História da Ciência em Portugal / Revista Brasileira de História da Ciência / 2009

Este número da Revista Brasileira de História da Ciência traz uma novidade importante com relação aos seus números anteriores, a saber: a publicação de um dossiê temático. No presente caso, trata-se de um conjunto de três artigos sobre temas diferentes, guardando eles um ponto em comum: o de discutirem aspectos do desenvolvimento científico e tecnológico em Portugal. Em outras palavras, trata-se de um dossiê com enfoque na recente produção historiográfica portuguesa.

Como deve ser conhecido por todos aqueles que se interessam e / ou atuam no domínio da história da ciência, essa área vem passando, desde a última década do século XX, por um intenso processo de renovação e ampliação temática e em seus quadros de investigadores profissionais. A recente decisão do governo português de oferecer um apoio à História da Ciência, questão que foi debatida em congresso em meados deste ano, é um sinal positivo de que essa área do conhecimento já alcançou uma certa visibilidade acadêmica, sem deixar de mencionar a inserção internacional que também é crescente.

Também é sabido que a história da ciência não é um tema que apareceu há pouco tempo no cenário científico-universitário de Portugal. O interesse e a produção de historiadores portugueses, ou que se interessam por questões ligadas àquele país, são antigas, podendo-se mencionar os nomes de Joaquim de Carvalho, Luís de Albuquerque e Joaquim Bensaúde como exemplos significativos da produção portuguesa. Além de serem relevantes no cenário lusitano, os três nomes acima, aos quais poderiam ser acrescidos muitos outros, têm uma outra característica importante: seus artigos e livros discutiram questões relativas aos descobrimentos náuticos portugueses.

Como é de se esperar, tendo em vista o lugar periférico de que Portugal desfrutou durante longo período de tempo no cenário intelectual e político mundial, a produção historiográfica portuguesa dedicou-se, e muito, a tentar compreender as razões que impediram a penetração no país das ideias modernizadoras da chamada Revolução Científica da Época Moderna. Associada ao declínio econômico vivido pelo país e à força exercida pelo catolicismo, prevaleceu a tese de que Portugal, além de atrasado sob o ponto de vista científico, seria um exemplo de que a ciência não poderia ser praticada em ambientes culturais com essas características. Aceitou-se a tese de que Portugal, a partir de meados do século XVII, e até muito recentemente, tivesse sido como um deserto de ideias e instituições científicas e acadêmicas.

Hoje em dia, pode-se dizer que a conclusão do parágrafo acima é errada. Para que sua inexatidão pudesse ser afirmada e disseminada, foi preciso que em Portugal, como também no Brasil, se abandonassem certos padrões de análise historiográfica mais afeitos ao universo europeu e anglo-saxão. Em outras, certamente rápidas, palavras, foi preciso que a história da ciência fosse percebida como algo mais do que a mera descrição das hipóteses verdadeiras. A ciência se caracteriza por ser uma prática específica e não apenas por ser “produtora” de um certo tipo de conhecimento.

A atual produção historiográfica portuguesa não se limita a estudar eventos diretamente relativos à ciência e à tecnologia no país. É possível encontrar temas ligados à química quântica do século XX, à física clássica no século XIX e à mecânica quântica também no século XX. Ao lado da diversificação temática, já se pode verificar a presença de alguns poucos centros de investigação inteiramente dedicados à história e à filosofia da ciência, ainda que se possa lamentar o fato de que haja pouca interação entre eles – que são relativamente bem distribuídos pelo país. Com o passar do tempo, é de se imaginar que aumente essa interação, o que resultaria em benefícios para todos.

Os três artigos que compõem esse dossiê são um exemplo significativo das recentes mudanças no cenário português em história da ciência. Mas, antes de passarmos a uma breve descrição do seu conteúdo, gostaria de mencionar que, pelo menos desde a década de 1990, Portugal e Brasil têm fortalecido os seus laços de investigação em história da ciência. Penso que o exemplo mais relevante desse fortalecimento é constituído pelos três encontros luso-brasileiros ocorridos em Évora (2000) e no Rio de Janeiro (2003 e 2009). Além disso, pesquisadores dos dois países já atuam em conjunto produzindo livros e artigos sobre o desenvolvimento da ciência e da tecnologia.

Os autores dos artigos desse dossiê já possuem larga trajetória no cenário da história da ciência, sendo, inclusive, bem conhecidos da comunidade brasileira. Um deles (Luís Miguel Carolino) trabalhou durante dois períodos no Museu de Astronomia e Ciências Afins (MCT). Os outros autores são nossos frequentes visitantes, o que mostra o interesse que têm em preservar os laços com o Brasil.

O artigo de Carolino, presentemente no Museu de Ciência da Universidade de Lisboa, será o primeiro analisado. Tendo por título “Cristoforo Borri e o impacto da nova astronomia em Portugal no século XVII”, o seu objetivo consiste em entender o papel desempenhado por Cristoforo Borri no cenário da ideias cosmológicas nesse país. Para isso, acentua-se a análise das teses e concepções que Borri apresentou em seu texto sobre a nova astronomia. Sinalizando a maturidade alcançada pelos historiadores portugueses, Carolino discute criticamente a historiografia existente, mostrando as suas limitações, ao mesmo tempo em que apresenta e sugere saídas renovadoras para pensar a ciência e o conhecimento em Portugal no século XVII.

O segundo texto – “A vida privada e o carácter do físico João Jacinto de Magalhães (1722-1790)” – é escrito por pessoa com visível presença no contexto acadêmico português, o físico de origem Manuel Fernandes-Thomaz – pertencente aos quadros da Universidade de Aveiro, que chegou a desempenhar importante papel no cenário português de ciência e tecnologia. Em seu trabalho, Fernandes-Thomaz retoma o assunto sobre o qual ele mesmo já tinha se pronunciado, além de ter sido muito debatido e comentado por outros historiadores, a saber: a vida e a obra de João Jacinto de Magalhães, filósofo natural português que acabou seus dias longe de seu país de origem. É objetivo de Fernandes-Thomaz discutir a historiografia conhecida sobre o seu “objeto” de estudo, revisando-a e corrigindo-a quando necessário.

O terceiro e último texto, resultado da colaboração de três investigadores, trata de um tema ainda pouco explorado não somente em Portugal, mas em muitos outros sítios: a ciência forense. Assim, esse artigo não é apenas importante por se tratar de uma colaboração, prática ainda pouco comum entre os historiadores da ciência, mas também por chamar a nossa atenção para um tema ausente do nosso campo de visão e análise. Em “António da Costa Simões e a génese da química forense em Portugal”, António José Leonardo, Décio Ruivo Martins e Carlos Fiolhais – todos da Universidade de Coimbra – partem da valorização de uma fonte ainda pouco usada, a revista O Instituto, para mostrar como António da Costa Simões, médico e professor da faculdade de Medicina, inovou no campo da detecção de substâncias tóxicas. Além das contribuições de Costa Simões, atenta-se para a decisiva transformação perpetrada por Macedo Pinto, igualmente médico, e que foi o responsável pela organização de um laboratório químico devidamente equipado.

São três os séculos (XVII, XVIII e XIX) focados pelos trabalhos presentes nesse dossiê. Se quisesse arriscar uma característica comum a eles, creio que diria que é a capacidade de mostrar, contra uma historiografia ainda dominante, que havia em Portugal, mesmo naqueles momentos vistos e entendidos como críticos, uma rica e interessante circulação de ideias, pessoas e visões de mundo. Como ex-editor da RBHC e profundamente interessado nos rumos da história da ciência em Portugal, é com muita satisfação que saúdo a decisão da atual editoria em nos dar a conhecer alguns dos mais recentes produtos da historiografia portuguesa. Que esse dossiê contribua para a criação de novos laços entre os nossos países, bem como para o fortalecimento e a consolidação dos atualmente existentes.

Antonio Augusto Passos Videira – Departamento de Filosofia / IFCH. Universidade do Estado Rio do Janeiro.


VIDEIRA, Antonio Augusto Passos. Introdução. Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, jul. / dez., 2009. Acessar publicação original [DR]

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