulares, algumas administradas por concessão registram altos escores nos testes padronizados. Esses dados são suficientes para animar os reformadores e a mídia a projetarem uma imagem de sucesso para essas escolas como um todo. No entanto, estudos mostram que, por trás desses dados, existem certas condições que favorecem as escolas administradas por concessão. Elas atraem os estudantes mais motivados, podem dispensar aqueles de baixo desempenho ou que não cumpram seu código disciplinar, além de receberem recursos financeiros adicionais de grandes fundações, o que lhes permite oferecer turmas menores e mais tempo para atividades.

Ao contrário do que previram os defensores da escolha, as escolas públicas não estão melhorando com a competição. Elas acabam recebendo os estudantes de baixo desempenho e fraca motivação, sinalizando uma tendência de queda contínua em seus escores. A privatização das escolas tende a criar um sistema de dois níveis cada vez mais desigual, sem contribuir para encarar o desafio que permanece em aberto, de como educar todos os estudantes.

Ravitch expõe dados do Naep que mostram resultados desanimadores nos anos após a implementação da NCLB. Mais fundamental que isso, ela critica os pressupostos errôneos de como melhorar as escolas e sinaliza as distorções provocadas por eles. Na era da responsabilização, os testes extrapolaram sua função diagnóstica e adquiriram uma dimensão preocupante com propósitos de grandes consequências, sob a crença de que são uma ferramenta infalível capaz de identificar quais profissionais devem ser demitidos ou recompensados e quais escolas devem ser fechadas.

No entanto, por mais bem construídos que sejam, os testes são sempre imprecisos e sujeitos a variações aleatórias, erros humanos ou problemas técnicos. São limitados para medir o conhecimento dos estudantes, e ainda mais limitados para medir a qualidade das escolas e de seus profissionais. Eles podem fornecer importantes informações sobre o progresso das escolas, mas não devem ser utilizados como o único dado a partir do qual decisões importantes são tomadas.

Os testes assumem o poder de responsabilizar as escolas como se seus resultados refletissem apenas o que nelas ocorre e o que seus profissionais fazem para educar os estudantes. Sabe-se, no entanto, que são múltiplos os fatores que afetam o desempenho nos testes. A responsabilização focada nas escolas ignora a parte de responsabilidade dos estudantes e suas famílias, e do poder público em prover condições adequadas de trabalho. Os professores não são responsáveis sozinhos pelo aprendizado dos estudantes, e nem tudo de valor que um professor transmite aos seus alunos pode ser apreendido em um teste padronizado.

Quando as pessoas são pressionadas a satisfazerem medidas limitadas de desempenho, suas ações irão concentrar-se obsessivamente nos aspectos que influenciam estas medidas, negligenciando os outros objetivos da educação e os aspectos qualitativos do trabalho que não podem ser mensurados. A pressão por aumentar os escores dos testes de habilidades básicas pode produzir escores maiores e, ao mesmo tempo, uma educação pior. Professores concentram-se em ensinar aquilo que conta para os esquemas de responsabilização, prestando menos atenção às outras disciplinas e dimensões da formação, além de restringir o ensino a atividades de treinamento para testes (cf., também, Hout & Elliott, 2011; Madaus et al., 2009).

É bem conhecida a ocorrência de truques e atalhos para atingir os resultados desejados, como a manipulação da população testada, ou a diminuição dos níveis de exigência nos testes estaduais. Outra distorção é que os estudantes mais necessitados recebem menos atenção, pois os professores concentram seus esforços nos alunos próximos da média, que demonstrem maiores chances de progredir em curto prazo e elevar a média de desempenho (cf. Neal & Schanzenbach, 2010). Além disso, as escolas passam a competir pelos melhores estudantes e a adotar mecanismos velados de exclusão dos alunos que ameacem reduzir os escores da escola.

Ravitch defende um sistema de responsabilização que avalie as escolas com objetivo de ajudá-las a melhorar. O sistema de avaliação de professores e alunos deveria ser mais amplo que medidas de desempenho em testes padronizados, além de incluir outros atores, como o poder público, igualmente responsáveis pela capacidade das escolas em prover um bom ensino.

Fechar escolas não resolve o problema e ainda contribui para destruir instituições estabelecidas e fragmentar laços de comunidade. A escolha das famílias é que sua escola de bairro seja bem-sucedida; é obrigação do sistema público que todas as escolas o sejam, assim como é obrigação dos gestores buscar soluções reais para as escolas públicas que enfrentam dificuldades.

Decisões importantes de demissão e recompensa não podem ser feitas de forma leviana, baseadas em dados limitados. Demissões são possíveis e necessárias quando se trata de servidores negligentes e descompromissados com a moral do serviço público. Contudo, o julgamento profissional não deve basear-se apenas nos escores dos testes; deve incluir avaliações conduzidas por educadores experientes e formas de assistência da equipe escolar a professores com dificuldade. Os dados são importantes, mas isoladamente não oferecem uma justa medida do trabalho do professor e não podem substituir a avaliação em campo por um profissional experiente na área educacional.

Ravitch defende o fortalecimento da profissão docente, por meio do reconhecimento da importância da experiência e da formação inicial, enraizada na disciplina lecionada e na pedagogia. Além disso, a profissionalização deve incluir um apoio constante em serviço de mentores e colegas.

Ela reforça que os ricos objetivos da educação não sejam reduzidos a pontuações em testes, os quais devem ser apenas um indicador. Quando o teste torna-se objetivo principal vinculado a fortes consequências, ele próprio é invalidado e perdem-se de vista os objetivos essenciais da educação. Ravitch defende a importância de um currículo enraizado nas artes e ciências, que incite os estudantes à busca pelo conhecimento, desenvolva sua cidadania, capacite-os a refletir criticamente sobre questões e a tomar decisões sensatas sobre a própria vida, e contribua para formação do caráter e disciplina.

Para ela, as mudanças organizacionais propostas não irão resolver os problemas da educação, pois o sucesso das escolas depende de múltiplos fatores, como a definição de um currículo sólido, professores bem preparados, materiais, recursos e condições adequadas de trabalho, estudantes dispostos, pais apoiadores, e outros serviços ligados a uma reforma social mais ampla.

Também fica claro que a lógica de mercado não é apropriada para prover educação pública. A competição por clientes, o atendimento ao público de forma diferenciada e a oscilação de oferta fazem parte da esfera do mercado, mas perdem o sentido quando são transpostas para a esfera pública, encarregada de prover direitos sociais que devem ser garantidos a todos, independente do poder político e da posição na esfera produtiva. As esferas pública e privada podem coexistir, mas possuem objetivos de natureza distinta e devem ser regidas de acordo com a lógica coerente com seus objetivos.

Ravitch terminou de escrever o livro em 2009 e a publicação da primeira edição saiu em 2010. Porém, desde o seu lançamento, novas pesquisas e eventos significativos ocorreram na educação americana, fomentando na autora a necessidade de escrever um epílogo, intitulado School and Society (“Escola e Sociedade”), que por enquanto foi acrescentado somente na segunda edição do livro em inglês, lançada em 2011.

Desde o lançamento da primeira edição, surgiram importantes movimentos de resistência de vários grupos organizados, incluindo atores como pais e professores; escândalos emergiram apontando fraudes praticadas em grandes sistemas (como Nova Iorque), antes exaltados pelos reformadores devido aos seus “excelentes resultados”; e importantes pesquisas continuam a demonstrar a incapacidade das políticas de mercado em prover melhor educação para os estudantes, bem como as distorções provocadas por elas.

No entanto, a ebulição desses acontecimentos e de tantas evidências contrárias não foi suficiente para abafar o movimento de reforma empresarial, que adquiriu novo fôlego graças aos investimentos contínuos do setor filantrópico privado, às publicações acaloradas da mídia – como a do jornal Newsweek, sem contar o glamour agora conquistado em Hollywood com o lançamento do documentário Esperando pelo super-homem, em 2010.

Essas narrativas transbordam na exposição de dados para demonstrar o fracasso do sistema escolar público, atribuído à incompetência dos professores e à proteção dos sindicatos. O documentário defende, por meio de recursos dramáticos, que a única solução para as crianças8 é abrir mais escolas por concessão e poder demitir professores à vontade. No entanto, assim como a história do Newsweek, esse documentário baseia-se em meias-verdades, dados distorcidos, exageros e interpretações equivocadas.

Ravitch expõe as diversas falhas dos argumentos expostos nessas narrativas, que tipicamente desconsideram a implicação que a desigualdade social exerce no aprendizado dos estudantes. A pobreza, ela reforça, é um fato, não uma “desculpa” como alegam os reformadores. Ela também denuncia que expor o sindicato como “contrário aos interesses das crianças” é um apelo injusto dos reformadores, ansiosos por reduzir investimento público e privatizar escolas públicas sem enfrentar oposição organizada.

A reforma adquiriu o apoio crucial do presidente Obama e seu secretário de Educação Arne Duncan, com o lançamento do programa federal “Corrida para o topo”9 em 2009, segundo o qual seriam elegíveis para competir pelos fundos federais somente os estados que concordassem em adotar as prescrições do programa. Basicamente, o “Corrida para o topo” estimula a criação de escolas administradas por concessão – ousando ainda mais, prevendo eliminação dos limites para sua criação nos estados – e o uso das estratégias punitivas da NCLB nas escolas de baixo desempenho. Porém, esse programa foi mais longe que a lei, acrescentando que os estados aspirantes ao fundo deveriam concordar em demitir e recompensar os professores com base nas pontuações dos testes dos estudantes.

A publicação deste livro é bem vinda no Brasil, pois permite que façamos uma análise crítica das reformas educacionais em nosso país, tanto nos estados e municípios como na esfera federal.

Em São Paulo, por exemplo, a reforma educacional vem sendo conduzida de acordo com os mesmos pressupostos de mercado. Empresários, grandes empresas e fundações se mobilizam em movimentos e associações, como “Todos pela Educação” e “Parceiros da Educação”, com objetivo de “melhorar o aproveitamento escolar dos alunos”, influenciando e contribuindo com as políticas públicas de educação através de ações de parceria junto à Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e às escolas (envolvendo desde formação continuada de professores/coordenadores, reforço escolar, à elaboração de plano de ação da política educacional e das escolas), além de ações de mobilização em torno de suas diretrizes e de divulgação dos resultados das metas por eles estabelecidas.

O interesse deles é compreensível, uma vez que a educação adquire caráter de urgência e prioridade para o desenvolvimento do novo modo de produção capitalista (cf. Freitas, 1991). A parceria público-privado também se manifesta na forma de arranjo de desenvolvimento da educação (ADE), um regime de colaboração recém-homologado pelo Ministério da Educação, que prevê a coparticipação de estados, municípios e instituições privadas e não governamentais na “melhoria da educação”.

Abriu-se um mercado para a indústria das consultorias, que recebem a responsabilidade de definir projetos de governos – a exemplo do projeto implementado no estado de São Paulo10 e outros (cf. Brooke, 2011) –, elaborar os testes de larga escala e, atualmente, realizar pesquisas encomendadas, financiadas pelos cofres públicos e grupos de executivos e fundações.11

Proliferam projetos e programas que contribuem para a desvalorização e precarização da profissão docente. Estes introduzem nas escolas – por meio dos próprios sistemas públicos, organizações e parcerias entre ambos – “monitores”, “oficineiros”, “tutores”, “trainees“, ou seja, profissionais sem experiência/qualificação docente, contratados temporariamente para atuar com os alunos em atividades culturais, esportivas, artísticas, e de reforço escolar, especialmente em escolas de vulnerabilidade social,12 caracterizando a natureza marginal desses programas. Por trás disso, nota-se a desresponsabilização do Estado em prover professores bem formados na área e em melhorar as condições de trabalho da categoria docente.

O exaltado discurso “professor é tudo”13 não é de valoração, mas de responsabilização, e de acordo com ele a culpa pela defasagem de aprendizagem dos alunos é da ineficiência do professor. Ao invés de se moverem pela lógica da profissionalização docente, os reformadores desvalorizam a formação inicial e defendem que salário e progresso na carreira sejam baseados na produtividade dos professores, medida pelo desempenho de seus alunos nos testes padronizados.

Assim, as reformas empresariais corrompem o “espírito do serviço público” ao atrelar pagamento a variações aleatórias do mercado como nível de produtividade, ao invés de vinculá-lo ao verdadeiro valor do trabalho e aos valores do servidor, como tempo de serviço e qualificação.14 Nesse cenário, valoriza-se a formação em exercício, em sua maioria por meio da EaD, na qual as aulas presenciais são substituídas por um plantão tira-dúvidas com tutores do programa.

Os testes padronizados de habilidades básicas já são bem conhecidos no Brasil em todos os níveis – municipal, estadual e federal15– e alguns servem como base para premiar professores nas redes que implementaram programas de pagamento de bônus.16 Alguns desses programas baseiam-se em outras medidas como taxas de evasão escolar, e até mesmo o que chamam de “avaliação institucional” – que seriam questionários online respondidos pelo corpo profissional e discente sobre vários aspectos de sua escola.17

Vale ressaltar que vários estudos (cf. Hout & Elliott, 2011; Madaus et al., 2009; Neal & Schanzenbach, 2010) já demonstraram a ocorrência de distorções – como avaliações inflacionadas – quando o objetivo da avaliação restringe-se à responsabilização sob a forma de punição e recompensa. Estudo de Marsh et al. (2011) sobre uma das experiências mais consolidadas de implementação de programa de bônus (o caso de Nova Iorque) já demonstrou que o bônus não foi um fator de motivação capaz de gerar mudança nas práticas dos professores e no desempenho dos estudantes, e que a maioria dos professores é motivada por fatores intrínsecos relacionados ao seu desenvolvimento profissional e à aprendizagem dos alunos.

Também já presenciamos no Brasil acalorados discursos em favor da publicização dos dados e exposição dos resultados do Ideb na porta das escolas, como estratégia de pressão para gerar constrangimentos aos “mal classificados” e proporcionar escolha aos estudantes vistos como clientes. Vale mencionar também que algumas instituições públicas aderiram ao contrato de trabalho,18 sob a crença de que o mecanismo de gerenciamento dos recursos humanos do setor privado é mais eficaz que o estatutário com estabilidade. Essa crença desconsidera as características peculiares do serviço público, que preveem uma relação própria com o dinheiro, o tempo e o poder (cf. Supiot, 1995), baseadas no compromisso do servidor com o atendimento ao público.

No Brasil, pressupostos semelhantes aos criticados por Diane Ravitch vêm conduzindo as mudanças em vários sistemas educacionais locais e têm influenciado as propostas de gestores públicos e a opinião da população, atraindo-os às promessas de uma solução rápida para os problemas da educação. A mídia permanece contribuindo incansavelmente para a construção do pensamento hegemônico de que a escola “privada é boa e a pública ruim”, deixando o terreno fértil para a introdução dessas mudanças que creditam à lógica privada a solução óbvia para a ineficácia da educação, apesar da ausência de evidências que comprovem o sucesso dessas políticas nos Estados Unidos.

Os defensores da escola pública devem estar cientes de que a disputa não se encerrará pela apresentação de dados desfavoráveis; mas aponta, sobretudo, para questões sobre que democracia queremos, sobre qual educação se espera construir e para qual tipo de sociedade. Por resgatar o percurso da educação americana, esse livro torna-se leitura indispensável para todos que pretendam compreender e discutir os atuais rumos das políticas educacionais brasileiras.

Notas

1. Modalidade de privatização que incentiva os pais a escolherem a escola de seu filho através de vouchers(ou cheque educação).

2. Na tradução brasileira, o tradutor Marcelo Duarte traduz charter schoolcomo “escola autônoma”. No entanto, optamos por utilizar “escolas administradas por concessão”, pois as escolas charter são escolas públicas operadas privadamente por concessão. São escolas públicas de gestão privada.

3. Naep – Avaliação Nacional do Progresso na Educação, feita pelo Departamento de Educação americano. Pisa – Programa Internacional de Avaliação de Alunos, feito pela OCDE.

4. Uma Nação em Risco.

5. A exemplo da Teach for America(TFA), uma organização que recruta universitários inexperientes, recém-formados em qualquer área, para lecionar por dois anos em escolas públicas que acolhem estudantes de baixa renda, após receberem um breve treinamento de cinco semanas.

6. O estudo de Marsh et. al. (2010) demonstrou que o programa de bônus de Nova Iorque não foi capaz de gerar mudanças significativas no desempenho dos alunos e nas práticas docentes.

7No Child Left Behind.

8. O documentário acompanha a trajetória de cinco crianças ávidas por escaparem de suas escolas públicas e conquistarem uma vaga em escolas charter, administradas por concessão, mostradas no filme como excelentes. Vale notar que são crianças motivadas, de famílias pobres, porém estruturadas e que valorizam a escola e os estudos.

9. O documentário Race to nowhere(“Corrida para lugar nenhum”), lançado em 2010, faz uma referência irônica a esse programa, representando o lado das vozes contrárias à atual abordagem de reforma.

10. A exemplo da política de bônus para os profissionais da educação do estado de São Paulo, normatizada em 2009.

11. Cesgranrio, CNI, FGV-RJ, FGV-SP, Fundação Itaú Social, Fundação Santillana, Fundação SM, Fundação Victor Civita, IBGE, Ibmec-SP/Insper, Ibope, Inep, Instituto Paulo Montenegro e Instituto Unibanco são exemplos de organizações com as quais são feitas parcerias para realização de estudos e pesquisas, que visam trazer conhecimentos sobre a realidade educacional brasileira.

12. A exemplo da Teach for America(TFA), que chegou ao Brasil (ver matéria veiculada pelo jornal O Globoem 18/07/2010, disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/escolas-municipais-terao-reforco- de-trainees-2977626> (acesso em: 27 fev. 2012).

13. Como exemplo do vídeo do movimento “Todos pela Educação”, disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=wVKQ8yMV-l4> (acesso em: 16 abr. 2012).

14. Supiot (1995) define o “espírito do serviço público” como um tipo próprio de moral profissional que inclui relações com o poder, o dinheiro e o tempo essencialmente diferentes das relações da lógica do setor privado. Reivindicações de salário baseadas em critérios de tempo e formação seriam compatíveis com a defesa do “espírito do serviço público”, pois são critérios que reafirmam valores inerentes à pessoa do servidor, e não o valor de mercado da prestação de serviço.

15. A exemplo da Prova São Paulo (municipal), Saresp (estadual) e Prova Brasil (federal).

16. Brooke (2011) sinaliza alguns estados como Pernambuco, São Paulo e Espírito Santo, nos quais o pagamento de bônus foi implementado.

17. A exemplo do Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza (vinculado à Secretaria de Tecnologia de São Paulo), que provê formação de nível técnico e superior, além de ensino médio.

18. A exemplo do Centro Paula Souza, que realiza contrato via CLT.

Referências

BROOKE, N. As novas políticas de incentivo salarial para professores: uma avaliação. In: FONTOURA, H.A. (Org.). Políticas públicas, movimentos sociais: desafios à pós-graduação em Educação em suas múltiplas dimensões. Rio de Janeiro: ANPEd Nacional, 2011. p. 163-188.         [ Links ]

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NEAL, D.; SCHANZENBACH, D.W. Left behind by design: proficiency counts and test-based accountability. Review of Economics and Statistics, Cambridge, Mass., v. 92, n. 2, p. 263-83, 2010. Disponível em <http://www.mitpressjournals.org/doi/abs/10.1162/rest.2010.12318>. Acesso em: 24 fev. 2012.         [ Links ]

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RAVITCH, D. Vida e morte do grande sistema escolar americano: como os testes padronizados e o modelo de mercado ameaçam a educação. Trad. de Marcelo Duarte. Porto Alegre: Sulina, 2011.         [ Links ]

SUPIOT, A. A crise do espírito de serviço público. Adverso, Porto Alegre, v. 5, n. 7, p. 17-25, 1995.         [ Links ]

Sites

PARCEIROS da Educação. Disponível em: <www.parceirosdaeducacao.org.br>

TODOS pela Educação. Disponível em: <www.todospelaeducacao.org.br>

Sara Badra de Oliveira – Mestranda do Laboratório de Observação e Estudos Descritivos (Loed), da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), E-mail: sarabadra@hotmail.com

Rita de Cássia Silva Godoi Menegão – Doutoranda do Loed, da Faculdade de Educação da Unicamp, E-mail: ritamenegao@gmail.com

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Anuário educativo brasileiro: visão retrospectiva – BERTUSSI; OURIQUES (ES)

BERTUSSI, Guadalupe Teresinha; OURIQUES, Nildo (Coord). Anuário educativo brasileiro: visão retrospectiva. São Paulo: Cortez, 201. 453p. Resenha de: KRAWCZYK, Nora. Anuário educativo brasileiro: visão retrospectiva. Educação & Sociedade, Campinas, v.33 n.118  jan./mar. 2012.

A professora Guadelupe Teresinha Bertussi acaba de trazer ao Brasil um projeto editorial que deu origem à publicação, pela editora Cortez, do Anuário educativo brasileiro: visão retrospectiva, coordenado por ela e pelo professor Nildo Ouriques. Tem como predecessor a publicação de sete anuários mexicanos de educação, de enorme sucesso editorial. O êxito desse projeto editorial incentivou a professora Guadelupe a trazê-lo ao Brasil, sendo alocado no Instituto de Estudos Latino-Americanos (Iela), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Anuário educativo mexicano: visión retrospectiva, editado anualmente, desde 2001, pela Universidade Pedagógica Nacional (UPN), do México, inicia um modo de fazer “história do presente”, nas palavras de Guadelupe, que vai além dos limites nacionais, para chegar agora a nosso país. O objetivo que acompanha esta produção há mais de dez anos no México, e agora no Brasil, é “oferecer ensaios que analisam, os principais problemas, propostas, realizações, sucessos e fracassos que o sistema educativo vem enfrentando nos últimos anos, e que tenham sido registrados nas notícias publicadas pelos principais periódicos do país” (Garcia, 2004, p. 158).

Segundo Guadelupe, sua condição de brasileira-mexicana1 e seu interesse constante pela realidade educacional de ambos os países levaram-na a propor este projeto ao Iela. O Anuário tomou como fonte primária as notícias sobre educação veiculadas no ano de 2008 pelos jornais on-line existentes no país. Coletadas diariamente, essas fontes foram organizadas por temas num banco de dados, que pode ser consultado com acesso gratuito. Posteriormente analisadas por especialistas, resultaram na publicação do Anuário educativo brasileiro: visão retrospectiva.

Um anuário pode ser pensado como uma publicação anual, mas também e principalmente – e este foi o desafio da professora Guadelupe – como o registro de um momento histórico e uma importante fonte de estudo do cenário educacional brasileiro. O ano que este Anuário registra, em 2008, é significativo na política educacional brasileira: tinham-se passado seis anos do Governo Lula; cumpriam, aproximadamente, um ano de existência o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) e o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), o Programa Brasil Profissionalizado, o Ensino Médio Integrado, o Ensino Médio Inovador, ações afirmativas nas universidades federais – todos eles impulsionados pelo governo federal. Outros programas, implementados há pelo menos quatro anos, tais como: o Programa Universidade para Todos (Prouni), o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), continuavam sendo aspectos importantes de debate. Também outros atores sociais tomavam maior visibilidade na arena político-educacional: o movimento Educação para Todos, o Observatório da Educação, entre outros.

Ao mesmo tempo, no cotidiano escolar também se renovavam situações conflitivas – indisciplina ou violência; laicidade versus luta pela hegemonia religiosa na escola pública; condições de trabalho docente e qualidade do ensino; as TIC e as mudanças nos processos educativos. Podemos dizer que estávamos diante de um cenário educacional em que conviviam velhos e novos problemas, velhos e novos desafios, em todos os níveis de ensino.

Esses e outros temas que repercutiram nas matérias dos jornais brasileiros ao longo de 2008 são analisados por especialistas na área, no Anuário educativo brasileiro: visão retrospectiva. Uma obra desse porte nos obriga a refletir sobre o que significa que um tema tenha grande repercussão na mídia. Ela dá uma conotação valorativa à realidade existente e coloca assuntos em pauta nas conversas no lar, no trabalho ou entre amigos.

Segundo Thompson (2002), a mídia cria, para a esfera política, um capital simbólico que é a credibilidade, ou a destruição dela, sobre determinada ação, situação social ou personagem público. A constatação dessa influência na formação de opinião pública a respeito de temas de interesse comum, na esfera da ação política e privada, levou a mídia a ser definida como o quarto poder.

A educação nunca foi um tema especialmente relevante nos meios de comunicação de massa, porém, a partir da década de 1990, quando a reforma da educação sob uma perspectiva sistêmica passou a formar parte da agenda da maioria dos governos dos países no Ocidente, ela também veio aocupar, aos poucos, maior espaço na mídia. Isso se deve a vários fatores, um deles é o fato de essa reforma educacional no Brasil fazer parte de uma tendência internacional de reforma da gestão do espaço público e do papel do Estado, que precisava do convencimento Nora Krawczyk da sociedade; outro é a retomada da sobrevalorização da educação como potencial de empregabilidade, mobilidade social e competitividade do mercado nacional no âmbito internacional.

Por último, mas não menos significativa, a importância que toma, nas últimas décadas, a informação, com vista à orientação e ao controle da ação social e política. Isto é, hoje a mídia pode ser considerada um dos dispositivos de regulação2 social da educação, que difunde um tipo particular de informação, de conhecimento.

Ao mesmo tempo que a mídia põe em evidência momentos de problematização pública de determinado tema, ela mesma também problematiza, seleciona e põe em circulação determinadas informações e pontos de vista, chamando a atenção da população e buscando sua adesão.

Anuário educativo brasileiro: visão retrospectiva é composto por 20 artigos, organizados em três partes: “Ano de 2008: a educação nacional em questão”; “Novos contornos da educação brasileira”; e “O tempo presente da educação escolar”. A escrita desses artigos conta com a colaboração de José Marcelino de Rezende Pinto; Roberto Leher; Gaudêncio Frigoto; Luiz Antônio Cunha; Vânia C. Mot a; Luiz Araújo; Carmen Sylvia Vidigal Moraes e Celso João Ferreti; Maria Ciavata e Marise Ramos; Angela C. de Siqueira; Maria Teresa Esteban; Marcelo Badaró Mat os; Eliete Ávila Wolff; Gilvan Müller de Oliveira, Erni J. Seibel; Dalila Andrade Oliveira e Ada Ávila Assunção; Regina Leite Garcia; José Sérgio Carvalho; Francisco José da Silveira Lobo Neto; Flávia Schilling e Silene de Moraes Ares Freire.

É, sem dúvida, uma literatura bastante interessante para estudiosos e “curiosos” da situação educacional atual em nosso país. E, para finalizar, gostaria de recuperar a lembrança – presente na página 430 deste Anuário – de uma afirmação de Eric Hobsbawm no prefácio a A era dos extremos (1995): ao referir-se às fontes que lhe foram imprescindíveis para compreender o seu presente, destaca, entre outros, a imprensa diária ou os periódicos. O Anuário educativo brasileiro: visão retrospectiva oferece-nos não apenas um registro dos artigos divulgados pelos jornais disponibilizados pela internet – que em si mesma é uma fonte de estudo de extrema importância -, como também, e principalmente, a análise deles de forma independente, crítica e contextualizada numa realidade concreta.

Notas

  1. 1. Guadelupe é uma professora brasileira radicada no México desde 1974.
  2. 2. Com o termo “regulação”, refiro-me à dimensão do fenômeno definido por Barroso (2006, p. 13) como “(…) um processo activo de produção de ‘regras de jogo’ (Reynaud, 1997 e 2003) que compreende, não só, a definição de regras (normais, injunções, constrangimentos, etc.) que orientamo funcionamento do sistema, mas também o seu (re)ajustamento provocado pela diversidade Anuário educativo brasileiro: visão retrospectiva de estratégias e acções dos vários actores, em função dessas mesmas regras. De acordo com esta abordagem, num sistema social complexo (como é o sistema educativo) existe uma pluralidade de fontes, de finalidades e modalidades de regulação, em função da diversidade dos actores envolvidos, das suas posições, dos seus interesses e estratégias”.

Referências

BARROSO, J. (Org.). A regulação das políticas públicas de Educação. Lisboa: Educa, 2006. p.13.         [ Links ]

GARCIA, R.L. Entre_vista Guadelupe Terezinha Bertussi e o Anuário da Educação do México. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 25, p. 156-176, jan.-fev.mar.-abr. 2004.         [ Links ]

DELVAUX, B. Qual é o papel do conhecimento na acção pública?. Educação & Sociedade, Campinas, v. 30, n. 109, p. 959-985, set.-dez. 2009.         [ Links ]

HOBSBAWM, E. A era dos extremos. O breve século XX, 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 9.         [ Links ]

THOMPSON,J.B. O escândalo político: poder e visibilidade na era da mídia. Petrópolis: Vozes, 2002.         [ Links ]

Nora Krawczyk – Doutora em Educação e professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: norak@unicamp.br

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Direita para o social e esquerda para o capital: intelectuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil – NEVES (ES)

NEVES, Lúcia Maria Wanderley (Org). Direita para o social e esquerda para o capital: intelectuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil. São Paulo: Xamã, 2010. Resenha de: SOUZA, Silvana Aparecida de. Direita para o social, esquerda para o capital. Educação & Sociedade, Campinas, v.32 no.117 out./dez. 2011.

Lançado em outubro de 2010, na 32ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), pela editora Xamã, com cuidadoso prefácio de Roberto Leher e apresentação de Eurelino Coelho, Direita para o social e esquerda para o capital: intelectuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil é organizado por Lúcia Maria Wanderley Neves, professora aposentada da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV-FIOCRUZ) e coordenadora do Coletivo de Estudos de Política Educacional ligado àquela instituição. Com larga experiência e apoiada no referencial teórico marxista/gramsciano – a partir do qual tem desenvolvido um continuum de estudos e pesquisas em políticas e educação no Brasil, em suas relações com o processo permanente de reestruturação do modo de produção capitalista -, Lúcia Neves é autora, coautora e organizadora de diversos outros livros na área educacional.

Os demais autores do livro – André Silva Martins, Daniela Mot a de Oliveira, Ialê Falleiros, Marcela Alejandra Pronko, Marcelo Paula de Melo, Marco Antonio Carvalho Santos, Maria Teresa Cavalcanti de Oliveira e Vanja da Rocha Monteiro – integram o Coletivo de Estudos de Política Educacional coordenado por Lúcia Neves.

Tendo como recorte as relações superestruturais que produzem e reproduzem a alienação na sociedade capitalista, o título do livro per si já é bastante provocador e, por isso, um convite instigante à leitura.

Escrito de forma coletiva, seus autores, em uma demonstração de domínio do pensamento do italiano Antonio Gramsci, tratam do processo de formação e de atuação instrumental dos intelectuais orgânicos ou tradicionais, individuais ou coletivos1 na sociedade, sobretudo no momento histórico atual.

Para além do alto domínio conceitual e teórico, os autores demonstram, do ponto de vista histórico, a constituição e os determinantes do processo de propagação das ideias que fundamentam “a nova pedagogia da hegemonia”;, mais especificamente na sociedade capitalista contemporânea. Tratam do contexto da Guerra Fria, apontando um conjunto de ações desenvolvidas na época de ouro do capitalismo para efetivar uma verdadeira campanha cultural, cujo objetivo era difundir na intelectualidade ocidental não só a aceitação como a exaltação do “americanismo”; como modo de vida. O objetivo de tal campanha era fazer com que o poder de formação de opinião das massas que a intelectualidade detém se voltasse a favor do American way of life.

A partir daí, os autores listam uma série de instituições de natureza pública e/ou privada, criadas na América Latina e no Brasil, com o objetivo de orientar as políticas públicas, a tomada de decisão dos governos e constituir um quadro de servidores públicos de carreira formados a partir de uma concepção desenvolvimentista, mas, antes de tudo, anticomunista.2

Na década de 1970 teve início um processo de crise no interior do capitalismo que levou ao fortalecimento da doutrina neoliberal e que propiciou, em pouco tempo, a “mundialização do capital, com seus exorbitantes ganhos financeiros e suas desastrosas consequências no aprofundamento das desigualdades sociais”; (Neves, 2010, p. 66).

Data desse período a origem da Terceira Via, que se apresentou como alternativa indispensável para “suprimir o potencial de conflito dos primeiros regimes de direita radical (Thatcher e Reagan), eliminando a oposição ainda existente à hegemonia neoliberal”; (idem, ibid., p. 70), quando passou a ocorrer a formação de uma nova subjetividade coletiva que resultou em uma nova sociabilidade, que tem se traduzido em uma prática política da direita para o social e da esquerda para o capital.

Nesse contexto, o grupo, que é profícuo em cunhar expressões – condição que acaba por caracterizar sua forma bem humorada de produzir explicações que retratem sofisticadamente o real -, utilizando-se metaforicamente de um fenômeno da natureza, chama de “pororoca do novo mundo”; o encontro de correntes políticas distintas, à direita para o social e à esquerda para o capital, que atualmente se traduz na chamada Terceira Via.

A partir de então, os autores se propõem a explicitar os fundamentos teóricos que dão sustentação ao projeto neoliberal da Terceira Via no Brasil e, para tanto, realizam a análise dos princípios da “pedagogia da hegemonia”;. Para esta tarefa, selecionaram obras clássicas de vários teóricos, de diferentes áreas, que sustentam, com alguma diferença entre eles, que a atual fase do capitalismo se configura como um mundo novo. Isso está de acordo com a teoria do fim das classes e de que o trabalho não é mais categoria central para explicação da realidade e sim o conhecimento, a linguagem, a informação ou a cultura. Os teóricos analisados são: Alain Touraine, Adam Schaff, Robert Putnam, Peter Drucker, Boaventura de Souza Santos, Manuel Castells, Edgar Morin, Zygmunt Bauman, Michel Hardt e Antonio Negri.

Na última parte do livro os autores se ocupam da análise da influência dos “intelectuais coletivos”; com atuação na formação política e escolar da sociedade brasileira contemporânea, tendo escolhido para o estudo de caso a Fundação Getúlio Vargas (FGV) e o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE), ambos pelo papel formador dos quadros intelectuais brasileiros, tanto para a área pública quanto para a privada.

No que diz respeito à FGV, que, desde sua criação em 1944, forma gestores para o setor público e para o campo empresarial privado, sua influência é extensa na definição de políticas públicas no país, pois muitos de seus professores e pesquisadores ocuparam e ocupam cargos importantes no governo federal; a Fundação, por intermédio de seus vários institutos, tem prestado permanentemente consultoria e assessoria econômica a governos brasileiros; possui vasta e diversificada linha editorial de revistas científicas, entre as mais conceituadas do país na área de Administração e Economia; organiza e realiza uma diversidade enorme de eventos, congressos e seminários nacionais e internacionais; nos últimos anos, cresceu sobremaneira sua atuação na prestação de serviços de consultoria para o setor privado, assim como na oferta de serviços educacionais (cursos de curta duração, de graduação e pós-graduação, nas modalidades presencial e a distância), formando gestores agora também para a chamada economia social, solidária ou ligada ao Terceiro Setor.

Já o IBASE foi inicialmente administrado por exilados e políticos cassados pela ditadura militar, que retornaram ao país com a anistia política de 1979, e tinha por principal objetivo prestar assessoria aos movimentos sociais comprometidos com a democratização do Brasil. No entanto, com o passar do tempo, seus objetivos foram mudando e hoje o Instituto atua, sobretudo, junto às organizações não governamentais (ONG) voltadas à prestação de serviços sociais para segmentos populacionais considerados “excluídos”.

Assim, a pesquisa demonstra que tanto a FGV quanto o IBASE, na condição de organizações da sociedade civil, atuam, cada uma a seu modo, como intelectuais coletivos na legitimação da nova pedagogia da hegemonia, de acordo com os preceitos da Terceira Via.

É com esta análise da influência dos intelectuais coletivos que os autores optam por terminar o livro sem tecer as conhecidas “considerações finais”, ou mesmo uma síntese, presente no encerramento da maioria de estudos dessa natureza. Porém, considerando que Direita para o social… constitui uma sequência articulada às discussões realizadas em trabalho anterior (A nova pedagogia da hegemonia), arriscaria dizer que a forma como o livro termina sugere que teremos uma espécie de trilogia, pois é sabido que o Coletivo de Estudos de Política Educacional continua cada vez mais bem articulado e está com nova pesquisa em andamento, que, norteada pelo mesmo referencial teórico, agora contempla a análise do chão da realidade escolar pública brasileira.

Enfim, o livro coordenado por Lúcia Neves se apresenta como uma referência importante para o debate da esquerda educacional brasileira, por sua relevância teórica, pela pertinência das relações que estabelece, mas, sobretudo, por não perder a perspectiva da ruptura com a lógica destrutiva do capital.

Notas

1. Antonio Gramsci entendia por intelectuais indivíduos ou organizações formadoras, organizadoras e/ou propagadoras, em diferentes linguagens, da cultura e das ideias que fundamentam uma determinada concepção de mundo e de classe. Portanto, em acordo com a conceituação gramsciana, um partido, um sindicato, a Igreja ou qualquer outra organização podem assumir, em qualquer momento, a condição de intelectual coletivo.

2. Observe-se que, de acordo com a teoria gramsciana, a sociedade civil pode dar certa direção às políticas públicas, por meio de organizações que se convertem em intelectuais coletivos, o que, em sua teoria de Estado, denomina-se “aparelhos privados de hegemonia”. No entanto o autor esclarece que a classe dominante tem melhores condições de fazer isso do que a classe que luta no plano contra-hegemônico (Gramsci, 2000).

Referências

GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. v. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.         [ Links ]

NEVES, L.M.W. (Org.). A nova pedagogia da hegemonia: estratégias do capital para educar o consenso. São Paulo: Xamã, 2005.         [ Links ]

NEVES, L.M.W. (Org.). Direita para o social e esquerda para o capital: intelectuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil. São Paulo: Xamã, 2010.         [ Links ]

Silvana Aparecida de Souza – Doutora em Educação e professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). E-mail: souzasilvana@uol.com.br

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Trabalho intensificado nas federais: pós-graduação e produtivismo acadêmico – SGUISSARDI; SILVA JUNIOR (ES)

SGUISSARDI, Valdemar; SILVA JUNIOR, João dos Reis. Trabalho intensificado nas federais: pós-graduação e produtivismo acadêmico. São Paulo: Xamã, 2009. 271p. Resenha de: Educação & Sociedade, Campinas, v.32 no.115 abr./jun. 2011.

A publicação do livro Trabalho intensificado nas federais: pós-graduação e produtivismo acadêmico, pela editora Xamã, não poderia ter sido mais oportuna. A precarização do trabalho docente e de pesquisa, especialmente nas instituições federais de ensino superior (IFES), chegou às raias do insuportável, com consequências avassaladoras não só para o professor, mas para o próprio desenvolvimento científico brasileiro. Em poucas palavras, além de prejudicar a condição do professor-pesquisador, também falhou no crescimento e eficácia científico-tecnológica. Aliás, é necessário registrar que a editora tem mantido importante portfólio de publicações que contribuem decisivamente para a discussão desse tema fundamental da educação no Brasil.

Os autores, João dos Reis Silva Júnior e Valdemar Sguissardi, possuem vasto conhecimento sobre o assunto, não só por publicações anteriores,1 mas fundamentalmente pela atuação como educadores. Silva Júnior é professor e pesquisador do Departamento de Educação e da Pós-Graduação, na mesma área, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com pós-doutorado em Sociologia Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Sguissardi também foi professor da UFSCAR, tendo-se aposentado como professor titular. Seus mestrado e doutorado em Ciências da Educação foram realizados na Universidade de Paris X (Nanterre).

Na pesquisa que empreenderam, os autores centraram o foco no setor de pós-graduação das instituições federais do Sudeste, polo mais concentrado de universidades e local onde a intensidade da precarização do trabalho docente e de pesquisa é mais evidente, embora saibamos que esse mal afeta – miseravelmente – todo o país.

A principal característica do estudo, e que merece ser ressaltada em primeiro lugar, é a tese dos autores de que “o movimento reformista na esfera educacional é parte das mudanças da racionalidade capitalista propiciadas pela mundialização do capital” (p. 255). Ou seja, o movimento reformista em geral não é estudado de modo isolado, como se não fizesse parte de um todo social que tem um sentido e um significado concretos. Sem desconsiderar as especificidades de cada país, a reforma é analisada como um movimento mundial, que mantém traços de identidade em todos eles, a partir da racionalidade da transição para essa mundialização do capital. Sem esquecer jamais que este processo se dá sob a influência do poder dos Estados Unidos.

Em relação à reforma educacional no Brasil, duas hipóteses principais orientaram o estudo dos autores: por um lado, as mudanças no processo acadêmico-científico e a intensificação do trabalho do professor-pesquisador; por outro, a centralidade da pós-graduação como polo gerador da efetiva reforma universitária das IFES, que resulta no produtivismo acadêmico, instrumental e ideológico. Portanto, a reforma promoveu mudanças na identidade da instituição universitária e de seus professores. Essas mudanças forjaram a emergência de uma “nova” universidade e as consequências disso para os professores estenderam-se para outros tempos de sua vida, invadindo a esfera pessoal e familiar. Essa extrapolação foi um de seus principais prejuízos.

Para a demonstração dessas hipóteses, Sguissardi e Silva Júnior desenvolveram suas reflexões com base na historicidade do tema e do foco teórico e empírico de vários autores do século XIX até os dias atuais. O resultado desse caminho de pesquisa demonstrou que o núcleo da ideologia do produtivismo acadêmico, como política de Estado e de cultura institucional, tem, no mínimo, duas graves implicações: no âmbito filosófico, o pragmatismo; no âmbito econômico, a mercadorização da ciência e da inovação tecnológica. Consequência: a pós-graduação – nestes moldes – tornou-se o polo gerador de uma reforma da instituição universitária que tende a colocá-la a reboque do mercado.

Os autores denunciam que este processo é sutil, mas extremamente eficaz, pois, ao usar a pós-graduação como núcleo gerador das mudanças na prática universitária, provoca um efeito multiplicador até a base da pirâmide educacional. Dito de outro modo, as reformas educacionais nos demais níveis e modalidades – da reforma do Estado à reforma da municipalização escolar – são orientadas por documentos produzidos pelos mesmos mentores que orientam a reforma no ensino superior. Portanto, os documentos que pautam a reforma, da educação infantil à pós-graduação e à indução da pesquisa pelo CNPq e sua regulação pela CAPES, são quase todos produzidos pelos mesmos especialistas e pesquisadores. Não é, enfim, um processo aleatório. Ao contrário, é um movimento geral muito bem articulado e amarrado.

Essa radical mudança da identidade da universidade promove continuamente um acréscimo do trabalho imaterial produtivo (pesquisa aplicada) do professor.

É este trabalho que garante boas notas aos programas de pós-graduação, segundo os critérios estabelecidos pelo CNPq. A perversidade do mecanismo é, grosso modo, o seguinte: o professor-pesquisador, por sua “própria vontade”, a fim de atingir as metas estabelecidas, aumenta em muitas horas seu trabalho semanal. E a universidade, que “deveria ser o lugar privilegiado da desalienação” (p. 264), promove justamente o oposto: por indução das políticas governamentais, “predomina o pragmatismo e, com ele, a utilidade alienante a que se submete grande parte dos professores” (idem).

O prefaciador do livro, Francisco de Oliveira, ressalta estes aspectos centrais da obra com sua habitual erudição, oferecendo ao leitor não só uma síntese privilegiada da pesquisa dos autores, como um quadro histórico do surgimento de universidades multisseculares tais como Bolonha, Sorbonne e Oxford, localizando o surgimento tardio das universidades brasileiras: “O Brasil é um país ‘tardio’: capitalismo tardio, independência tardia, abolição tardia, industrialização tardia e… universidade tardia” (p. 12). Com base nos dados fornecidos por Silva Júnior e Sguissardi, Oliveira aproveita a oportunidade para demonstrar que, no Brasil, enquanto se elevam os coeficientes de produção intelectual por docente, rebaixam-se os recursos para a universidade, numa contradição “bem brasileira” (p. 13).

É importante registrar que esses dados fornecidos pelos autores trazem um panorama das universidades hoje, com o propósito de dar ao leitor a compreensão da função estratégica das IFES. Isso é um aspecto fundamental do livro, pois apresenta uma parte bastante árida – porém, absolutamente necessária – da minuciosa pesquisa empreendida por eles, apresentando os números da precarização do trabalho docente nas IFES do Sudeste. A riqueza dos quadros estatísticos merece ser avaliada com tempo e dedicação, pois podem servir de base a uma ampliação ainda maior das reflexões suscitadas pelo livro. E isso apenas nos dois primeiros capítulos. Nos capítulos como um todo, são pelo menos cinco as questões mais importantes trabalhadas, e respondidas, pela pesquisa dos autores: a forma como as instituições concretizam as diretrizes e metas oficiais, como sujeito coletivo, por meio da prática universitária; os traços mais significativos do processo da identidade institucional pós-reforma; o trabalho e a identidade do professor universitário transformado em função da reforma; a reação do professor à racionalidade utilitária e pragmática da reforma no âmbito cotidiano; e as consequências da precarização do trabalho do professor-pesquisador para sua vida pessoal.

Para finalizar, os autores fazem uma instigante referência à cegueira, citando o polêmico romance de José Saramago, Ensaio sobre a cegueira. Sguissardi e Silva Júnior quiseram caracterizar em seu livro a “cegueira branca” de parte significativa dos professores-pesquisadores na “crua realidade da nova universidade em construção dos tempos FHC-Lula”, que se preocupam em enriquecer seu currículo Lattes e cumprir à exaustão os deveres de ofício. O livro, fruto de árduo trabalho de investigação, contribui para a percepção de que esse professor também “se fatiga, adoece e ‘morre’ um pouco a cada minuto de suas práticas universitárias” (p. 254). Tomara que seja possível – pois é urgente – desvelar a mente, ler, refletir e tomar consciência da gravidade das questões denunciadas pelos autores.

Nota

1. Publicaram conjuntamente o livro Novas faces da educação superior no Brasil –reforma do Estado e mudança na produção (São Paulo: Cortez; EDUSF, 2001). Silva Júnior publicou também Pragmatismo e populismo na educação superior no Brasil de FHC e Lula(São Paulo: Xamã, 2005) e Reformas do Estado e da educação no Brasil de FHC (São Paulo: Xamã, 2003). Sguissardi também publicou Universidade, fundação e autoritarismo: o caso da UFSCAR (São Carlos: EDUFSCAR; Estação Liberdade, 1993) e organizou duas coletâneas: Avaliação universitária em questão – reformas do Estado e da educação superior (São Paulo: Autores Associados, 1997) e Educação superior: velhos e novos desafios (São Paulo: Xamã, 2000).

Paulo Douglas Barsotti – Doutor em História Econômica e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). E-mail: pdbarsotti@gmail.com

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Do meb à web: o rádio na educação – PRETTO; TOSTA (ES)

PRETTO, Nelson de L.; TOSTA, Sandra P. (Orgs). Do meb à web: o rádio na educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. Resenha de: REIS, Magali. “Radinho de pilha”: sintonia fina entre educação e comunicação. Educação & Sociedade, Campinas, v.32 n.114 jan./mar. 2011.

Os fios da trama que unem os estudos que compõem o livro são tecidos por José Peixoto Filho, já no primeiro ensaio, ao recuperar a experiência do Movimento de Educação de Base (MEB) e suas contribuições para a educação popular. O meb surgiu no âmbito das mudanças em curso no país, durante a década de 1950, como uma das possibilidades educativas que buscavam soluções para os problemas enfrentados pela população pobre. No âmbito das mudanças no cenário político e econômico, confluíram interessas e alianças entre o poder público e a hierarquia católica para que ações efetivas fossem realizadas, com os segmentos mais carentes da sociedade.

Segundo Peixoto Filho, o MEB realizou um amplo espectro de trabalho no campo da educação popular, na alfabetização de jovens e adultos e na mobilização social dos trabalhadores rurais. Na prática, prossegue o autor, a educação popular desenvolvida pelo Movimento, entre 1961 e 1966, empregou técnicas, métodos e recursos, simples e artesanais, porém criativos e inovadores para a época, visando à comunicação com a população do campo. Porém, um aspecto que chama a atenção é que o meb teve como instrumento pedagógico básico o rádio, que possibilitou ao mesmo tempo o uso de técnicas de comunicação associadas com atividades presenciais, realizadas em sala de aula nas comunidades. A utilização do rádio deu-se por sua abrangência, possibilitando chegar a regiões mais distantes do país, utilizando para tanto recursos da tradição oral.

Ainda que tenha sido esta uma experiência bem sucedida de educação popular, permanece pouco estudada e pouco difundida no meio acadêmico. Portanto, o mérito da obra é colocar em evidência a díade novas-e-velhas tecnologias que, combinadas, podem redundar em uma experiência educativa contemporânea e promissora.

Assim, o uso de diversas formas de expressão, em meados do século passado, por profissionais de rádio, sejam eles programadores, locutores, escritores e produtores de programas, abriu caminhos para a construção de novas linguagens pedagógicas e didáticas, ainda pouco assimiladas pela estrutura escolar brasileira, em especial a pública.

O rápido avanço no desenvolvimento e aprimoramento das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC) coloca em relevo um universo de possibilidades para a comunicação entre populações distintas, antes inimagináveis, desafiando as ciências sociais e humanas com a abertura de campos de indagação que oferecem oportunidades de pesquisa e aplicação num universo que se renova a cada momento.

A coexistência do rádio hertziano e do analógico configura-se como um universo em que a comunicação se amplia de forma inexorável. Cria-se assim um conjunto de possibilidades trazidas pela era digital, abrindo caminhos para inovações pedagógicas do meb à web, a fim de buscarmos não apenas a compreensão dos novos contextos nos quais se inserem as tecnologias, mas o entendimento de fato das possibilidades das rádios na web.

O livro está organizado em doze capítulos, que apresentam ao leitor uma gama de pesquisas de alta qualidade teórico-metodológica e que reúnem uma diversidade de pesquisadores de diferentes origens, expressando a pluralidade de pensamento, orientação teórica e experiências vivenciadas com o fenômeno radiofônico, nacionais e internacionais.

Estudos comparados entre Brasil, Portugal e Espanha mostram a relação entre a educação contemporânea e a rádio na web, como importante apoio didático, combinando aulas, debates e formação on-line. Seguindo esta linha de pensamento, destaca-se na obra o artigo de Marcelo Mendonça Teixeira, Juan José Perona Paez e Mariana Gonçalves Daher Teixeira, que analisam a rádio web universitária como modalidade educativa e audiovisual em contexto digital, especialmente o caso da Espanha e Portugal, com duas experiências marcadamente bem sucedidas desenvolvidas pela Radio Universitária do Minho (RUM), em Portugal, e pela Radio uned (Universidade Nacional e Educação a Distância), na Espanha. Os autores enfatizam o baixo custo das rádios universitárias, comparado com outros meios. Neste mesmo artigo, destaca-se ainda a distinção entre diferentes modalidades de rádio educativa, tais como: emissoras de centros educativos, emissoras formativas, socioinformativas, programas educativos e “edu-webs” radiofônicas, as quais se configuram de forma bastante diferenciada das chamadas rádios comerciais ou generalistas.

As rádios comunitárias, objeto da atenção de Lílian Mourão Bahia, também cumprem um papel específico que, segundo a autora, tem fundamental importância na construção e no exercício da cidadania. A programação das rádios comunitárias em geral chama a atenção para temáticas de interesse da coletividade e inserem a comunidade no contexto dos municípios onde atuam. De tal modo, a relação estabelecida entre emissora comunitária e a própria comunidade é caracterizada pelo dinamismo da localidade, respeitando os sujeitos sociais locais e oferecendo oportunidades de aprender com as vivências de cada grupo social.

Aparentemente mais democrática que o aparelho hertziano, a web rádio é interessante, porém ainda exige um aparato tecnológico mais caro, isto é, o computador, como também requer certo domínio do software, algo inatingível para a maioria da população brasileira ou, dito de outro modo, ainda não há nada como o bom e velho radinho de pilha, cujos custos tendem a ser muito menores, embora do ponto de vista geográfico seja menos abrangente que a web, que permite ouvir a programação nacional e internacional de qualquer ponto fixo. O rádio convencional, neste aspecto, é limitado a frequência das ondas. Porém, distingue-se de outras tic pelo despojamento do sujeito frente ao aparelho, prendendo-o apenas pelo imaginário, uma vez que a programação pode ser ouvida em qualquer lugar, sem a necessidade de interromper tarefas cotidianas, proporcionando, não obstante, ao sujeito a reflexão, a formação de imagens mentais e o exercício da criatividade.

O que está em evidência no conjunto de artigos que compõem a obra, contudo, é o caráter educativo da radiodifusão, sua vertente mais democrática, de um lado, e seu potencial revolucionário, de outro. Seu potencial transgressor possibilita uma educação capaz de apontar caminhos para a superação das desigualdades sociais, oferecendo uma possibilidade de coesão social, articulada, obviamente com outras políticas públicas que visem a população historicamente excluída da apropriação de bens sociais e direitos que lhes são continuamente expropriados, em favor de um só grupo social, isto é, aquele que conduz a economia, a política e a cultura do país, agindo em seu próprio favor.

Indico a leitura desta obra para aqueles que têm em mente que a educação não ocorre apenas nos espaços restritos da sala de aula, mas também no campo, na lavoura, no canteiro de obras. Esse é o potencial eminentemente transgressor do rádio, que, no entanto, é pouco teorizado na pesquisa e pouco utilizado como componente didático nas escolas.

Olhar e ouvir o rádio de outra maneira, compreendendo-o como ferramenta complementar à educação formativa e informativa das pessoas, este é o desafio que a obra nos coloca. Não deixem de ler!

Magali Reis – Doutora em Educação e professora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MINAS). E-mail: magali_reis@pucminas.br

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Discursos, tecnologias, educação – BARRETO (ES)

BARRETO, Raquel Goulart. Discursos, tecnologias, educação. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2009. 186p. Resenha de: SCHAPPER, Ilka. Por entre discursos, tecnologias e educação. Educação & Sociedade, Campinas, v.31 no.110 jan./mar. 2010.

No livro intitulado discursos, tecnologias e educação, Raquel Goulart Barreto, logo na primeira linha da Apresentação, demarca o território em que a obra transita: “é um livro teórico-metodológico”. Este binômio já prepara o leitor para um texto circunscrito na fronteira do trabalho de pesquisa. Seus diálogos, nos dez capítulos, são tecidos a partir de cursos, percursos e discursos inscritos no grupo de pesquisa “Educação e Comunicação”, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Tendo como eixo a educação, a obra trata da análise crítica dos discursos (ACD) sobre as apropriações das tecnologias da informação e da comunicação (TIC).

O discurso pedagógico contemporâneo é o elemento que articula a tríade do título. Fundamentada em Norman Fairclough, Barreto estabelece significativa interface com autores como Mikhail Bakhtin e Eni Orlandi, que possibilitam ampliar o debate dos diferentes aspectos dos recortes selecionados.

Os capítulos estão organizados em três partes, que trazem o movimento entre fundamentação teórica e sua aplicação em “exercícios analíticos”. Na primeira parte, três capítulos traçam o horizonte teórico-metodológico da obra. Em “Para começo de conversa: texto, discurso(s), intertextualidade”, o leitor tem notícia das trilhas percorridas no livro: dimensiona o discurso como conceito teórico-metodológico, nas acepções discutidas por Fairclough. Essa discussão toma corpo no segundo texto, “Análise crítica do discurso (ACD): realismo crítico, performatividade e ideologia”, em que Barreto aborda as relações dialéticas entre elementos semióticos (“discurso”, no sentido mais amplo) e as outras práticas sociais, demarcando, em oposição ao idealismo, o realismo crítico na objetivação da linguagem. No terceiro texto, a autora, trazendo também Felinto e Mattelart, discute a tese de que as TIC têm sido fetichizadas no imaginário tecnológico, no enredo dos discursos nodais da globalização e da “sociedade do conhecimento”.

Na segunda parte do livro, o leitor tem um interessante encontro que é um interregno entre o primeiro e o terceiro momento da obra. No texto “O discurso da inclusão”, Barreto, em coautoria com Leher, discute os sentidos atribuídos ao termo, com base no materialismo histórico-dialético. Em “Cenários enunciativos no Admirável Mundo Novo“, em parceria com Ramos, há uma aproximação entre Bakhtin e Fairclough, a partir do recorte de cenas enunciativas do livro de Huxley.

Na terceira parte da obra, temos os exercícios analíticos em que podemos encontrar interessantes pesquisas que retomam a tríade do título. Em “Não só palavras: dos textos multimidiáticos à ressignificação das práticas escolares”, Barreto e Guimarães discutem a configuração multimidiática dos textos contemporâneos, focalizando, no conjunto das tendências discursivas transnacionais, as linguagens articuladas na produção, circulação e legitimação dos sentidos.

O debate se aprofunda no texto “Formação de professores: entre o discurso da falta e propostas de substituição tecnológica”, em que Barreto analisa a tendência a desqualificar a formação e o trabalho docente, no movimento de produzir alternativas centradas apenas nas TIC. O encaminhamento parte do conceito de recontextualização e assume como parâmetros as ressignificações de ensino e aprendizagem.

Os capítulos seguintes tratam de aplicações do referencial teórico-metodológico. Em “Dualidade escolar: os sentidos das TIC”, Barreto e Magalhães trazem o conceito gramsciano para a discussão dos sentidos atribuídos às TIC nas vozes de coordenadores, professores e alunos de dois contextos escolares caracterizados pelo atendimento a classes sociais desiguais. Em “Discursos de professores do ensino público noturno: entre o cotidiano e o imaginário”, Barreto e Fernandes abordam possibilidades de acesso ao imaginário tecnológico de professores, procurando detectar reflexão-refração do sentido hegemônico atribuído às TIC, nos territórios demarcados pelo título. Em ambos, a ACD é desenvolvida a partir de pontos de entrada que remetem a Fairclough: pressupostos, modalidade e escolhas lexicais.

No último capítulo do livro, a autora traz como título uma pergunta: “Ponto final?”. Barreto destaca que o que cabe no desfecho “deste desmonte das tramas constitutivas da ideologia como hegemonia de sentido, na objetivação das relações entre as TIC e a educação, é a aposta na produção de possibilidades outras” (p. 177). Uma aposta que traz as marcas de outra interrogação: o que fazer com tudo isso? E, na tentativa de responder à questão, mais uma vez, a autora presenteia o leitor com uma importante reflexão: pensar um projeto “que aponte para o redimensionamento da formação de professores a partir de alternativas de formação-trabalho docente que estão sendo forjadas nas universidades e nas escolas” (idem). Nas produções do grupo de pesquisa “Educação e Comunicação”, a autora desenvolve, junto com os demais pesquisadores, estudos que buscam compreender essas tensões e trazer possibilidades outras para o encaminhamento de questões que atravessam a relação entre os discursos presentes na díade tecnologias/educação.

No entremeio das discussões sobre discursos, tecnologias e educação, Barreto traz importantes contribuições para o debate das TIC no cenário educacional. Trata-se de uma obra de densidade teórico-metodológica que instiga a importantes reflexões e, por isso, a pergunta no último capítulo: Ponto final? A dúvida procede, já que, da maneira como a autora dialoga e instiga o leitor a novas construções, não há ponto final na obra, mas uma vírgula, materializada como reticências, uma pausa em um diálogo que continua com você, leitor.

Ilka Schapper – Doutoranda em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (PUC-SP) e professora adjunta da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: ilkaschapper@gmail.com

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Cinco memórias sobre a instrução pública – CONDORCET (ES)

CONDORCET, Marques de. Cinco memórias sobre a instrução pública. São Paulo: Editora da Unesp, 2008. Resenha de: PIOZZI, Patrizia. Ensino laico e democracia na época das Luzes: as “memórias” de Condorcet para a instrução pública. Educação & Sociedade, Campinas, v.30 no.108 Out. 2009.

Lançado pela Editora da UNESP, com belo texto de apresentação da tradutora, a filósofa Maria das Graças de Souza, chegou às livrarias, em meados de 2008, Cinco memórias sobre a instrução pública, de Condorcet, um clássico do pensamento das Luzes, disponibilizando ao leitor brasileiro um dos projetos pioneiros para a implantação de sistemas nacionais de educação. Referência obrigatória no debate travado pelos iluministas e pelos revolucionários franceses sobre o papel do conhecimento na construção de uma convivência humana mais justa e feliz, “as memórias” circularam pela primeira vez, em Paris, em 1791, em quatro números do jornal Biblioteca do Homem Público, em meio às lutas e confrontos que dilaceravam as várias tendências atuantes na Assembléia Nacional Constituinte. Alguns anos mais tarde, poucos meses antes de sua misteriosa morte na prisão, no período jacobino, ao examinar os caminhos e descaminhos que marcam a história dos “progressos dos espíritos humanos” (Condorcet, 1993), o filósofo pressentia o advento próximo da época de ouro da humanidade, em que a razão e a justiça irradiariam de luz todos os cantos da terra. Os sinais dos novos tempos evidenciavam-se nas descobertas e novas concepções florescidas no âmbito das ciências naturais e da investigação filosófica ao longo dos séculos XVII e XVIII, cujo impacto contribuía sobremaneira para as transformações econômicas e políticas em curso no mundo ocidental.

Dando origem a uma auspiciosa simbiose, as perspectivas de maior prosperidade para todos, abertas pela mecanização do trabalho e pela universalização do comércio, se aliavam ao grande avanço das ideias de igualdade e liberdade, seja no debate intelectual, seja no movimento histórico concreto, inaugurando a “era das revoluções”. Neste contexto amplo, a longa luta das Luzes em prol da liberdade política e da justiça social vivia uma conjuntura extraordinariamente propícia na França revolucionária, onde, pela primeira vez na história da humanidade, a revolta das massas populares contra a miséria e a opressão se fundia ao ideário emancipatório dos “philosophes”. No entanto, o exame atento dos fatos recentes e do passado mais longínquo indicava ao filósofo que nem o progresso das ciências e artes, nem o estabelecimento da democracia política impediriam o surgimento de novas formas de domínio e desigualdade, se os povos não fossem esclarecidos em torno das leis e regras que governam o “cosmos” das coisas e dos homens, aprendendo a aplicá-las, corrigi-las, inová-las de forma inteligente e criativa. Apenas uma pedagogia empenhada em “ilustrar” todos os seres humanos, independentemente de seu país e religião, poderia assegurar a vitória universal e o exercício efetivo dos direitos políticos e sociais conquistados pelas revoluções e fixados nas leis.

Prioridade máxima no programa de reforma social e política das Luzes, a batalha pela popularização do conhecimento, desdobrando-se entre a intervenção direta no campo da cultura e a elaboração de projetos para a renovação educacional, produzia um amplo leque, e embate, de propostas entre os que se posicionavam a favor de uma instrução universal, porém não única, reservando aos filhos do povo um percurso escolar mais curto, fácil e de caráter “instrumental”, e aqueles que advogavam a legitimidade, e necessidade, de um ensino igual para todos. Na esteira dos projetos mais arrojados e libertários dos enciclopedistas, as “memórias” de Condorcet expõem seu ideal de uma instrução pública radicalmente laica, unificada, aberta a todos, explicitando os princípios e fundamentos filosóficos que iriam nortear, um ano mais tarde, o plano de reforma das instituições educacionais francesas, por ele redigido e apresentado à Convenção em nome da comissão encarregada de sua elaboração (Condorcet, 2000).

A publicação desta obra no Brasil é de grande relevância, não só por se tratar de um marco clássico na história do pensamento pedagógico moderno, mas, também, por sua candente atualidade em nosso país, em uma conjuntura em que as questões da qualidade, conteúdo e natureza laica do ensino público ocupam grande espaço nos debates da área, empenhados em definir os alcances e limites efetivos do direito universal à educação garantido na letra da lei.

Em contraste com toda forma dual de instrução, em que os trabalhadores pobres, privados do tempo necessário ao cultivo da mente, ficam aprisionados a um ensino operativo, mero treinamento para executar tarefas, enquanto os caminhos das ciências e artes são destinados àqueles agraciados pela riqueza ou por um talento extraordinário, seu projeto situa-se na perspectiva da formação intelectual, orientada pelo pressuposto de que todos os homens são seres dotados de sensibilidade e aptidão para formar raciocínios complexos e ideias morais. A progressão escolar, cujo sentido e objetivos gerais são apresentados na Primeira Memória, consta de três níveis. A educação comum, correspondente à nossa escola básica, objeto da Segunda e Terceira Memórias, destinase a transmitir as verdades já descobertas para sua aplicação inteligente e criativa na vida social e política; o Quarto Memorial, dedicado à educação profissional, correlato de nosso ensino superior e técnico, trata dos conteúdos específicos, extraídos do universo científico e artístico, adequados a uma “prática ilustrada” das profissões; enfim, o Quinto Memorial discorre sobre o estudo “acadêmico”, aprofundado, nas várias áreas do conhecimento, preparando os alunos para empreender a viagem por sendas inexploradas, na perspectiva de novas descobertas.

Muito além da garantia formal do acesso e permanência sem custos, o caráter democrático da progressão escolar aí imaginada consiste no fato de que, independentemente da diferente complexidade dos métodos e conteúdos, o ensino dirige-se, em todos os seus níveis, a estimular as dimensões analítica, crítica e inventiva da mente humana. Adotando por diretriz a certeza do vínculo essencial entre teoria e prática e tendo em sua base um letramento que privilegia a análise rigorosa de fatos e “verdades”, conduzida por uma argumentação clara, simples e enxuta, a pedagogia proposta pretende propiciar a “autonomia”, entendida como capacidade de julgar e corrigir as leis, regras e fatos que tecem as relações dos homens com a natureza e entre si. Para a consecução desses objetivos, centra-se, desde a fase mais elementar, no ensino das ciências físicas e morais, consideradas mais úteis e adequadas à intervenção prática no mundo. No entanto, não subestima, em momento algum, a importância da fruição artística e literária para o refinamento do gosto e o alimento dos espíritos: o teatro popular figura no texto ao lado das conferências dominicais para adultos, festas cívicas e outras modalidades culturais, instrumentos essenciais para combater o embotamento da sensibilidade e do intelecto resultante das atividades manuais e mecânicas, predominantes na vida dos trabalhadores pobres.

O empenho permanente em potenciar os atributos racionais e sensitivos comuns a todos os membros da cidade humana desvenda ao leitor o amplo sentido emancipatório do ensino radicalmente laico aí proposto: não se trata apenas de proibir o ensino religioso, nas instituições educacionais financiadas pelo Estado, por seu caráter excludente, potencial viveiro de intolerância e fanatismo, mas de fortalecer as mais altas faculdades humanas, dirigindo-as ao questionamento de todas as certezas estabelecidas, inclusive as científicas e filosóficas, zelando para que não se tornem doutrinas, novos objetos de culto. A adesão cega e imediata a mitos, preceitos e “conceitos”, responsável por estagnar o incessante movimento expansivo dos corações e mentes dos homens, encontra seu terreno mais fértil na ignorância e obtusidade permanentemente repostas pela exclusão do universo da cultura e do conhecimento a que são condenados os que vivem prisioneiros do “reino da necessidade”. Nesta ótica, a defesa do ensino laico está essencialmente vinculada à garantia da independência intelectual dos professores, seja da religião dominante, seja da doutrina política dos governantes. A liberdade de ensino, não apenas nas salas de aula, mas, também, nas escolhas do corpo docente, na forma de sua remuneração, na seleção dos livros didáticos, é imprescindível para garantir aos alunos a conquista da “faculdade” de julgar e agir autonomamente.

Um fio condutor une aqueles que, no nível básico, aprendem a aplicar as verdades já descobertas nos trabalhos e negócios cotidianos e no exercício da cidadania, aos que chegam a se apropriar dos conteúdos específicos necessários à atuação mais esclarecida nas profissões e, enfim, àqueles que iniciam a viagem ao mundo desconhecido das descobertas futuras: todos aprendem a analisar, criticar e inventar, contribuindo, de forma diferente, ao avanço das ciências e das artes e ao crescimento do bem estar coletivo.

A relevância e atualidade deste texto para a área da educação consistem em explicitar uma proposta de instrução pública que, na estrutura, nos conteúdos e métodos, tende a superar os limites da meritocracia liberal, projetando-se como uma crítica radical, e utópica, da sociedade competitiva e mercantil então nascente. Sem omitir a importância da implementação de políticas públicas de estímulo ao esforço e aos talentos, exigindo do Estado a sustentação dos estudos para os pobres promissores, o eixo do projeto encontra-se muito mais na mobilização da cultura e do conhecimento, com a finalidade de contrarrestar os efeitos degradantes da divisão entre trabalho manual e intelectual, pela qual se cria um abismo intransponível entre os homens presos às engrenagens do mecanismo produtivo e os que flutuam livremente nos “espaços celestes” da investigação científica e filosófica e das belas artes. Na construção de uma escola que atingiria todas as regiões do país, acolhendo homens e mulheres, ricos e pobres, crianças e adultos que se dispusessem a procurá-la, a recusa de todo tipo de treinamento se une à luta pela divulgação de um conhecimento laico e “esclarecedor”, atribuindo à instrução pública o papel de combater a redução da riqueza, multiplicidade e potência das faculdades humanas a instrumentos automáticos de perpétua reprodução do mesmo, subordinados aos desígnios dos poderosos.

Nos dias de hoje, a hipertrofia do espírito mercantil e competitivo, aliada ao recrudescimento da intolerância étnica e religiosa, predominante no panorama mundial nas últimas décadas, começa a ser solapada por novas ideias e lutas emancipatórias, encontrando expressão, inclusive em instâncias governamentais e parlamentares, na intensificação do debate em torno de políticas públicas voltadas a ampliar os direitos sociais e as liberdades civis. No campo da educação, evidencia-se, recentemente, no Brasil, o crescimento de movimentos intelectuais e políticos, resistindo aos ataques ao ensino humanista, independente e laico, vindos de fora ou do próprio interior das instituições estatais.

A leitura desta obra magnífica, que traz ao leitor um exemplo lúcido e vibrante dos sonhos reformadores florescidos no palco da mais importante luta revolucionária da modernidade, pode indicar caminhos e alimentar esperanças para aqueles que, na perspectiva de uma escola pública democrática, estão em busca de alternativas às mesquinhas orientações produtivistas e individualistas dominantes, responsáveis por reproduzir, sob nova roupagem, a heteronomia do pensar e do sentir, sempre imbricada às formas mais obscurantistas e perversas de insensibilidade social.

Referências

CONDORCET, Marquês de. Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993.         [ Links ]

CONDORCET, Marquês de. Rapport sur l’instruction publique. In: BACZKO, B. (Org.). Une éducation pour la democratie. Genebra: Librairie Droz, 2000. p. 181-258. (Trad. port. Instrução pública e organização do ensino. Porto: Livraria Educação Nacional, 1943).         [ Links ]

Patrizia Piozzi – Doutora em Filosofia e professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: piozzi@unicamp.br

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Repensando la organización escolar: crisis de legitimidad y nuevos desarrollos – ENGUITA; TERRÉN (ES)

ENGUITA, Mariano Fernández; TERRÉN, Eduardo. Repensando la organización escolar: crisis de legitimidad y nuevos desarrollos. Madrid: Akal, 2008. Resenha de: FERREIRA, Naura Syria Carapeto. Educação & Sociedade, Campinas, v.30 n.109  set./dez. 2009.

Com mais uma relevante contribuição nos brinda Mariano Fernández Enguita, em parceria com Eduardo Terrén, sobre a organização escolar e a gestão educacional que assumem, cada vez mais, a centralidade da educação, no sentido da garantia do direito à educação de qualidade para todos os que tiverem acesso à escola, instituição cuja responsabilidade consiste na socialização do saber sistematizado, existindo para propiciar a aquisição dos instrumentos que possibilitam o acesso a esse saber. Com essa preocupação, os autores organizaram a obra Repensando la organización escolar: crisis de legitimidad y nuevos desarrollos, que oferece ao público preciosos elementos para o estudo e exame da organização escolar nos tempos hodiernos, examinados através da perspectiva de renomados intelectuais internacionais que participaram do Seminário organizado pela Universidade Internacional de Andaluzia, Espanha.

A reflexão inicial, intitulada “Centros, redes, proyectos”, é de Enguita, que articula a transformação da escola com a ideia do trabalho em rede posta em circulação na literatura já clássica no contexto da sociedade informacional, contexto este que o autor prefere denominar “sociedade transformacional” para salientar a vertiginosa realidade “intrageneracional” das mudanças sociais. Para Enguita, esta nova realidade põe em questão as mais fundamentais rotinas de trabalho de uma instituição de ensino pensada para etapas de mudanças mais lentas e produzidas no marco de uma antiga divisão entre os produtores e os receptores de conhecimento. Dois ensinamentos fundamentais se extraem deste primeiro ensaio: que as escolas e professores não podem permanecer inertes, face à pressão das constantes mudanças e fluxos de informações, mas necessitam reconstruírem-se como agentes que abrem sua instituição e projeto à cooperação com grupos e organizações. Considera-se que as políticas educativas devem ser proativas, a fim de potenciar a autonomia responsável dos centros educativos.

O segundo capítulo, intitulado “Câmbios institucionales y/o neoliberalismo?” e escrito por François Dubet, professor na Universidade Bordeaux II e diretor na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, trata da ofensiva neoliberal e seus programas de regulação do público a partir das demandas sociais que se constituem num elemento fundamental do atual contexto de transformação, destacando quão pouco adequada tem sido esta ofensiva face às questões que afligem a escola. Destaca que o importante é saber que tipo de escola é possível construir mais além do cânon da socialização escolar tradicional, isto é, mais além do que denomina “seu programa institucional”. As mudanças da mais recente modernidade, especialmente as relacionadas com um encontro de valores discordantes, tornam cada vez mais visível a dificuldade de contar com um universo de sentido comum, o que evidencia os limites da concepção transcendente e vertical de uma produção de sentido, baseada em distinções clássicas como sagrado/ profano ou público/privado.

Eduardo Terrén Lalana, professor titular na Faculdade de Educação da Universidade de Salamanca e que, por muitas vezes, participou como diretor de vários projetos de investigação relacionados com as mudanças educativas, organização escolar, juventude e imigração, relações étnicas e integração cultural e que, entre inúmeros livros, escreveu La escuela como espacio de inclusión, publicado em 2005, assina o capítulo que segue, pouco tempo antes de seu prematuro falecimento, neste julho passado, aos 46 anos, deixando um legado teórico respeitável, além do legado exemplar de professor/pesquisador e companheiro amigo de todos que com ele tiveram o privilégio de conviver. Com sua perda, a academia espanhola e mundial se reveste de luto!

Em seu texto “Micropolítica y capital social: flujos de conocimiento y redes de comunicación en la organización escolar”, Terrén destaca a importância da micropolítica de colaboração. Para isso, parte de dois pressupostos: o primeiro é de que toda política da organização é, basicamente, uma gestão do conhecimento e da informação que se produzem em seio interior; o segundo, que é o objeto da organização, não são indivíduos, mas redes. Defende, precisamente, como o conhecimento de que deve fazer uso a organização educacional para enfrentar as transformações já não é (ou não é sozinho) o requintado conhecimento produzido nas instâncias administrativas ou acadêmicas. Os próprios centros educativos são produtores de um conhecimento sobre si mesmos (o conhecimento organizacional), que todos devem aprender a gestionar e valorizar tanto ou mais que o conhecimento explícito para adequar-se à diversidade do seu contexto específico. O autor defende a tese de que a capacidade de adaptação da organização às mudanças depende do que denomina “o capital social interno”, base potencial para fazer acontecer um projeto comum que permita não simplesmente resistir às transformações existentes, mas traduzi-las em oportunidades de melhoria na qualidade do trabalho e liderá-las.

“¿Más alla del Estado y del mercado? La evolución de los modos de gobierno” é o texto escrito pelo diretor do Instituto de Educação de Londres, Geoff Whitty, e pela professora visitante associada Sally Power, que analisam a tendência britânica dos últimos anos, marcada pelo incremento da delegação de poderes, e a capacidade de eleição. Consideram ser esta tendência associada, em muitos casos, paradoxalmente, ao aumento da atividade reguladora do Estado, o que explica muitos dos problemas que se enfrentam na atualidade: os “quase-mercados” educativos na transição de um Estado burocrático a um Estado avaliador, assim como de modelos colegiados de liderança e modelos gerencialistas.

Jean Louis Derouet considera que um centro pode constituir uma unidade de funcionamento satisfatório sem que exista acordo entre seus membros. Este pesquisador do Instituto Nacional de Investigação Pedagógica na Universidade Lumière Lyon 2, França, repassa a genealogia de medidas políticas francesas que, durante os anos de 1980, converteram os centros educativos na chave do funcionamento do conjunto de sistemas. Esta tendência se explica como consequência tanto de um intento de reforçar sua autonomia e funcionamento democrático, como da busca de um modelo de gestão mais eficaz e saneado.

A necessidade de se entender realmente o que vem a ser o “bom” exercício da docência é a tese de Rafael Feito Alonso, defendida em “Buenos professores: uma análise sociológica de prática educativa excelente”. Professor titular de Sociologia da Universidade Complutense de Madrid, Feito analisa o trabalho em sala de aula e as opiniões dos professores considerados excelentes por suas respectivas comunidades educativas.

Já para Joan Estruch Tobella, professor do Instituto de Ciencias de la Educación (ICE), da Universidade de Barcelona, e catedrático do IES Jaume Balmes de Barcelona, as medidas básicas para uma renovação interna da escola pública recaem na carreira docente, na autonomia dos centros e na direção profissional. Estas três medidas vão fazer frente aos prejuízos e tópicos muito arraigados no velho discurso educativo, resultado de todo o processo histórico constatado em uma carreira pouco estimulante, numa autonomia mal entendida e, sobretudo, como claramente evidencia em seu texto, numa direção escolar sem atribuições pedagógicas

A seguir, Juan Bautista Martínez Rodríguez analisa como a elaboração do Projeto Curricular do Centro (PCC), introduzido pela Lei Orgânica Geral do Sistema Educativo de Espanha (LOGSE), de 1990, que estende a educação obrigatória aos 16 anos, tem sido um processo que vem adquirindo diferente significado em cada centro, em função de suas respectivas redes de interação entre a equipe diretora, seminários e conselho escolar, assim como em função da cultura organizativa da cada um deles. Tobella é catedrático da Universidade de Granada e autor do trabalho “Autoridade pedagógica e poder político nos centros educativos: equipes diretivas e projetos curriculares”.

O trabalho “Liderança e gestão da qualidade na educação”, de autoria de Roberto Rey Mantilla, assessor executivo do Ministério da Educação (Espanha), incide sobre a importância para a liderança dos aspectos de gestão dos afetos e das relações informais, já apontados no texto de Eduardo Terrén sobre a micropolítica de colaboração, aspectos que considera distinguir esta estratégia de uma mera gestão. Em sua reflexão autobiográfica, entende-a como instrumento de mudança e não como um objetivo de poder. Fala de sua progressiva compreensão da importância do que considera os fundamentos de uma liderança entendida como instrumento de melhoria na execução do cargo: a capacidade de ser considerado, a tomada de decisões subordinadas à missão, a necessidade do diálogo condicionando sempre o projeto educativo, a visão de futuro na gestão do presente.

A experiência de Julio Rogero reafirma muitos dos pontos fortes do texto de Rey, que parte de uma visão de organização educativa em consonância com outras reflexões deste livro, em especial com as de Enguita, entendendo-a como uma rede de redes menores, pois considera que só se pode entender a organização de um centro como um sistema vivo.

Assim, Mariano Fernández Enguita, que tanto tem contribuído com sua vastíssima produção científica, e Eduardo Terrén, que também ofereceu importantes contribuições antes de sua partida, oferecem ao leitor uma obra rica de elementos dispostos à reflexão sobre a organização escolar e a gestão educacional que, com certeza, gerará excelentes frutos no debate acadêmico e educacional mais amplo.

Naura Syria Carapeto Ferreira – Doutora em Educação, professora titular da Universidade Tuiuti do Paraná (UTP) e professora (aposentada) da Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: nauraf@uol.com.br

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