Um papel para a história: O problema da historicidade da ciência – CONDÉ (PH)

CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. Um papel para a história: O problema da historicidade da ciência. Curitiba: ED. UFPR, 2017. 171 pg. Resenha de: SILVA, Luiz Cambraia Karat Gouvêa da. Internalismo versus externalismo em história da ciência: uma proposta de integração. Projeto História, São Paulo, v.62, Mai-Ago, pp. 388-395, 2018.

Mais do que uma análise histórica sobre uma das maiores controvérsias existentes na História da Ciência, entre as escolas internalista e externalista de teoria científica, o livro Um papel para a história: o problema da historicidade da ciência, do Professor Titular de História da Ciência na UFMG Mauro Lúcio Leitão Condé, desenvolve a ideia de superação da dicotomia entre essas duas perspectivas metodológicas. O objetivo da obra é construir a categoria epistemológica “historicidade da ciência”, uma proposta que promoveria a articulação entre os elementos sociais com as dimensões empíricas do real.

O livro é resultado do minicurso ministrado em setembro de 2013, por Condé, na Escola Paranaense de História e Filosofia da Ciência – ligada ao Departamento de Filosofia da UFPR. Observada a trajetória acadêmica do autor, podemos concluir que esse estudo apresenta uma síntese de investigações que Condé vem desenvolvendo há quase três décadas. Em Um papel para a história: o problema da historicidade da ciência o autor faz uso tanto de autores com os quais trabalha desde o início da carreira, como Wittgenstein e Thomas Kuhn, quanto de pensadores que começou a discutir com mais frequência nos últimos tempos, como Alexandre Koyré, Ludwik Fleck e Edgar Zilsel.

Como o problema da historicidade da ciência é de natureza epistemológica, esse estudo deve ser visto em um contexto disciplinar mais amplo. Para além das fronteiras da História da Ciência, o livro se alinha com outras áreas que investigam os pressupostos metateóricos que fundamentam a produção do conhecimento científico, tais como a Sociologia, a Filosofia e a Antropologia. Embora o texto atinja uma notória profundidade teórica, é desenvolvido em uma linguagem simples e inteligível, sendo sua leitura indicada tanto aos iniciantes interessados em compreender a dicotomia externalismo versus internalismo, quanto aos iniciados que buscam aprofundar-se na temática.

Para operacionalizar sua análise, ou seja, para inter-relacionar as duas perspectivas metodológicas, Condé se utiliza do método comparativo. Em um primeiro momento, o autor elege representantes de cada uma dessas linhas teóricas – Koyré e Zilsel – e lança luz sobre seus principais pontos de divergência. Constatada a querela, Condé passa a analisar como a proposta externalista ganhou, a partir de Kuhn, proporções inimagináveis, ofuscando, inclusive, o que há de meritório na análise internalista. Por fim, o autor, resgatando ideias de Fleck e fazendo uso da filosofia da linguagem de Wittgenstein, procura desenvolver uma proposta de integração na qual tanto o internalismo como o externalismo são utilizados na confecção de uma epistemologia que analisa as influências socioculturais do cientista sem negligenciar o papel da natureza, a historicidade da ciência.

O livro se divide em prefácio, introdução, quatro capítulos e uma conclusão. O prefácio, escrito pelo professor da UFPR Eduardo Salles de O. Barra, busca introduzir o conceito de historicidade da ciência. Para Barra, o esforço de Condé se dá em compreender como o conhecimento científico é produzido por um profissional que está inserido em um determinado contexto. O que Condé, aos olhos de Barra, quer dizer é que o cientista não se encontra em uma ilha isolada quando pratica seus experimentos. Na realidade, existe um conjunto de valores sociais, de pressupostos, de imaginários, que, mesmo não intencionalmente, condicionam o cientista em suas atividades. A “esterilização” laboratorial não levaria em conta que o próprio cientista, na prática da ciência, já estaria partindo de pressupostos, tradições, consensos acadêmicos, refutando, assim, a possibilidade de se atingir um conhecimento pretensamente positivo.

Mas essa forma de analisar a ciência como uma prática social observando seus condicionantes externos – ou seja, a visão externalista – teria se radicalizado em estudos do final do século XX, valorizando em demasia a abordagem sociológica da ciência e atingindo nuances próprias ao relativismo (p. 16). Estudos sobre a teoria científica desenvolvidos pelo Programa Forte da escola de Edimburgo acabariam por retirar a importância da natureza na prática científica, dando, assim, excessivo valor às dimensões sociais presentes no “fazer ciência”. Para Barra, o grande  mérito do livro de Condé está, justamente, em propor uma epistemologia ligada aos estudos sobre a teoria da ciência que, como veremos, pense a atividade científica como um produto da interação linguística entre o aspecto social, próprio do contexto do cientista, que não negligencia o papel do dado empírico proveniente da investigação do mundo natural.

Na Introdução, denominada A ciência tem uma história, Condé anuncia uma de suas teses centrais: a de que, para além da conclusão óbvia de que as ciências têm uma história, a forma como essas histórias são construídas também influenciam o próprio processo de produção científica. Isto é, constatada que a visão dos homens é condicionada historicamente, essa premissa é estendida aos cientistas e às atividades laboratoriais: “Todo conhecimento da natureza é tecido a partir de sua historicidade social e linguística” (p. 28). Mais do que história, as ciências possuem historicidade.

O Capítulo 1, intitulado O filósofo e as máquinas: Koyré, Zilsel e o debate internalismo versus externalismo, tem como objetivo mostrar que as origens desse debate remontam à controvérsia sobre as origens da ciência moderna. Os internalistas, representados na figura de Alexandre Koyré, defendem que a Revolução Científica aconteceu por conta de uma mudança na “atitude metafísica” (p. 32), uma alteração de pensamento no plano teórico, que desbancou a escolástica medieval e instaurou um novo cenário intelectual que possibilitou o desenvolvimento da ciência moderna e, consequentemente, das novas tecnologias. Do lado oposto, os externalistas, representados por Edgar Zilsel, advogam que a Revolução Científica foi protagonizada pelas mudanças oriundas da união do saber prático dos artesãos-engenheiros (o “saber-fazer”) com a racionalidade e o saber teórico da tradição filosófica (o “saber-pensar”), gerando o método experimental que caracterizou a ciência moderna. A emergência do capitalismo e a valorização da tecnologia e da mercadoria teriam influenciado esse processo. Assim, enquanto Koyré e os internalistas entendem a Revolução Científica como uma mudança de “atitude metafísica”, Zilsel e os externalistas a compreendem como uma consequência do novo contexto social e econômico que caracterizou a Modernidade.

Condé argumenta que, embora Koyré e Zilsel tenham lançado duas importantes perspectivas metodológicas para os historiadores da ciência, seus modelos continham imprecisões. O internalismo koyreniano, amplamente baseado no realismo matemático de perfil platônico e cartesiano, desconsiderava a influência do contexto na atividade dos cientistas. Já o externalismo, na forma como apresentada por Zilsel, além de não produzir o conceito de historicidade, já que não desenvolveu a ideia de que a história de uma ciência afeta o seu resultado, dava excessiva importância à tese de que a ciência moderna surgiu da união do “saber-fazer” com o “saber-pensar”. Este argumento foi questionado pelos internalistas que observaram que os antigos romanos também contavam com essas duas práticas em sua sociedade e não produziram a ciência moderna. Assim, mais do que desenvolvimento técnico, os internalistas defendiam que as mudanças trazidas pela Revolução Científica se davam na “atitude metafísica”.

No Capítulo 2, O elo perdido: Fleck e a emergência da historicidade da ciência, Condé mostra como a ideia de historicidade da ciência, amplamente divulgada por Kuhn na década de 1960, já existia desde a década de 1930, desenvolvida pelo médico e filósofo Ludwik Fleck. Este pensador teria sido o primeiro a refletir sobre as conexões que se estabelecem entre a ciência e a sociedade. Segundo Condé, Fleck inaugura uma nova epistemologia para se pensar a prática científica na qual a ciência não pode ser vista separada de seu contexto histórico e social. O conhecimento científico não seria apenas fruto do “estilo de pensamento” de um determinado coletivo de cientistas, mas de toda a sociedade na qual o praticante da ciência está inserido. A partir dessa constatação, Condé conclui que não existe conhecimento fora do social e, consequentemente, fora do tempo. Essa seria a noção de historicidade da ciência que Fleck chamaria, na década de 1930, de “ciência das ciências”. Essas ideias entrariam em conflito com o objetivismo característico do neopositivismo do Círculo de Viena, vertente epistemológica hegemônica da época, o que acabou por relegar Fleck ao ostracismo.

No Capítulo 3, “Um papel para a História”: historicidade versus relativismo em Thomas Kuhn, Condé analisa Kuhn em dois momentos. No primeiro, quando, na década de 1960, publica A Estrutura das Revoluções Científicas, afirmando a importância do contexto histórico no “fazer científico” – premissa que foi de encontro às pretensões de objetividade do “racionalismo crítico” de Popper. E, em um segundo momento, a partir da década de 1970, quando alguns de seus seguidores conduziram o estudo da dimensão social da prática científica às últimas consequências, o que acabou por ocasionar o surgimento de grupos de pesquisas que desabilitavam qualquer pretensão objetiva de investigação da natureza – o Programa Forte de David Bloor seria um exemplo. Estes grupos, chamados socioconstrutivistas, foram considerados por Kuhn como relativistas. Segundo Condé, o autor da A Estrutura das Revoluções Científicas passaria o resto da carreira tentando desenvolver uma teoria que conciliasse a dimensão social com a natural. Entretanto, teria morrido antes de terminar esse projeto. Assim, a “tensão essencial” para Kuhn seria o paradoxo insolúvel no qual “sociedade” e “natureza” são, supostamente, inconciliáveis. Mas Kuhn teria deixado algumas pistas que apontavam para uma possibilidade de inter-relação linguística entre esses dois mundos. Abandonando a noção dos paradigmas, Kuhn passaria a estudar o diálogo entre os diferentes grupos científicos a partir da teoria da linguagem e da tradução dos seus respectivos “campos léxicos”.

Entretanto, segundo Condé, a teoria da linguagem científica desenvolvida por Kuhn defendia a “coisa em si” kantiana, o que o teria impedido de levar a análise linguística às últimas consequências. E é a partir desse horizonte que Condé, no Capítulo 4, Wittgenstein e a gramática da ciência: linguagem e práticas sociais no conhecimento científico, utiliza a filosofia da linguagem desenvolvida por Wittgenstein para estudar uma possibilidade de congregar os três conceitos: a sociedade, a linguagem e a natureza. A partir da ideia de “gramática da ciência” o autor propõe que a “historicidade do conhecimento” é feita pela linguagem, a partir da “tessitura”, ou entrelaçamento, dos aspectos sociais e dos dados empíricos obtidos do mundo natural.

Condé nega qualquer tipo de essência transcendental na linguagem, assumindo, por meio de Wittgenstein, que seu uso nos diferentes contextos é regido por regras – as “gramáticas” –, e que essas categorias de linguagem estão em permanente construção, sendo, portanto, produto da “práxis social”. O que Condé está defendendo é que a “coisa em si” kantiana é questionável nessa abordagem linguística e que a própria cultura científica estabelece, em um movimento permanente, as regras que normatizam as práticas científicas. Diferente do relativismo socioconstrutivista do Programa Forte, Condé admite que essa construção linguística da prática científica é feita, também, em diálogo com a natureza, compreendida como “objetos, fatos, ações” (p. 150). Assim, o autor argumenta que a epistemologia sugerida pela historicidade da ciência reconhece na linguagem a possibilidade de articulação da dimensão social com a natural e empírica do trabalho científico.

Na Conclusão do livro, Condé, além de desenvolver uma síntese das discussões dos capítulos anteriores, afirma que a historicidade da ciência pode ser um horizonte epistemológico produtivo para os analistas interessados em compreender a prática científica como um fenômeno de linguagem que congrega tanto a dimensão social quanto a natural.

O livro Um papel para a história: o problema da historicidade da ciência, mais do que apresentar de forma relevante uma possibilidade de superação do problema internalismo versus externalismo, fornece, com agudeza, novas diretrizes epistemológicas para o estudioso da teoria da ciência interessado em refletir sobre as historicidades possíveis na relação entre o “sujeito” e o “objeto” a partir de uma perspectiva linguística.

Luiz Cambraia Karat Gouvêa da Silva – Bacharel em História pela Universidade de São Paulo, é aluno do Programa de Pós-graduação em História da UNESP/Assis. Tem experiência na área de História da Ciência. Número ORCID: 0000-0001-8697-2799. E-mail: [email protected].

Teoria da História: uma teoria da história como ciência – RÜSEN (RHH)

Importante autor na área da teoria da história e da didática histórica, Jörn Rüsen, professor emérito da Universidade de Witten/Herdecke na Alemanha, procura, neste livro, retomar e somar novas perspectivas e reflexões à teoria da história estabelecida em sua obra, especialmente na trilogia publicada no Brasil com os títulos Razão histórica (2001), Reconstrução do passado (2007) e História viva (2007). Segundo Rüsen, a história é parte do cotidiano social e individual, em sua formatação tanto científica quanto não científica. Procurar alguma realização por meio do pensamento histórico é um esforço antropológico, uma constante humana – o saber histórico auxilia na relação com as dimensões do tempo, buscando explicar, compreender e planejar. Os seres humanos vivem no tempo e o pensamento histórico se relaciona com a administração da experiência temporal: sempre há carências de orientação. A partir destas noções o autor procura fundamentar e articular a importância do conhecimento histórico científico, especializado e profissional, na perspectiva existencial do ser humano frente a outros saberes, históricos ou não. Leia Mais

João da Silva Feijó: um homem de ciência no Antigo Regime português – PEREIRA; SANTOS (HCS-M)

PEREIRA, Magnus Roberto de Mello; SANTOS, Rosângela Maria Ferreira dos. João da Silva Feijó: um homem de ciência no Antigo Regime português. Curitiba: Editora da UFPR, 2012 (Coleção Ciência e Império, v.1), Curitiba: 1046pp. Resenha de: MOSCATO, Daniela Casoni. A vida de um homem de ciência no Antigo Regime português. História Ciência Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 22 n.4 Rio de Janeiro Oct./Dec. 2015.

Como podemos, como historiadores, narrar a vida de um indivíduo? O que contaríamos, ou omitiríamos, nos caminhos e descaminhos de uma trajetória humana? Perguntas como essas perseguem os que decidem entrar nessa empreitada historiográfica. Reflexo disso pode ser percebido na contínua produção acadêmica dedicada ao estudo de indivíduos e em “pistas” que cada ensaio, em particular, aponta acerca desse tipo de análise. Essa produção biográfica, democrática e diversificada perpassa por personagens consagrados, como é o caso de Norbert Elias (1995), no estudo Mozart: sociologia de um gênio , e por indivíduos comuns, como o moleiro Domenico Scandella, o Menocchio, indivíduo construído belamente por Carlo Ginzburg (1998). Nessas relações e construções, os autores demonstram particularidades analíticas numa tentativa de apresentar caminhos possíveis, geralmente labirínticos, aos estudos biográficos.

A biografia encontra-se, assim, no centro das preocupações de historiadores, como aponta Giovanni Levi (1998) em seu clássico texto “Usos da biografia”. A própria ideia de biografia tornou-se variada e apresenta, atualmente, alguns gêneros que embasam as análises históricas, tais como “a prosopografia e a biografia modal”, que, com base em dados biográficos, objetivam uma prosopografia, descartando, muitas vezes, o interesse pela biografia particular, que, desse modo, apresenta-se como ilustração do comportamento de um determinado grupo, como é o caso da análise realizada em Intelectuais à brasileira , de Sergio Miceli (2001); a “biografia e o contexto”, em que o contexto – época, meio e ambiência – caracteriza uma “atmosfera que explicaria a singularidade das trajetórias” (Levi, 1998, p.175); a “biografia e a hermenêutica”, gênero mais utilizado pela antropologia interpretativa e pela história oral; e, finalizando, “biografia e casos extremos”, cujo exemplo principal é o já citado trabalho de Carlo Ginzburg. Esse gênero, geralmente, alcança o contexto histórico pelas “margens” do campo social, identificadas nas biografias de personagens singulares. Diante de tais variações biográficas e da leitura aprofundada da obra João da Silva Feijó: um homem de ciência no Antigo Regime português , pode-se afirmar que tal estudo não se define por uma dessas categorias. Ademais, não se atrela, meramente, à trajetória de João da Silva Feijó (1760-1824).

É importante esclarecer que a narrativa do naturalista João da Silva Feijó é o primeiro volume da Coleção Ciência e Império, um empreendimento nada modesto que tem como objetivo principal apresentar determinados personagens luso-brasileiros, bem como toda sua produção textual. Essa tarefa hercúlea é apoiada pelo Centro de Documentação e Pesquisa de História dos Domínios Portugueses, alocado no Departamento de História da Universidade Federal do Paraná. Essa incursão biográfica não se finda em João da Silva Feijó, e o segundo volume, dedicado a Francisco José de Lacerda Almeida, já foi publicado. Em seguida, virão outros nomes, como Luis Antônio de Oliveira Mendes, Elias Alexandre da Silva Correia, Joaquim José Pereira, Antonio Pires da Silva Pontes, Francisco José de Lacerda.

Esse primeiro volume tem 1.062 páginas, organizadas em duas partes. A primeira apresenta a longa trajetória do naturalista luso-brasileiro João da Silva Feijó; a segunda parte é uma compilação de sua produção científica e compreende 188 documentos – correspondências, remessas, memórias, textos científicos etc. – investigados em arquivos portugueses e brasileiros.

Pereira inicia sua narrativa respondendo, diretamente, à seguinte questão: “Quem foi João da Silva Feijó?”. Um dos raros luso-brasileiros que conseguiram viver, regularmente, da ciência, Feijó cursou filosofia pela Universidade de Coimbra, tal qual alguns brasileiros do Setecentos, e exerceu a profissão de naturalista na África, em Portugal e no Brasil, sempre a serviço do Império português.

Todavia, se nas primeiras páginas a resposta do autor se mostra um tanto didática, não se pode concluir que o mesmo constrói uma biografia clássica, que expressaria, com base na redução de escala focada no sujeito, as dimensões estruturais e a dinâmica social. Parte do texto, intitulada “Uma biografia nada exemplar”, é elaborada por meio de análise minuciosa de diferentes representações do naturalista, construídas por outros autores. Portanto, Pereira busca compreender como a figura de João da Silva Feijó se apresentou em outros estudos, entre eles, os da historiografia portuguesa e norte-americana.

Esse caminho metodológico é instigante e permite ao leitor conhecer as várias representações desse sujeito. A primeira delas é um verbete elaborado pelo geógrafo veneziano Adriano Balbi, em 1822, que destaca os manuais organizados por Feijó para o ensino de botânica e zoologia. Nessa exposição, Pereira apresenta fatos distorcidos e dialoga com cada referência identificada, como as de Carl Friedrich Philipp von Martius, de 1837, e as de Miguel Colmeiro, de 1858. O ápice de tal explanação é o momento em que esclarece o leitor sobre como o desconhecimento de partes da documentação, hoje disponíveis, permitiu a elaboração da imagem de um indivíduo pouco exemplar e a identificação de informações básicas distorcidas. Erros acumulados, que se repetiram ao longo do século XIX, talvez expliquem como esse personagem foi, aos poucos, esquecido pela historiografia brasileira.

Com o intuito de aventar tais representações, o autor analisa, minuciosamente, uma rica documentação – memórias científicas, cartas, periódicos, documentação escolar etc. – para esclarecer possíveis erros e amparar outra narrativa da vida desse naturalista. Nessa perspectiva, constrói o indivíduo biografado. Em “Fazendo-se naturalista”, destaca o jovem Feijó e seu período como estudante de filosofia natural, na Universidade de Coimbra; o desenvolvimento de relações com outros luso-brasileiros no Jardim da Ajuda, em Lisboa; e os estreitos laços estabelecidos com dom Rodrigo de Souza Coutinho, o conde de Linhares. Esses elementos são o pano de fundo para a análise de sua formação em história natural e da posição ocupada nessa sociabilidade científica, que era composta por nomes como Domingos Vandelli e Alexandre Rodrigues Ferreira.

Em “Um naturalista num ninho de cobras”, descreve os anos vividos em Cabo Verde, onde Feijó permaneceu entre junho de 1776 e dezembro de 1795. Tal descrição é fundamentada, especialmente, em um relato de viagem composto por um conjunto de cartas destinadas ao então ministro Martinho de Mello e Castro. Em tal documento, intitulado “O itinerário filosófico que contém a relação das ilhas de Cabo Verde disposto pelo método epistolar”, Pereira destaca: a descrição da fauna, da flora e dos costumes locais; os problemas enfrentados por seu biografado – como o da falta de uma equipe de apoio em suas pesquisas; e as funções burocráticas que começou a acumular a partir da década de 1790.

“Un certain Feijào” é dedicada ao retorno a Lisboa. Nessa parte, Pereira ressalta os trabalhos acadêmicos referentes à produção de salitre, o trabalho na Ajuda – onde organizou um herbário com as espécies botânicas enviadas do arquipélago africano – e a aproximação de Feijó com a República das Letras, comprovada pela publicação de alguns de seus estudos. Essa condição de “homem de múltiplos instrumentos” gerou grandes críticas, como as do naturalista alemão Herinrich-Friedrich Link. A esse respeito, Pereira pontua elementos importantes para a compreensão dos discursos de exclusão e exaltação presentes na ciência moderna: “Link buscava afirmar a sua superioridade como intelectual fazendo pouco daqueles colegas que pertenciam a ambientes científicos considerados provincianos ou periféricos” (p.76). Por outro lado, por ser considerado “homem de múltiplos instrumentos”, Feijó retornou ao Brasil como sargento-mor das milícias da capitania do Ceará.

Em terras brasileiras, recebeu a incumbência de checar as notícias sobre os depósitos de salitre natural, questão que ocupava lugar importante na política científica portuguesa para o Nordeste brasileiro, debate analisado no subtítulo “Um naturalista no Ceará”. Por aproximadamente 15 anos, o naturalista permaneceu na capitania e, além da busca ao salitre, recolheu diversos espécimes que foram enviados ao Jardim Botânico, ao Museu da Ajuda e ao Real Jardim Botânico de Berlim. O autor ainda destaca, sempre amparado pela vasta documentação produzida por Feijó e sobre ele, as publicações de textos referentes à sua atuação no Nordeste e o seu uso por viajantes que estiveram no Brasil no século XIX, como Henry Koster, Johann Baptiste von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius, e Wilhelm Ludwig von Eschewege.

Em toda a trajetória do naturalista Feijó, o autor esclarece seu envolvimento com as estruturas científicas, políticas e sociais presentes no Império português; e, sempre que possível e necessário, atenta para a atuação dessa elite naturalista, representada por seu eleito, em tais articulações. Para Pereira, Feijó tinha um “ar de modernidade” e circulava por espaços importantes, como o da maçonaria e o das Repúblicas das Letras. As últimas páginas são dedicadas à compreensão de como ocorreu a colaboração de Feijó no processo de Independência do Brasil, movimento ao qual ele aderiu, destacando-se no Manifesto do Povo do Rio de Janeiro, que pedia a permanência do príncipe dom Pedro I no país, e na reorganização da maçonaria em terras brasileiras.

João da Silva Feijó, como bem colocou o autor, foi um homem de seu tempo: participou do movimento português das Luzes, estudou os espécimes naturais de três continentes, vivenciou as construções e as mudanças de paradigmas científicos, acompanhou as rupturas do Império lusitano e, consequentemente, os primeiros embates políticos brasileiros. Contudo, apesar de sua presença em momentos importantes da história portuguesa e brasileira, o naturalista João da Silva Feijó foi esquecido, por um certo tempo, pelos estudos historiográficos. A esse respeito, o livro aqui resenhado não é somente uma tentativa de resgaste de sua vida e obra, mas uma importante ferramente para se “resgatar também um fragmento expressivo da memória científica do Grande Império Lusitano com o qual muitos dos ‘filósofos’ luso-brasileiros haviam sonhado” (p.119).

Referências

ELIAS, Norbert. Mozart : sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1995. [ Links ]

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes : o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras. 1998. [ Links ]

LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: Ferreira, Marieta de Moraes; Amado, Janaina (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV Editora. 1998. [ Links ]

MICELI, Sergio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras. 2001. [ Links ]

Daniela Casoni Moscato – Doutoranda, Departamento de História/Universidade Federal do Paraná. [email protected]

O mundo como vontade e representação. Tomo II – SCHOPENHAUER (RFA)

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação. Tomo II. Tradução de Eduardo Ribeiro da Fonseca. Curitiba: Ed. da UFPR, 2014. Resenha de: LAZZARETTI, Lucas Piccinin. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.27, n.42, p.941-946, set./dez, 2015.

A obra de Arthur Schopenhauer foi tradicionalmente recepcionada fragmentariamente, não apenas na contemporaneidade, mas também em seu tempo. A publicação do primeiro tomo de sua obra-prima, O Mundo como vontade e representação, em 1818, não foi um grande acontecimento, tampouco abalou as estruturas da filosofia alemã de sua época — filosofia essa que conhecia nas figuras de gigantes como Hegel, Schelling e Fichte a manifestação de certa tendência pós-kantiana. Essa mesma tendência de distância dos holofotes acadêmicos manteve-se quando da publicação do segundo tomo, em 1844, conjuntamente com uma reedição do primeiro tomo, de tal modo que Schopenhauer teve de apelar a seu editor, justificando-se em considerações que afirmavam ser possível ler os capítulos do segundo sem uma necessária referência ao primeiro. Essa artimanha negocial de Schopenhauer não expressava, no entanto, sua verdadeira intenção, já que, para o filósofo alemão, a leitura séria deveria ser realizada para com o todo da obra, sendo que o segundo tomo não serviria como uma complementariedade alienada do primeiro, mas, antes, uma verdadeira conjunção de unidade.

A pretensão do filósofo, no entanto, não parece ter alcançado a realidade efetiva na Alemanha de sua época, uma vez que Schopenhauer passa a ser lido apenas em seus últimos anos de vida e, além disso, ocorreu certa tendência fragmentária na recepção de sua obra em outros países, entre eles o Brasil. Apenas no início dos anos 2000 o Brasil recebeu uma efetiva tradução do primeiro tomo de O mundo como vontade e representação, realizada por Jair Barboza, e, finalmente, em 2014, recebeu a tradução do segundo tomo, realizada por Eduardo Ribeiro da Fonseca. Desde uma perspectiva inicial, o feito que representa a tradução desse segundo tomo, obra tão volumosa, já merece destaque, não por seu aspecto quantitativo, porém por seu destaque qualitativo.

Desempenhada com verdadeiro esmero, a tradução recobre o árduo labor de ter de verter para uma língua latina uma língua germânica, o que, desde o princípio, é sempre um entrave e um convite ao trabalho rigoroso. Ademais, não se pode negar o fato de que Schopenhauer está inserido em uma tradição da filosofia alemã que não apenas remonta a Kant, mas que estabelece vivo diálogo com a filosofia clássica alemã, isto é, com o idealismo alemão, de tal maneira que, ao realizar a tradução, Eduardo Ribeiro da Fonseca teve de atentar para o uso técnico-filosófico das palavras, ação na qual foi plenamente satisfatório. O cuidado em apresentar a grafia de termos em alemão — tais como Wirklichkeit, Witz ou Erfahrung — não é mero preciosismo acadêmico, mas denota o cuidado para com a tradição na qual se encontrava o autor traduzido. De igual maneira, o tradutor empenhou-se em apresentar a grafia original de termos empregados por Schopenhauer em línguas diversas ao alemão, tais como grego e latim, o que representa um respeito ao autor e permite com que o leitor se aperceba da erudição do filósofo alemão.

O maior mérito da tradução, no entanto, diz respeito ao cuidado do tradutor em produzir uma vasta gama de notas que servem não só como um auxílio ao texto de Schopenhauer, mas também como fomento da pesquisa sobre o autor em solo brasileiro. A publicação desse segundo tomo, assim, é duplamente valorosa para a pesquisa filosófica brasileira, já que serve aos estudiosos o texto completo da principal obra de Schopenhauer, além de ser acompanhado de um minucioso trabalho de análise e sopesamento da relação de Schopenhauer com outros pensadores, sobretudo com Nietzsche e Freud.

Sobre esse ponto há que se tecer um breve comentário. O tradutor, Eduardo Ribeiro da Fonseca, apresenta profunda honestidade intelectual ao declarar, em seu texto introdutório à tradução, as veredas e os caminhos que trilhou, tanto para chegar a Schopenhauer quanto para partir de Schopenhauer. Ter se aproximado do filósofo alemão pelas vias do dramaturgo sueco August Strindberg revela muito não apenas sobre o tradutor, mas sobre certa tendência de “descoberta” de Schopenhauer.

É inegável o fato de que o filósofo alemão foi muitas vezes salvaguardado e mesmo “mantido avivado” pelas forças literárias. Assim como Nietzsche encontrou primeiramente leitores de verve não estritamente necessária — com Hermann Hesse ou Robert Musil —, Schopenhauer encontrou em diversos autores de literatura sua primeira recepção fora da Alemanha. É o caso de Pío Baroja, na Espanha, de Augusto dos Anjos e Machado de Assis, no Brasil, e, é claro, de August Strindberg. Assim, quando o tradutor designa sua origem, o faz de maneira a inscrever-se em uma sólida tradição.

Por outro lado, ao partir de Schopenhauer, Eduardo Ribeiro da Fonseca passa — quase que necessariamente — por Nietzsche, mas encontra-se, por fim, com Freud. É esse o encontro que rende maior impacto sobre a tradução e, mais precisamente, sobre as notas ali inseridas. O tradutor faz referência a seu trajeto acadêmico e confessa ter realizado pesquisa sobre a relação existente entre Schopenhauer, Nietzsche e Freud1 . Dessa forma, boa parte das notas que a tradução insere com referência ao texto tem por intenção evidenciar essa relação entre os três mencionados autores, sobretudo entre Schopenhauer e Freud. As muitas notas que complementam a tradução, é certo, não se restringem à relação existente entre Schopenhauer e Freud, havendo uma série de referências pertinentes ao auxílio da leitura. Contudo, é considerável o número de vezes em que é suscitada a possibilidade de relação entre o filósofo alemão e o psicanalista vienense.

Mais do que orientar a leitura, a presença de tantas menções à possível relação entre Schopenhauer e Freud acaba delimitando uma espécie de sentido, não apenas para a tradução, mas para o próprio texto de Schopenhauer. Isso quer dizer que, em uma leitura acurada dessa tradução do segundo tomo do Mundo como vontade e representação, é quase impossível sair ileso a essa tendência relacional que o tradutor se esforça para marcar. Em determinado momento, sentese que há quase indubitavelmente uma pré-existência de certas teses freudianas no pensamento de Schopenhauer, principalmente no que diz respeito à questão do conceito de Trieb.

Essa força, advinda da leitura conjunta de tradução e notas, configura importante fator para a pesquisa de um autor que, como apontado anteriormente, havia sido recepcionado de maneira fragmentária. Por meio do trabalho de Eduardo Ribeiro da Fonseca, a leitura de Schopenhauer é animada, não pela simples existência de uma tradução, mas pela concomitante abertura de uma possibilidade de leitura e de análise, ou seja, aproximando o filósofo alemão de certa tendência psicanalítica.

No sentido de uma análise crítica, ou seja, ao se tecer ponderações que em nada apontam uma negatividade, mas apenas uma possível vacância do trabalho realizado na tradução, o traço mais marcante que se pode apresentar é quiçá uma determinação demasiado pesarosa. Tamanha é a tendência que impõe o tradutor na relação entre Schopenhauer e Freud, que acaba não demarcando outros aspectos da obra do filósofo alemão, sobretudo quando essa pode ser pensada em relação a sua própria tradição.

Schopenhauer não é apenas um autor influenciado pela filosofia de Kant. É um kantiano, que, por sua vez, travou um embate com outros kantianos. São muitas as relações e indicações presentes no segundo tomo de O Mundo como vontade e representação que colocam Schopenhauer em franco debate com a filosofia de seu tempo. Se o solo onde se trava o embate é demarcado pela filosofia kantiana, é certo que há mais personagens que Kant. Dessa maneira, quando Schopenhauer abriu o segundo tomo de sua obra-prima com um capítulo denominado “Sobre a visão fundamental do Idealismo”, estava, de alguma maneira, apontando quais eram seus principais alvos. Alvo ainda mais evidente quando se considera, por exemplo, o capítulo XII, “Sobre a Doutrina da Ciência”, já que esse termo, famoso pelo uso dado por Fichte — Wissenschaftslehre —, está presente em outros autores, entre eles Schelling e Hegel, a quem Schopenhauer visa opôr-se em seu pensamento.

De igual maneira, seria possível estabelecer, pelo uso das notas — que tão belamente o tradutor faz no caso de Freud —, a relação, ainda que de crítica e oposição, entre Schopenhauer e os românticos alemães. O capítulo XXXI, “Sobre o gênio”, talvez seja o ponto mais evidente em que certas considerações são feitas tendo em vista não só a Crítica do Juízo de Kant, mas também todo o escopo de teorias sobre o gênio no pensamento de Friedrich Schlegel, de Novalis, Jean Paul, e, novamente, Fichte, Schelling e Hegel.

Como já se afirmou, a intenção não é produzir uma ressalva, sequer uma crítica, mas uma mera consideração acerca dos níveis que poderiam ser dados na tradução. Se foi possível realizar um trabalho para com uma relação — Schopenhauer e Freud —, seria possível, igualmente, ter ressalvado esse trabalho histórico, inserindo o filósofo em seu tempo. Para além disso, por se tratar de uma primeira tradução do texto na tradição brasileira, é sobremaneira importante que sirva como uma verdadeira abertura, um convite para possíveis sentidos, e não como um direcionamento para um sentido mais preponderante.

Pouco foi considerado nos estudos brasileiros, é certo, sobre as influências mais eminentes que tiveram os pensadores posteriores a Schopenhauer — com exceção, é claro, de Nietzsche —, de modo que esse campo, já que Freud é certamente um autor posterior, também estaria aberto e passível de um tratamento. Há, por exemplo, acertada menção de Jorge Luis Borges, em Otras inquisiciones, sobre a influência de Schopenhauer em Philipp Batz2 , mas de igual maneira poderia ser considerada a influência sobre Eduard von Hartmann.

Essas considerações, no entanto, não passam de um desejo impulsionado tanto pela obra quanto pelo trabalho realizado pelo tradutor. Almeja-se mais justamente porque se vê a possibilidade para tanto, impulso esse que não seria possível por força de um trabalho parcial ou insuficiente. É pela magnitude de empreitadas como essa, da tradução, que Schopenhauer não é só revalorizado, mas também restituído de sentido valorativo dentro da filosofia.

Notas

1 Nesse sentido, é válida a menção à tese de doutorado de Eduardo Ribeiro da Fonseca, que foi posteriormente publicada em formato de livro: FONSECA, E. R. Psiquismo e vida: sobre a noção de Trieb nas obras de Freud, Schopenhauer e Nietzsche. Curitiba: Ed. da UFPR, 2012.

2 De forma poética, Borges considera: “pienso en aquel trágico Philipp Batz, que se llama en la historia de la filosofía Philipp Mainländer. Fue, como yo, lector apasionado de Schopenhauer. Bajo su influjo (y quizá bajo el de los gnósticos) imaginó que somos fragmentos de un Dios, que en el principio de los tiempos se destruyó, ávido de no ser. La historia universal es la oscura agonía de esos fragmentos. Mainländer nació en 1841; en 1876 publicó su libro, Filosofía de la redención.” (BORGES, J. L. Otras inquisiciones. Buenos Aires: Emecé, p.58).

Lucas Piccinin Lazzaretti – Doutorando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[DR]

 

Foucault: verdade e loucura no nascimento da arqueologia – RIBAS (ARF)

RIBAS, Thiago Fortes. Foucault: verdade e loucura no nascimento da arqueologia. Curitiba: Editora da UFPR, 2014. Resenha de: BALTAZAR, Tiago Hercílio. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n.12, jul./dez. 2014.

Foucault: verdade e loucura no nascimento da arqueologia se desenrola na antecâmara daquilo que conhecemos como o projeto arqueológico de Foucault. Thiago Fortes Ribas investiga o início do percurso teórico do filósofo francês, no momento em que suas estratégias se realinham em torno de um alvo (não mais uma forma determinada do conhecimento científico, mas a própria positividade de uma ciência) e também o momento da formulação de uma crítica extra-científica. Enquanto este objeto e o tipo de crítica histórico-arqueológica que Foucault elabora através dele, já são velhos conhecidos na literatura sobre o assunto, a empresa de Ribas recua um passo para tratar da própria constituição deste objeto e deste tipo de crítica na démarche do futuro arqueólogo. Se os textos pré-arqueológicos nos pareciam dispersos sob uma frágil unidade temática, saberemos agora que eles guardam uma decisiva transformação na relação do próprio Foucault com a verdade. “Numa palavra, pretendemos mostrar que a constituição do projeto de uma arqueologia do saber dependeu de uma mutação decisiva no modo como Foucault pensou a questão da verdade em sua relação com a psicologia, a psiquiatria e a loucura” (RIBAS, 2014, p. 16).

O primeiro capítulo, buscando contextualizar a primeira obra arqueológica de Foucault e discutir a supressão de seu prefácio original, parece apenas situar a questão da relação de Foucault com os saberes da radical “psi” em História da loucura. Mas na realidade ele já desloca o lugar da “reviravolta” no pensamento de Foucault. De fato, a literatura estabeleceu, entre o prefácio original suprimido de História da loucura (1961) e sua segunda versão (1972), uma importante modificação no pensamento de Foucault, muito discutida quanto a um possível prejuízo ontológico que se poderia apontar na crítica arqueológica da loucura. Mas é verdade que tal injunção é feita à luz dos próprios desenvolvimentos arqueológicos posteriores, que “evitariam” tal prejuízo e, por outro lado, trata somente daquilo que já é a arqueologia desde a primeira edição de História da loucura. É desse emaranhado que Ribas consegue escapar, trabalhando uma diferença mais decisiva para o projeto arqueológico de Foucault, situada entre o polêmico prefácio de 1961 e textos que datam dos anos 1950.

A referida mutação será então diretamente analisada no segundo capítulo, e com um nível de detalhamento que certamente satisfaz aos leitores em seus anseios por minúcias. Nesse momento, o foco do estudo recai sobre as diferenças teóricas entre dois textos que o autor seleciona para comparação: Doença mental e personalidade e Doença mental e psicologia. Escrito em 1954, e reescrito em 1962 com o segundo título, os dois textos permitem a engenhosa estratégia de Ribas para flagrar as modificações na relação de Foucault com a psicologia. Na realidade, poderíamos tomar a liberdade de dizer que se trata de apenas um texto em duas cenas, e entre elas uma transmutação de significados que iluminaria assim o nascimento de um grande problema filosófico.

Em sua primeira versão, lê-se na introdução que a raiz da patologia mental deve estar numa reflexão sobre o próprio homem. Eis a pista que nosso autor persegue, como uma “adulteração” em sua versão de1962, onde se diz que a raiz da patologia mental pode ser procurada numa certa relação, historicamente situada, entre o homem e o homem louco e o homem verdadeiro. Estes são vestígios que entregariam os motivos do filósofo francês:

aqui, somente essa mudança já nos mostra que a preocupação do autor é radicalmente outra. Não mais fundacionista, no sentido de fundar a investigação numa antropologia, agora a investigação quer procurar a raiz histórica da patologia mental. Ao invés de propor uma verdadeira psicologia, quer compreender como se construiu historicamente um discurso verdadeiro chamado psicologia. (RIBAS, 2014, p. 57).

Ao cabo de uma análise comparativa que se estende por todo o segundo capítulo, torna-se claro que o “projeto de fundação da psicologia” que Foucault lançava em 1954, equivaleria a um pensamento que acreditava na objetividade da ciência psicológica uma vezliberta de certos postulados equivocados (Cf. RIBAS, 2014, p. 57). Na sua reescritura, este rigor será substituído por um novo sentido: não mais a conquista de sua cientificidade, mas a posição de que sua própria positividade enquanto ‘ciência’ depende de condições históricas de existência. Trata-se aí de um rigor que, quando levado ao limite, compromete o estatuto de cientificidade e objetividade da própria verdade da medicina mental. (RIBAS, 2014, p. 58).

Tratar esta modificação como mera reformulação teórica seria perder de vista o essencial, isto é, o início de uma crítica de inspiração nietzschiana que faz aparecer o funcionamento de uma ciência no interior de um sistema de condições históricas. Contra a leitura de Pierre Macherey, para quem, até 1962, Foucault não colocaria em questão o pressuposto de uma natureza humana – incluindo História da loucura – Ribas nos faz vislumbrar o que seria uma aquisição básica no percurso teórico de Foucault, e com a qual este “se servirá até o fim dos seus escritos, e que alimentará a constante revisão de seus métodos” (RIBAS, 2014, p. 86).

Acercando-se mais das grandes teses de História da loucura, A pesquisa científica e a psicologia (1957) permite precisar um pouco mais a relação entre verdade e psicologia fora do seu aspecto científico-epistemológico. Despontam neste texto formas de interrogação – que reconhecemos prontamente como um traço foucaultiano – na direção das práticas que revelem o modo de funcionamento da ciência psicológica, através de suas instituições e de tudo aquilo que colabora para a produção do seu reconhecimento em nossa sociedade.

Vê-se que no artigo A pesquisa científica e a psicologia a verdade sobre a psicologia é de outra espécie. Ela já não diz mais respeito aos verdadeiros pilares de uma ciência, mas ao seu estatuto, ao seu funcionamento. A verdade que se busca sobre a psicologia também não virá mais de uma construção metodológica melhor apurada, mas há de vir, entretanto, da análise dos métodos utilizados para engendrar sua ‘cientificidade’. Nesse momento da reflexão foucaultiana, o estatuto da psicologia nada tem a ver com sua natureza estritamente epistemológica, mas, diversamente, aquilo que poderá revelar seu modo de funcionamento são as suas práticas. Desse modo, aquilo de que se tratará na interrogação da pesquisa psicológica são as suas instituições, suas formas cotidianas e as dispersões de seus trabalhos. Em poucas palavras, a verdade que se quer definir agora só será revelada através de uma análise histórica desses três pontos levantados, uma análise que se concentre no problema de como a psicologia chega à condição de ‘ciência’ ao lado de outras ciências, de como ela chega a tal reconhecimento atual em nossa sociedade. (RIBAS, 2014, p. 95-6).

Além deste passo decisivo na formulação de uma crítica extra científica, A pesquisa científica e a psicologia e outro texto do mesmo ano, A psicologia de 1850 a 1950, registram o aparecimento de mais uma hipótese fecunda na construção do projeto arqueológico: a hipótese segundo a qual a positividade da psicologia tem como condição de possibilidade uma experiência do negativo. Enquanto outras ciências mantêm uma relação provisória com o negativo, digamos, como limites ou dificuldades a serem superadas, “aquilo que distingue a psicologia é a relação vital que ela tem com o negativo, a ponto de não poder ser compreendida senão através dele.” (RIBAS, 2014, p. 108). Vemos que nestes dois artigos dos anos 1957, segundo a interpretação de Ribas, a psicanálise não gozaria de nenhum poder transgressor, pois, indiferentemente de qualquer outra pesquisa em psicologia, a psicanálise daria continuidade à escolha de toda psicologia.

“Se na análise da pesquisa freudiana fica evidente o papel do negativo na construção da verdade do homem, fica manifesta também a sua opção por continuar tal construção, ou seja, sua escolha em perpetuar o ‘mito da positividade’ em que a psicologia hoje ‘vive’ e ‘morre’. Desse modo, Freud afastou ainda mais a psicologia da compreensão de seu próprio sentido enquanto saber, pesquisa e prática” (RIBAS, 2014, p. 110).

Esta perspectiva foucaultiana sobre a psicanálise, como sabemos, se modificará na arqueologia da loucura, sob a consideração de uma nova abordagem interpretativa (e uma nova concepção de signo) que ela inaugura, e que desloca a linguagem da loucura para um tipo de interdição em que a linguagem não refere mais a um significado oculto, mas fica condenada a dizer apenas a si mesma e o código que permite decifrá-la1. Ainda que a tarefa da psicanálise seja malograda pelo fato de que a articulação transferencial repouse numa estrutura em torno da qual se constituem relações de dependência médico-paciente – em que um médico não busca fundamentalmente conhecer, mas dominar a loucura e alienar o paciente, apoiado em seus poderes e prestígios – a psicanálise ainda assim representará, em 1961, uma determinada ruptura em relação à psiquiatria e à psicologia, na medida em que sua abordagem abriria uma possibilidade de diálogo com a desrazão clássica.

Esse realinhamento na órbita em torno da qual gravitam os saberes da radical psi, ligado ao nascimento da arqueologia e implicando uma modificação importante na perspectiva de Foucault em relação à psicanálise, não é abordada no livro de Ribas.2 Sua argumentação, todavia, neste ponto consiste em apresentar a tese foucaultiana da profunda relação da psicologia com a negatividade, tese esta que, perpassando esses escritos de 1957 até a História da loucura, consistirá num elemento determinante para nos dar a ver uma perspectiva propriamente arqueológica sobre esses saberes.

Vê-se, portanto, que não se trata simplesmente de uma modificação na relação de Foucault com a psicologia, mas na sua relação com a verdade, o que implica um deslocamento no lugar que a psicologia ocupa no interior da investigação de Foucault. De objeto de uma “ambição teórica reformuladora”, a psicologia torna-se objeto de uma problematização que a ultrapassa em direção a um problema filosófico muito mais amplo. (Cf. RIBAS, 2014, p. 113). Qual é este problema filosófico, que não cabe mais ser colocado em termos epistemológicos, intimamente ligado a uma transformação na relação de Foucault com a verdade e que “constitui a condição de possibilidade do próprio projeto arqueológico.” (RIBAS, 2014, p. 18)?

Ele pode ser dito de muitos modos. Porém, creio que um dos pontos fortes do livro de Ribas – ainda que sejam apenas apontamentos para um “estudo futuro” – consiste em aborda-lo a partir das implicações políticas do pensamento arqueológico de Foucault. Estamos já na conclusão do livro, na qual se problematiza a interpretação tradicional da arqueologia como uma descrição despolitizada dos “frios blocos de saber”. O argumento consiste em mostrar como insustentáveis as afirmações de que a passagem para a política, na obra de Foucault, se daria apenas com a genealogia, isto é, a partir de uma volta para as instituições e práticas sociais no intuito de transformá-las.

É possível encontrar em Foucault elementos para formular outra concepção a respeito da ação política ou da dimensão política do pensamento.

Tal ação ou dimensão não precisa estar voltada para a transformação de algo fora do pensamento, como as instituições sociais, porque é o próprio pensamento que é o campo de batalha. Como ele mesmo afirma, ‘a teoria não expressará, não traduzirá, não aplicará uma prática; ela é uma prática’. Na medida em que para Foucault a política é entendida como luta de forças que não tem na verdade seu regimento, então tampouco se compreende porque seria necessário restringir a tarefa política do intelectual ao âmbito de transformação das instituições sociais. (RIBAS, 2014, p. 132).

As arqueologias de Foucault forneceriam um “operador intelectual”, ligado a concepção de verdade que, de matriz nietzschiana, combate pretensões universalistas a partir de sua inserção numa trama de relações históricas.

As verdades das arqueologias jamais se colocam no lugar daquelas que são criticadas, e sim reconduzem a uma apropriação do jogo de produção dessas verdades, produzindo por esta via um efeito transformador:

a via interpretativa que se propõe para um trabalho futuro nesta conclusão aposta na concepção desses livros arqueológicos como portadores de um pensamento político enquanto produtor de efeitos que podem ser avaliados pela transformação filosófico-discursiva que provoca. Seguindo essa hipótese os diagnósticos do presente oferecidos por tais estudos são vistos como armas imprescindíveis de uma luta política capaz de se apropriar das regras discursivas para impô-las outra direção. (RIBAS, 2014, p. 137).

Todas essas indicações de pesquisa foram desenvolvidas a partir dos estudos do autor na antessala da arqueologia foucaultiana. Isso foi elogiosamente caracterizado pelo professor Cesar Candiotto, na primeira linha do prefácio, onde atribui ao estudo levado a cabo neste livro o caráter de uma “arqueologia” da própria arqueologia de Foucault. Para os estudiosos de Foucault, não há forma mais direta para descrever o que aqui se vai encontrar.

Quanto aos leitores que, trilhando outros caminhos, cruzam com o pensamento de Foucault, estes encontrarão a oportunidade de acompanhar um dos maiores pensadores da atualidade no extraordinário momento de formulação de seu principal problema filosófico.

Notas

1 Cf. CHAVES, E. Foucault e a psicanálise. Apresentação de Benedito Nunes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988.

2 É certo que sua menção à Freud consiste apenas num “exemplo privilegiado” para demonstrar a tese foucaultiana sobre a regra geral da pesquisa em psicologia como perpétuo arranchamento do solo consolidado (Cf. RIBAS, 2014, pp. 97 e segs.). Por outro lado, julgamos que esta modificação é um aspecto inalienável da crítica arqueológica nascente, ou seja, de seu poder para captar e diferenciar o espaço epistemológico que se instaura com a ruptura freudiana no discurso psicológico.

Tiago Hercílio Baltazar – Pós-graduando em Filosofia na UFPR. Email: [email protected]

Acesso à publicação original

 

Jörn Rüsen e o ensino de história – SCHMIDT et al. (RBHE)

SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Resende Martins. Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Editora da UFPR, 2010. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Consciência histórica, mudança social e ensino de história. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, v. 11, n. 2 (26), p. 191-197, maio/ago. 2011.

A obra de Jörn Rüsen começa a ser traduzida com maior regularidade no Brasil. Isso se deve a vários fatores, dentre os quais, a formação de grupos que se preocupam com a introdução da teoria da história e da história da historiografia de cunho alemão no país, ao amadurecimento da pesquisa histórica, a maior preocupação com questões de método, ao fortalecimento de um diálogo interdisciplinar, e, no interior dessas questões, a própria contribuição que traz a obra desse autor.

Até agora o leitor brasileiro tinha acesso a um pequeno conjunto de artigos traduzidos e publicados em revistas especializadas do país, a partir do final dos anos de 1980, e a sua trilogia sobre teoria da história (2001, 2007a, 2007b). Com a publicação desse livro, o leitor tem a oportunidade de verificar que as contribuições desse autor se estendem para além do campo da teoria, metodologia e história da historiografia, e conjugam também o campo da didática e do ensino de história. Para os menos próximos do conjunto dos textos e da trajetória de Rüsen, isso talvez possa parecer um tanto quanto estranho. No entanto, nada mais articulado do que também tratar da didática e do ensino de história. Como Estevão Martins nos informa, sua bibliografia articula história, filosofia, antropologia e historiografia “de modo comparativo, debruçando-se sobre as grandes linhas culturais do mundo comtemporâneo – em seus contatos e em seus estranhamentos” (p. 7). Além disso, a própria condição docente nas universidades alemãs vinculava a cadeira que ocupou, entre os anos de 1970 e 1990 – de 1974 a 1989 na Universidade de Bochum e de 1989 a 1997 na de Bielefeld –, na conjugação de parâmetros reguladores, para o de teoria, metodologia, historiografia e didática da história. Em virtude disto, para Martins, sua proposta de reflexão quanto aos critérios de orientação do agir humano no tempo, de modo que se viabilize suprir as carências existenciais, que constata serem corriqueiras entre nós, fá-lo propor linhas de análise quanto à expressão narrativa nas suas três versões mais comuns: a da linguagem do quotidiano, a da historiografia e a da linguagem do ensino (p. 9). Leia Mais