Arquitertúlia: Prosa em construção – Contos de humor não edificantes | Manoel Vaz Gomes Corrêa

Arte sobre a capa de Arquiteertulia de Manoel Vaz 2 Arquitertúlia
Arte sobre a capa de Arquiteertulia, de Manoel Vaz

Há pouco tempo, 25/08/2021, recebi um e.mail de um antigo colega de ginásio no Colégio dos Maristas no Rio de Janeiro. Manoel Vaz Gomes Corrêa, o Nel Vaz, carioca, 75 anos, arquiteto, cartunista e ilustrador. Casado, dois filhos, três netos. Em função das quarentenas e isolamentos provocados pela pandemia são vários os ex-alunos que nos procuram via remota São palavras do autor Manoel Vaz:

“Um livro (já sinto suas contrações), era o que faltava, pois na prancheta, fiz muitas plantas, que estão aí até hoje, regando ou não regando. Quanto a plantar na terra, lembro-me de que na instituição onde trabalhei, em cada projeto inaugurado, plantávamos mudas de pau-brasil, pra compensar o que levaram na marra. Desse modo, posso dizer também que já fui uma espécie de pau pra toda obra”. Leia Mais

Cuerpos al límite: tortura, subjetividad y memoria en Colombia (1977-1982) | Juan Pablo Aranguren Romero

La tortura pretende desdibujar al sujeto, anhela escindirle de su cuerpo y reducirle a un objeto de represión que muestre su implacabilidad. Sin embargo, aun en condiciones de sufrimiento, el lazo social que conforma su identidad corporal, muchas veces, le permite resistir e incluso vencer. Este es el principal postulado que expone el psicólogo e historiador Juan Pablo Aranguren en Cuerpos al límite, un libro sobre la disposición de los cuerpos ante las prácticas de tortura en Colombia a finales de los años setenta y principios de los ochenta. Para su estudio el autor utiliza diversas fuentes entre las cuales incluye leyes, decretos, periódicos, revistas militares, manuales de contrainsurgencia, informes de Amnistía Internacional y entrevistas con personas que fueron torturadas. La publicación no se concentra únicamente en el cuerpo torturado y doliente, pues Aranguren profundiza en la experiencia corporal y subjetiva. Por tanto, analiza de forma paralela el cuerpo social y político, el cuerpo militante y el cuerpo militar. Así, Cuerpos al límite muestra cómo el gobierno de la época concibió a la sociedad a partir de una lógica inmunológica que pretendía defender al país del virus del comunismo, lo cual provocó la criminalización de la protesta, la represión de los movimientos sociales y la militarización de la vida cotidiana.

Aranguren se plantea tres objetivos principales por desarrollar en su trabajo. El primero, y más evidente, es indagar por la relación entre cuerpo, subjetividad y memoria, estableciendo una conexión entre estos conceptos. El segundo, es analizar la constitución del marco en el que se inscribió la práctica de la tortura, estudiando cómo se conformó un aparato que propendía por la escisión entre cuerpo y sujeto. El tercero, y quizá el más importante, es rescatar al sujeto, pues para el autor la separación entre análisis de tipo macro y micro, en los estudios sobre violencia política, ha llevado a que este sea desdibujado y borrado de las investigaciones. De esta forma, el autor, siguiendo la línea investigativa propuesta por Michel de Certeau en La invención de cotidiano1, considera que no solo basta con analizar el marco o el aparato en el que se inscribe el sujeto, sino que también es necesario rescatar sus prácticas cotidianas, pues la estructura no siempre ha sido exitosa; es decir, los sujetos han escapado a los marcos en que estaban inscritos a partir de formas particulares de actuar. Por ende, los “modos de hacer” presentados por Aranguren en Cuerpos al límite, bien sea desde la resistencia o desde la duda y el desamparo, son la evidencia de “un sujeto que no se narra aquí como cuerpo sufriente ni se reduce a los actos infligidos contra su ser”2. En ese sentido, el autor analiza la constitución de un sujeto que se enuncia más allá de la lógica determinada por la maquinaria y emprende un recorrido por los cuerpos en el que pretende revelar la forma en que la tortura se inscribió en ellos. Leia Mais

Cinemão. Espaços e subjetividades darkroom – MAIA (REF)

MAIA Helder Tiago www youtube com Arquitertúlia
 MAIA H T Cinemão ArquitertúliaHelder Thiago Maia / www.youtube.com

MAIA, Helder Thiago. Cinemão. Espaços e subjetividades darkroom. ., Salvador, BA: Devires, 2018. Resenha de: PERALTA, Jorge Luis. Explorando la sala oscura: el cine porno como espacio (literario) subversivo. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.28 n.2 2020.

Ciertos espacios, así como los textos literarios que los representan, han sido soslayados de la investigación académica como si careciesen de la entidad suficiente para ser objeto de un análisis serio y riguroso. Los cines pornográficos constituyen un caso paradigmático de esa espacialidad marginal y marginada: asociados automáticamente con actividades sexuales furtivas y desordenadas, ocupan incluso uno de los eslabones más bajos en la jerarquía espacial de la sociabilidad homoerótica. No debe sorprender entonces el desinterés de la crítica por sus figuraciones literarias, habida cuenta de que en general son escasos los estudios sobre cómo han sido (re)construidos por la literatura los espacios frecuentados por varones que se relacionan sexual y/o afectivamente con otros varones. Leia Mais

Ética e subjetividade – CESCON (Ph)

CESCON, Everaldo (Org). Ética e subjetividade. Petrópolis: Vozes, 2016. Resenha de: DALSOTTO, Lucas Mateus. Philósophos, Goiânia, v. 23, n. 1, p.171-177, jan./jun., 2018.

Para todos aqueles que anseiam aprofundar seus conhecimentos a respeito da fenomenologia e, em especial, da relação desta com a ética, há pouco tempo foi publicado no Brasil um livro de imprescindível leitura, a saber: Ética e Subjetividade, organizado pelo competente e destacado professor Everaldo Cescon (Vozes, 2016, 314 p.). Note-se que a força e relevância do texto não decorrem apenas do fato dele fornecer uma ampla e apropriada abordagem a respeito da fenomenologia e, por conseguinte, de alguns de seus principais teóricos, tais como Edmund Husserl, Emmanuel Levinas, Edith Stein, Michel Henry, entre outros, mas especialmente por chamar a atenção do leitor a temas fenomenológicos que nos permitem falar diretamente da ética. Ainda que a obra resguarde uma homogeneidade no que diz respeito ao estilo e à forma de como cada autor estabelece sua discussão, isto não exclui em nada a riqueza de ca da um dos textos. Em linguagem acessível e com interpretações e análises acuradas, o livro conta com a contribuição de uma vasta gama de reconhecidos especialistas brasileiros e internacionais (i.e., Argentina, Colômbia, Portugal, Espanha e Itália) na área.

Ao considerar que a ética contemporânea desenvolve-se num vazio de sentido, na medida em que as bases ontológicas e metafísicas para a reflexão desta foram removidas, o escopo do presente livro reside em apresentar a fenomenologia como sendo capaz de fornecer princípios para um novo agir. O trabalho de fundamentação de nossas escolhas morais continua sendo um problema fundamental e indispensável no domínio da ética, o qual não se restringe em ser um problema meramente teórico, mas, tanto mais, um problema prático. Assim, é somente reivindicando a exigência do valor e refundando as crenças morais que será possível enfrentar uma sociedade cada vez mais atrelada à necessidade, à instrumentalidade e à utilidade do valor.

A fim de levar a cabo tal proposta, Ética e Subjetividade está dividida em cinco seções, cada uma delas cumprindo uma função especial no objetivo geral da obra. Partindo do processo metodológico de constituição da fenomenologia e perpassando pelo pensamento ético husserliano, as análises dirigem-se às mais variadas abordagens e desenvolvimentos éticos que surgiram a partir dessa corrente teórica. Estas seções são ainda precedidas por uma breve e oportuna introdução, a qual, nas palavras de Cescon, visa apresentar a eminente necessidade de repensarmos a ética no sentido de “permitir ao indivíduo constituir-se enquanto pessoa autor-responsável, livre, solidária e aberta” (p. 9).

Considerando o fato de que Husserl era entendido como um filósofo teórico e que, portanto, a ética sempre foi um dos temas que menos recebeu atenção por parte de seus estudiosos, a primeira seção do texto tem por finalidade principal expor a concepção de racionalidade prática que parece emergir de sua fenomenologia. Neste contexto, são apresentadas duas fases principais da obra husserliana no tocante à reflexão ética, uma de tipo lógico centrada na crítica e na teoria do conhecimento, e outra centrada na subjetividade humana e na noção de dever no sentido da vocação/missão. Na sequência, defende-se que em ambas as fases o objetivo de toda a fundamentação fenomenológica de Husserl foi sempre salvaguardar a objetividade, tanto das proposições teóricas quanto dos valores e das proposições éticas. Então, busca-se analisar o excurso Natur und Geist nas Lições de Ética, de 1920 a 1924, a fim de esclarecer o “âmbito do humano espiritual para, assim, saber ao que exatamente a ética se refere” (p. 68). Por fim, é avaliado se a ética de Husserl obtém sucesso em reivindicar que juízos de valor possuem uma validade que independe das particularidade dos agentes que os emitem e em defender que há alguma coisa como uma obrigação moral absoluta que vincula incondicionalmente a vontade dos agentes à ação.

Diferentemente da primeira seção, onde a reflexão estava centrada na noção de racionalidade prática e de objetividade moral na ética husserliana, a segunda seção visa discutir a questão da subjetividade ética e mostrar a influência de Husserl sobre outros autores. Partindo deste último, inicialmente é mostrado que a intencionalidade da consciência permite aos agentes perceber que os valores lhes são dados do mesmo modo como os objetos da intuição sensível o são e que, desse modo, a esfera afetiva – subjetiva – dos agentes faz parte do âmbito da moralidade. Num segundo momento, busca-se evidenciar a herança de Husserl na antropologia de Edith Stein, especialmente no que diz respeito ao método, uma vez que esta última incorpora integralmente em sua proposta a ideia de epoché daquele. No que se segue, discute-se a transcendência ética em Levinas no sentido de que a razão é incapaz de captar o outro sem reduzi-lo ou objetificá-lo e que, por isso, ela é incapaz de reconhecer a radicalidade do chamado do outro. A resposta a este chamado produz um “transbordamento da intencionalidade” (p. 156), o qual é impossível de ser capturado pela consciência intencional do agente.

Em continuidade à anterior, a terceira seção aborda a questão da subjetividade ética e o problema do corpo a partir da contribuição de alguns autores filiados – de alguma forma – à tradição fenomenológica. Primeiramente, avalia-se a possibilidade de uma fenomenologia da individuação a partir do conceito de encarnação de Michel Henry. O ponto central é que aquilo a que fazemos referência – noema – em nossa experiência intencional, dando-lhe sentido – noesis –, implica, em alguma medida, torná-lo carne, especificamente “carne de minha carne” (p. 164). Em seguida, o pensamento de Michael Henry é apresentado como estando vinculado a um tipo de fenomenologia do corpo – da subjetividade – segundo o qual a ética se dá no cuidado da vida e, nesse caso, na não-instrumentalização do corpo de cada indivíduo. Ao final dessa seção é exposta a posição Nicolai Hartmann, que, pensando a partir da fenomenologia, realizou uma vigorosa crítica à metafísica, tanto antiga quanto moderna, no sentido de chamar atenção à pluralidade e complexidade dos valores que afetam a vida dos agentes.

Na quarta seção, a questão da subjetividade ética ainda permanece no foco das discussões, mas agora atrelada ao problema da ação e sob o viés de outros autores. O ponto de partida de Ética e Subjetividade aqui é mostrar o esforço de Paul Ricouer em conciliar a teleologia aristotélica e a deontologia kantiana e, ao mesmo tempo, eliminar o problema – atinente a ambas as teorias – da exclusão da alteridade e da reciprocidade nas relações interpessoais. Posteriormente, expõe-se a teoria de Xavier Zubiri com vistas a sugerir que a reflexão moral não é uma questão de descobrir a que normas se está obrigado a cumprir, mas, ao contrário, de descobrir quais são as estruturas e características próprias de organização, solidariedade e corporeidade do ser humano. Finalizando a seção, o fenômeno da hospitalidade é analisado como uma forma de agir passivo em que há, nos termos de Levinas, um ‘transbordamento’ – as bordas de um fenômeno transbordado nunca poderão ser evidentes –, o qual, por sua vez, torna a apreciação conceitual uma tarefa delicada e complexa. A impossibilidade de tal apreciação deve converter a hospitalidade numa espécie de transgressão cujo resultado será a acolhida do hóspede, do estrangeiro ou de qualquer um outro.

Na última seção, as análises concentram-se na compreensão da relação existente entre subjetividade pessoal e comunidade ética. Num primeiro momento, o trabalho de Edith Stein é tomado em questão para evidenciar que a realização do ser humano como pessoa reside no encontro deste com o outro no interior de uma comunidade, onde esta comunidade é fonte de força vital e espiritual para os agen-tes na medida em que ela gera um sentido de pertença entre todos eles. A seguir, retorna-se a Husserl para mostrar que, embora a personalidade dos agentes seja regida por normas racionais que se ajustam ao telos próprio de cada um deles, é impossível imaginar que o ideal ético pessoal seja realizável sem abertura aos outros. Por fim, faz-se uma interpretação do fato da irrupção dos pobres – termo cunhado pelo teólogo Gustavo Gutiérrez ao se referir ao crescente número de marginalizados existentes nas grandes e pequenas cidades – na América Latina a partir do conceito de Jean-Luc Marion de fenômeno saturado – fenômeno que ultrapassa todas as significações conceituais e horizontes prévios de compreensão.

Para concluir, é importante chamar atenção para o fato de que, além de muito bem escrito, Ética e Subjetividade oferece uma segura síntese a respeito do atual estado da arte entre fenomenologia e ética. Apesar de toda a complexidade dos temas e análises realizadas nos textos, o livro é de fácil e acessível leitura, mesmo para aqueles que não estão familiarizados com os autores ou com os principais tópicos da discussão. Ainda que alguns temas pareçam carecer de maiores explicitações e, talvez, merecessem até uma exposição mais detida e minuciosa, é possível afirmar que o livro cumpre plenamente sua função, a saber: apresentar a fenomenologia como sendo capaz de fornecer princípios para um novo agir ético. Portanto, Ética e Subjetividade é uma das mais importantes contribuições editoriais no domínio da fenomenologia realizadas no Brasil nos últimos anos e, por conseguinte, é imprescindível sua leitura e discussão nos mais diversos ambientes da academia filosófica de nosso país.

Referências

CESCON, Everaldo (Org.). Ética e subjetividade. Petrópolis: Vozes, 2016.

Lucas Mateus Dalsotto – Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail:  [email protected]

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El Caso Morillo: crimen/locura y subjetividad en la España de la Restauración | Ricardo Campos

Com certa frequência alguns casos de violência acabam tomando os meios de comunicação e comovendo a sociedade de modo a desencadear novas ou velhas polêmicas. Muitas vezes, o caso atinge proporções maiores e passa a ser discutido também nos meios acadêmicos, no ambiente familiar e nos mais diversos ambientes. Diferentes sujeitos, partindo de diferentes esferas da sociedade, apresentam seu ponto de vista a fim de rotular o autor do crime: Seria ele um louco? Um desfavorecido socialmente? Um herói? Ou simplesmente uma pessoa má? Leia Mais

Trabalho imaterial: formas de vida e produção de subjetividade – LAZZARATO; NEGRI (C)

LAZZARATO, Maurizio; NEGRI, Antonio. Trabalho imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Tradução de Monica de Jesus Cesar. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2013. Resenha de: SILVESTRIN, Darlan. Conjectura, Caxias do Sul, v. 19, n. 1, p. 186-190, jan/abr, 2014.

Antonio Negri é um filósofo italiano, contemporâneo, estudioso do pós-operaísmo, com uma ampla pesquisa sobre a nova configuração mundial realizada pela força do capital e suas consequências, de modo particular no mundo do trabalho. Tem diversas obras traduzidas para a língua portuguesa, dentre as quais Império (2004) e Multidão: guerra e democracia na era do Império (2005), ambas pela Editora Record. E Maurizio Lazzarato é um sociólogo italiano.

Esta obra trata de uma coletânea de ensaios que apresentam as transformações ocorridas no mundo do trabalho. Primeiramente, foram publicados na revista francesa Futur Antérieur, do próprio Negri. Foram publicados pela primeira vez no ano de 2000, e, felizmente, a Editora Lamparina apresenta ao público, em 2013, a 2ª edição dessa importante obra para a compreensão do pensamento de Antonio Negri e das transformações no mundo do trabalho.

O modelo fordista de produção tornou-se obsoleto, mas, obviamente, tem sua importância celebrada na evolução dos parâmetros da produção industrial, consequentemente, nos desenvolvimentos econômico e social como um todo. Com o passar do tempo, e inclusive por força da luta dos operários pelo reconhecimento de seus direitos, o trabalhador passou a ser visto como alguém que também existe como ser social, dotado de sensibilidade, de sabedoria, que pode colaborar e ser pró-ativo em seu ambiente de trabalho muito além do mero desempenho mecânico de suas funções. Nessa visão, o trabalho passou a ser visto com certa imaterialidade, repleto de subjetividade, modificando temporal e espacialmente a posição que o trabalhador deve ocupar.

Com a evolução do tema trabalho ao longo das últimas décadas, veio à tona um fato inegável, não é a quantidade de trabalho, nem mesmo o tempo que se trabalha, o grande propulsor do desenvolvimento. Passou-se a entender que, a partir do momento em que o trabalhador se torna um agente social, que interage com todas as dinâmicas ao seu redor, passa a produzir mais e melhor. A presença da subjetividade torna-se visível e compreensível, permitindo uma gama de evoluções, de percepções, que mudam a maneira como se trabalha, para que e quem se trabalha; nesse sentido, se encaixa com perfeição o termo cooperar.

Esse visa exatamente ao desenvolver engajado com todos os setores da sociedade, porque se entende que tudo faz parte de uma mesma engrenagem, e que somente pela união é possível crescer qualitativamente, alcançando por natural consequência uma ascendente quantitativa.

Essa concepção de trabalho imaterial se deve muito aos movimentos sociais no período que remonta a 1968, especialmente àqueles motivados por estudantes, que, até mesmo por não fazerem parte da classe operária, conseguiam observar aspectos por esses não vistos. Toda a luta, movida por ideais socialistas, mas fundamentalmente pelo reconhecimento da dignidade humana no ambiente de trabalho, foi observada por pensadores de todos os lugares. Desde tal época, os mesmos já afirmavam a importância da subjetividade do trabalhador, no florescer de seu intelecto, que pudessem ser alguém que superasse os moldes de uma linha de produção, podendo evoluir e movimentar criticamente todos os processos que fazem parte de seu cotidiano.

Existe um claro antagonismo entre a visão fordista de trabalho e a visão pós-fordista. A primeira evidenciada pelo trabalhador que apenas fazia parte de uma linha de produção, cuja subjetividade era desprezada por completo. Com o tempo, a luta anticapitalista trouxe a figura característica do trabalhador que não é apenas um operário na acepção do termo, mas um ser social, que tem suas opiniões bem-definidas, com capacidade para perquirir seus direitos e transformar o mundo. Por mais que o tempo passe, e com ele aconteçam inúmeras transformações, não podemos esquecer de que, se hoje vivemos numa sociedade mais justa, com garantias ao trabalhador, é devido à existência dessas duas visões antagônicas, até porque ambas são necessárias. A questão é encontrar o ponto de equilíbrio entre elas, podendo, por meio dessa mediação, chegar ao padrão ideal do que se entende por trabalho imaterial.

A hodierna conceituação de trabalho imaterial trouxe não apenas um novo modelo de trabalho, mas também indicou a existência de novas formas de poder, abarcadas por novos processos de subjetivação. Quando o trabalhador reconhece a própria importância, passa naturalmente a avocar direitos sobre o seu labor, provando que é imprescindível para o desenvolvimento das instituições e, por isso, detém certo poder mediante as demais esferas, inclusive, e de modo substancial, na política.

Essa nova visão do trabalho modificou aspectos interiores no que tange à produção, bem como aspectos exteriores que afetam, portanto, o mercado de consumo. Na época do modelo fordista, a industrialização baseava-se na produção de modelos de mercadoria padronizados, sem grandes distinções ou variedades: por sua vez, o consumidor daquela época também era pouco exigente. Com o passar dos tempos, isso se modificou completamente. Atualmente os meios de produção precisam acompanhar esse movimento frenético no qual a sociedade vive e se relaciona, primando por investimentos em qualificação, informação, inovação e todas as ferramentas necessárias para acompanhar a maneira instantânea como as dialéticas sucedem em nível global. Nesse mesmo sentido, obviamente, também segue o setor de serviços. É justamente no interior dessa relação de produção e consumo que habita o trabalho imaterial, ele é o grande mentor de todas as mudanças, do ritmo que movimenta os ramos sociais em suas atividades e objetivos.

A partir da década de 90 (séc. XX), mais especificamente, com a “Era Berlusconi”, surge a figura do “empreendedor político”, caracterizada pelo indivíduo que, além de manipular a opinião popular por meio da mídia, conhece e domina com maestria o novo modelo de produção, conhecendo todos os detalhes que movem essa estrutura de produção e consumo. Tais mudanças atingiram também o tradicional modelo de empresário, não sendo mais aquele que se atém à administração clássica de sua empresa; a questão em pauta é socializar a empresa, para isso um dos mecanismos utilizados são as chamadas redes de comercialização, exemplificadas pelo método franchising. Dessa forma, a empresa vem se tornando imaterial de modo que possa atingir o mundo todo, tornando-se globalizada. Percebe-se, assim, o quanto a imaterialidade do trabalho atingiu sem precedentes todos os âmbitos sociais.

Outro viés fundamental para a realização dessa imaterialidade que atinge o consumo de modo geral é a publicidade, entendida aqui como fator interativo com o consumidor, captando seus desejos (hoje não mais reconhecidos pela padronização, mas pela diversidade de produtos), e reproduzindo via imagens, conceitos, a criação e recriação do desejo de consumo, como forma de necessidade, ou, de maneira fugaz, até mesmo de status. Os setores de marketing, justamente por essa interação direta com o consumidor, são encarados como sendo os principais departamentos de uma empresa. Nesse diapasão, a figura de políticos e empresários acaba por se fundir, é a combinação do visionário economista com o estrategista político, transformando-se na característica única daquele que faz uso da subjetividade dos indivíduos, a favor do sucesso de sua atividade-fim.

Dentre as novidades pós-fordistas, podemos ainda destacar a do trabalho autônomo, que, embora gere uma maior responsabilidade em seu desempenho, pelo fato de o salário confundir-se com a própria renda, traz em seu bojo o traço fundamental da libertação, ou seja, a liberdade do operário (que antes estava retido em uma linha industrial) de poder escolher e construir seu próprio caminho, segundo seus objetivos e possibilidades.

Diferentes filósofos, pensadores, críticos, enfim, estudiosos das áreas sociais e humanas, desde há muito tempo, vêm acompanhando o dinamismo que envolve o trabalho e suas relações tanto intrínsecas quanto extrínsecas. Todos os conceitos e teorias hoje pertinentes ao tema provieram de debates sociais, das muitas lutas pela conquista dos direitos trabalhistas, pelos cenários políticos e, é claro, pelas diferentes conjecturas econômicas que moveram e movem a sociedade. Desse modo, cada fato sucedido deve ser considerado salutar para a estruturação do conceito hoje conhecido como trabalho imaterial, pois propõe uma visão humanizada do trabalho, mais ampla, capaz de contemplar aspectos sociais e humanos em prol do desenvolvimento da sociedade como um todo. Pode-se afirmar, apesar de infelizes exceções, que o trabalhador, hoje, é encarado como um cidadão, efetivamente portador de direitos e deveres, capaz de alterar substancialmente o meio onde atua e vive, mantendo, principalmente, sua subjetividade diante dos mais variados contrastes e sendo levada em consideração e essencialmente respeitada.

Essa obra parece ser a grande contribuição de Negri, juntamente com Lazzarato, para a compreensão da socialização do trabalho, na qual Negri, de modo particular, busca a fundamentação para o conceito de trabalho imaterial no pensamento de Marx, quando trata da questão do trabalho vivo ou trabalho social na obra pouco conhecida Grundrisse, com tradução recente para a língua portuguesa e publicada pela Boitempo Editorial. Negri faz uma leitura política dessa obra de Marx e encontra no conceito de intelecto de massa, ou general intellect, ou no conhecimento que está no cérebro das pessoas e no trabalho social, a constituição de novas subjetividades e novas formas de vida, marcadas pela cooperação entre as pessoas no processo produtivo.

Darlan Silvestrin  – Mestrando pelo PPGFil da UCS, Caxias do Sul, RS. E-mail: [email protected]

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A tragicomédia da medicalização: a psiquiatria e a morte do sujeito – COELHO (REi)

COELHO, J. R. A tragicomédia da medicalização: a psiquiatria e a morte do sujeito. Rio Grande do Norte: Editora Sapiens, 2012. Resenha de: OLIVEIRA, Ariane Rocha Felício de. Revista Entreideias, Salvador, v. 3, n. 1, p. 165-169, jan./jun. 2014.

A obra de José Ramos Coelho, filósofo e doutor em psicologia clínica, tem como proposta principal mostrar como a psiquiatria está ampliando seu campo de conhecimento e atuação para todos os aspectos da vida humana, levantando um debate em torno da temática da medicalização. As questões próprias das pessoas e da sua existência estão sendo postas como algo relacionado à bioquímica cerebral, podendo ser, com isso, lidadas apenas com indicação de fármacos. O modo pelo qual a crítica à medicalização da existência se dá é, tomando os gregos clássicos como exemplo, a partir de uma alusão a um espetáculo teatral, no qual estão envolvidos os personagens, o cenário, a trama e os atos, contextualizando criticamente as práticas dos médicos, sobretudo dos psiquiatras, a partir de uma perspectiva filosófica. Numa linguagem de fácil compreensão e com uso frequente de metáforas e ironias, o livro discute a morte do sujeito enquanto ser pensante e dotado de sentimento e sensibilidade, através de uma “cura” das suas inquietações por meio de fármacos.

Fortes emoções, sentimentos intensos, dor, alegria, falta de concentração, etc. Tudo isso está sendo concebido como doenças mentais ou como sinal de algum distúrbio. Nesse sentido, Ramos traz na sua obra que a psiquiatrização da existência está suscitando um grande aumento no número de casos de doenças mentais ao longo de todo o mundo, usando como exemplo o autismo, o qual passa por um crescimento significativo dos casos. O modo pelo qual a medicina contemporânea, sobretudo psiquiatria, está concebendo o homem é, em realidade, o sintoma de uma mudança mais ampla e profunda, uma vez que as ciências médicas não estão à parte da sociedade, mas são, também, o reflexo dela.

O contexto médico-hospitalar está refém do que Ramos denomina de “pharmacolonialismo”. Se com o avanço tecnológico a medicina conseguiu progressos significativos para o controle e a erradicação de algumas doenças, outras novas estão surgindo e/ ou sendo inventadas pelo marketing da psiquiatria. No protocolo seguido pelos médicos e psiquiatras, parece que aquele ser humano “cuidado” é o que menos importa no cenário. Ir de encontro a essa perspectiva é a grande luta presente no livro, ele convida o leitor a refletir criticamente acerca da medicalização de todos os aspectos da vida, se portando contra o fenômeno, sendo a favor da singularidade, da autonomia e partindo para uma defesa contundente da vida.

Ramos nos põe a pensar que a doença no cenário atual está sendo analisada de forma descontextualizada. O enfoque principal é o agente patogênico ou a desordem e desequilíbrio na saúde que possa estar causando tal manifestação, negligenciando o adoecer como um processo. É como se a doença fosse considerada como uma fatalidade que ocorreu ao indivíduo, como se a pessoa fosse uma vítima de um infortúnio indesejado que a acometeu. O autor ressalta que a doença está presente num contexto, que pode ser oriundo de um conflito vivido pela pessoa ou do ambiente externo do qual ela faz parte; salientando que esses fatores estão sobrepostos e não atuam sozinhos.

É interessante pensar na reflexão que Ramos faz sobre os diferentes momentos vividos pela psiquiatria: antes vivíamos a história do horror, em que as torturas eram permitidas e o internamento era a saída mais plausível; hoje vivemos uma busca voluntária por um tratamento, na tentativa de aliviar os sintomas apresentados, de procurar seu papel social, ser escutado e cuidado. Dentro desse último momento é que Ramos afirma que a subjetividade contemporânea se sustenta: no primeiro momento o paciente, sentido algum tipo de mal-estar, se envolve na relação, buscando ser ouvido/assistido; no segundo, o conteúdo presente no seu discurso é “decodificado” a partir de um saber médico já pré-estabelecido, no qual a fala só se torna inteligível no momento em que é nomeado ou inserido em algum tipo de doença ou patologia; no terceiro, após a análise dos sintomas e sinais apresentados, o paciente é diagnosticado no seu mal-estar, classificado e batizado; finalmente no último ato, ele é medicado no intuito de voltar ao seu sadio e normal.

Usando o mito da caverna para elucidar sua crítica, Ramos afirma que quando a pessoa chega ao consultório médico a fim de buscar ajuda, ela julga não saber sobre sua própria história, não compreender o que se passa com ela. Ramos alega que isso ocorre, pois ela foi acostumada a pensar assim, muito embora ressalte que a pessoa que carrega consigo aquele mal-estar é também quem porta o conhecimento sobre sua própria angústia, seu próprio sofrimento; o fato é que não se tem noção desse conhecimento, pois, por vezes, as pessoas não conseguem acessá-los. No consultório, a pessoa encontra um especialista que supostamente (e os dois lados supõem isso) detém o conhecimento apropriado sobre o que está se passando e, com isso, é capaz de curá-la.

O autor ressalta que o perigo dessa doação dos cuidados da sua vida para um especialista pode estar na maneira com a qual o psiquiatra lida com isso. A quem ele está servindo? Ao paciente ou ao sistema? Ramos salienta que o psiquiatra pode assumir posturas diferentes. Pode se posicionar no sentido do não-saber e dialogar com a pessoa que o procura, estando aberto para a escuta, voltando seu trabalho para o esclarecimento, permitindo que o outro se conheça, possibilitando liberdade do sujeito. Por outro lado, o profissional pode se posicionar ao lado do sistema, facilitando a permanência da pessoa no lugar de alguém “cego” sobre sua própria vida, classificando-o dentro de alguma patologia e indicando o melhor fármaco a ser administrado.

Ramos tem o cuidado de não culpabilizar o médico/psiquiatra pelo possível posicionamento de surdez diante da pessoa que o procura. Ele salienta que o médico também está preso dentro do sistema (estão também aprisionados nele), que é regido pelo pharmacolonialismo. Caso se distancie dessa lógica e atue de outra maneira, o médico pode sofrer consequências reais, tais como ser processado por negligência e descaso. Com isso, muitos profissionais continuam seguindo o protocolo do sistema, pois isso lhes imuniza e assegura.

Ramos questiona o conceito de saúde, visto como a capacidade em manter-se em equilíbrio, argumentando que o sistema pode se manter saudável mesmo com mudanças, existe a possibilidade de adaptação dessas modificações. Além desse argumento, também salienta outro, através de uma metáfora com um skatista, concluindo que a doença poderia ser vista como uma tentativa do organismo de voltar para o seu equilíbrio. Ter saúde, então, não seria viver num preso modo que consensualmente é aceitável, mas poder sair do equilíbrio e depois equilibrar-se novamente, tendo domínio sobre isso, tornando a vida menos enrijecida.

A partir de uma historicidade rica e interessante através da filosofia, sobre concepção de saúde, Ramos salienta que o homem se situa entre a natureza e a cultura, perpassando-se entre os dois. A busca por precisão das ciências exatas, a exigência de cientificidade acaba inibindo esse confronto entre as duas instâncias citadas. A ciência da saúde segue esse rumo e tende a transpor os conflitos do homem a conhecimentos e técnicas dos estudos bioquímicos, tentando curá-los através de medicações. Sobre essa questão (uso de medicamentos), Ramos enfatiza o crescimento das indústrias farmacêuticas a partir da segunda metade do século XX e sua importância para a verdade seguida pelos psiquiatras: “a verdade como adequação do diagnóstico à doença, via medicação”, sem manifestar muita sensibilidade com o outro e sua história. Embora a ciência da saúde tenha a pretensão de uma objetividade, de uma exatidão, Ramos ressalta que não é possível medir através de instrumentos, como régua e esquadro, se uma pessoa se encontra doente, portanto, esse diagnóstico fica a critério da subjetividade do psiquiatra; salientando que as fronteiras entre o normal e o patológico nunca foram demarcadas.

Fazendo uma alusão à bíblia, o autor afirma que quem rege esse modo de classificar as pessoas entre doentes e sadios é o código geral de doenças mentais. É ele que traz o consenso dos psiquiatras daquilo que deve ser considerado normal ou anormal; Ramos questiona o critério de verdade, a cientificidade desse consenso.
O autor questiona também a objetividade científica do DSM, que é fundado em comportamentos observáveis, quantificáveis e testáveis, parecendo negligenciar que os humanos são dotados de cultura, valores e linguagens. Com o DSM e o CID, toda a atividade profissional do psiquiatra é ouvir a queixa do paciente e enquadrar o que ouviu em alguma categoria nosológica, enquadrando-o e medicando-o, o sentido do enredo do paciente não interessa muito.

Com isso, para o autor, a psiquiatria acaba deixando de lado seus próprios objetivos, acarretando nas palavras do autor, uma “morte da psiquiatria”, pois tal especialidade médica tem como objetivo estudar a alma humana (psique=alma; iatros=médico) e não atuar da maneira que a nova psiquiatria atua, numa afinidade considerável com a neurociência, medicina e genética, deixando de lado uma postura terapêutica prospectiva e uma sensibilidade que o tornaria capaz de sentir o outro.
Ramos faz uma crítica a respeito das medicações, que vai além de efeitos colaterais ou dependência química, o autor se reporta também à permissão para o desequilíbrio, uma vez que ameniza qualquer sentimento, autoriza que a pessoa se sinta assim. O revista entreideias, Salvador, v. 3, n. 1, p. 165-169, jan./jun. 2014 169 medicamento atua como uma máscara da aparência da normalidade e causa também uma “despersonalização”, o que contribui fortemente para a morte do sujeito.

Nessa obra, o autor procura refletir e demonstrar sua crítica a respeito da visão unilateral (via medicamentosa) das questões humanas. Querer tratar os conflitos com medicamentos é, para Ramos, suprimir a pessoa enquanto sujeito, criador de si e das suas particularidades. Ademais, o autor crê na possibilidade de uma intervenção terapêutica eficaz que respeita o reino da subjetividade.

Ariane Rocha Felício de Oliveira – Universidade Federal da Bahia – Faculdade de Educação. E-mail: [email protected]

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Poemas da recordação e outros movimentos – EVARISTO (REF)

EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008. 72 p. (Coleção Vozes da Diáspora Negra, v. I). Resenha de: ALÓS, Anselmo Peres. O lirismo dissonante de uma afro-brasileira. Revista Estudos Feministas v.19 n.1 Florianópolis Jan./Apr. 2011.

A estreia de Conceição Evaristo nas letras brasileiras foi relativamente tardia, remontando aos inícios dos anos 1990, quando começa a colaborar em periódicos literários. Um dos principais meios nos quais Evaristo publica é a série Cadernos Negros, fundada pelo grupo Quilombhoje Literatura, coletivo de escritores fundado em 1980 com o objetivo de discutir e aprofundar a experiência afro-brasileira na literatura, incentivar o hábito da leitura e promover estudos, pesquisas e diagnósticos sobre literatura e cultura negra. Em 2003, a escritora publica o seu primeiro livro individual, Ponciá Vicêncio, romance que logo chamou a atenção da crítica, particularmente pela maneira com que a autora articula a reflexão sobre questões de gênero, raça e classe social. Três anos depois, Evaristo publica Becos da memória. Ainda que, em termos de publicação, este seja o segundo romance de Evaristo, a escrita dessa narrativa remonta à década de 1980. Tal como a própria escritora assinala, o livro se encontrava pronto desde 1988, mas acabou ficando no fundo da gaveta, adormecido. Chegou-se a cogitar uma publicação através da Fundação Cultural Palmares, ainda em 1988, mas “o livro já havia se acostumado ao abandono. E só agora, quase 20 anos depois de escrito, acontece sua publicação”.1

Em seu mais recente livro, Poemas da recordação e outros movimentos (2008), aparecem os motivos da diáspora negra, da autoria feminina e da construção da identidade negra como temas recorrentes. Em seu exercício de expressão, o lirismo dos poemas de Evaristo trabalha explicitamente no sentido de instaurar uma retórica da resistência, dando especial atenção ao desmantelamento dos estereótipos em torno do negro e da mulher (e mais especificamente, da mulher negra) no imaginário brasileiro. Tal como já afirmou Eduardo de Assis Duarte, as constantes temáticas da obra de Conceição Evaristo a inserem em um continuum de autores afrodescendentes, para os quais as questões étnico-raciais não são apenas um aspecto da realidade brasileira a ser incorporado em sua escrita, mas uma experiência constitutiva de suas subjetividades, signo indelével da diferença corporificado por tais autores: Leia Mais

Le gouvernement de soi et des outres | Michel Foucault

A presente resenha, prestando uma homenagem ao lançamento do curso Le Gouvernement de Soi e des Autres, de Michel Foucault, na França, em 2008 (ainda sem tradução para o português), busca, inicialmente, localizar o problema da relação entre a verdade, o governo e a constituição do sujeito nos estudos de Michel Foucault, a partir das noções básicas de arqueologia e de genealogia. Busca também acompanhar brevemente a evolução do interesse de Foucault pelo tema do sujeito e das práticas de si, sempre referidas à noção de governo e de verdade. Busca também verificar as razões, no desenrolar da obra de Foucault, e em sua relação com a filosofia crítica de Kant para, assim, justificar a escolha de Foucault pela análise de um texto de Kant na primeira e na segunda hora de aula do Le Gouvernement de Soi e des Autres, fazendo ainda uma breve exposição dos demais assuntos tratados neste curso. Leia Mais

A história de Pierina: subjetividade, crime e loucura – WADI (RHR)

WADI, Yonissa Marmitt. A história de Pierina: subjetividade, crime e loucura. Uberlândia: EDUFU, 2009. 464 p. Resenha de: CONEGLIAN, Lucimar. Revista de História Regional v.15, n. 2, p.283-287, Inverno, 2010.

A História de Pierina: subjetividade, crime e loucura é resultado do trabalho de doutorado de Yonissa Marmitt Wadi, professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. A autora tem como temáticas de pesquisa: história da loucura e da psiquiatria; cultura, gênero e memória; sociedade e desenvolvimento regional; e práticas culturais e identidades.

Pierina Cechini – a protagonista do livro – nasceu no ano de 1880, foi a sexta fi lha de Antonio e Maria, italianos imigrantes. Na manhã da segunda feira, dia 26 de abril de 1909, no dia da missa de sétimo dia da morte de seu pai, ela cumpriu a promessa que vinha fazendo há alguns meses: matou sua fi lha de dezessete meses de idade através do afogamento em uma tina de lavar roupa. Esse ato desencadeou no indiciamento de Pierina e posteriormente sua internação no Hospício de São Pedro, de Porto Alegre.

Mas o que traz de relevante Pierina para que, quase um século depois de sua existência, estimular uma pesquisadora a produzir uma tese de doutorado sobre sua história? Nas palavras de Wadi, o resgate da história de “uma mulher singular” mostra “quão amplas e diversas, confl itantes, tensas e controversas podem ser as dimensões e possibilidades de uma vida” e contribui “na tarefa de desvelar como é múltiplo o social e quanto podem ser enganosas as impressões sobre a ‘importância’ de certos sujeitos sociais” (p. 25). Pelo olhar de Wadi, Pierina oportuniza a descrição da vida quotidiana de uma mulher pobre, fi lha de imigrantes italianos, que viveu nos primeiros anos do século XX, no município de Garibaldi, no Estado do Rio Grande do Sul.

Fato interessante a destacar é que, ainda que o livro tenha rendido 464 páginas, as fontes diretamente ligadas à biografada foram poucas: o registro policial de um crime e algumas cartas escritas por Pierina quando interna em um hospital psiquiátrico. Com essas parcas fontes, associada a uma farta pesquisa histórica sobre a dimensão de gênero e de loucura naquele período, a autora desvela com maestria a condição do feminino das imigrantes. A pesquisa contribui com informações sobre diferentes aspectos do viver dos imigrantes no início do século XX: a forma de organização da família; as condições econômicas; as questões de distribuição das terras; o acesso aos serviços de saúde; a prática da medicina convivendo com as práticas e crendices populares; o tratamento mental nos hospícios da época.

O livro está dividido em três capítulos. No primeiro, intitulado Caminhos, a autora se aplica na explicação de como era o quotidiano de trabalho dos imigrantes italianos, especialmente das mulheres. Contempla como se dava a relação das famílias com a terra e as distribuições dos lotes feitas pelo governo do Rio Grande. Ainda, nele é apresentada a história pessoal da protagonista – a escolha do noivo, o casamento e as relações com o marido, o nascimento da fi lha.

Wadi contextualiza muito bem aspectos do viver quotidiano da biografada e muito do que está contido nesse capítulo refere-se às possibilidades de existência naquele período histórico. Seguindo Ginzburg (1989), a autora reconstitui a biografi a de Pierina a partir da história de outros “homens e mulheres do mesmo tempo e lugar” (p. 48).

Como a história de tantas outras mulheres suas contemporâneas, Pierina trabalhava nas lidas domésticas e em serviços ligados a terra, cumprindo o papel cultural dado à mulher naquele período histórico. Cabia às mulheres fazer as tarefas domésticas acrescidas de algumas das tarefas na lavoura: o preparo, o plantio e o cuidado das plantações. As tarefas domésticas incluíam não apenas a arrumação da casa e o preparo dos alimentos, mas também a confecção das roupas, do sabão, do artesanato, entre outros, contribuindo, sobremaneira, com a economia doméstica. Sobre esse período de sua vida, Pierina registra, nas suas cartas, o desconforto e o desencanto de viver a vida de uma mulher pobre no início do século XX.

No Capítulo 2, Loucuras…, a autora problematiza aspectos sobre a ‘perturbação e sofrimento’ de Pierina. Existia difi culdade de compreensão, por parte dos familiares e da comunidade de entorno, no entendimento de suas queixas relacionadas ao desgosto e tristeza que sentia. Wadi aponta “que ela queria morrer e que achava que todos da família também deveriam, pois eram muito pobres” (p. 184), sentimento esse que Pierina registrou em seus escritos através da “hideia de querer morer de fome” (p. 198).

Ainda neste capítulo, são retratadas as difi culdades dos imigrantes pobres em relação aos tratamentos médicos, e as relações que interconectavam a medicina, o uso de plantas medicinais e as crendices populares ligadas ao curandeirismo.

No caso de Pierina existiu indícios de a família ter recorrido a várias práticas usuais na época: chamaram o médico que “parece não ter encontrado doença em Pierina” (p. 185), mas, mesmo assim, receitou-lhe remédios. Recorreram ao saber popular manifestado pela atitude de afastar a fi lha da mãe com o intuito de interromper a amamentação, vista como causa do enfraquecimento de Pierina. Foi ainda ministrada a técnica da sangria, “baseando-se na acepção de que o alívio das tensões, provocado pela saída do sangue, poderia restabelecer o equilíbrio de um corpo desequilibrado, portanto doente” (p. 241). Ocorreu também a tutela de cuidados efetivada pelas freiras do convento local, numa mistura de práticas higienista com religiosidade na busca da cura.

Cada uma dessas intervenções pretensamente terapêuticas são discutidas por Wadi em profundidade, resultando esse capítulo em importante fonte de pesquisa histórica nessa temática. O terceiro e último capítulo, descreve a trajetória da protagonista a partir do assassinato de sua fi lha, Elvira Maria. Este capítulo demonstra como as questões de gênero estão imbricadas no inquérito policial, que chamou para testemunhar apenas fi guras masculinas. Isso também direcionou o destino de Pierina, uma vez que Wadi sugere que a lógica masculina à época desconsiderou as queixas de infelicidade que ela há meses manifestava para sua família e conhecidos. Apesar de Pierina ser incansável em sua tentativa de não ser vista como louca – “eu não so loca, eu so criminosa” (p.327) -, fato repetido em suas cartas, na data de 05 de julho de 1909 ela foi internada no Hospício São Pedro.

“A mística de um amor materno inato à natureza feminina surgiu, invocada pelos peritos, para comprovar o caráter distorcido de Pierina” (p. 370). Crime ou ato de loucura? Considerar a ação de Pierina como crime implicaria em qualifi car as razões apresentadas por ela para explicar o ato cometido.

Considero este capítulo especialmente interessante no que diz respeito à descrição da lógica presente naquele tempo histórico sobre a loucura. O quotidiano de tratamento no Hospício São Pedro, com sua ‘terapêutica moral’; as manifestações de insatisfação dos médicos diretores e tentativas de melhoria dos serviços; a laborterapia, geralmente atrelada às questões de gênero, reforçando a normatização dos papéis atribuídos aos homens e às mulheres; estas são questões importantes na compreensão da história da psiquiatria no país.

Pierina queria ser ouvida e, para isso, escreveu. Porém, as cartas de Pierina foram interpretadas como sintomas de doença, frustrando seu intuito de comunicar-se e expor as razões de seu crime. Seu “projeto de comunicação foi totalmente ingênuo, como o de todo escrevente que acredita ser a explicação contida em seus escritos, irreversível ou incontestável” (p. 37). Seu discurso e suas ações foram classificados, como está registrado no Prontuário do Hospício São Pedro como “depressão melancólica com idéias delirantes místicas associadas à perversão dos sentimentos afetivos – psicopatia constitucional” (p. 351). Com o diagnóstico posto, a fala de Pierina ficou desqualificada e silenciada. As razões de a pena ter sido cumprida no hospício e não na cadeia envolve uma série de análises vinculadas às questões de gênero, já que a história das mulheres e a experiência social da loucura, são “espaços onde se cruzam, misturam e confundem-se as relações de gênero, as relações sociais e as relações de poder” (p. 44).

A história de Pierina: subjetividade, crime e loucura é um trabalho exemplar no que diz respeito à conjugação de “sinais, vestígios e pistas tênues deixados pela escritura de Pierina” (p. 25). Wadi, ao retirar Pierina da invisibilidade histórica, qualifica-a como sujeito social importante na compreensão das relações sociais, de gênero e de loucura nos anos iniciais do século XX.

Lucimar Coneglian – Mestranda em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – PR. Psicóloga do Centro de Atenção Psicossocial de Castro. E-mail: luconeglian@ uol.com.br.

Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo – ROLNIK (HU)

ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. [São Paulo: Estação Liberdade], 2007. Resenha de: ATHAYDE, Maria Cristina de O. O cartógrafo e as noivinhas. História Unisinos 13(3):314-317, Setembro/Dezembro 2009.

Suely Rolnik, em seu livro Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo, contempla-nos, nesse ensaio, com uma inusitada viagem pelo mundo da psicanálise e da subjetividade. O que poderia parecer, em um primeiro instante, uma mistura um tanto quanto difícil de ser assimilada por leitores(as) desavisados(as), é uma deliciosa aventura que nos leva a acompanhar a trajetória de um cartógrafo, um alter ego da autora? A autora é psicanalista, crítica de arte e de cultura e curadora. É professora titular da PUC-SP, onde coordena o Núcleo de Estudos da Subjetividade, no Pós-Graduação de Psicologia Clínica. Seu principal campo de pesquisa são as políticas de subjetivação na atualidade, tratadas de uma perspectiva transdisciplinar.

Seu trabalho privilegiou, desde os anos 1990, a arte contemporânea em sua interface com a política e a clínica. Com o advento dos estudos culturais, ou melhor, da História Cultural, temas como os abordados pela autora, uma psicanalista, passaram a ser antropofagicamente devorados e, posteriormente, assimilados e inseridos na escrita de historiadores e pesquisadores das ciências humanas em geral. Um lugar de destaque para esses estudos sobre a subjetividade deve ser reservado para Michel Foucault e suas pesquisas sobre a constituição do sujeito.

A subjetividade é um tema abordado não somente pelas diversas psicologias, mas também por outras disciplinas como a filosofia. Foucault (1985), que tinha formação em ambas as disciplinas, mostrou-nos como os sujeitos são constituídos. Scott (1995), uma das teóricas do gênero, afirma que as mulheres e os homens se constituem e se constroem na relação.

E Simone de Beauvoir (1967, p. 9) apregoava que “não se nasce mulher: Então, como Suely Rolnik nos mostra a mudança na política de subjetivação? Utilizando-se de vocábulos e conceitos reservados a um círculo restrito de leitores(as), a autora nos conduz a uma viagem cartográfica em companhia das noivinhas. Estas são vinte e quatro figurastipo que funcionam como personagens conceituais na resistência à sociedade disciplinar própria do capitalismo industrial.

A autora, ao servir-se de uma linguagem cinematográfica e do olhar subjetivo de uma câmera explícita, na parte inicial do livro, realiza o caminho que o cartógrafo percorrerá para mapear as trajetórias das noivinhas e os três movimentos do desejo. Com esta leitura, conhecemos o corpo vibrátil que nos permite apreender a alteridade em sua condição de campo de forças vivas que nos afetam, as quais se fazem presentes em nosso corpo, sob a forma de sensações.

O cartógrafo de Rolnik (2007) acompanha as possíveis trajetórias da nossa noivinha que vivia em um regime fordista e disciplinar, em seu ápice nos anos de 1950. São apresentadas algumas cenas, takes que acompanham o encontro da noivinha com o seu homem. A autora, utilizando-se de uma nomenclatura criativa, nomeia as figuras-tipo como, por exemplo, a “aspirante-a-noivinha” que se transforma em “aspirante-a-noivinha-que-vinga”; enquanto isso, dando uma olhadinha numa outra tela, vemos uma outra “aspirante-a-noivinha” que se transforma em “aspirante-anoivinha- que-gora”. Esta pode ter dois destinos: “noivinhaque- gora-e-gruda” ou “noivinha-que-gora-e-descola”.

As personagens apresentadas são a chave explicativa das cenas seguintes, pois se apresentam por intermédio do olhar vibrátil do cartógrafo que as acompanha na sua expedição até os anos de 1980. Mas, de fato, o que Suely Rolnik e o cartógrafo desejam mostrar, ao nos conduzirem em uma expedição em companhia das novinhas? A resposta talvez resida na identificação da procura do desejo, pensado como um processo de produção de universos psicossociais. Esta resposta também é a chave para entender como se dá o processo de produção de novos modos de subjetividade que foram afetados sobremaneira pela emergência do neoliberalismo.

Na explicitação necessária do método de abordagem da autora e da sua antropofagia, percebemos que a autora se utilizou de diversas fontes, ao compor seu corpus documental. Mesclando letras de músicas, trechos de filmes e obras de vários autores, a autora criou um estilo próprio de referenciar essas fontes. A referência é apenas parcial, como a própria autora explicita na introdução.

Frequentemente, não é à presença do próprio estrangeiro [autor] que o leitor terá acesso, mas à sua presença já metabolizada. Isso se percebe pelas citações, nem sempre literais, muitas vezes consubstanciadas numa evocação de ideias alheias que sofreram transformações, ao se incorporarem à elaboração e ao estilo desse texto cartográfico.

Essa presença pode ser reconhecida, visualmente, pela utilização do recurso do itálico na sua escrita. A presença metabolizada constitui seu método antropofágico, mediante o qual a autora, como os modernistas de 1922, devora os estrangeiros e, depois de devidamente assimilados, utiliza-os em seus escritos e demais manifestações artísticas. Há uma declarada admiração a Oswald de Andrade e ao Movimento Antropofágico, ambos referenciados no livro, como revela o trecho a seguir.

É que a antropofagia em si mesma é apenas uma forma de subjetivação, em tudo distinta da política identitária. Ela se caracteriza pela ausência de identificação absoluta e estável com qualquer repertório, a abertura para incorporar novos universos, a liberdade da hibridação, a fl exibilidade de experimentação e de improvisação para criar novos territórios e suas respectivas cartografias (Rolnik, 2007, p. 19).

Por exemplo, ao falar de desejo, Rolnik (2007) utiliza-se dos escritos de Deleuze e Guattari, que, por sua vez, já haviam deglutido, ou melhor, tinham se referenciado nos estudos de Spinoza. Outro conceito fundamental para a compreensão do texto de Rolnik (2007, p. 11) é o da micropolítica. Questões que envolvem os processos de subjetivação em sua relação com o político, o social e o cultural, por meio dos quais se configuram os contornos da realidade em seu movimento contínuo de criação coletiva integram esse conceito.

Além das noivinhas, como figuras centrais do livro, temos a temática do desejo e os modos de produção de subjetividade. O desejo, abordado ao longo de toda a trama, assim como as noivinhas e a subjetividade, é apresentado pela autora e desenhado em três movimentos, delineados no encontro entre a noivinha e o seu pretendente. Como diz Rolnik (2007, p. 31):

O 1.º movimento do desejo: no encontro, os corpos, em seu poder de afetar e serem afetados, se atraem ou se repelem. Dos movimentos de atração e repulsa geramse efeitos: os corpos são tomados por uma mistura de afetos. Eróticos, sentimentais, estéticos, perceptivos, cognitivos… E seu corpo vibrátil vai mais longe: tais intensidades, no próprio movimento em que surgem, já traçam um segundo movimento do desejo, tão imperceptível quanto o primeiro. Ficam ensaiando, mesmo que desajeitadamente jeitos e trejeitos, gestos, expressões de rosto, palavras… É que, você sabe, intensidades buscam formar máscaras para se apresentarem, torna-se”. se “simularem”; sua exteriorização depende de elas tomarem corpo em matérias de expressão. Afetos só ganham espessura de real quando se efetuam.

O terceiro movimento do desejo é o processo de simulação que se põe a funcionar, assim como se fazem os movimentos de territorialização e desterritorialização. Essas ações correspondem, respectivamente, ao nascimento de mundos e aos mundos que se acabam.

O cartógrafo de Rolnik (2007) nos leva para uma viagem histórica e geográfica que mapeia cartografias nas quais as noivinhas se territorializam como raízes ou rizomas, mas poucas se aventuram numa viagem que as desterritorializem. A autora, contudo, afirma que a máscara que a figura feminina veste tem o seu deadline, ainda mais nos tempos que correm, quando a vida dos territórios e de suas respectivas máscaras anda cada vez mais curta. As máscaras ou os artifícios são consequências do segundo movimento do desejo e, por conseguinte, de todo o movimento do desejo.

A autora tipifica, perfeitamente, em seu texto, todo o movimento de transformações que aconteceram com as figuras femininas, ou, simplesmente, com as mulheres a partir da segunda década do século 20.

Além de ser um livro escrito por uma psicanalista que se propunha a testemunhar a tortuosa luta pela criação de outra política de produção de subjetividade e de cultura e sua consolidação nos final dos anos de 1970 e constituir um balanço inicial dos anos de 1960 e 1970, focaliza o início dos anos de 1980. Desse modo, faz uma imersão na memória das sensações vividas naquele período e não das representações estabelecidas no imaginário da época, que ainda hoje perdura.

Podemos pensar este livro como altamente ligado ao feminismo e ao estudo das relações de gênero. Explico: a autora aborda muitas questões que são trabalhadas e estudadas por feministas ou pesquisadores das relações de gênero.

Na primeira parte do texto, podemos fazer ilações com os escritos de Betty Friedan e os dilemas enfrentados por várias mulheres das décadas de 1950 e 1960, que não tinham outra opção que não fosse o casamento. De igual maneira, é possível estabelecermos, como a autora fala, uma “empresa doméstico-matrimonial” (Rolnik, 2007), retratada mais detalhadamente na parte dois do livro. O cartógrafo, por meio de seu olhar criterioso, percebe a mulher se ocupando do espaço doméstico e gastando seu tempo entre compras, cuidados com o corpo e com o bem-estar do marido e dos filhos; enfim, a “noivinha-que-vinga” gerenciando uma pequena empresa do lar. Enquanto isso, o marido lida com as ações da bolsa e tudo o mais que se liga ao mundo dos negócios. É o retrato daquela antiga divisão: espaço privado versus espaço público. Às mulheres, estavam reservadas a esfera do lar e as tarefas a ele pertinentes; aos homens, o espaço público, com todas as suas sutilezas, as negociações e o poder.

Na segunda parte do livro, Rolnik (2007) nos mostra como essas noivinhas vivenciaram as transformações que ocorreram na parte ocidental do globo terrestre. A autora nos relata que, nesse processo de desterritorialização da subjetividade, as mulheres foram as mais atingidas.

Tal processo foi acentuado pela instalação da mídia, pela informatização do planeta e pela entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho e na vida pública, portanto. A autora aponta que as mulheres desconheciam essa condição de trabalhadoras fora de casa, embora alguns estudos apontem que, em várias épocas, exerciam trabalho fora de seu domicílio, confirmando que esta não é uma condição da modernidade. Podemos destacar os estudos de Catherine Hall (1991) e de Michelle Perrot (1998).

Acompanhando, no texto de Rolnick (2007), o cartógrafo em sua viagem linear pela nossa história contemporânea, chegamos à era da mídia e dos “anos dourados”. Segui-lo-emos na sua expedição, presencianado os destinos das três noivinhas: “a-que-vingava”, a “quegorava- e-grudava” e a “que-gorava-e-descolava”. Elas se transmutam em militantes, feministas, hippies, liberadas e alternativas dentre outras. A formação dessas novas subjetividades é interessante de ser apreendida nas figuras das feministas, das militantes e das liberadas.

O desejo, em psicanálise, é sentido e pensado como falta: somos o sujeito da falta. Estamos sempre em busca de algo que nos complete, remetendo a uma sensação de que um dia fomos seres completos. Assim, Rolnik (2007) trabalha com a noção de carência. Na primeira parte do livro, as noivinhas buscam essa completude em um casamento, quiçá, em um homem que possa suprir todas as suas carências e expectativas. É um formar de subjetividade que orbita em torno dessa relação com o outro, ou seja, uma mulher dos anos de 1950, que almeja realizar o sonho de ser dona de casa, uma noivinha que gira em torno da figura masculina, de onde extrai sua dignidade e toda sua possibilidade de estruturar-se psíquica e socialmente.

Enquanto isso, na segunda parte do livro, dentre todas as formas possíveis de produção de subjetividade abordadas pela autora, podemos pensar no modo como a militante forja a sua nova subjetividade. A autora aponta que essa subjetividade, nas militantes, é formada por dois mitos: o da identidade cultural nacional-popular e o da revolução.

A temática da subjetividade foi abordada por Foucault (1984) em algumas de suas obras como em sua História da Sexualidade. Em O uso dos prazeres, o autor nos mostra como se dá o processo de subjetivação do indivíduo grego. Foucault (1984), utilizando-se do método genealógico, realiza um trabalho histórico da formação durante a Antiguidade, de uma hermenêutica de si, de como o ser humano se reconheceu como homem do desejo. Por meio de quais jogos de verdade o homem se percebe como o objeto e “através dos quais o ser se constitui historicamente como experiência, isto é, como podendo e devendo ser pensado?” (Foucault, 1984, p. 12).

Não podemos esquecer que as técnicas do cuidado de si diziam respeito ao homem grego que viveu entre os séculos V e IV a.C. Este homem deveria ser um homem livre e, por conseguinte, um cidadão grego. Foucault relata como o cuidar de si se tornou uma moral sexual, diferentemente do que se estabeleceu nos primeiros séculos nas quais o cuidado de si implicava em uma nova experiência de si.

Diversamente de Foucault (1984), que, em seus estudos, utilizava um aporte referendado em material empírico, Rolnik (2007) nos apresenta, em seu ensaio, o resultado de sua tese de doutoramento. Este é mais um suporte para os estudos dos modos de produção de subjetividade do que um livro que seja escrito com base em uma pesquisa empírica. Por exemplo, os trechos de música e ou de filmes citados servem como suporte para uma análise teórica que coadunam com aquilo que a autora quer retratar.

Retomamos o questionamento inicial quanto à possibilidade de o cartógrafo ser um alterego da autora, entendendo alterego como uma expressão da personalidade do próprio autor de forma geralmente não declarada. A resposta evoca a experiência da autora como exilada que morou em Paris por dez anos. Como ela mesma salienta, este livro é o seu primeiro trabalho após a escrita de Micropolítica: cartografias do desejo, com Felix Guattari (Guattari e Rolnik, 1986). De alguma forma, e bem presente, além, é claro, em vista do fato de ter escrito o livro, podemos entrever Suely em suas noivinhas.

Referências

BEAUVOIR, S. 1967. O segundo sexo: a experiência vivida. Rio de Janeiro, Difusão Europeia do Livro, 499 p.

FOUCAULT, M. 1984. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro, Graal, 232 p.

FOUCAULT, M. 1985. História da sexualidade 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro, Graal, p. 246 p.

GUATTARI, F.; ROLNIK, S. 1986. Micropolítica: cartografias do desejo.

Petrópolis, Vozes, 327 p.

HALL, C. 1991. Sweet Home. In: M. PERROT (org.), História da vida privada: da revolução francesa à primeira guerra mundial. São Paulo, Companhia das Letras, vol. 4, p. 53-87.

PERROT, M. 1998. Mulheres Públicas. São Paulo, Fundação Editora UNESP, 159 p.

SCOTT, J. 1995. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, 20:71-99.

Maria Cristina de O. Athayde – Mestranda do Programa de Pós- Graduação em História da UFSC. Participante do Laboratório de Estudos de Gênero e História (LEGH/ UFSC). E-mail: [email protected].