Entre a cruz e a foice: Dom Pedro Casaldáliga e a significação religiosa do Araguaia | Mairon Escorsi Valério

Dom Pedro Casaldáliga é, sem dúvida, uma das personagens mais importantes da história da Igreja Católica brasileira e do conflito entre a instituição e o regime autoritário que se instaurou no Brasil em abril de 1964. Adepto à Teologia da Libertação, o bispo catalão se tornou a personificação de um novo ideal de cristão católico; este assumiria um compromisso ético com a justiça social e com a promoção humana, visto que os dois objetivos seriam a antecipação do Reino de Deus na terra. Diante da radicalização vivida pelo país nas décadas de 1960-1970, o projeto político-pastoral da prelazia mato-grossense entrou em conflito com o plano de integração nacional fomentado pelo governo militar que buscava, através do desenvolvimento das grandes fazendas agropecuárias, colocar a região Centro-Oeste no mapa do capitalismo brasileiro.

Nascido no ano de 1928 em Balsareny, pequena cidade da província de Barcelona, o jovem religioso Claretiano chegou à São Félix do Araguaia em julho de 1968. Em pouco tempo, Casaldáliga se tornou a mais importante figura na defesa dos camponeses e indígenas contra os grandes latifundiários e o empreendedor da solidificação da presença do catolicismo na região. Após sua sagração episcopal, em 1971, ganhou ainda mais destaque pela radicalidade com que denunciava as injustiças e pelas inúmeras vezes em que esteve em risco iminente de ser expulso do país ou assassinado por pistoleiros da região a mando de grandes fazendeiros.

Em “Entre a Cruz e a Foice: Dom Pedro Casaldáliga e a significação religiosa da Araguaia”, Mairon Escorsi Valério defende a premissa de que a cultura religiosa de Dom Pedro Casaldáliga influenciou, profundamente, o processo de significação tanto de sua trajetória de vida como da realidade da população local. Através de uma ampla pesquisa documental, que contou com: as biografias produzidas sobre o religioso, principalmente a obra de Francesc Escribano, “Descalço sobre a Terra Vermelha”; acervos de bibliotecas; documentos pessoais, como diários; o acervo da própria prelazia; entrevistas e visita às igrejas da região; o autor apresenta um trabalho de fôlego, que focaliza a construção da memória do bispo catalão, a cultura religiosa de São Felix do Araguaia e o discurso da Teologia da Libertação.

A análise da narrativa de um episódio presente em “Descalço sobre a Terra Vermelha”, em especial, pode ser tomada como exemplo que sintetiza as considerações de Valério, apresentados no primeiro capítulo, sobre a significação produzida por Dom Pedro a respeito de sua própria trajetória; O churrasco em uma grande fazenda da região, a Suiá-Missú, é narrado por Escribano como o momento exato em que o então padre Casaldáliga, recém-chegado da Europa, teria feito sua opção radical pelos pobres e oprimidos. O contraste entre a fartura e riqueza dos latifundiários diante da miséria em que se encontrava a população local, inclusive os trabalhadores da fazenda, teria o feito enxergar que a conciliação era impossível, que sua missão era denunciar a injustiça e defender os pobres. Valério considera que o episódio é relatado como uma “iluminação ou conversão típica das narrativas hagiográficas” (VALÉRIO, 2012: 38); o que revelaria juntamente como uma série de outros fatos abordados no capítulo, uma nova concepção de santidade desenvolvida, especialmente, pela Teologia da Libertação e a identificação do profetismo na trajetória de Casaldáliga.

Ao desenvolver uma nova concepção do processo soteriológico, tomando a libertação histórica da opressão social como parte da construção do Reino de Deus, a Teologia da Libertação consequentemente produziu uma nova concepção de santidade e martírio; a partir da radical opção preferencial pelos pobres e a condenação do capitalismo como pecado estrutural, o santo não seria mais aquele que se alinha a ortodoxia católica e manifesta algo de sobrenatural ou milagroso; seria assim considerado aquele que assumiu um compromisso ético com a justiça e com a promoção humana, que lutasse pela libertação dos mais pobres; assim como o mártir não seria apenas aquele que morreu para defender sua fé cristã, mas também aquele que morreu pela causa da libertação social. Dessa forma, a narrativa hagiográfica desenvolvida nos moldes da Teologia da Libertação também dispensaria absolutamente o elemento sobrenatural em favor da caridade social.

Nas biografias de Casaldáliga, esse novo modelo de santidade é apresentado através de uma narrativa que procura louvar suas virtudes de profeta comprometido com a denúncia da opressão e o apresentar como exemplo de conduta cristã. Além de conterem uma interpretação teleológica dos episódios da vida do bispo anteriores a sua chegada ao Araguaia. Assim, a memória de dom Pedro teria sido significada por dois elementos caros à sua cultura religiosa: o caráter hagiográfico e o profetismo. No entanto, sem negar o choque do bispo diante da miséria ou a grave situação do Araguaia no inicio da década de 1970, o autor procura demostrar que o olhar de Casaldáliga já havia sido preparado para encontrar uma “triste realidade” e que seu compromisso com a causa social também já havia sido construído desde a sua formação sacerdotal na Espanha:

A “triste realidade” que Casaldáliga afirma ter encontrado no Araguaia não era fruto apenas de uma leitura objetiva do “real”, mas de uma representação construída a partir de algumas referenciais anteriores à sua chegada, dentre os quais estavam: a modernidade europeia, que preservava o olhar colonialista e caracterizava o mundo periférico pela falta; a realidade de opressão social e política construída durante o curso do Cenfi, com ênfase no contexto sociológico e político envolvendo a questão de terras e ditadura militar; e a rede de significação trazida pelo padre, mas já influenciada por uma leitura social da fé, fruto do momento teológico vivido pela igreja em torno da leitura do Vaticano II feita na América Latina e evidenciada em Medellín (1968), propulsora da teologia da libertação (VALÉRIO, 2012: 31).

O segundo capítulo apresenta a análise da produção cultural de São Félix do Araguaia. Valério afirma que a pastoral da prelazia, inspirada no método pedagógico de Paulo Freire, produziu um discurso que buscou dotar um sentido religioso à história da região e identificar a população local com a narrativa bíblica. Essa significação religiosa e os esforços para construir metáforas da “triste realidade” teriam sido estratégias para viabilizar seu projeto político-pastoral, além de dar visibilidade aos conflitos sociais da região. Como exemplo desse projeto pedagógico, a obra apresenta orações, músicas, pequenos livros, celebrações, teatro popular e até a arquitetura e decoração das igrejas; no entanto, dá destaque aos painéis do pintor espanhol, Maximino Cerezo Barredo, presentes nas igrejas locais; eles apresentam membros da comunidade como: indígenas, negros e sertanejos participando de episódios narrados na bíblia; por exemplo, a última ceia de Jesus.

A narrativa da história do Araguaia desenvolvida pela prelazia seria caracterizada, segundo o autor, pela sua riqueza de detalhes, enfática quanto aos confrontos com o Estado e os latifundiários, além de dar grande destaque a violência do opositor. Esses enfrentamentos seriam a própria encarnação de uma mitologia cristã, que narra a batalha entre o bem e o mal, buscando restituir uma harmonia que teria sido destruída pelo pecado humano; no caso do Araguaia, a exploração e o latifúndio. Tais aspectos permitiriam, de acordo com Valério, afirmar que se construiu uma história trágica do Araguaia; acompanhada pela produção de uma “memória dolorosa”, que busca através do ato de rememorar as lutas, perseguições e sofrimentos dar coesão às várias comunidades da região; além de transformar os personagens dessa luta em exemplos de compromisso cristão.

O destaque da obra fica por conta de sua última seção. Neste capítulo, o autor desenvolve uma análise crítica do discurso da prelazia e da própria Teologia da Libertação. Ao contrário de pesquisas que pretenderam compreender o aspecto utópico dessa corrente teológica, Valério se atem às incongruências dessa construção discursiva.

O capítulo procura demonstrar que embora a prelazia realmente firme um compromisso ético com a defesa dos pobres e oprimidos e trabalhe pra promover melhoras na vida da população local, inspirada no ideal de revolução social da Teologia da Libertação, suas representações sobre esses “pobres”, especificamente, indígenas, negros e sertanejos se mantêm baseadas em um olhar colonizador estereotipado. Os indígenas, por exemplo, continuariam a serem vistos como seres edênicos, vitimados pela ganância e pela maldade; logo, deveriam ser tutelados e defendidos visto que seriam incapazes de promover a sua própria resistência. Esse olhar colonizador, na verdade, faria parte de uma missão civilizacional que buscou não só uma justiça social que permitisse a subsistência de todos, mas também a implantação de um modelo de sociedade baseada no arquétipo de família nuclear católica. Segundo o autor, a moral sexual e a concepção do que é ser mulher seriam o ponto de maior alinhamento entre a Igreja hierárquica e a Teologia da Libertação. A família nuclear seria a base sagrada da sociedade e nela a mulher encontraria a sua condição essencial: mãe e esposa. Logo, a própria ideia de uma oposição ao conservadorismo da Igreja institucional não passaria de uma criação discursiva.

Através de uma análise consistente, “Entre a Cruz e a Foice: Dom Pedro Casaldáliga e a significação religiosa do Araguaia” conseguiu ir além dos objetivos antecipados em seu título. A obra apresenta uma importante reflexão sobre a construção da memória, mas, sobretudo, uma nova perspectiva de análise sobre a Teologia da Libertação; o que contribui, enormemente, para o enriquecimento do debate historiográfico.


Resenhista

Bruno Dias Santos – E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

VALÉRIO, Mairon Escorsi. Entre a cruz e a foice: Dom Pedro Casaldáliga e a significação religiosa do Araguaia. Jundiaí: Paco Editorial, 2012. Resenha de: SANTOS, Bruno Dias. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v.8, n. 16, jul./dez. 2014. Acessar publicação original [DR]

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