Família joga bola: jovens futebolistas na várzea paulistana – SPAGGIARI (T-RAA)

SPAGGIARI, Enrico. Família joga bola: jovens futebolistas na várzea paulistana. São Paulo: Intermeios/FAPESP, 2016, 452 p. Resenha de: AZEVEDO, Renan Giménez. Bola na várzea, sonho no campo: trajetórias de famílias esportivas da zona leste paulistana. Tessituras, v.4, n.2, p.141-145, jul./dez., 2016.

Resultado de sete anos em trabalho de campo realizado durante o mestrado e o doutorado, Família joga bola: jovens futebolistas na várzea paulistana, de Enrico Spaggiari, é uma etnografia urbana que descreve as relações de familiares, técnicos, agentes, e jovens futebolistas através de seus cotidianos varzeanos no Botafogo de Guaianases, agremiação futebolística da Zona Leste de São Paulo. O livro, publicado em 2016, é a versão mais elaborada da tese defendida dois anos antes para o doutoramento do autor no PPGAS da USP. Ao longo do livro, Spaggiari busca explicar a formação de um jovem futebolista, bem como suas relações com o esporte e a carreira profissional, da mesma forma que os garotos, ou “moleques”, expressam criativamente o “jogar bola”. Os vínculos criados pelos atores da etnografia criam redes que o autor chama de famílias esportivas, conceito elaborado através dos oito capítulos que compõem a etnografia.

A apresentação do campo vivenciado por Spaggiari é transposta para o livro em sua primeira parte, onde o autor dá voz aos interlocutores nas partidas de futebol, nos treinos, nos churrascos e outros acontecimentos da vida na várzea paulista, que ocorrem em escolinhas, campos, casas de familiares e bares. O primeiro capítulo aborda o tempo e o espaço nas narrativas daqueles que estão no cotidiano da várzea, cujas memórias alimentam tais relações nostálgicas – ainda que os informantes neguem tal sentimento. Partidas consideradas clássicas e disputas importantes são expostas com grande riqueza de detalhes. Outro aspecto abordado no capítulo, e ilustrado pelas lembranças relatadas, é a gentrificação e o avanço urbano e outras formas de transformações da cidade, de modo que futebol de várzea torna-se uma forma de resistência cultural, além de uma forma de vivenciar a cidade e os bairros onde ocorrem as partidas. O crescimento da urbanidade também é apresentado na introdução do livro, onde o autor relata o cotidiano em torno do canteiro de obras da Arena Corinthians em Itaquera, especialmente quando seu Josias, aposentado da construção civil, queixa-se dos futuros problemas imobiliários da região ao dizer que “Esse é o preço do progresso” (SPAGGIARI, 2016, p. 24).

No segundo capítulo, Spaggiari apresenta o Grêmio Botafogo de Guaianases, fundado em 1955, juntamente com a estrutura contemporânea do futebol de várzea em São Paulo. As questões financeiras vividas pelos clubes são abordadas, assim como os problemas como sede social e a posse de um campo. Os bares, que funcionam como bases provisórias, são palco de comemorações, disputas, reuniões e outros acontecimentos, tornando seus proprietários “ótimos informantes” para a etnografia.

A importância do calendário esportivo com as competições que envolvem o clube, especialmente a Copa Kaiser de Futebol Amador, é descrita pelos olhos de torcedores, jogadores, dirigentes e vendedores de bebidas presentes nas partidas. As relações entre futebol, samba e cerveja produzem uma sociedade futeboetílica, que envolve modos de beber e agir.

O terceiro capítulo descreve os impactos políticos do clube por meio da corrida eleitoral de 2010. Ao ver nos clubes de várzea a possibilidade de ascensão política, os candidatos criam redes com os dirigentes destas agremiações esportivas. Importante notar que tais relações revelam a projeção do clube para a cidade, seja por meio de competições, seja por meio da produção de jovens futebolistas no trabalho de base dos times.

A segunda parte do livro, dedicada às formações profissionais, inicia-se no quarto capítulo com Spaggiari descrevendo as cidades futebolísticas. Estas redes são construídas através da vivência do cotidiano varzeano por meio das competições e trânsitos pelos campos, escolinhas e clubes. Esta circulação faz parte do desenvolvimento do saber futebolístico que estimula a produção de profissionais. Outro aspecto importante do “rodar” a cidade é que isto aumenta a possibilidade de os jogadores serem vistos por olheiros, essencial para a profissionalização dos esportistas.

O conhecimento futebolístico e sua construção coletiva é o tema do quinto capítulo. A corporalidade como forma de aprendizagem, ou seja, olhando e repetindo os movimentos, é a forma por excelência do ensino esportivo. Enquanto um ambiente de “imposição compulsória da heteronormatividade” (SPAGGIARI, 2016, p. 231-232), o conhecimento varzeano também ensina momentos de provocações e demonstração de virilidade, desestimulando comportamentos considerados femininos e incitando atitudes “de homem”. As questões de gênero também são analisadas pelo autor, trazendo voz a uma jogadora que tem seu lugar questionado por pais de alunos. A ideia de cultura como habilidade, tomada de Ingold, permite a construção do “dom” futebolístico, aspecto importante para o ingresso profissional.

O sexto capítulo apresenta o projeto familiar para a profissionalização dos jovens futebolistas. Vislumbrando a possibilidade de ascensão profissional por meio do esporte e, assim, ajudar seus familiares, os garotos recebem apoio de seus parentes para alcançar tais objetivos. Spaggiari dá voz para pais e filhos que sacrificam tempo e recursos financeiros para materializar estes propósitos. O autor também mostra as disputas entre famílias e treinadores a respeito das escalações e métodos de ensino, mas também as integrações destes atores para a formação das casas futebolísticas, que são as relações entre pais, técnicos e professores criadas por meio das famílias esportivas.

A atuação dos agentes futebolísticos é dedicada no capítulo sete. Devido à legislação, especialmente por causa da Lei Pelé (9.615/98), a produção de jogadores e a assinatura de contratos tem ocorrido mais cedo para que os clubes evitem perdas financeiras por causa dos passes. Esta situação causa um desequilíbrio favorável para os clubes com maior poder aquisitivo, uma vez que podem bancar o passe de profissionais mais novos sem maiores preocupações. Neste ambiente, o agente esportivo atua para garantir a melhor carreira para o jovem futebolista de forma conjunta com a família esportiva, criando laços e investimentos em equipamentos. Enquanto o técnico da escolinha é voltado para a formação e educação, o agente esportivo é fator central para a profissionalização dos jogadores. Além destas relações familiares, os agentes entrevistados por Spaggiari falam da importância do “dom” quando buscam por novos talentos ao atuarem como olheiros.

O oitavo capítulo é dedicado às famílias esportivas, onde Spaggiari apresenta cinco trajetórias com gráficos ilustrando as relacionalidades (relatedness) dos atores. Ao buscar as bases teóricas em Carsten, o autor não segue um modelo apriorístico de família, mas sim busca elucidar as tessituras produzidas pelas trocas estabelecidas nestas redes de parentesco, “problematizando conceitos tradicionais de família com reflexões antropológicas contemporâneas” (SPAGGIARI, 2016, p. 371).

Esta etnografia apresenta aspectos importantes da vida urbana por meio do esporte. Enquanto uma forma de viver a cidade, o “jogar bola” também é uma manifestação nos jovens futebolistas e suas famílias esportivas da instituição que é o futebol no Brasil. Quando a “família joga bola”, ela se envolve com a formação esportiva profissional dos garotos e garotas da várzea. A face econômica também é abordada por Spaggiari ao trazer a crença do “dom”, este “algo que o jovem futebolista já carrega e que não é possível ensinar” (SPAGGIARI, 2016, p. 333). O autor ilustra como a produção de “pés-de-obra” tomam uma forma altamente monetizada. Neste ponto, cabe uma crítica sobre a forma que se trata o “dom” como uma mercadoria, passível de monetização, tratando os clubes e jogadores como clientes em uma linha de negociação (STRATHERN, 2010, p. 237). Um terceiro tema que está presente ao longo de toda a etnografia, por meio de toda a polifonia em termos cliffordianos (CLIFFORD, 2002), é a demonstração do futebol como uma forma de viver a cidade. Ao se apropriarem de campos, ao transitarem pelos ônibus, ao se deslocarem para as diversas competições, os jogadores, os técnicos, agentes, enfim, as famílias esportivas atuam na cidade e percebem ela como um palco para o futebol, para poder “jogar bola”.

Renan Giménez Azevedo

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