Direitos humanos e relações internacionais | Monções – Revista de Relações Internacionais | 2014

Os direitos humanos são um tema marginal na área de Relações Internacionais no Brasil. Apesar da inegável proliferação de mecanismos, instrumentos e debates políticos internacionais a partir do fim da Guerra Fria, o tema, de certa forma, permanece negligenciado nas principais publicações brasileiras na área, em seus principais congressos e nas grades curriculares tanto em nível de graduação quanto em nível de pós-graduação.

Entretanto, essa não parece ser uma tendência inexorável. Observando com maior cuidado a produção sobre direitos humanos em Relações Internacionais, especialmente em nível de pós-graduação e entre jovens doutores, nota-se um interesse crescente das pesquisas pelos atores e processos envoltos nos debates internacionais sobre direitos humanos. Um dos principais propósitos da Monções com esse dossiê sobre Direitos Humanos & Relações Internacionais, praticamente inédito no Brasil, é funcionar como uma plataforma para aglutinar tais pesquisas e promover um debate mais sistemático sobre esse assunto dentro do campo de Relações Internacionais.

A temática de direitos humanos não é majoritária dentro do campo de Relações Internacionais, dentre vários motivos, porque ela perturba o edifício tradicional do campo. Além da tensão complexa – e não antagonismo – e reiteradamente debatida entre direitos humanos e soberania estatal, a área de direitos humanos, diferentemente de áreas como a economia ou segurança, não tem como preocupação primordial a regulação das relações interestatais propriamente ditas. Sua preocupação definidora recai muito mais sobre a forma como os Estados tratam seus próprios cidadãos e cidadãs. Essa pretensão “invasiva” de base faz com que as temáticas de direitos humanos tratem da relação entre escrutínio internacional e a relação governante-governado, central à reivindicação soberana dos Estados.

Diferentemente de outras organizações e regimes, o fim normativo de organizações e regimes internacionais de direitos humanos é o empoderamento de indivíduos e grupos diante dos Estados. Por tudo isso, a temática de direitos humanos inviabiliza, por exemplo, que o princípio da reciprocidade seja publicamente aventado em negociações internacionais, ou seja, o negociador de um Estado não pode dizer ao outro que seu país violará os direitos de sua população caso o outro Estado assim o faça. Por fim, o edifício tradicional do campo de Relações Internacionais é perturbado pelo potencial de aglutinação de entes não-estatais ao redor das temáticas de direitos humanos.

Um passo importante para a proliferação dos debates sobre direitos humanos nas Relações Internacionais no Brasil é reconhecer essas peculiaridades de modo que o campo de Relações Internacionais desenvolva – o que já vem ocorrendo – suas próprias formas de enquadrar e compreender os fenômenos dessa temática a partir do repertório teórico próprio às Relações Internacionais. Isso pode fazer com que a área supere definitivamente o dilema entre um ceticismo inócuo, de um lado, e um engajamento demasiadamente entusiasmado, de outro. Essa busca foi seguramente o principal dínamo deste dossiê e perpassa todos os artigos aqui publicados.

O dossiê se inicia com a entrevista de Samuel Moyn. Esse professor de Harvard é o principal expoente de uma literatura contemporânea que se propôs a revisitar a narrativa da internacionalização dos direitos humanos incorporada pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos e por grande parte da produção construtivista e institucionalista das Relações Internacionais sobre direitos humanos. O pesquisador, de certa forma, sacudiu o campo de produção em direitos humanos nas Relações Internacionais ao lançar seu livro, The Last Utopia, em 2010. Nesse livro, ele contesta a linearidade histórica dessa narrativa e, mais do que isso, argumenta que os direitos humanos são apenas a última utopia surgida internacionalmente. O grande ponto do autor é dizer que os direitos humanos são construções políticas históricas, e não necessariamente o auge de um processo de evolução para o qual inevitavelmente a humanidade confluiu, como, segundo ele, parecem por vezes crer seus ativistas e pesquisadores engajados.

O primeiro texto deste dossiê é um ensaio crítico de José Augusto Lindgren Alves. Renomado diplomata brasileiro e experimentado nas temáticas de direitos humanos nas Relações Internacionais, Alves trata das dificuldades atuais do sistema internacional de promoção e proteção dos direitos humanos. Seu texto recupera brevemente a história da construção desse sistema no pós-Segunda Guerra, seu desenvolvimento inicial durante a Guerra Fria e a situação desse sistema de proteção internacional após a queda do Muro de Berlim, especialmente após a Segunda Conferência Mundial da ONU, conhecida como Conferência de Viena. Alves, participante ativo dessa Conferência, relata seus avanços, mas também destaca de maneira direta e incomum na literatura sobre direitos humanos o que ele identifica como desvios do pós-Viena. Ao final, reivindica, ainda que em tom assumidamente utópico, a reconstrução do sistema internacional de direitos humanos e suas concepções.

Os debates sobre direitos humanos são marginais no ensino superior brasileiro, de forma geral, e nas graduações em Relações Internacionais no Brasil, de forma específica, mesmo estando o Brasil vinculado a quase todos os tratados internacionais do tema e apresentando padrões sistemáticos de violações. Esse é o ponto de partida de Isabela Ramanzini e Marrielle Ferreira. As pesquisadoras mostram como as análises legalistas e os estudos políticos sobre a presença dos direitos humanos no nível superior não dão conta das especificidades do tema para as Relações Internacionais. Diante disso, ancoradas em experiência desenvolvida na Universidade Federal de Uberlândia, as autoras apresentam um plano de ensino e pesquisa sobre direitos humanos condizente com os cursos de graduação em Relações Internacionais no Brasil.

Cláudia Marconi traz uma reflexão ainda incomum na literatura brasileira sobre Direitos Humanos e Relações Internacionais. A autora argumenta que o adjetivo “internacionais” não deve acompanhar necessariamente todos os direitos humanos, o que conduz a uma reflexão acerca de quais direitos impõem ou devem impor efetivamente obrigações a outsiders. Recusando a condição confortável de considerar “internacionais” todos aqueles direitos humanos incluídos em documentos internacionais, a autora se propõe a distinguir internacionalização dos direitos humanos, de um lado, e direitos humanos internacionais, do outro. Para isso, mobiliza tanto o campo da teoria política normativa, ainda pouco explorado nas Relações Internacionais no Brasil, quanto o campo da Teoria de Relações Internacionais propriamente dito, propondo, ao final, um caminho intermediário a partir do aporte solidarista da Escola Inglesa.

A temática da Justiça de Transição, tão cara à sociedade brasileira em 2014, também é alvo de grandes debates na literatura internacional sobre direitos humanos. Longe de ser consensual, esses debates se constroem a partir de disputas acerca dos significados dos processo de justiça transicional. O propósito de Emerson Maione é justamente apresentar e problematizar os debates sobre esse tema protagonizados pela área de Relações Internacionais. A partir do contraste entre abordagens realistas e construtivistas, o autor pondera a respeito da aplicação global das políticas de justiça de transição e aventa a possibilidade de construção de abordagens e estudos mais críticos sobre o tema.

A contribuição de Ângela Terto e Pedro Souza trata de um tema ainda pouco trabalhado na produção de Relações Internacionais no Brasil: o reconhecimento internacional dos direitos LGBT. O texto analisa esse processo de reconhecimento de direitos humanos tanto em âmbito regional quanto internacional, evidenciando, a partir do destaque do caso brasileiro, as interações entre esferas domésticas, regionais e globais.

Fernando Brancoli coloca em discussão de forma crítica a complexa relação entre islã político, direitos humanos e democracia. O argumento tem como ponto de partida a ideia de que o islamismo é disputado por uma série de interpretações e abordagens a respeito de como se pode acomodá-lo diante dos direitos humanos e da democracia. Nesse sentido, o autor propõe uma explicação com o intuito de compreender como o mundo muçulmano encara o esquema normativo dos direitos inalienáveis.

O dossiê se encerra com uma interessante conexão entre o campo de Análise de Política Externa e o campo dos direitos humanos. Danielle Silva e Pablo Braga promovem o diálogo entre tais campos, destacando, a partir da análise da política externa em direitos humanos do governo Lula, como a relação entre soberania e direitos humanos encerra dualidades complexas, as quais tornam peculiares os esforços para uma formulação de política externa brasileira nessa área.

Por fim, destaco a publicação em português do artigo de Kathryn Sikkink e Martha Finnemore. De autoria de Gustavo Macedo e Renata Preturlan, a primorosa tradução de International Norm Dynamics and Political Change, publicada em 1998 pela International Organization (que, juntamente com as autoras, gentilmente cedeu os direitos dessa tradução), dialoga diretamente com as preocupações daqueles que se debruçam sobre as temáticas de direitos humanos nas Relações Internacionais. Muitas vezes, os pesquisadores dessa área, especialmente no Brasil, se vêem entre o dilema da dimensão estratégica e da dimensão normativa. As autoras, apesar de não tratarem especificamente de direitos humanos, mostram como essas duas dimensões não são antagônicas ou contraditórias, ou seja, a presença de disputas estratégicas em debates sobre direitos humanos não indica necessariamente a mera instrumentalização da dimensão normativa. O destaque às disputas normativas, por sua vez, também não indica a inexistência de componentes estratégicos em jogo. Texto amplamente citado nos debates internacionais, pouco ainda se disseminou no debate brasileiro, o que, talvez, ajude a entender porque, muitas vezes, as pesquisas sobre direitos humanos e pesquisas de campos mais tradicionais das Relações Internacionais encontrem dificuldades para o diálogo no Brasil. Esperamos que mais essa tradução trazida pela Monções contribua para facilitar o acesso a estudantes e pesquisadores de origem lusófona.

Boa leitura!

Dourados (MS), em 16 de março de 2015.


Organizador

Matheus de Carvalho Hernandez – Professor de Relações Internacionais da UFGD. E-mail: [email protected]


Referências desta apresentação

HERNANDEZ, Matheus de Carvalho. Apresentação. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD. Dourados, v.3 n.6, p.1-6, jul./dez. 2014. Acessar publicação original [DR]

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