Entre vozes femininas: História Oral e memória no Amazonas contemporâneo | Patrícia Rodrigues da Silva

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Entre vozes femininas | Detalhe de capa

Lançada em 2020, a obra Entre vozes femininas: História Oral e memória no Amazonas contemporâneo é organizada por Patrícia Rodrigues da Silva e faz parte da Coleção PPGH, que tem como objetivo divulgar pesquisas do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas (PPGH-UFAM).

Precedido por outros três títulos também lançados em 2020 pela Editora CRV, este volume 4 é o primeiro a se debruçar especificamente sobre o contexto amazonense, o fazendo, sobretudo, por meio dos relatos e das escritas femininas – dos oito artigos que compõem o livro, seis deles são escritos por mulheres.

A diversidade de narrativas, cenários e personagens apresentadas nas pesquisas nos conduzem a uma Amazônia mais complexa e com mais camadas que os estereótipos que costumam marcar a região de maneira generalizada poderiam abarcar. A reflexão sobre gênero a partir da história oral é o fio condutor e o elemento que caracteriza a maior parte dos trabalhos.

No artigo A atuação feminina no movimento estudantil da Universidade do Amazonas (1978-1988), Nilda Priscila Lima Diógenes investiga a construção do movimento estudantil na cidade de Manaus durante a ditadura militar brasileira, constatando que, mesmo dentro de movimentos progressistas de esquerda, as trajetórias e atividades das mulheres ainda são invisibilizadas se comparadas à atuação masculina. As professoras Arminda Mourão e Lúcia Antony são as narradoras que compartilham passagens de suas vidas ligadas à luta política.

Ao lado da questão de gênero, a migração e os deslocamentos são temas constantes e que perpassam muitos dos artigos, algumas vezes de forma coadjuvante e outras com maior centralidade, como nos textos de Janaina Artiago, Raphaela Martins Pereira e Patrícia Regina de Lima Silva.

Artiago, em Trajetórias de meninas domésticas em Manaus, analisa as memórias de duas senhoras de 60 anos – Jacilene e Alaíde – que migraram ainda crianças de suas cidades natais, no interior do estado, para a capital para trabalharem em casas de famílias da classe média manauara, recebendo em troca moradia, alimentação e educação. Os trechos dos relatos apresentados evidenciam as condições pesadas do trabalho infantil, o tratamento recebido pelas então meninas por parte das famílias, assim como a ligação compulsória do trabalho doméstico às mulheres.

Já em Gênero e identidade: memórias e histórias de mulheres taiwanesas em Manaus, Pereira apresenta um panorama da migração da Ilha de Taiwan para o Brasil. A dimensão da identidade é ressaltada através das narrativas de D. Toka, D. Chang e D. Alice, e problematizada a partir de autores como Stuart Hall e Kathryn Woodward. Com base nestas análises, a Igreja Presbiteriana de Manaus emerge como importante espaço de encontro e de práticas culturais da comunidade taiwanesa na cidade. A autora defende ainda que as mulheres em processo migratório não devem ser lidas unicamente como coadjuvantes de seus companheiros e familiares do sexo masculino, como muitas vezes são retratadas na historiografia tradicional, mas sim de forma ativa, também como protagonistas e agentes de suas histórias e trajetórias.

Tal perspectiva é fortemente corroborada por Patrícia Silva no trabalho Na trajetória da vida: caminhando vou! Os percursos e vivências de quatro mulheres nordestinas que migram de suas cidades no Ceará e na Paraíba para Parintins (AM), revelam as transformações e trocas culturais vivenciadas a partir dessa mudança, como a incorporação de novos hábitos e valores, ao mesmo tempo que transmitem costumes característicos dos locais de onde partiram. Neste sentido, as memórias de seus territórios de origem e das vivências que tiveram antes de migrar são ressaltadas como elos afetivos importantes.

A cidade de Parintins é também cenário do artigo de Mônica Xavier de Medeiros, intitulado Intercâmbios entre a cultura do puxirum e a Igreja Católica em comunidades rurais de Parintins, AM. Embora parta da mesma localidade, Medeiros nos apresenta uma outra Parintins, das comunidades rurais e colônias agrícolas que começaram a se formar a partir da década de 1950. A prática do puxirum (troca de dia de trabalho ou auxílio mútuo realizado entre trabalhadores), sua importância no processo de formação dessas comunidades e a consequente interação entre esta ação e a Igreja Católica e suas frentes, está no centro das reflexões do artigo. Matérias da imprensa local e documentos institucionais da Igreja se somam às narrativas orais de trabalhadores para demostrar as tensões e negociações existentes entre ambas as partes.

Relacionados a partir da temática do trabalho, os textos de Rafaela Basto de Oliveira e Rubens Rodrigues da Silva jogam luz nos relatos de trabalhadores informais de diferentes áreas da cidade de Manaus.

Em “A maioria das mulheres aqui é desvalorizada nessa beirada” – Condições de trabalho de mulheres no porto de Manaus, Oliveira aborda o cotidiano de trabalhadoras portuárias perpassado pelas relações de gênero. Se a convivência com os homens, sejam eles outros trabalhadores ou clientes, é marcada majoritariamente por episódios de machismo e assédio, as relações com outras mulheres são formadas muitas vezes por redes de solidariedade e apoio, conforme demostram os trechos das falas de Angélica e Juliana – as duas narradoras do texto.

Já Silva, em seu texto Os camelôs e a tônica das ruas, investiga o processo histórico de crescimento territorial e as transformações econômicas que desencadearam o aumento do setor informal em Manaus ao longo dos anos. A partir do relato de homens e mulheres, Silva sublinha acertadamente a dupla jornada de trabalho que as trabalhadoras estão submetidas ao terem que conciliar as vendas nas ruas com o cuidado dos filhos e com os serviços domésticos. O assédio, assim como no artigo de Oliveira, mas uma vez é destaque das narrativas dessas mulheres.

Por fim, o artigo de abertura do livro, A construção do movimento reivindicatório dos policiais militares do Amazonas – 2014, de autoria de Adonildo Lopes Pereira, parece estar dissonante dos demais que compõem a obra. O autor aborda o movimento dos policiais militares do Amazonas por melhores condições de trabalho a partir das narrativas de dois entrevistados homens que integram a Associação dos Praças do Estado no Amazonas do Amazonas (APEAM). Ainda que o capítulo faça um interessante levantamento histórico das condições que possibilitaram tal movimento, não apresenta, como os demais, nenhum recorte que possibilite problematizar a dimensão de gênero de maneira mais direta, sobretudo, em relação à presença (ou ausência) de mulheres e vozes femininas nesse fato histórico – como propõe o título do livro.

Embora a maioria dos textos invistam alguns parágrafos iniciais discutindo questões gerais relativas à história oral e à memória, nota-se a ausência de maior detalhamento dos procedimentos metodológicos utilizados. Com exceção do artigo de Raphaela Pereira, os demais pouco explicitam os processos adotados na seleção das entrevistadas e dos entrevistados, os contextos das entrevistas e as escolhas com relação ao tratamento das narrativas. Sobre este último ponto, é possível notar que a maior parte das autoras e autores opta por apresentar citações de trechos editados das falas coletadas. Apenas no trabalho de Rafaela Oliveira podemos ter acesso ao diálogo estabelecido entre as partes, com perguntas, respostas e comentários que aconteceram durante parte das entrevistas realizadas.

Juntos, os oito trabalhos conseguem traçar um panorama bastante diversificado do Amazonas contemporâneo a partir de fontes orais. Neste sentido, a dimensão de gênero se apresenta ao longo dos textos como uma categoria útil de análise, conforme defende Passerini (2011), ao evidenciar o aspecto relacional entre as mulheres e os homens e ao considerar, em algumas passagens, a intersecção com outras categorias de diferença, como a classe social das narradoras, por exemplo. A obra soma-se, assim, ao campo de estudos da História das Mulheres e da História Oral e Gênero a partir de uma perspectiva do Norte do Brasil.


Referência

PASSERINI, Luisa. Gênero ainda é uma categoria útil para a história oral? In: PASSERINI, Luisa. A memória entre política e emoção. São Paulo: Letra e Voz, 2011. p. 95-106.


Resenhista

Juliano Barbosa da Silva – Mestrando em Estudos Culturais pela Universidade de São Paulo (USP), com orientação do Prof. Dr. Ricardo Santhiago. E-mail: [email protected]. ORCID ID 0000-0003-2993-730X

Referências desta Resenha

SILVA, Patrícia Rodrigues da (Org.). Entre vozes femininas: História Oral e memória no Amazonas contemporâneo. Curitiba: Editora CRV, 2020. (Coleção PPGH, 4). Resenha de: SILVA, Juliano Barbosa da. História oral e gênero no Amazonas. História Oral. Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, p. 267-270, jan./jun. 2022. Acessar publicação original [DR]

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