Imagem e Reflexo: Religiosidade e Monarquia no Reino Visigodo de Toledo (Séculos VI-VIII) | Ruy de Oliveira Andrade Filho

Com Imagem e Reflexo: Religiosidade e Monarquia no Reino Visigodo de Toledo (Séculos VI-VIII), São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012, de autoria de Ruy de Oliveira Andrade Filho, a Edusp presta-nos a nós medievalistas – e aos historiadores em geral – um grandioso serviço, fazendo renascer para a vida um dentre os milhares de exemplares de teses que, elaboradas com afinco e dedicação por estudiosos de programas de pós-graduação de todo o país, jazem condenadas a dormitar nas estantes empoeiradas dos recônditos das bibliotecas universitárias, fadadas ao silêncio e ao esquecimento.

Baseada em sua tese de doutorado,1 Imagem e Reflexo… dedica-se à análise das relações entre a(s) religiosidade(s) e a monarquia no reino visigodo da Hispânia, desde a conversão de Recaredo ao credo niceno, celebrada no III Concílio de Toledo, em 589, até a conquista muçulmana da Península Ibérica, em 711. Segundo o autor,2 o desfecho deste processo ocorreria no citado concílio, quando tem início a elaboração de uma teoria da realeza que, por seu turno, ficaria mais bem configurada na reunião seguinte, realizada no ano de 633.

Presidido por Isidoro de Sevilha, tal concílio reconheceria o monarca como “o ungido do Senhor”,3 preservando o caráter eletivo do cargo e anatematizando aqueles que fossem culpados de infidelidade para com o monarca. O reinado de um “mau soberano” era caracterizado como um castigo divino, não sendo prevista, contudo, a possibilidade de deposição do rei, que seria anatematizado e julgado por Deus. Elaborava-se, assim, uma concepção teocrática da realeza baseada na sanção divina. Monarquia e Igreja efetivavam o curso de uma íntima relação.

“Mas é sabido que a teoria distava muito da prática, e o reino de Toledo foi pleno de deposições e revoltas”, ressalta Ruy de Oliveira. 4 No intuito de amenizar essas fragilidades, ao menos teoricamente, os clérigos hispânicos recorreram à unção régia como confirmação da eleição divina. Por meio deste ritual, os reis reforçavam o caráter divino de sua autoridade, estabelecendo o dado religioso como fundamento ideológico da sociedade e da monarquia. O elo entre ambas era criado por meio do juramento de fidelidade, que vinculava o rei e a sociedade diretamente a Deus, de quem, em última instância, todos eram súditos. A ruptura da fidelidade jurada ao monarca implicava deslealdade para com o próprio Deus. “Dessa forma, o cristianismo adquiria uma crescente importância no reino. Tendo-se em conta a forte religiosidade do homem medieval, que conduzia ao primado do sagrado, percebemos essa monarquia revestida de um caráter sobrenatural fornecido pela Igreja.” 5

Mas, as proposições até aqui formuladas parecem apenas fazer eco às abordagens clássicas da teoria (política?) da sacralidade régia medieval, cultivada, em relação ao contexto em questão, por autores como José Orlandis6 e Abilio Barbero,7 poderia cogitar um leitor precipitado e ansioso por rotulações breves. Ora, na obra que o mesmo terá em mãos seu autor visa, justamente, promover um redimensionamento total da questão, estabelecendo as diversas relações, aproximações, afastamentos e influências recíprocas ocorridas entre a religiosidade e a montagem daquela monarquia católica. Trata-se, portanto, de caracterizar a diversidade das expressões de religiosidades várias que matizam o seu contexto de análise, abordando as relações entre o cristianismo em expansão e as manifestações pagãs ainda correntes na Hispânia, mas, em especial, os sincretismos que vão se constituindo em meio às tensas relações que vigiam entre ambos.

Até que ponto, questiona o autor, o conflito com o paganismo e as transformações da Monarquia teriam, de fato, penetrado a sensibilidade, o cotidiano e a mentalidade dos súditos do reino de Toledo? As celebradas conversões em massa ocorridas então não teriam implicado uma mudança radical nas convicções e nas práticas religiosas de todo um povo. A idolatria, condenada já em épocas anteriores e reforçada no momento da conversão do reino, voltaria a ser tema de concílios da segunda metade do século VII, às vésperas da invasão muçulmana. Em diversos cânones, vários outros problemas, como magia, adivinhos ou superstições, são mencionados, envolvendo inclusive os segmentos eclesiásticos. A teoria da sacralidade régia formulada pela elite eclesiástica ibérica terá sido capaz de absorver e articular o complexo fenômeno das religiosidades que caracterizavam o reino de Toledo?

Visando responder a essa questão de fundo, Ruy de Oliveira estruturou sua obra em cinco capítulos. No primeiro, a frase interrogativa que o intitula – Uma Hispânia Convertida? – mais do que uma pergunta retórica configura-o como uma tentativa de reconstituição de alguns dos problemas suscitados pela cristianização da Península Ibérica na Antiguidade Tardia ou Primeira Idade Média. Por cristianização entende

os sinais exteriores da nova fé, a pregação, as construções eclesiásticas, as medidas legislativas civis e canônicas, os novos rituais, a elaboração de um conjunto de comportamentos cristãos que teriam (e até que ponto o teriam) passado a integrar o cotidiano dos homens, seu modo de vida, sua visão de mundo, enfim, sua religiosidade.8

Assim, o capítulo é orientado para a ponderação de uma série de interrogantes. Até que ponto o cristianismo estaria verdadeiramente arraigado, como convicção religiosa, no seio das elites ibéricas? O autor, apesar de admitir a existência de uma “cultura intermediária”9 como denominador comum dos vários segmentos sociais que integravam o reino, pergunta-se em que medida a “conversão” oficial do reino refletiria também a conversão da população. Esse processo de cristianização, necessário para a coesão do grupo dirigente e para a coerência das estruturas do Reino de Toledo, implicaria de fato uma verdadeira conversão da população peninsular? O exemplo do crescimento das fundações monásticas ou das igrejas rurais pode ter sido um sintoma de cristianização, mas será prova de uma efetiva “conversão” de seus construtores e frequentadores? Pauta-se, para tais questionamentos, na perspectiva de que o “critério oficial da conversão” cristã implicava uma completa transformação moral e espiritual.

O Cristianismo estaria enraizado na Hispânia desde meados do século III. No seguinte, o seu maior problema residiria não tanto no paganismo declarado, mas nas “permanências”, especialmente nos meios rurais, de cultos residuais e práticas supersticiosas difíceis de desenraizar. A partir da conversão oficial do reino com Recaredo, em termos religiosos destacam-se também a questão priscilianista, além da existência de uma pequena, mas considerável comunidade judaica. Com o catolicismo transformando-se em fundamento ideológico da sociedade visigótica, a Igreja, identificada com o poder da monarquia e com os privilégios dos potentiores, acirraria sua luta contra a heresia, o judaísmo e as práticas pagãs no reino. Quanto a essas, estiveram longe de se resumir a vestígios ou a simples resquícios, não se restringindo a umas poucas áreas periféricas ou se tornado monopólio dos humildes. Ao contrário, pareciam generalizadas!

No segundo capítulo, intitulado Cultura e Religião no Reino de Toledo, Ruy de Oliveira vislumbra, a par do processo de “conversão oficial” da península junto com a monarquia de Toledo, a construção de uma “nova” religiosidade, fruto do declínio do mundo urbano e da emergência do mundo rural. A uma metáfora antropomórfica, que representava o reino e que tinha o rei como sua cabeça, equivaleria uma outra, que concebia a Igreja como alma do corpo público cuja cabeça seria o próprio Cristo. Parte deste mundo ainda que destinada à imortalidade, a Igreja/alma estabeleceria as bases de uma cosmologia cristã, buscando fornecer à sociedade todo um conjunto de ritos, orações e fórmulas que lhe garantiria a salvação no fim dos tempos. Constituía-se o reino visigodo como uma verdadeira societas fidelium Christi.

A emergência do mundo rural como grupo de pressão faria pesar sobre a cultura “uma ameaça que obriga os clérigos a promover um movimento inverso, de cima para baixo.”10 A Igreja, que gradualmente monopolizava “todas as formas evoluídas, e nomeadamente escritas, de cultura”, substituiria o realismo pagão por um universo de símbolos e signos, negando a essencialidade do homem diante de Deus e do além e impondo novos grilhões à representação da sociedade, na qual se destaca o dualismo elementar entre clérigos elaicos, poderosos e humildes. A analogia antropomórfica, claramente expressa em leis civis, cânones conciliares e outros textos da Hispânia visigótica, expõe essa inversão tentada pela Igreja.

A supervisão e a direção, requisita ao rei, de todos os aspectos da vida no reino estava inerentemente relacionada com a posição mesma do rei, cabeça de uma comunidade cristã, responsável pela salus de seus membros e obrigado a prestar contas a Deus do bem-estar da Igreja. Já na conversão de Recaredo, o concílio recomendava que fossem extirpados os que se afastassem da verdadeira fé cristã, sendo condenados no Céu e na Terra. A excomunhão era tida como verdadeira medida cirúrgica, uma amputação do corpo – a societas fidelium Christi – de forma que quem se rebelasse contra a “cabeça” deveria ser condenado ao juízo eterno sem qualquer outro remédio.

Mas, a efetivação prática dessa teoria esbarraria, segundo o autor, no terceiro capítulo de sua obra, intitulado Religiosidade ou Religiosidades?, em diversos elementos preexistentes, compostos pela religiosidade daquela sociedade, “o que implicaria um conjunto de influências recíprocas, resultando em trocas, obliterações, deformações, ingerências, amoldamentos, desnaturações e, em último caso, numa atitude impositiva por parte da religião, em razão do exclusivismo do Deus cristão.”11 Os muitos videntes referidos por Santo Isidoro em suas obras seriam sérios concorrentes ao monopólio eclesiástico do sagrado, comprometendo, assim, a analogia antropomórfica do reino. Em face deste quadro, à exceção de Martinho de Braga, nomes como Isidoro de Sevilha ou Julião de Toledo optaram pela política de coerção imposta aos não conversos.

Deparando-se com uma plêiade de abusos cometidos no interior do próprio ordo clericorum, e com uma sociedade bipolarizada entre poderosos e humildes, os bispos, “que desempenhavam ‘a função dos olhos’”, tiveram de optar entre o convencimento e a imposição. Como noutras partes, o cristianismo se expandia aliando-se à Monarquia e aos potentiores. Nem mesmo os incrédulos poderiam escapar ao domínio de Cristo, pressionados pelo “vigário de Deus” (o rei) e seus governantes. No entanto, em pleno século VII, reapareceriam símbolos pré-romanos, como estrelas, árvores ou o disco solar. A resultante teria sido a assimilação de mitos e ritos pagãos peta teoria cristã, além da aquisição, por parte dos santos, de muitas das características de deuses e heróis clássicos ou mesmo pré-romanos. Portanto, conclui, a adoção do cristianismo não implicou ruptura, mas uma continuidade das crenças anteriores.

No quarto capítulo, intitulado A Utopia Monárquica Visigoda, Ruy de Oliveira dedica-se a esmiuçar os meandros da composição da imagem régia no reino de Toledo. A exegese cristã teria idealizado as estruturas monárquicas, montando uma utopia do poder e de sua função religiosa nesse mundo. Com a conversão oficial no ano de 589, o catolicismo assumia a condição de fundamento ideológico do reino.

Segundo o Tomus do III Concílio de Toledo, Deus incumbira a Monaquia do “fardo” do governo em “proveito dos povos”. Também elaborava a sua projeção: “a felicidade da futura bem-aventurança”. Para tanto, o projeto de ação sobre essa realidade passava pela “verdadeira fé”, mediante os cuidados do rei.12

O cristianismo, contudo, acabaria por desempenhar um papel contraditório no reino. Por um lado, os concílios consagrariam o caráter eletivo e estatal da dignidade régia, ressaltando a ideia de sua “utilidade para os súditos”. Também distinguiriam nitidamente os bens públicos, pertencentes à Coroa, daqueles privados, pertencentes ao soberano. Na medida em que o cargo régio envolvia o controle de importantes recursos patrimoniais, transformava-se num alvo privilegiado de disputa da aristocracia. Na prática, os concílios distavam muito de impor, por meio de suas normas, respeito aos conspiradores; ao contrário, eram estes últimos “que se impunham pela vitória aos concílios”.

De qualquer forma, ao assegurar-se o trono ao vencedor, ratificavam-se os modos legais da transmissão do poder.

Se, simultaneamente, legitimavam o usurpador vitorioso e insistiam na observação dos preceitos já estabelecidos, os concílios tentavam uma recuperação e um aperfeiçoamento da Monarquia. De fato, como ideologia, o cristianismo não se apresentava como mero reflexo do que era vivido, mas como “um projeto de ação sobre ele”. Alguns concílios explicitam sua intenção: “Fortalecer a situação dos reis e dar estabilidade ao povo dos godos”. Ligava-se a sorte dos soberanos aos destinos de seus súditos.13

Assim, por outro lado, a Igreja buscava fortalecer a Monarquia, entendendo o poder régio como uma incumbência dada ao soberano por Deus. Logo se chegaria à ideia de que todos os males provinham do “desprezo aos preceitos divinos”. Estimulando essa correspondência entre os desígnios de Deus e a existência humana, a Igreja, de acordo com a tendência da época, tentaria relacionar o governo terrestre com as esferas celestiais. Conceberia, pois, uma utopia monárquica, no sentido de idealizar não apenas suas estruturas e existência, mas, essencialmente, sua finalidade: a “paz do reino”.

Com a conversão do reino, a “cosmologia cristã faria prevalecer o ponto de vista cristocêntrico” em relação às ideias monárquicas, impregnando o reino com conteúdos religiosos e morrais. “O poder de um homem sobre outro remontaria in illo tempore, nascendo de um fato primordial, de uma causa fundadora: o Pecado Original”. Dessa forma, o poder régio associava-se às esferas celestiais, sendo parte integrante de um plano divino de salvação: cabia-lhe suprir, dentro de suas possibilidades, aquilo que teria decorrido da graça perdida.

Tal como Cristo era a cabeça da Igreja, o rei, intra ecllesiam, situado na interseção entre as esferas, era a cabeça do corpo social. Assim, nos primeiros séculos de sua elaboração cristã, a consagração régia acabaria por contribuir “para confirmar no espírito dos povos a noção de caráter sagrado dos reis”, ainda que a mística da Monarquia não tenha sido capaz de extirpar o antigo morbus Gothorum e a ação dos usurpadores.

A resultante desse processo seriam as possíveis leituras da analogia antropomórfica, como ela poderia ser vista, sentida e interpretada pelo divisor comum das religiões oficial e “popular”, num panorama que compreende uma “religiosidade partilhada” com a Monarquia, tema do quinto e último capítulo do livro, intitulado Religiosidade e Monarquia no Reino de Toledo. A analogia antropomórfica revelava uma ordem universal obediente à vontade divina, na qual os fiéis deviam ler os desígnios de Deus. Desta postura hierofânica alimentava-se a cosmologia cristã.

A monarquia visigoda católica, a societas fidelium Christi, não seria criada, mas formada como cristã. Portanto, não se instala, mas se insere: uma religião sempre se apoia nos instintos e nas características religiosas presentes anteriormente no meio. É uma condição básica: a moldura do espelho não lhe distorce a imagem, confere-lhe uma forma. Não há legislador, político ou proposta que imponha suas normas de forma duradoura e, paralelamente, altere de forma radical os hábitos milenares do cotidiano. Tentar acomodar o espelho a um limite menor que ele significa quebrá-lo.14

O reino católico de Toledo teria sido palco de variadas crenças e superstições, praticadas sem exclusividade por clérigos, leigos e monges. A conversão de Recaredo, que originou a cristianização oficial dos súditos, não implicou uma viragem radical de sua religiosidade – “criou diversos cristãos de nome, mas poucos por clara convicção”. Portanto, segundo o autor, “a cristianização não foi sinônimo de uma conversão íntima real e efetiva”.15 A despeito da pluralidade de opções de uma “religiosidade partilhada”, a proposta do cristianismo abriu espaço para uma tentativa de homogeneização, ao menos no nível do discurso religioso. Ademais, seu poder de intervenção, mais prático, contava com o apoio do braço secular, que pela força impunha o que não germinava da palavra, tentando arrefecer temores, angústias e incertezas de uma mentalidade em que a presença do sagrado era constante. A religião apareceria, então, como elemento de coesão do corpo social, viabilizando a utopia da analogia antropomórfica.

Cabeça do reino, o soberano devia cuidar do século. A alma/Igreja, por seu turno, providenciaria os remédios necessários para que o corpo cumprisse neste mundo a proposta do Redentor. Ainda que distantes dos sofisticados argumentos eclesiásticos, o mundo rural se cristianizava, mas não processava uma conversão no estrito sentido cristão. A utopia antropomórfica constituiu uma tentativa de aproximação com aquela religiosidade, estabelecendo correspondências entre o homem (microcosmo) e o mundo (macrocosmo) no qual transitava. Quando não punha em risco os dogmas da fé, procedimentos de desnaturação e obliteração eram elaborados na “religiosidade partilhada”, reforçando a presença do sagrado no cotidiano social.

Conclui-se, assim, uma obra que, segundo seu autor, pretendia constituir uma “primeira aproximação ao sincretismo religioso e sua penetração nas camadas sociais ao longo do processo de estruturação da Monarquia ao lado da Igreja no reino de Toledo.” 16 E seu objetivo foi, segundo o juízo deste leitor privilegiado, sobejamente realizado. Louve-se, antes de mais, o desprendimento do autor em romper com a estrutura da redação e da argumentação “canônicas” das teses de doutorado, desnecessariamente pesadas muitas vezes e pouco acessíveis aos não iniciados, brindando-nos com a produção de um verdadeiro ensaio, como destaca Hilário Franco Junior na Apresentação da obra. Por isso mesmo, Ruy de Oliveira não faz concessão fácil aos seus leitores, brindando-lhes com uma série de elocubrações definitivas sobre os temas que aborda, mas exige-lhes, antes, uma leitura atenta e interativa para o desvendamento dos meandros do desenvolvimento de sua análise.

Mas, o vigor de uma obra se expressa, também, nas ressalvas que suscita. Uma, em especial, a meu juízo – e por sinal muito pedagógica – merece consideração, na medida em que faz o autor refém de uma das principais idiossincrasias da medievalística atual em geral e, em particular, da visigotista, e isso depois de reconhecê-la e criticá-la. Refiro-me à perspectiva corrente de se atribuir a primazia às fontes de época e aos seus discursos que veiculariam, supostamente, uma percepção mais adequada das realidades de outrora, o que vem reduzindo a historiografia a uma mera transcrição de documentos e a atualização de sintaxes desaparecidas. Assim, muito justamente Ruy de Oliveira crítica a reprodução acrítica da visão eclesiástica do período pelos historiadores, tomando por referência paradigmática a L. A. García Moreno, que “chega a considerar, entre as razões da queda da Hispânia visigoda, a ‘decadência moral do reino’”.17

Identificada, com argúcia, a tendência, nosso autor viria, contudo, a enredar-se na mesma “armadilha”. Fazendo eco às sucessivas admoestações episcopais nos concílios, partilha a concepção da “degradação” que teria assolada o clero hispânico, expressa na fundação das igrejas e mosteiros familiares, movidas apenas por interesses econômicos, “como forma de evadir-se do fisco e obter doações ou taxas”; no recrutamento de clérigos rurais entre os servos eclesiásticos; na nomeação de bispos pelos monarcas, responsáveis todas “elas, sem dúvida, [por] um declínio moral e cultural dos quadros do ordo clericorum.”18 Ora, os juízos de valor que as fontes, com frequência, divulgam devem ser tratados criticamente. No caso em questão, apoiar a proposição da degradação supõe reconhecer a suposta existência pretérita de uma “idade de ouro”, de uma Igreja pura e imaculada a salvo das pressões e anseios de diversa ordem que se impunham aos membros de seus quadros. Quando situá-la? Instituição sagrada, sua vigência secular submeteu-a aos influxos históricos dominantes no período em questão, que a matizaram em variados níveis e aspectos.

Por fim, em que pese a importante contribuição de sua obra ao conhecimento do tema, Ruy de Oliveira, intelectual sincero e equilibrado como poucos em nosso egóico e exacerbado meio, reconhece e destaca algumas das muitas questões relativas ao tema que merecem, ainda, considerações mais aprofundadas, propondo a seus leitores vias potenciais para pesquisas futuras. Trata-se, portanto, Imagem e Reflexo…, de uma obra que se propõe transcender a si própria. Que cumpra, plena de sucesso, o seu anseio manifesto!

Notas

1 Elaborada no âmbito do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo, sob a orientação de Hilário Franco Junior.

2 Professor da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Campus de Assis – São Paulo).

3 P. 25.

4 Idem.

5 P. 26.

6 Em especial Estudios Visigóticos III: El Poder Real y la Sucesión al Trono en la Monarquia Visigoda. Roma-Madrid: CSIC, 1962.

7 Entre outros, “El Pensamiento Político Visigodo y las Primeras Unciones Regias en la Europa Medieval”, Hispania Revista – Revista Española de Historia, n. 115, 1970, pp. 245-326.

8 P. 37.

9 Idem.

10 P. 73.

11 P. 99.

12 P. 131.

13 P. 133.

14 P. 192.

15 P. 193.

16 P. 196.

17 P. 74.

18 P. 94.


Resenhista

Mário Jorge da Motta Bastos – Universidade Federal Fluminense.


Referências desta Resenha

ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. Imagem e Reflexo: Religiosidade e Monarquia no Reino Visigodo de Toledo (Séculos VI-VIII). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012. Resenha de: BASTOS, Mário Jorge da Motta. Signum- Revista da ABREM, v. 13, n. 2, p.172-181, 2012. Acessar publicação original [DR]

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