As cidades entre a memória, o imaginário e o patrimônio | Revista Latino-Americana de História | 2019

Ítalo Calvino (1990), em sua obra “As cidades invisíveis”, demonstra, a partir da literatura, como as cidades relacionam-se com variadas dimensões da experiência humana – a memória, o desejo, os símbolos, as trocas, os sonhos… todas essas representações podem descrevê-las, ou desvendar as múltiplas faces de uma mesma cidade. Cada urbe descrita revela uma vivência possível dentro de um universo de possibilidades que as mais diferentes e variadas cidades oferecem aos seus moradores.

Ao propor um dossiê envolvendo cidade, memória, imaginário e patrimônio, uma vasta gama de possibilidades foi aberta aos pesquisadores. Alternando temas, fontes, problemas, metodologias e abordagens, diversos artigos foram submetidos a Revista Latino-Americana de História. No entanto, todas as pesquisas apresentam a cidade como foco de análise e objeto de reflexão por parte dos autores.

Ao evidenciar o conceito de “memória” como um dos principais eixos de análise, o dossiê objetivou cobrir uma área de estudos voltada para a dimensão social, pública da memória, tal como propôs Halbwachs (2004; 2006), para observar as relações e dinâmicas entre os grupos sociais e o espaço urbano. No entanto, apenas essa perspectiva sociológica de Halbwachs não basta para explorar a dimensão da memória dentro das cidades, outras referências tais como Pollak (1989), Huyssen (2000), Candau (2012), são necessárias para discutir temas correlatos, tais como esquecimento, conflitos e disputas, discursos, mídias e outras representações memoriais.

Diante disso, as formas de perceber as transformações urbanas e os vestígios que elas produziram passam a ser observados a partir desses estudos. Assim, narrativas visuais, literárias, depoimentos de moradores, viajantes, expressões artísticas das mais variadas passam a ser importantes fontes para uma história das cidades. Nesse sentido, os estudos sobre memória, especificamente sobre memória nas cidades, não podem se enraizar unicamente em tendências teóricas essencialistas, sob o risco de não perceber, e por isso, não abordar questões que emergem nas sociedades contemporâneas.

Os temas que envolvem memória e mundo urbano se desdobram em problemas relacionados aos processos de patrimonialização. Para compreender a complexidade das cidades, especialmente sua relação com a memória, é fundamental entender como os valores são atribuídos aos bens patrimoniais (PRATS, 1983; CHOAY, 2006), como eles são construídos e legitimados dentro da comunidade, a razão patrimonial e os regimes memoriais e de historicidade que permitem, dão sentido e que são revelados pelos patrimônios (POULOT, 2009; HARTOG, 2013). A proteção de determinados bens materiais e imateriais altera a configuração urbana, revelando relações sociais, políticas e econômicas de determinado contexto e, por isso, constituem uma prática de intervenção e afirmação de memórias dentro das urbes. Ademais, a construção do patrimônio está alicerçada sobre um conjunto de valores de uma determinada sociedade, incluindo tanto orientações técnicas, estéticas, como emotivas, subjetivas, que são mobilizadas no momento da seleção dos bens que vão ser protegidos ao se tornarem patrimônio. Esses valores não são imutáveis, bem como a proteção do bem a partir do título de patrimônio não é garantida.

Os estudos sobre imaginário também se desdobram em diversas perspectivas de análise, a partir de vários autores. Baczko (1991), partindo de uma tendência de estudos que remonta a Castoriadis (1982), também aborda a dimensão social do imaginário, entendida pelo autor como uma espécie de “cimento social”, contribuindo para legitimar regimes políticos, definindo as esperanças, medos e previsões de futuro de uma determinada sociedade. Dessa forma, as transformações urbanas e arquitetônicas, os planos de urbanização, os projetos econômicos para as cidades estão articulados com os imaginários da época em que foram concebidos. No entanto, esses estudos também ganham com outras tendências por intermédio de autores como Bachelard (2008), que demonstra como na construção do espaço também estão presentes sonhos conscientes, imagens primordiais que definem formas de ocupação, moradia e usos da urbe e de seus respectivos espaços.

Assim sendo, o presente Dossiê buscou evidenciar trabalhos que apresentam como escopo central o estudo das cidades, porém estabelecendo um diálogo entre os conceitos de Memória, Patrimônio e Imaginário. No entanto, entendemos que devido a multiplicidade de análise acerca das cidades, os conceitos também se ampliam para abarcar a gama de potencialidades que as pesquisas sobre o mundo urbano oferecem, logo, os artigos e seus respectivos autores, listados abaixo, dialogam também com outros conceitos e ampliam a reflexão sobre as urbes.

O artigo de Lays Correa da Silva, “A marcha do Onze de Setembro em Santiago: disputas de memória através do espaço urbano”, aborda as disputas em torno da ditadura militar chilena após o fim do regime, especificamente a partir da marcha de rememoração do onze de setembro. Esse artigo, apresenta ao leitor, a perspectiva da cidade como um cenário de (re)construções memoriais, e não podem ser dissociadas de estudos sobre comemorações, especialmente nesse caso, onde determinados lugares de memória constituem um trajeto de rememoração.

Lauro Iglesias Quadrado, com o artigo “A geografia literária em Delírio, de Laura Restrepo”, aborda a relação entre literatura e geografia a partir de uma cartografia narrativa de bairros de Bogotá, na Colômbia. A partir desse viés, a cidade ganha uma nova dimensão de estudos e reflexões. Lugares, personagens, cenas sobre a urbe, com bairros marcados pelo narcotráfico, constituem uma forma de representação e de expressão da vida urbana.

Em “Modernidade e segregação: análise da erradicação da Vila 29 através da capa do álbum Bajo Belgrano”, Karin Helena Antunes de Moraes explora a dimensão das representações sobre o mundo urbano. Ao refletir acerca das transformações urbanas que ocorreram em um bairro de Buenos Aires, especificamente a favela conhecida como Vila 29, a autora demostra como as pesquisas sobre representações das cidades são importantes para perceber como problemas, relações sociais, políticas e econômicas são trabalhadas pelos sujeitos que vivem nas cidades.

Paulo Henrique Torres Valgas, com o artigo “Urban Sketchers e o heroísmo moderno”, alinha estudos sobre representações, memória e sensibilidades a partir de uma prática artística que retrata o cotidiano das cidades. Ao trabalhar com comunidades de desenhistas e os relatos de artistas, adentramos nas relações entre imaginário, memória e cotidiano, pois determinados aspectos do cotidiano urbano estão presentes nessas representações e são elementos selecionados e (re)configurados pelos artistas. Essas cenas revelam articulações entre o olhar do artista, sua memória, sensibilidade, imaginação, bem como o imaginário social que permeiam as localidades retratadas.

O artigo “Memória e esquecimento da ‘pequena África’ – conexões com a história, patrimônio e educação”, de Hannah da Cunha Tenória Cavalcanti, se debruça sobre as relações entre a lembrança e olvido da zona portuária do Rio de Janeiro. A construção, afirmação e manutenção de memórias em âmbito coletivo, social, é operada a partir de uma seleção empreendida por determinados sujeitos – lideranças políticas, econômicas, autoridades, grupos que detenham algum tipo de poder para interferir no espaço urbano – o que implica também em esquecimentos, silêncios de outros sujeitos que não conseguem representar no espaço público da cidade suas lembranças. Assim, a autora aborda em seu trabalho, articulando essas discussões com o papel da educação e do patrimônio, as reivindicações de movimentos negros para afirmação de suas memórias no espaço urbano, especificamente na zona portuária do Rio de Janeiro.

Jossana Peil Coelho e Francisca Ferreira Michelon, com o artigo “A cidade esquecida: patrimônio industrial e o ocultamento da memória do trabalho”, encontra-se inserido na dinâmica da memória e do esquecimento. As autoras exploram o processo de industrialização do Rio Grande do Sul – especificamente em Caxias do Sul, Pelotas e Porto Alegre – e a formação de um patrimônio industrial a partir dos complexos fabris que marcaram a paisagem urbana desses municípios. Embora alguns complexos tenham sido considerados patrimônio cultural, a memória do trabalho, com as sociabilidades e relações das indústrias com os bairros em que estão localizadas, acabou esquecida, silenciada.

“A construção do espaço urbano da Vila Real de Pindamonhangaba por meio das obras de Francisco Antônio Pereira de Carvalho”, escrito por Brenda Laisa Morais, aborda a trajetória de um mestre de obras do século XIX, bem como sua rede de sociabilidade. Em seu artigo, a autora destaca a importância de analisar as obras de Francisco Carvalho, uma vez que o conjunto arquitetônico tombado no município, durante a década de 1960, foi composto por suas obras. Dessa forma, ela empreende uma investigação sobre a formação da memória patrimonial de Pindamonhagaba.

Ábdon Eres da Silva Neto contribui com o artigo “Encantos e desencantos na organização do recém-instalado município de Água Branca – PI (1954-1958)”. Nesse trabalho, o autor realiza uma pesquisa a partir do código de posturas municipais e entrevistas sobre o processo de emancipação política da cidade, alinhando uma investigação sobre aspectos políticos que envolveram a emancipação municipal, com um olhar voltado para a memória, as sociabilidades, sensibilidades e expectativas de futuro presentes nos depoimentos dos entrevistados.

O artigo “As ações do Programa Monumento no patrimônio histórico da cidade de Pelotas/RS”, de Dary Pretto Neto e Juliane Conceição Primon Serres encerra o presente dossiê. Os autores pesquisam as ações do referido programa, as parcerias públicas e privadas em prol da preservação e recuperação sustentável do patrimônio. Esse trabalho permite pensar as relações entre cidade, memória, patrimônio e políticas públicas, especificamente em como ações políticas podem alterar, transformar as cidades, impulsionando formas de (re)apropriação dos espaços urbanos a partir de sua valorização enquanto patrimônio cultural.

Diante do exposto, é com extrema satisfação que apresentamos o Dossiê “As cidades entre a memória, o imaginário e o patrimônio” que visa oferecer aos leitores um debate acerca da multiplicidade de olhares e narrativas sobre o estudo das cidades. Desejamos a todos, uma ótima leitura!

Referências

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. 2º ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

BACZKO, Bronislaw. Los imaginariossociales memorias y esperanzas colectivas. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1991.

CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2012.

CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 3.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. 4.ed. São Paulo: Estação Liberdade: UNESP, 2006.

HALBWACHS, Maurice. Los marcos sociales de la memoria. Rubí (Barcelona): Anthropos Editorial; Concepción: Universidad de la Concepción: Caracas: Universdad Central de de Venezuela, 2004.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

POLLAK, Michel. Memória, Esquecimento, silêncio. In: Estudos históricos, vol.2, n.3, 1989.

POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no ocidente, séculos XVIII-XIX: do monumento aos valores. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.

PRATS, Llorenç. El concepto de patrimonio cultural. In: Politica y Sociedad, v.27, 1983


Organizadores

Eduardo Roberto Jordão Knack – Licenciado e Mestre em História pela Universidade de Passo Fundo. Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Pós-Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas.

Mariana Couto Gonçalves – Bacharel em História pela Universidade Federal de Pelotas. Mestra em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Doutora em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos.


Referências desta apresentação

KNACK, Eduardo Roberto Jordão; GONÇALVES, Mariana Couto. Editorial. Revista Latino-Americana de História. São Leopoldo, v.9, n.21, p. 5-10, jan./jul. 2019. Acessar publicação original [DR]

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