Educação, desigualdades sociais e juventude negra na América Latina e Caribe: construindo a resistência antirracista/Kwanissa/2021

La ronda en el tiempo Desigualdades sociais
La ronda en el tiempo, Fanny Rabel, 1964 | Imagem: Lugares INAH

O Dossiê “Educação, desigualdades sociais e juventude negra na América Latina e Caribe: construindo a resistência antirracista” apresenta artigos de autores/as de diferentes países latino-americanos e caribenhos (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, Equador e Uruguai), que oferecem um instigante e significativo panorama acerca do modo como a diversidade étnico-racial tem sido tratada na região, predominantemente como desigualdade e de forma discriminatória, sendo um dos aspectos significativos para entender como as desigualdades sociais e as relações assimétricas de poder foram construídas historicamente, bem como as lutas e as tensões para a superação do racismo e das iniquidades.

Os trabalhos que integram o presente dossiê foram produzidos a partir das discussões desenvolvidas nos Seminários “Educação, Racismo e Desigualdades Sociais”, coordenado pelas Profa. Dra. Cidinalva Silva Camara Neris (Universidade Federal do Maranhão, Brasil) e Profa. Dra. Kátia Regis (Universidade Federal do Maranhão, Brasil) e “Juventudes Negras e Racismo”, coordenado pelo Prof. Dr. Rodrigo Ednilson de Jesus (Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil).

Esses seminários integraram a Especialização e Curso Internacional “Estudos Afro-Latino-Americanos e Caribenhos” sob coordenação geral das Profa. Dra. Mara Viveros Vigoya (Universidade Nacional da Colômbia); Profa. Dra. Nilma Lino Gomes (Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil) e Profa. Dra. Rita Segato (Universidade Nacional de San Martín, Argentina), realizado pelo Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO).

No Seminário “Educação, Racismo e Desigualdades Sociais” problematizamos a relação entre o racismo estrutural, as diferentes desigualdades sociais e suas repercussões nas práticas educativas. Para tanto, discutimos como os conceitos de raça, racismo e desigualdades se constituíram dentro do processo histórico de construção da modernidade, tendo a colonização das Américas um espaço privilegiado; refletimos como as desigualdades são historicamente constituídas e originadas por múltiplos fatores, bem como a diversidade característica das sociedades latino-americanas e caribenhas está vinculada ao racismo e às múltiplas desigualdades. Refletimos ainda sobre as formas como a desigualdade étnico-racial se estrutura e se manifesta na América Latina e no Caribe e os modos como afetam as populações afrodescendentes na região, inclusive analisando os impactos da pandemia de COVID-19. Estudamos também a atuação dos movimentos sociais no combate dessas desigualdades e sua luta para transformar a realidade social excludente nos diversos países latino-americanos e caribenhos, especialmente por meio da educação; o eurocentrismo nas práticas curriculares e a utilização da perspectiva intercultural crítica para superá-lo. Por fim, discutimos sobre políticas educacionais para o ensino da História e Cultura Africana e da Diáspora por meio da reflexão do arcabouço legal implantado na região a partir dos anos 1990.

Os debates sobre as políticas públicas educacionais revelam que as alterações pelas quais vêm passando para a inclusão da História e Cultura Africana e da Diáspora nos currículos escolares nos países latino-americanos e caribenhos são um dos resultados das reivindicações e proposições dos movimentos sociais, particularmente, dos movimentos afrodescendentes para propiciar o fortalecimento da história, da memória e da identidade da população afrodescendente e promover o reconhecimento, a valorização e a afirmação da História e Cultura Africana e da Diáspora. Apesar dos desafios, a legislação está contribuindo para a reflexão acerca das práticas curriculares eurocêntricas.

O Seminário “Juventudes Negras e Racismo” se propôs a problematizar as diferentes dimensões das experiências vivenciadas por jovens afrodescendentes / negros no contexto latino-americano, dando destaque para os modos como o racismo e as discriminações raciais marcam seus modos e possibilidades de vida e de morte. Iniciamos o seminário problematizando uma frase bastante compartilhada sobre os jovens em diferentes lugares do mundo: os jovens são o futuro do país! Trouxemos para o debate a contribuição de pesquisadores/as do campo da juventude, que tem chamada a atenção para algumas armadilhas desta afirmação, já que ao dizer que os/as jovens são o futuro, em geral, se negligencia aquilo que os/as jovens são no presente, bem como seus dilemas, seus sonhos e suas realizações. Mas e quando olhamos para os/as jovens negros/as, termo usado no Brasil, e para os/as jovens afrodescendente, termo utilizado em outros países da América latina, será que a afirmação positiva se mantém? Será que o imaginário social e as políticas públicas de nossos países têm visto os/as jovens negros/as como futuro de nossas nações?

Provocados por esta pergunta, e orientados por uma perspectiva decolonial amefricana (Gonzalez), nosso percurso foi marcado pelas tentativas de identificar os atravessamento do racismo na construção identitária dos jovens negros, nas oportunidades educacionais, na afetividade e na sexualidade, no mercado de trabalho e nas diferentes experiências sociais que vivenciam. Para tentar nos aproximarmos das experiências e das linguagens presentes no universo juvenil, além de uma bibliografia atual, recorreremos a materiais áudio-visuais, como filmes, músicas, poesias e vídeoclipes.

Os seis primeiros artigos deste dossiê foram produzidos no âmbito do seminário “Educação, Racismo e Desigualdades Sociais” e os quatro últimos no âmbito do seminário Juventudes Negras e Racismo.

No artigo “Etnoeducación Afroecuatoriana y Unidades Educativas Guardianas de los Saberes: un proceso educativo y pedagógico para fortalecer la identidad étnico-cultural” de Jéssica Sayra de Jesús Chalá ocorre a análise do papel do povo afro-equatoriano na luta pela reivindicação de seus direitos, com o destaque de dois marcos históricos como resultado de suas propostas firmes e resistentes: sua inclusão na Constituição da República do Equador e o reconhecimento dos direitos coletivos; e o reconhecimento da Etnoeducação AfroEquatoriana no Sistema Nacional de Educação, junto com a designação de unidades educacionais Guardiãs do Conhecimento. No texto, a Etnoeducação Afro-Equatoriana é analisada como um processo e uma proposta para o fortalecimento da identidade cultural e a construção de um verdadeiro Estado intercultural.

O artigo “El racismo estructural y sus continuas formas de colonización: Reflexiones de su impacto en la vida de los/as afroecuatorianos/as en el marco del COVID-19” de autoria de Joselyn Zuleyca Cobos Rodríguez visa tornar visíveis as situações de discriminação e de exclusão que este sistema hegemônico produz na vida dos/as afro-equatorianos/as e que, atualmente, se manifestam com maior intensidade no contexto da pandemia e confinamento social em relação ao acesso aos serviços básicos, situações de superlotação, níveis de pobreza, educação e emprego. A pandemia de COVID-19 permite mostrar e refletir criticamente sobre as desigualdades sociais que predominam no sistema social atual.

Em “Educación, racismo y transformación social: territorios en disputa. Contribuciones para el debate educativo en Argentina”, de María Verónica Miranda, ocorre a análise das tensões atuais do sistema educacional na Argentina, a partir da validade de certas concepções e marcos ideológicos, que desempenharam um papel fundamental na formação do Estado Nacional de matriz colonial, no final do século XIX. Para tanto, são explorados os referenciais teórico-ideológicos que tiveram e ainda ocorrem no sistema educacional argentino e que afetam a constituição das identidades nacionais e os processos de otrificação e racialização da estrutura social no país, particularmente em relação às populações indígenas e afrodescendentes.

Daiana da Silva, em “Mulheres negras driblando as desigualdade e protagonizando uma educação para as relações étnico-raciais”, desenvolve relevante reflexão acerca da desigualdade étnico-racial na educação e o protagonismo das mulheres negras na descolonização dos currículos, tomando como base para sua análise a produção de três intelectuais negras, destaques na luta contra o racismo e que têm como proposta uma educação emancipatória e descolonizadora: Azoilda da Trindade, Lélia Gonzalez e Nilma Lino Gome.

Já em “Difícil de ver: Percepciones del racismo y las desigualdades sociales en la educación”, María Salomé Fernández Batista realiza uma relevante análise sobre as percepções de acadêmicos de História de duas instituições uruguaias sobre racismo e as desigualdades sociais na educação uruguaia, contribuindo para o fortalecimento da temática, explorando os conceitos de raça, racismo, interseccionalidade e interculturalidade.

Abelmy Casas Mayolo, em “LA REGLA NO ES GARANTÍA DE CUMPLIMIENTO: racismo en las lógicas/praxis de las legislaciones colombianas” realiza um relevante levantamento sobre as contradições presentes na legislação colombiana que reconhece os direitos de grupos étnicos e as práticas racistas tão comuns naquela sociedade. Este trabalho contribui para o fortalecimento da temática por meio das reflexões propostas acerca da construção de uma interculturalidade crítica como forma de superação do racismo na sociedade colombiana. No artigo “Ser joven rasta en Cuba: un camino entre etiquetas e identidades raciales” Yoannia Pulgarón Garzón revisita alguns resultados obtidos em 2016, no âmbito de uma investigação sobre a identidade cultural rastafariana em jovens rastas cubanos.

No artigo atual, a autora propõe novas leituras do tema a partir de dois eixos de análise: os processos culturais e identitários em diálogo com o racial e os processos de criminalização da população negra, seus efeitos e diferentes formas de expressão. Assim, o artigo procura distinguir como os processos culturais e de fortalecimento das identidades raciais se articulam com os problemas e experiências de discriminação racial, racismo, marginalização e criminalização dos negros. Nesse caso, o olhar para a cultura rastafari e os processos identitários dela gerados permitem dialogar com categorias centrais como identidade racial e resistência cultural, que estruturam outras formas de ser e participar como jovens negros em contextos racializados.

No artigo “Aquilombar juvenil em busca de direitos: reflexões acerca da realidade de jovens brasileiros no contexto da cidade de belo horizonte e região” Fabíola de Lourdes Moreira Rabelo aborda os movimentos construídos pela juventude negra brasileira, por meio da cultura, arte e intelectualidade, sobretudo, no contexto de Belo Horizonte/MG. De acordo com a autora, estes movimentos favorecem a construção e a reconstrução identitária de si e do outro, não só como campo de denúncia das violências sofridas, mas também na busca por direitos sociais. Deste modo, é no encontro entre os pares, no Aquilombar juvenil, que o reconhecimento social se dá, contribuindo para a localização de suas potências e construindo formas de resistências e empoderamento.

Marcela Herrera Sandoval, em seu artigo “Prácticas identitarias de juventudes negras en chile: intersecciones, visibilización y desafíos para la investigación en terapias ocupacionales desde el sur”, busca analisar as práticas identitárias levadas à cabo pela juventude negra no Chile e as interfaces existentes com o campo das Terapias Ocupacionais do Sul. De acordo com a autora, no Chile se observa uma invisibilidade ativa da história dos/as afrodescendentes no país, resultado da construção de um Estado-nação homogêneo baseado em um racismo estrutural presente em todas as esferas da vida social. Por outro lado, também se observa no país práticas identitárias de jovens afro-chilenos, que, por meio de suas ações coletivas cotidianas, constroem e apoiam práticas anti-racistas e decoloniais, no campo da cultura, da educação e, no caso deste artigo, no campo das Terapias Ocupacionais desde o Sul.

No artigo “Invisibilización y negación de la afroargentinidad en la educación argentina” Nicolás Parodi realiza uma análise do processo sócio-histórico de invisibilização dos/as afro-argentinos e afro-descendentes no sistema educacional nacional argentino. Assim como no Brasil existe o mito da democracia racial brasileiro como referência, Parodi nos apresenta a ideologia argentina do Crisol de raças, responsável pelo desaparecimento simbólico dos/as afro-argentinos da história nacional e do sistema educacional.

A publicação do presente dossiê é o reconhecimento da riqueza partilhada por estudantes de diferentes países da América Latina e Caribe, com trajetória comprometidas com a transformação racial e o antirracismo.

No campo da formação em nível de especialização latinoamericana e caribenha o curso de especialização “Estudos Afro-Latino-Americanos e Caribenhos”, ao qual estão vinculadas as duas disciplinas cujos trabalhos finais dos estudantes estão aqui registrados, pode ser considerada uma experiência inovadora. Ele tem possibilitado pensar uma forma emancipatória de aproximar pessoas que vivem em contextos distintos, mediados pelo mundo virtual, não para alimentar desejos capitalistas de Educação à Distância, mas com o objetivo de traçar novos diálogos entre sujeitos que partilham de experiênicas comuns de opressão colonial e racismo, ao mesmo tempo, vêm construindo resistência e emancipação sociopolítica e acadêmica.

Desejamos que todas, todos e todes possam usufruir da leitura e conheçam um pouco mais das questões raciais na América Latina e Caribe, do ponto de vista de quem as vive e delas participam.

Agradecemos às estudantes e aos estudantes, na realidade, colegas, docentes, militantes dos movimentos sociais pela confiança de escolherem o curso e pela participação ativa nas disciplinas.


Organizadores

Cidinalva Neris – Professora adjunta da Universidade Federal do Maranhão, atuando na Licenciatura Interdisciplinar em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros. Graduada em História, mestra em Ciências Sociais e doutorada em Sociologia. Tem interesse em pesquisas nas áreas: Marcadores Sociais da diferença e suas Interseccionalidades: raça, classe, gênero e geração; Sociologia das Regulações Jurídicas, Sociologia do Político e Sociologia da Família; Mulheres; Formação de professores para o ensino da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira; Currículo e Política de Cotas para ingresso no Ensino Superior. Está coordenando o Núcleo Interdisciplinar de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros – NIESAFRO-UFMA. Integra a Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN) e o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros-NEAB/UFMA. E-mail: [email protected]

Kátia Regis – Graduada em História pela Universidade de São Paulo (USP), Mestra e Doutora em Educação: Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Pós-Doutorado realizado na PUC-SP em parceria com a Universidade Pedagógica de Moçambique. Atualmente realiza pesquisa de pós-doutorado na Universidade Púnguè (Moçambique). Docente da Licenciatura Interdisciplinar em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros na Universidade Federal do Maranhão. Integrante do GT 21 Educação e Relações Étnico-Raciais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd); da ABPN; do NEAB/UFMA e do NIESAFRO/UFMA. Principais temas de discussão: currículo; formação de professores/as.

Nilma Lino Gomes – Professora Titular Emérita da UFMG. Doutora em Antropologia Social/USP, pós- doutora em Sociologia pela Universidade de Coimbra e em Educação pela UFSCAR. Bolsista de Produtividade em Pesquisa/CNPQ. Professora da pós-graduação em educação Conhecimento e Inclusão Social da FAE/UFMG. Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Étnico-raciais e Ações Afirmativas/NERA/CNPQ. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0767-2008

Rodrigo Ednilson de Jesus – Graduado em Ciências Sociais, mestre em Sociologia e Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Entre 2019 e 2020 realizou o pós-doutorado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em Portugal, investigando o tema Ações Afirmativas, Heteroidentificação racial e identidade nacional no Brasil. Atualmente é coordenador da linha de pesquisa Educação, Cultura, Movimentos Sociais e Ações Coletivas no Programa de Pós-graduação em Educação da UFMG e presidente da Comissão Permanente de Ações Afirmativas e Inclusão Social da UFMG.


Referências desta apresentação

NERIS, Cidinalva; REGIS, Kátia; GOMES, Nilma Lino; JESUS, Rodrigo Ednilson de. Apresentação. Kwanissa – Revista de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros. São Luís, v. 4, n. 9, p. 01-07, 2021. Acessar publicação original [DR]

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