Jörn Rüsen e o ensino de história – SCHMIDT et al. (RBHE)

SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Resende Martins. Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Editora da UFPR, 2010. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Consciência histórica, mudança social e ensino de história. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, v. 11, n. 2 (26), p. 191-197, maio/ago. 2011.

A obra de Jörn Rüsen começa a ser traduzida com maior regularidade no Brasil. Isso se deve a vários fatores, dentre os quais, a formação de grupos que se preocupam com a introdução da teoria da história e da história da historiografia de cunho alemão no país, ao amadurecimento da pesquisa histórica, a maior preocupação com questões de método, ao fortalecimento de um diálogo interdisciplinar, e, no interior dessas questões, a própria contribuição que traz a obra desse autor.

Até agora o leitor brasileiro tinha acesso a um pequeno conjunto de artigos traduzidos e publicados em revistas especializadas do país, a partir do final dos anos de 1980, e a sua trilogia sobre teoria da história (2001, 2007a, 2007b). Com a publicação desse livro, o leitor tem a oportunidade de verificar que as contribuições desse autor se estendem para além do campo da teoria, metodologia e história da historiografia, e conjugam também o campo da didática e do ensino de história. Para os menos próximos do conjunto dos textos e da trajetória de Rüsen, isso talvez possa parecer um tanto quanto estranho. No entanto, nada mais articulado do que também tratar da didática e do ensino de história. Como Estevão Martins nos informa, sua bibliografia articula história, filosofia, antropologia e historiografia “de modo comparativo, debruçando-se sobre as grandes linhas culturais do mundo comtemporâneo – em seus contatos e em seus estranhamentos” (p. 7). Além disso, a própria condição docente nas universidades alemãs vinculava a cadeira que ocupou, entre os anos de 1970 e 1990 – de 1974 a 1989 na Universidade de Bochum e de 1989 a 1997 na de Bielefeld –, na conjugação de parâmetros reguladores, para o de teoria, metodologia, historiografia e didática da história. Em virtude disto, para Martins, sua proposta de reflexão quanto aos critérios de orientação do agir humano no tempo, de modo que se viabilize suprir as carências existenciais, que constata serem corriqueiras entre nós, fá-lo propor linhas de análise quanto à expressão narrativa nas suas três versões mais comuns: a da linguagem do quotidiano, a da historiografia e a da linguagem do ensino (p. 9).

Ao abordarem os significados de sua obra para as investigações em educação histórica, Maria Auxiliadora Schmidt, Isabel Barca e Tânia Braga Garcia indicam como seus procedimentos são promissores, demonstrando-o em movimento as pesquisas em andamento no Brasil, em Portugal e em Cabo Verde. Para elas, sua tipologia sobre as diferentes modalidades de consciência história, em movimento na historiografia tanto quanto no ensino de história, tem permitido refletir a forma como o ensino de história é compreendido e passado pelos docentes aos alunos, assim como os modos como os próprios alunos conseguem conjugar suas definições e interpretações dos fatos, acontecimentos e processos históricos. Para elas,

Os jovens cabo-verdianos associam a sua identidade a valores culturais e políticos representados por personagens sobretudo do seu país, embora pontualmente reconheçam também o contributo, positivo ou negativo, de personagens de outros países e continentes para a vida em Cabo Verde. Relativamente à análise comparativa das narrativas de jovens portugueses e brasileiros, participantes em tarefas idênticas, um dos resultados interessantes que emergiram é que, se os dois grupos partilhavam uma ideia de progresso, os jovens portugueses veem-se como espectadores da história, enquanto os jovens brasileiros se integram na história como agentes de mudança, perspectivando o futuro (p. 18).

Nos ensaios selecionados pelos organizadores, há uma clara preocupação com a conjugação entre consciência histórica, mudança social e didática da história. Ao longo dos sete ensaios reunidos, isso é perfeitamente observável, na medida em que destacam a configuração do papel da didática da história e do aprendizado histórico, indicam as diferentes formas de apreensão do tempo conjugadas na consciência histórica, os reflexos da experiência, interpretação e orientação para o aprendizado histórico, a organização da narrativa histórica em seus fundamentos, tipos e razão, a composição do livro didático e a questão da narratividade e objetividade nas ciências históricas.

Para o autor, a “didática da história é uma abordagem formalizada para ensinar história em escolas primárias e secundárias, que representa uma parte importante da transformação de historiadores profissionais em professores de história nessas escolas” (p. 23). Função, aliás, em muitas ocasiões conjugadas como separadas no interior deste processo de ensino-pesquisa-aprendizagem. Embora mais guiada para o treinamento de historiadores no processo ensino-aprendizagem, a didática histórica também serve para a observação da maneira pela qual o ensino de história é percebido pelos alunos e os efeitos de sua introdução em sala de aula. Nesse aspecto, a “consciência histórica não pode ser meramente equacionada como simples conhecimento do passado”, mas “pode ser analisada como um conjunto coerente de operações mentais que definem a peculiaridade do pensamento histórico e a função que ele exerce na cultura humana” (p. 36-37). Além disso,

através da análise das operações da consciência histórica e das funções que ela cumpre […] pela orientação da vida através da estrutura do tempo, a didática da história pode trazer novos insights para o papel do conhecimento histórico e seu crescimento na vida prática (p. 38).

Por essa razão, a “didática da história […] pode demonstrar a historiador profissional as conexões internas entre história, vida prática e aprendizado” (p. 40).

Por sua vez, o aprendizado histórico está intimamente relacionado com as apreensões da consciência histórica, por que, não sendo apenas um processo cognitivo, o aprendizado histórico se estabelece em meio às formas com que o tempo histórico é apreendido pelo indivíduo, por meio da regulação dos processos de memorização, no intenso e constante movimento que o tempo possui. Além disso, é a “consciência humana relativa ao tempo, experimentando o tempo para ser significativa, adquirindo e desenvolvendo a competência para atribuir significado ao tempo” (p. 79), que define o que é a aprendizagem histórica.

Nesse aspecto, a consciência histórica “serve como um elemento de orientação chave, dando à vida prática um marco e uma matriz temporais, uma concepção do ‘curso do tempo’ que flui através dos assuntos mundanos da vida diária” e essa “concepção funciona [também] como um elemento nas intenções que guiam a atividade humana” (p. 56), no curso dos processos de ação e de tomadas de decisão. Isto porque ela “transforma os valores morais em totalidades temporais: tradições, conceitos de desenvolvimento ou outras formas de compreensão do tempo” (p. 57). Por essa razão, a consciência histórica caracteriza-se pela sua capacidade de estabelecer uma competência de experiência, de interpretação e de orientação nos indivíduos. Para ele, a consciência história poderia ser agrupada no interior de uma tipologia, na qual se inscreveriam: uma forma tradicional, uma exemplar, uma crítica e uma genética.

A tradicional dá significado contínuo ao passado no presente e no futuro, sendo reproduzida continuamente, ao apresentar “a totalidade temporal que faz significativo o passado e relevante a realidade presente e a sua extensão futura como uma continuidade de modelos de vida e os modelos culturais pré-escritos além do tempo” (p. 64). A exemplar rastreia os casos e acontecimentos significativos ao longo do tempo, dando base de orientação e tomada de decisão no presente, ao revelar “a moralidade de um valor ou de um sistema de valores, culturalmente materializados na vida social e pessoal, através da demonstração de sua generalidade”, quer dizer, “que tem uma validade que se estende a uma gama de situações” (p. 66). A crítica faz um corte com o passado, dando novos significados tanto a este, quanto ao presente e ao futuro, onde a história “funciona como a ferramenta com a qual se rompe, ‘se destrói’, se decifra tal continuidade – para que perca seu poder como fonte de orientação no presente” (p. 67). Por fim, a genética demonstra como nos próprios desdobramentos de sentido do passado se encontra a mudança, onde a “memória histórica prefere representar a experiência da realidade passada como acontecimentos mutáveis, nos quais as formas de vida e de cultura distantes evoluem em configurações ‘modernas’ mais positivas” (p. 69).

Nessa tipologia, as quatro formas de consciência histórica estão articuladas. As duas primeiras (tradicional e exemplar) constituem formas menos desenvolvidas, enquanto as outras duas (crítica e genética) representariam as etapas mais desenvolvidas.

Essa divisão e representação da consciência histórica não apenas funcionaria para pensar as diferentes fases de desenvolvimento de alunos, professores e da aplicação e ensino da história, mas também é aplicável para pensar a historiografia, em seu processo de desenvolvimento no tempo. Sendo a narrativa “o processo de constituição de sentido da experiência do tempo” (p. 95), ela própria também estaria conjugada de acordo com a perspectiva em que se situaria a consciência histórica (em tradicional, exemplar, crítica e genética) do indivíduo que a elaboraria. Além disso, a narrativa histórica estaria “ligada ao ambiente da memória” ao mobilizar a experiência do tempo passado, organizaria a “unidade interna destas três dimensões do tempo [passado, presente e futuro] por meio de um conceito de continuidade” e serviria “para estabelecer a identidade de seus autores e ouvintes” (p. 97), definindo de que maneira apreenderiam a continuidade do tempo e lhe dariam significado.

Por essa razão, também é possível situar o desenvolvimento das modalidades de consciência histórica (individual e coletiva) ao longo do tempo, no campo da historiografia, em que ao se definir como gênero a História deixaria uma apreensão tradicional do tempo, para refleti-lo de modo exemplar. Esse modelo teria vigorado até o século XVIII, quando foi criticado, e em vista de tal crítica teriam se plasmado novas modalidades de consciência histórica (crítica e genética). No entanto,

Na condição de previamente dado, o passado ainda não se tornou história, nem mesmo é, propriamente, passado; como história e como passado, poder-se-ia dizer, é invisível. Para torná-lo visível temos de distinguir as três dimensões temporais [passado, presente e futuro] e colocar em ação os mecanismos mentais da consciência histórica. A resultante dessa interação é a representação histórica do passado. Ela somente pode desempenhar seu papel de orientação se não perder de vista essa “história invisível” que nós mesmos somos.

Somente a representação histórica do passado, que nos traz à mente essa história, é que possui a qualidade da objetividade em que estão sintetizados o aspecto da experiência e o da intersubjetividade, assim como as dimensões teórica e prática da produção de sentido histórico na relação entre passado e presente. […] Nenhuma narrativa histórica é possível sem uma perspectiva e os critérios de sentido histórico com ela relacionados. Esses critérios são derivados da orientação cultural da vida prática (p. 149-150).

Portanto, ao articular o papel da didática da história e do aprendizado histórico, demonstrando as diferentes formas de apreensão do tempo e a maneira como é conjugado na consciência histórica, o autor indica como essas questões se articulam na projeção do tempo também como fomentador da mudança social. Se os reflexos da experiência, interpretação e orientação para o aprendizado histórico, a organização da narrativa histórica em seus fundamentos, tipos e razão, a composição do livro didático e a questão da narratividade e objetividade nas ciências históricas são temáticas envolvidas diretamente com o entendimento dessa questão, é fundamental demonstrar que não se limitariam a categorias reprodutoras da experiência no ensino de história e na historiografia (em modelos tradicionais e exemplares), mas também podem fornecer subsídios para a elaboração de categorias que conjuguem essas mesmas experiências da história, como formas de organizar a própria mudança de percepção do tempo, quanto dos significados do passado, do presente e do futuro. Por suas qualidades, essa obra pode ser uma referência não apenas para o entendimento dessas questões, mas também servir de modelo para inquirir o ensino de história, a produção dos livros didáticos, e a apreensão do tempo de acordo com as modalidades de consciência histórica presentes entre alunos e professores; assunto, aliás, com que os organizadores da coletânea, ao apontarem os significados da obra de Rüsen para a educação histórica (p. 11-22), nos brindaram com os primeiros frutos colhidos, com o uso desses procedimentos, ao inquirirem a aplicação e apreensão do ensino de história, entre alunos portugueses, brasileiros e cabo-verdianos.

Referências

Rüsen, J. Razão histórica. Teoria da História I: os fundamentos da ciência da história. Trad. de Estevão de Rezende Martins. Brasília: Ed. UnB, 2001.

_____. Reconstrução do passado. Teoria da história II: os princípios da pesquisa histórica. Trad. de Asta-Rose Alcaide. Brasília: Ed. UnB, 2007a.

_____. História viva. Teoria da História III : formas e funções do conhecimento histórico. Trad. de Estevão de Rezende Martins. Brasília: Ed. UnB, 2007b.

Diogo da Silva Roiz – E-mail: [email protected]

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