Interfaces da arte no universo da história marítima e militar: estética, linguagens e representações |  Navigator | 2019

De longa data a arte relaciona-se ao universo militar. No Brasil, a guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai proporcionou aos artistas plásticos o engajamento na história presente. Foram chamados a produzirem a crônica cotidiana dos acontecimentos do front, ilustrando periódicos com suas gravuras, ou a construírem decorações efêmeras em homenagem à volta dos soldados. Pinturas monumentais, a exemplo do Combate Naval do Riachuelo, de Victor Meirelles, ou da Batalha do Avahy, de Pedro Américo, foram encomendadas, visando perpetuar a glória dos vencedores, reafirmando a força do Império brasileiro. Monumentos aos heróis foram construídos, enquanto algumas poucas pinturas e fotografias insistiram em apontar o custo humano do conflito. As Primeira e Segunda Guerras Mundiais, domínio já do fotojornalismo, não engendraram pinturas grandiloquentes no Brasil, mas alguns jovens soldados registraram em cadernos desenhos reveladores de suas emoções. Além dos conflitos, o cotidiano da vida marítima e militar foram igualmente representados.

Neste dossiê, várias linguagens se cruzam. Pinturas, desenhos, gravuras, cartões-postais, projetos arquitetônicos e canções foram analisados. São pesquisas desenvolvidas a partir de variadas fontes, mostrando forte interesse pela representação da História Militar, em seus múltiplos aspectos.

No primeiro artigo, “Victor Meirelles e a Passagem de Humaitá”, Maraliz de Castro Vieira Christo, doutora em História pela UNICAMP, se pergunta pelos motivos que levaram Meirelles a pintar, em grande formato, um dos principais eventos da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, sem figuras humanas, dificultando a percepção dos navios envolvidos, ocultos por manchas negras e vermelhas, contrariando os pressupostos da pintura histórica. A autora analisa a crítica da época, os estudos e esboços realizados pelo pintor, debatendo como o mesmo trocou seu papel de narrador de um acontecimento histórico pelo de espectador impotente.

Álvaro Saluan da Cunha, doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da UFJF, apresenta, em seu artigo “Os ‘Quadros históricos da Guerra do Paraguay’: projeto editorial e imagens”, dados sobre gravuras que circulavam encartadas em jornais ou avulsas após o final da guerra. Material iconográfico importante para a construção da memória dos conflitos, as gravuras foram utilizadas por muitos historiadores como ilustração, desconhecendo-se o projeto que as originou, os artistas, desenhistas, litógrafos e escritores, que dele participaram, assim como, sua circulação e consumo.

O artigo “Um pintor a bordo: Victor Meirelles e os desenhos da ‘Esquadra Encouraçada’ durante a Guerra do Paraguai”, escrito por Aldeir Isael Faxina Barros, analisa dezesseis desenhos realizados por Victor Meirelles, quando esteve no front, aonde chegara a tempo de “assistir aos últimos combates com a Fortaleza de Humaitá”. Nos desenhos, o artista deteve- -se em representar fielmente navios encouraçados, constituindo-se em rara fonte iconográfica para o reconhecimento das embarcações.

Bárbara Tikami de Lima, mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da UNISINOS, no artigo “As possibilidades de aquisição das pinturas produzidas por Eduardo de Martino pela Marinha Brasileira (1868-1875)”, levanta algumas hipóteses sobre a relação entre o pintor e a Marinha, assim como sobre as formas de aquisições das obras. As pinturas do artista italiano, presentes no Museu Naval, entre 1890 e 1932, resultaram de encomenda, compra ou doação? Após algumas pesquisas frustradas, o leilão de obras do artista realizado no Arsenal da Marinha, em 1873, trouxe alguns indícios.

“‘O Príncipe D. Pedro e Jorge de Avilez a bordo da Fragata União’, de Oscar Pereira da Silva: A Independência em tons belicosos”, artigo escrito pelo doutorando do MAC-USP, Carlos Lima Júnior, estuda profundamente a inserção do referido quadro no programa iconográfico desenvolvido pelo diretor do Museu Paulista, Afonso Taunay, para as comemorações do centenário da Independência do Brasil, em 1922. O autor identifica as fontes visuais e textuais utilizadas pelo pintor para embasar suas decisões, como também decifra os interesses políticos envolvidos na produção do quadro, que narra a expulsão das tropas portuguesas do Rio de Janeiro, em 8 de fevereiro de 1822.

Em artigo voltado para o início da colonização, intitulado “A arquitetura militar portuguesa do Setecentos”, Luiza Nascimento de Oliveira da Silva, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da UFRJ, explora questões ligadas ao ensino e prática da arquitetura militar relativa à defesa político-territorial, entre os séculos XVI e XVIII. Para tanto, debruça-se sobre o desenho da planta de fortificação da Ilha das Cobras, datado de 1735, do então governador interino da cidade do Rio de Janeiro, o engenheiro José da Silva Paes.

Rafael Bonavina Ribeiro observa no conto Dois Casos da Vida Náutica, de Ivan Aleksándrovitch Gontcharóv, como o escritor representa a natureza, particularmente o mar. Publicado em 1858, destinando-se ao público infanto-juvenil, o conto estrutura-se como um relato de viagem, oscilando a narrativa entre o fascínio e os perigos do mar. Rafael identifica, no cotidiano representado a bordo da Fragata Palas, a ressignificação de um tema clássico, a fugere urbem, rejeitando-se o ambiente urbano, valorizando-se a vida no mar.

Já Lucas Otávio Boamorte, no artigo “Os soldados na Primeira Guerra Mundial: representações de combatentes em cartões-postais franceses na Grande Guerra (1914-1918)”, reconhece nesses souvenirs a permanência de uma imagem romântica das batalhas, ainda herdeira da guerra Franco-Prussiana de 1870-1871. Os cartões-postais exibiam combatentes fortes e confiantes, portando armas dignas de cavaleiros, pousando em estúdios fotográficos. O pesquisador contrapôs essa imagem idealizada aos relatos dos combatentes, que descreviam os horrores e a carnificina de uma guerra moderna, travada na lama ensanguentada das trincheiras.

A música também é analisada neste dossiê. Anderson de Rieti Santa Clara dos Santos, mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da UFF, no artigo “A música na Armada brasileira no final do século XIX: dos quartéis aos navios em comissão”, destaca o papel da música na rotina de bordo e nos cerimoniais diplomáticos. Identifica nesse período a presença de conjuntos musicais a bordo dos navios da Armada Brasileira em comissões de visitas e representações diplomáticas em outros países, investigando, igualmente, a formação dos conjuntos e a preparação dos músicos.

Wanderson Ramonn Pimentel Dantas, mestrando do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da UFPI, por sua vez, pesquisou canções produzidas pelos expedicionários da FEB. No artigo “Do springfield ao violão, do morteiro ao pandeiro: sambas, marchas e reminiscências nas canções compostas por integrantes do Regimento Sampaio da Força Expedicionária Brasileira em 1945 e 1966”, o autor analisa a presença simbólica do Monte Castelo nas canções, enfatizando como os pracinhas transformaram em pilhérias as agruras da guerra. Forma encontrada pelos sambistas-soldados para honrarem os que tombaram em sua conquista.

São ao todo dez cuidadosos artigos a mostrarem como a pesquisa dos objetos artísticos nos ajuda a entender sua produção e a vida que expressam.


Organizadora

Maraliz de Castro Vieira Christo – Professora de História da Arte do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), membro do Comitê Brasileiro de História da Arte, pesquisadora do CNPq e FAPEMIG.


Referências desta apresentação

CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. Apresentação. Navigator – Subsídios para a história marítima do Brasil. Rio de Janeiro, v. 15, n. 29, p.9-11, 2019. Acessar publicação original [DR]

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