Le gouvernement de soi et des outres | Michel Foucault

A presente resenha, prestando uma homenagem ao lançamento do curso Le Gouvernement de Soi e des Autres, de Michel Foucault, na França, em 2008 (ainda sem tradução para o português), busca, inicialmente, localizar o problema da relação entre a verdade, o governo e a constituição do sujeito nos estudos de Michel Foucault, a partir das noções básicas de arqueologia e de genealogia. Busca também acompanhar brevemente a evolução do interesse de Foucault pelo tema do sujeito e das práticas de si, sempre referidas à noção de governo e de verdade. Busca também verificar as razões, no desenrolar da obra de Foucault, e em sua relação com a filosofia crítica de Kant para, assim, justificar a escolha de Foucault pela análise de um texto de Kant na primeira e na segunda hora de aula do Le Gouvernement de Soi e des Autres, fazendo ainda uma breve exposição dos demais assuntos tratados neste curso.

O curso Le Gouvernement de Soi e des Autres foi ministrado por Foucault entre janeiro e março de 1983. Foi seu penúltimo curso. O último, de 1984, versou sobre tema semelhante, Le Gouvernement de Soi e des Autres: le courage de la vérité. O curso do ano anterior, 1982, fora A Hermenêutica do sujeito. No seu conjunto, os três cursos constituem um estudo mais sistemático que é publicado, com as devidas diferenças, nos dois últimos volumes de História da Sexualidade, O Uso dos prazeres e O Cuidado de si. Em conjunto (livros e cursos, além de um elevado número de artigos, entrevistas, introduções), esses estudos aplicam-se ao que Foucault (1984, p. 11) chamou de “terceiro deslocamento a fim de analisar o que é designado como ‘o sujeito’ […] estudar os jogos de verdade nas relações de si para si e a constituição de si mesmo como sujeito”. Parece haver uma novidade nesses estudos, confrontados com a noção de sujeito que figura na arqueologia e na genealogia, pois nestas, partindo-se das noções de épistémê e dispositivo, a constituição do sujeito se dá, independente da vontade ou de escolhas pessoais. O sujeito, na arqueologia e na genealogia, constitui-se como efeito de complexas relações de saber-poder-verdade. Por esse viés analítico, o sujeito passa a desempenhar um papel puramente passivo, resultante da objetivação de um modelo de homem e da subjetivação das verdades criadas e mantidas sobre esse modelo “científico” de homem, vigentes no interior das chamadas ciências humanas. Nesses discursos da modernidade, a ilusão antropológica consiste em fundar, a partir do homem empírico, um conhecimento e uma moral universais. A partir dessa “denúncia” de Foucault em As Palavras e as Coisas, ele não se dirige ao que seria o verdadeiro sujeito transcendental, para aí fundar a moral e a verdade. Na arqueologia e na genealogia ele faz uma desmontagem dos discursos sobre o sujeito, explicitando os mecanismos de saber-poder que, historicamente, o constituem, mostrando como tais discursos tentam amarrar o indivíduo a certas verdades.

Além disso, mesmo considerando o “terceiro Foucault”, não se encontra nele qualquer conteúdo positivo de prescrição moral. Tem-se, assim, uma dupla negatividade no domínio da ética em Foucault: nem sujeito fundante, nem conhecimento prescritivo. Resta, então, a questão: de que modo se pode definir a positividade da ética em Foucault? Em que está amparada a questão do governo ou da conduta de si? Sabendo-se da importância outorgada à liberdade, de que modo a arqueologia e a genealogia apontam para uma ética nos trabalhos de Foucault?

Um caminho para se compreender o “enigma” de uma aparente oposição entre épistémê-dispositivo e liberdade, pode estar na leitura singular que Foucault faz de Kant, tanto das três Críticas quanto da Aufklärung. Muito esquematicamente, pode-se retomar alguns elementos dessa leitura, conforme a tese complementar (ao doutorado), apresentada em 1961, junto com a tese principal, Loucura e Desrazão na Idade Clássica. O texto da tese complementar é um estudo (128 páginas datilografadas) sobre a relação entre a Antropologia e as três Críticas de Kant, seguido de uma tradução do texto kantiano da Antropologia em Sentido Pragmático.

Como se sabe, as três Críticas em Kant abarcam três domínios: o domínio do conhecimento – razão pura; o domínio da moral – razão prática; o domínio da estética enquanto passagem entre a determinação da natureza e a liberdade moral1. A razão prática não possui nenhum outro fundamento que o princípio da liberdade. Esse princípio possibilita uma única lei, a do dever. Mas tal lei não determina qualquer conteúdo positivo, pois o princípio da liberdade sobre o que está fundada é uma ideia da razão e, enquanto tal, não lhe são possíveis intuições, o que é essencial para a formação dos conceitos. A liberdade, para que possa fundar a moralidade, é a única ideia da razão que deve ser tomada como em-si e não apenas como fenômeno. Esse caráter da liberdade mantém o homem numa essencial Abertura, o que é de vital importância para que o pensar não use fenômenos como se fossem coisas em-si; não use ideias da razão como conteúdos objetivos (dogmatismo); nem tome o homem empírico, historicamente constituído, como se fosse a verdadeira natureza humana (redução do possível ao atual).

Segundo o que se pode verificar no texto da tese complementar, de 1961, repetido muito de perto em As Palavras e as Coisas, livro no qual mantém um bom diálogo com Kant, bem como na primeira e segunda horas do curso de 1983, O Governo de Si e dos Outros, para Focault é importante manter o possível para além do atual, pois isso tem por consequência o recíproco pertencimento entre a verdade e a liberdade. Quando se mantém o possível reduzido ao atual e quando se pretende conhecer o homem em todas as suas possibilidades a partir do homem empírico, a liberdade se resume ao cumprimento de regras normas, rotinas, obrigações já instituídas na atualidade. Segundo o modo como Foucault interpreta em Kant a liberdade como fundamento da moral, a verdade deve manter-se vinculada e subordinada à liberdade. Essa é a condição para o pensamento despertar do sono antropológico em que a modernidade do séc. XIX nos lançou; isto se efetivará pela destruição do quadrilátero antropológico, conforme As Palavras e as Coisas.

Nesse sentido, na década de 1960, é significativo o recurso frequente de Foucault à literatura, à música, à pintura, etc. Pensando-se a totalidade de seus trabalhos (arqueologia, genealogia e genealogia da ética) como uma tensa relação entre sujeição e práticas de liberdade, embora a ocupação com a ética/liberdade, nos trabalhos da arqueologia, não esteja no primeiro plano, o recurso à literatura corresponde à função de passagem entre o caráter “determinista” da noção de épistémê para o caráter de indeterminação da ideia de liberdade, isto é, a Abertura necessária à ética fundada sobre a liberdade originária do homem. Por estar mais focado nas práticas do saber e nos modos de conhecimento, o recurso à literatura era suficiente, como contraponto, para manter o caráter de abertura.

Entre 1970 e 1976, as referências a Kant quase não existem. Da mesma forma, o recurso à literatura torna-se bem menos frequente. Neste período, o foco está dirigido, prioritariamente, às questões do poder. Pesquisa, sobretudo, a produtividade do poder, a vinculação do poder com a verdade, e o modo como o par poder-verdade está disseminado em todo o tecido social, funcionando em rede e em múltiplas direções. Esse emaranhado de relações, das quais emerge a produtividade do poder, parece haver tornado o simples recurso à literatura insuficiente como contraponto para o domínio da ética. Busca, então, o conceito de resistência, contemporâneo à noção de dispositivo, nascido do mesmo solo. O conceito de resistência passa a ser o contraponto às práticas de sujeição. Mas o conceito de resistência não se manteve estável até seus últimos escritos; desdobrou-se de maneira inusitada: a ética, que se mantinha em recuo em relação aos domínios do saber e do poder, foi trazida ao primeiro plano e passou a ser configurada pelas noções de cuidado de si, de estética da existência, entre outros conceitos, conforme se verá a seguir. Esse complexo acontecimento na obra de Foucault está ainda aberto a muitas interrogações, muitas conjecturas a serem exploradas. O curso O Governo de Si e dos Outros inscreve-se nesse complexo acontecimento, um percurso de sete ou oito anos (1977 a 1984), no qual Foucault desloca-se do tema “como somos governados” (constituição do sujeito-sujeitado) para o tema “como governar a si mesmo” (constituição do sujeito autônomo).

A partir de 1978, a presença da Aufklärung e as referências a Kant nos “textos menores” de Foucault se intensificam2. Neste período, podem-se destacar quatro conceitos relevantes em seus trabalhos: o par governamentalidade e racionalidade3 e o par virtude e êthos. A Aufklärung está relacionada aos quatro. A vinculação entre Aufklärung e Crítica é estabelecida por Foucault através do que ele chamou de atitude crítica, conceito que desenvolve, nos escritos de Foucault desse período, uma dupla “batalha”, uma na direção do par governamentalidade-racionalidade e outra na direção do par virtude-êthos. Essa bifrontalidade da atitude crítica permite evitar que se tenha uma compreensão ingênua do “cuidado de si” e da “estética da existência” na ética foucaultiana.

Inicialmente, deve-se analisar o duplo papel da Aufklärung com relação à governamentalidade e à racionalidade. Ao mesmo tempo em que ela, em nossa modernidade, significou uma ascensão da razão a melhores técnicas de governo (FOUCAULT, Estratégia, Poder-Saber. DE vol. IV, p. 355-6)4, também abriu um espaço de contestação com relação aos modos de ser governado. Na Aufklärung, Foucault vê uma possibilidade efetiva de investigar as formas específicas da racionalidade nos diferentes acontecimentos históricos, os modos específicos das práticas de sujeição ou as formas específicas de sua recusa. A Aufklärung passa a desempenhar o papel de ancoragem às análises de Foucault sobre a questão da governamentalidade e da racionalidade.

Nos textos entre 1978 e 1984, sobretudo em O que é a crítica [crítica e Aufklärung]? (1978), Le Gouvernemet de Soi et des Autres, (1983), What is Enlightenment? (1984) e Qu’est-ce que les Lumières? (1984), a questão da Aufklärung passa a ter progressiva importância para compreender-se o tema do sujeito e da governamentalidade ou de certa relação entre Crítica e Aufklärung no tema de poder-verdade-constituição do sujeito.

Em 1978, Foucault, na problemática de suas pesquisas do período, notadamente o tema da governamentalidade, caracteriza a atitude crítica como uma virtude, conforme sua palestra O que é a Crítica [crítica e Aufklärung]. Enquanto virtude, a atitude crítica é situada ao interior da “arte de governar os homens” (FOUCAULT, 1990, p. 37)5. Tal arte constitui-se por “uma tripla relação com a verdade […] através de métodos de exame, confissões, entrevista – o que implica a adequação do indivíduo a regras gerais” (FOUCAULT, 1990, p. 37). Adequação que é desenvolvida, inicialmente, no interior da pastoral cristã, da direção de consciência, mas “a partir do século XV e depois da Reforma, pode-se dizer que houve uma verdadeira explosão das artes de governar os homens […] – arte pedagógica, arte política, arte econômica” (Ibid., p. 37). Ligada a essa arte de governar as pessoas, a atitude crítica enquanto virtude responde ao princípio de “‘não ser governado’ […] não no sentido de ‘absolutamente não ser governado’, […] mas ‘como não ser governado desse modo, por tais princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais procedimentos’” (FOUCAULT, 1990, p. 37-8).

No curso de 1977-1978, Segurança, Território e População, o tema da constituição do sujeito na governamentalidade está referido, inicialmente à metáfora do timoneiro, enquanto uma arte de governar, seja a si, seja aos outros; em seguida ele relaciona o governo à noção da conduta (ser governado) e ao que ele chama de revoltas de conduta, ou contra-conduta, “no sentido de lutas contra procedimentos postos em ação para conduzir os outros” (FOUCAULT, 2004, p. 205), conceito no qual, nitidamente, já aparece o tema da constituição de si. Neste curso, Foucault ainda mantém em primeiro plano o domínio do poder (saber-poder). A preocupação com a ética está dirigida para a questão da autonomia. Esta se constitui através de exercício para vencer a sujeição e constituir a si como sujeito de liberdade, que age por escolhas voluntárias. Mas a autonomia só é atingida na medida em que se atinge um domínio sobre si, sobre sua própria conduta – que regras dar a si mesmo para se conduzir como é preciso. O domínio de si requer o conhecimento, a prática e o cuidado de si. O governar a si mesmo seria ingênuo e inconsequente se não contasse com o trabalho prévio de uma atitude crítica com relação às formas específicas de governo que atuam na constituição do sujeito.

No texto de 1983, What is Enlightenment?, Foucault utiliza o conceito de êthos. Ele aponta a atitude crítica como “um êthos filosófico que seria possível caracterizar como crítica permanente de nosso ser histórico” (What is Enlightenment, DE II, p. 1390, texto nº. 339), demonstrando que a atitude crítica está situada no domínio da ética. Assim, o êthos insere a ética no universo da temporalidade, da experiência histórica do homem. Isso põe a ética na dinâmica da indeterminação e da possibilidade humanas, enfim, na dinâmica de sua liberdade, universal como princípio e imanente como exercício. A relação da governamentalidade, enquanto “prática social de sujeição dos indivíduos pelos mecanismos de poder que se reclamam uma verdade” (FOUCAULT, 1990, p. 39) com a Aufklärung é assegurada através da atitude crítica, enquanto “movimento pelo qual o sujeito se dá o direito de interrogar a verdade sobre seus efeitos de poder e o poder sobre seus discursos de verdade”.

Assim, pode-se entender porque Foucault abre o curso sobre o tema do governo de si e dos outros com uma extensa reflexão sobre o texto de Kant, “O Que é o Esclarecimento”. Para ele, a questão do governo está presente no texto, nos conceitos de menoridade e de maioridade utilizados por Kant para distinguir aquele que tem coragem de valer-se de seu próprio entendimento e diferenciar publicamente seu pensamento daquele que se deixa dirigir por outro, seja um médico, seja um livro, um diretor espiritual. Kant conceitua a Aufklärung na dimensão dos enfrentamentos, tanto os relacionados ao conflito de forças, quanto os relativos ao problema da verdade: “ele [Kant] definiu a Aufklärung em relação a certo estado de menoridade na qual seria mantida, e mantida autoritariamente a humanidade” (FOUCAULT, 1990, p. 40).

No curso de 1982-83, Foucault percebe a imbricação do texto da Aufklärung kantiana com o tema da governamentalidade: “ele me parece recuperar exatamente, e formular em termos completamente rigorosos, um problema importante sobre o qual eu gostaria de falar: justamente essa relação do governo de si e do governo dos outros” (2008, p. 8). Foucault também demarca a importância que o texto de Kant tem para o conceito mais fundamental sobre o qual o tema do governo se desenvolve: “me parece que não somente ele fala desse mesmo sujeito, mas ele fala de uma maneira tal que, creio – sem muita, [ou sobretudo], com um pouco de vaidade – posso me amarrar” (FOUCAULT, 2008, p. 8).

Chega a parecer enigmática a aproximação que Foucault faz entre a noção de sujeito, em Kant, com seu próprio modo de conceber o sujeito, sobretudo quando se leva em conta a busca kantiana dos elementos transcendentais do sujeito e a busca foucaultiana dos mecanismos de sujeição historicamente constituídos. Mas é justamente sobre este território do sujeito e da verdade que ambos os pensamentos parecem se encontrar. Se na Crítica Kant quer saber sob que condições transcendentais do sujeito um conhecimento verdadeiro é possível, no texto da Aufklärung sua questão dirige-se mais ao tema do exercício da liberdade na atividade pública do pensamento, buscando saber sob que condições a crítica às instituições e aos modos de ser e de pensar são possíveis. A conclusão kantiana é explícita: só pode haver verdadeiramente vida pública quando o pensamento assume por si mesmo a condução do seu pensar, sem a tutela de nenhum tipo de autoridade, mas também sem nenhum tipo de coação. Para Foucault, a crítica toma a forma histórica. Ele quer saber sob que condições de possibilidade históricas (e não transcendentais) um conhecimento verdadeiro é possível; para ele o próprio sujeito é constituído a partir das condições de possibilidade históricas, e nas tramas que aí se desenvolvem. Trata-se de fazer “uma ontologia do presente, uma ontologia da atualidade, uma ontologia da modernidade, uma ontologia de nós mesmos” (FOUCAULT, 2008, p. 22).

Mas a originalidade para efetivar as pesquisas para tal ontologia não estaria em sua própria obra. Fora o texto de Kant, que teria colocado a questão do presente como questão filosófica, a questão da atualidade: “o que se passa hoje? O que é que se passa agora? O que é esse ‘agora’ ao interior do qual estamos, uns e outros, e o que é o lugar, o ponto [a partir do qual] escrevo?” Mais do que a pergunta sobre que é o presente, a pergunta sobre a ontologia da atualidade, o texto de Kant teria colocado a questão sobre o que, do ponto de vista filosófico, faz sentido atualmente para uma reflexão filosófica. Além disso, Kant teria definido, nesse texto, um papel relevante para o filósofo, o papel de não apenas dizer o que é esse presente do qual ele próprio faz parte, no sentido de ajudar a compreender e mostrar o que está em causa na atualidade. O filósofo, ele mesmo fazendo parte dessa atualidade, sendo um de seus elementos, deve ser também ator, ou seja, de uma parte posicionar-se, trabalhar sobre si mesmo, criar as condições de possibilidade para governar a si mesmo e, de outra parte, trabalhar no sentido de ajudar também aos outros a constituírem-se em sujeitos críticos e autônomos, capazes de atitude de maioridade, isto é, capazes de servir-se de seu próprio entendimento.

A abertura do curso de 1982-1983 com o texto de Kant permite visualizar melhor a pretensão de Foucault em dirigir suas pesquisas aos gregos e à questão do cuidado de si e do conhecimento de si. Não é mero exercício de erudição, nem mesmo a pretensão de usar os gregos para alavancar um novo discurso. Ao contrário, Foucault está ocupado com uma questão presente, um problema efetivo em nosso cotidiano. De certa forma ele parece buscar um novo impulso para a crítica, aliada à atitude de modernidade que ele elogia na Aufklärung:

Eu gostaria, por um lado, de enfatizar o enraizamento na Aufklärung de um tipo de interrogação filosófica que problematiza ao mesmo tempo a relação com o presente, o modo de ser histórico e a constituição de si próprio (soi-même) como sujeito autônomo; gostaria de enfatizar, por outro lado, que o fio que pode nos ligar dessa maneira à Aufklärung não é a fidelidade aos elementos de doutrina, mas, de preferência a reativação permanente de uma atitude; quer dizer, de um êthos filosófico que se pode caracterizar como Crítica permanente de nosso ser histórico (What is Enlightenment?”, DE II, p. 1390).

A crítica de nosso ser histórico, no sentido da questão ontológica levantada acima, traduz o modo específico com que Foucault responde positivamente à questão de “uma ontologia histórica de nós mesmos” (What is Enlightenment?, DE II, p. 1393). Se no texto de 1978, O Que é a crítica [crítica e Aufklärung], ele estabelece a relação da atitude crítica da Aufklärung com a Crítica, no combate à sujeição, no texto de 1983 (What is Enlightenment?), essa relação já é tomada como certa. Em 1983, estabelece uma nova relação: a relação da crítica com a ontologia. A ontologia de ser histórico passa necessariamente, no pensamento de Foucault, pelo trabalho prévio da Crítica. Ora, todo trabalho prévio, desde História da Loucura, até os livros de 1984, desenvolvido na arqueologia e na genealogia não deixou de ser uma ontologia crítica de nosso ser histórico. Eles já efetivam, sob a égide da Crítica, uma ontologia histórica de nós mesmos. Este último conceito, embora seja um avanço significativo no entendimento de sua obra, somente foi cunhado em 1982 (Le sujet et le pouvoir, DE II, p. 1050-1051. texto nº. 306) e 1983 (DE II, p. 1202, texto nº. 326), momento em que, ao trazer a questão ética ao primeiro plano, retomando com certa frequência o texto da Beantwortung, tem valor retrospectivo sobre toda sua obra. Isso é assinalada pelo próprio Foucault:

Há três domínios possíveis na genealogia. Primeiro uma ontologia histórica de nós mesmos com relação à verdade através da qual nós nos constituímos como sujeitos de conhecimento; segundo, uma ontologia histórica de nós mesmos relacionada a um campo de poder através do qual nos constituímos como sujeitos agindo sobre outros; terceiro, uma ontologia histórica de nossas relações com a moral, que nos permite constituir-nos em agentes éticos (“A propos de la généalogie de l’éthique: un aperçu du travail en cours”, DE II, p. 1437, texto nº. 344).

Caracterizar seu próprio trabalho como ontologia histórica é uma resposta positiva ao estatuto ontológico da ética no interior da arqueologia e da genealogia. O conceito admite, simultaneamente, uma negação e uma afirmação. Enquanto negação, ela permite “fugir” dos modelos essencialistas de pensamento; não requer um fundamento positivo, universalmente válido, do qual se poderiam derivar as demais verdades sobre o homem e sobre a história; permite “fugir” igualmente dos humanismos, com seus prognósticos sobre modelos de homem e de mundo. Nisto, a ontologia histórica se mantém estritamente na esteira da Crítica. Permite “fazer análises de nós mesmos como seres historicamente situados […] orientadas para a constituição de nós mesmos como sujeitos autônomos” (What is Enlightenment?”, DE II, p. 1391).

A partir do segundo dia de aula (12 de janeiro de 1983), Foucault dedica o curso a examinar textos do período grego e latino que trabalham o tema da Parrêsia, o Franco-falar ou dizer verdadeiro. No primeiro dia de aula (05 de janeiro de 1983), antes de entrar na análise do texto sobre a Aufklärung, ele abre a fala fazendo uma retrospectiva do que seus trabalhos, desde o início, com História da Loucura, até esse momento do curso, abordaram, com quais conceitos, temas e problemas trabalhou. Igualmente, no segundo dia, ele retoma brevemente o que chama de “projeto geral de todo seu trabalho”. Conforme muitos já notaram, de tempos em tempos ele fala (ou escreve) sobre o que já fez, o que está fazendo e o que ainda pretende fazer. Acompanhando-se um pouco esse tipo de fala, percebe-se que ele, ao longo do tempo reorganiza todo o passado de suas pesquisas em função de conceitos novos que desenvolve na “atualidade” de seu trabalho. No curso sobre o governo de si e dos outros não foi diferente. Ele diz que, seu “percurso geral” pode ser ordenado em três “domínios ou matrizes de experiência”. Um primeiro domínio de experiência seria o eixo de formação dos saberes; um segundo domínio de experiência seria o eixo da normatividade dos comportamentos; o terceiro domínio de experiência seria em torno dos modos de ser sujeito.

As pesquisas que resultaram em seus últimos cursos e nos dois últimos volumes de História da sexualidade encaixam-se no terceiro domínio, o dos modos de ser sujeito. Em seguida, na aula do dia 12 de janeiro, ele anuncia qual é exatamente a proposta do curso: “colocando a questão do governo de si e dos outros eu tentarei ver como o dizer verdadeiro, a obrigação e a possibilidade do dizer verdadeiro nos procedimentos de governo podem mostrar como o indivíduo se constitui como sujeito na relação a si mesmo e na relação aos outros”. Em seguida, Foucault retoma os conceitos e textos já analisados no curso anterior, A Hermenêutica do sujeito, e indica os textos que irá utilizar no presente curso. Destaca-se o texto de Galien, Traité des passions de l’âme et de ses erreurs, os textos de Platão, Plutarco, Sêneca, entre outros.

Ao longo das aulas fica muito evidente o quanto Foucault está preocupado com a ética. Frequentemente, ele indica a dimensão ética da Parrêsia e o motivo de estudar os textos antigos acerca desse tema: compreender como o indivíduo se constitui enquanto sujeito, seja no sentido da sujeição, seja no sentido da liberação, via constituição de si como sujeito autônomo. Foucault também explora os diferentes tipos de Parrêsia, a Parrêsia platônica, a Parrêsia retórica, a Parrêsia filosófica, a Parrêsia política, a Parrêsia estoica, etc.

Obviamente não é possível, nestas poucas páginas, acompanhar a vasta e minuciosa análise de Foucault dos distintos textos e contextos em que a Parrêsia era praticada. Esse sabor fica para cada leitor degustar no próprio livro. Mas vale ressaltar a lucidez de Foucault sobre a relação entre a Parrêsia, a questão da verdade e a constituição do sujeito. A escolha do texto kantiano para demarcar o modo como ele pretendia trabalhar o tema do governo de si e dos outros parece de notório valor para a atualidade, pois põe em questão o modo como nossa modernidade (des)cuida da importante relação entre poder, verdade e subjetividade. Para Foucault, o texto de Kant sobre a Aufklärung, constitui “certa maneira, para a filosofia, de tomar consciência, através da crítica da Aufklärung, dos problemas que estavam tradicionalmente, na antiguidade, na Parrêsia e que vão reemergir ao longo dos séc. XVII e XVIII e que tomam consciência de si próprios na Aufklärung, e particularmente nesse texto de Kant” (FOUCAULT, 2008, p. 322).

Pode-se ver a importância que o texto da Beantwortung [Aufklärung] adquire na abordagem ética de Foucault. Ele representa a atitude do sujeito frente às diferentes formas de sujeição. Kant chama cada pessoa individualmente, mas também a coletividade dos homens, à responsabilidade frente aos mecanismos de submissão. Imprime à permanência na sujeição certa culpa das próprias pessoas. Seu apelo a sair da menoridade é feito à própria pessoa, em sua imanência histórica. É atuando sobre si, e no presente, que ela pode dar uma resposta, enquanto atitude, valendo-se de seu próprio entendimento, para vencer as formas de sujeição. O caminho para tal, segundo Foucault, é uma ocupação consigo, no sentido de conhecer a si e de constituir a si. Nisto a Parrêsia desempenha um importante papel. Ela é parte das técnicas de si que forma o cuidado de si na estética da existência.

Vencer a sujeição à verdade, mas também a sujeição da verdade, tanto no campo teórico quanto no prático, parece ser uma dupla inspiração kantiana na arqueologia e na genealogia de Foucault. Tal inspiração é buscada tanto nas Críticas quanto na Aufklärung. A estética da existência não representa uma fuga dos regimes de saber-poder. Ela é um caminho efetivo de neles se inserir, fazer-lhes frente, resistir à sujeição por eles pretendida. Nela se propõe o ser ativo frente aos regimes de saber-poder-verdade para, assim, “fazer avançar para tão longe e tão amplamente quanto possível o trabalho infinito da liberdade” (“What is Enlightenment?”, DE II, p. 1393).

Notas

1 “A faculdade do juízo […] dá o conceito mediador entre os conceitos da natureza e o conceito de liberdade que torna possível, no conceito de uma conformidade a fins da natureza, a passagem da razão pura teórica para a razão pura prática” (KANT, I. 2002 p. 40).

2 A Aufklärung é citada na “Introdução” a O Normal e o Patológico, em 1978; na longa entrevista, em 1978, com D. Trombadori (Dits et Écrits II – DE II. -, texto nº. 281, passagem em que se interroga sobre a promessa de liberdade da Aufklärung, que, através do exercício da razão, não se poderia tornar uma forma de dominação – p. 892); em 1979: « Pour une morale de l’inconfort »; (DE II, p. 783. Texto nº. 266); em 1979 no “Qu’est-ce que la Critique”; em 1980, no “Postface” a L’Impossible Prison, de M. Perrot (DE II, p. 855-856. Texto nº. 279); em 1983, na entrevista com G. Rauler, Structuralisme et poststructuralisme, relaciona o texto de Kant Was ist Aufklärung com a questão do presente (DE II., p. 1267. Texto nº. 330); no Curso no Collège de France, em janeiro de 1983, Le Gouvernement de soi et des autres, bem como no texto publicado no Magazine littéraire, em maio de 1984, Qu’est-ce que les Lumières?, a Aufklärung é seu eixo principal de análise (DE II, p. 1498-1507, texto nº. 351); também em 1983, na conferência em Berkeley, What is Enlightenment?, a Aufklärung é o ponto central do estudo (DE II, p. 1381-1397, texto nº. 339).

3 Os Cursos no Collège de France, entre 1975-76 e 1980-81, estão dedicados a essa questão: 1975-76, “É preciso defender a sociedade”; 1977-78, “Segurança, Território e população”; 1978-79, “Nascimento da biopolítica”; 1979-80, “Do governo dos vivos”; 1980-81, “Subjetividade e verdade”. Nestes Cursos, Foucault progressivamente aprofunda o estudo da questão da governamentalidade. Sua trajetória perfaz um “círculo” que inicia no estudo das diversas formas ou “artes de governar” os outros e tem seu ponto de chegada no estudo das diversas formas de governar a si mesmo.

4 Como existem duas coleções de Ditos e Escritos, uma em Francês, com duas edições, uma em quatro volumes, mais clássica, e uma em dois volumes, chamada “de bolso” e uma em português, em cinco (agora já em 6) volumes, organizada por Manoel Barros da Motta, nas referências usamos DE, sem itálico, seguido do número, para nos referirmos à coleção em português; usamos DE (em itálico), para nos referirmos à edição francesa. Na presente resenha utilizamos a edição “de bolso”, em dois volumes. Para facilitar, informamos também o número do texto, pois os textos tem numeração progressiva, que não varia de edição em 4 volumes para a edição em 2 volumes.

5 O Texto de Michel Foucalt, Qu’est-ce que la Critique ? [Critique et Aufklärung] (O Que é a Crítica? [Crítica e Aufklärunf]), não integra a Col. Dits et écrits. O texto resulta de uma conferência de Foucault à Sociedade Francesa de Filosofia, em 1978 e publicada em 1990 no Bulletin da Soc. Française de Philosophie, t. LXXXIV, nº. 2, p. 35 a 63. A paginação que apresentamos das referências corresponde à paginação original da revista da Soc. Francesa de Filosofia.

Referências

DREYFUS, H.; RABINOW, P. Michel Foucault, Uma Trajetória Filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

FOUCAULT, M. História da Sexualidade. Vol 2 – o uso dos prazeres. 8ª Ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.

FOUCAULT, M. O que é a crítica: Bulletin da Soc. Française de Philosophie, tomo XXXXIV, n. 2, p. 35-63, 1990.

FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas – uma arqueologia das Ciências Humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

FOUCAULT, M. Dits et Écrits. Paris : Gallimard 2001. 2 volumes. [Quarto].

FOUCAULT, M. Le Gouvernement de soi e des autres. Cours au Collége de France (1982-1983). Édition établie sous la diretion de François Ewald et Alessandro Fontana, par Frédéric Gros. Paris, Gallimard Le Seuil, 2008.

FOUCAULT, M. O Dossier – últimas entrevistas. Rio de Janeiro: Taurus Universitária, 1984.

FOUCAULT, Michel. Sécurité, Territoire, Population – Curs au Collège de France, 1977-1978. Col. Hautes Études. Édition établie sous la direction de François Ewald et Alessandro Fontana. France: Gallimard/Seuil, 2004.

KANT, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático. São Paulo: Iluminuras, 2006.

KANT, I. Crítica da Faculdade do Juízo. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.


Resenhista

Celso Kraemer – Professor no Departamento de Filosofia da Universidade Regional de Blumenau. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

FOUCAULT, Michel. Le gouvernement de soi et des outres. Paris: Gallimard; Seuil, 2008. [Cours au Collège de France de 1983]. Resenha de: KRAEMER, Celso. Michel Foucault: o governo de si e dos outros. História Revista. Goiânia, v.15, n.1, p. 199-211, jan./jun.2010. Acessar publicação original [DR]

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