Mashinamu na Uhuru: conexões entre a produção de arte makonde e a história política de Moçambique (1950-1974) | Lia Laranjeira

Nos últimos anos (ou mesmo décadas), diversos são os historiadores, artistas, cientistas sociais e juristas que vêm interrogando os limites de uma história oficial centrada unicamente na atuação da Frente de Libertação Moçambicana e no consequente acesso ao poder político e econômico de que, aparentemente, desfrutam os que comungam desta narrativa.655 Na literatura, nomes como João Paulo Borges Coelho e Ungulani Ba Ka Khosa (mas não só), ao incluírem em suas obras personagens e acontecimentos reais e fictícios, fontes históricas diversas e memórias de gente comum, tanto rediscutem a história oficial quanto oferecem um novo caminho interpretativo sobre a vasta experiência histórica moçambicana. Em Memórias Silenciadas (Khosa, 2013), por exemplo, o personagem Antônio resume o poder estabelecido no pós-independência a “um grande campo de tênis privado onde os pequenos donos se limitam a estender a rede a seu bel prazer em locais que acham seus, por direito adquirido nas matas de libertação. Um direito circunscrito à pequena elite” (Khosa, 2013, p. 101).

Na cena musical, destaca-se a atuação de figuras como o rapper Mano Azagaia, cuja canção As mentiras da verdade tece provocações acerca do passado recente ao entoar “Que a revolução não foi feita só com canções e vivas; Houve traição, tortura e versões escondidas”.656 Além desses, filmes como Virgem Margarida (2012), de Licínio Azevedo, rememoram uma das feridas mal cicatrizadas do pós-independência moçambicano: os campos de reeducação. No campo jurídico, não se pode esquecer da atuação do constitucionalista franco-moçambicano Gilles Gistac, assassinado em 2015 após indicar que não haveria impedimentos constitucionais para a governança nas províncias de forma autônoma ao governo central, conforme reivindicara o partido Renamo.

Deste modo – e em meio a todo o simbolismo que o povo makonde representou (e representa) no processo de construção da jovem nação – a obra Mashinamu na Uhuru: conexões entre a produção de arte makonde e a história política de Moçambique (1950-1974) diversifica o modo de se olhar para a guerra de libertação, enfocando a produção artística do povo citado. O livro é fruto da tese de doutorado de Lia Laranjeira, apresentada em 2016 ao Programa de Pós-Graduação em História Social da USP sob orientação da professora Cristina Wissenbach. Um dos principais elementos que chama atenção na obra é certamente a variedade metodológica empregada na pesquisa. O texto se alterna entre fontes historiográficas, realização de entrevistas e descrição etnográfica de locais como o ateliê de Reinata Sadimba, onde a autora vivenciou a produção de esculturas, e o Bairro Militar, que abriga uma grande comunidade makonde de ex-combatentes da luta de libertação na cidade de Maputo. Entre as muitas fontes históricas consultadas, nos deparamos com a literatura de viajantes estrangeiros que passaram pelo território makonde em Moçambique e no então Tanganyika; documentos da administração colonial da então cidade de Porto Amélia; correspondências trocadas entre museus portugueses e coloniais; relatórios de colaboradores do regime colonial; e documentos produzidos para ou pela Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE) e pela Frente de Libertação de Moçambique, apenas para citar alguns exemplos. Além das fontes escritas, parte relevante da pesquisa são as entrevistas realizadas pela autora entre 2013 e 2014 com os chamados guerrilheiros escultores, a exemplo de Matias Ntundo e Geraldo Pitamwiu, no planalto de Mueda, na cidade de Pemba (província de Cabo Delgado) e na cidade de Maputo. Somam-se a estas as entrevistas realizadas com ex-prisioneiros políticos do regime colonial (como Augusto Chilave) e ex-integrantes de associações no Tanganyika (como Simoni Nchucha e demais artistas).

Para tratar da arte em contexto colonial, no primeiro capítulo a autora percorre minuciosamente a produção científica colonial em torno de coleções de objetos etnográficos expostas tanto em instituições metropolitanas, como o Museu da Sociedade de Geografia de Lisboa, quanto em espaços criados nas colônias, a exemplo do Museu Regional Comandante Ferreira de Almeida (Museu de Nampula), espaço fundado em 1956 e onde a chamada arte makonde teve um importante destaque. Analisando catálogos artísticos, documentos como o Boletim do Museu de Nampula e textos de variados intelectuais ligados à administração colonial, a autora indica como a arte makonde – tida como símbolo de “pureza cultural” e fruto de uma “imaginação espiritual” – foi utilizada como propaganda colonial. Exemplar, nesse sentido, foi a exposição “Vida e Arte do Povo Maconde” dirigida pelo antropólogo Jorge Dias, montada a partir da Missão dos Estudos das Minorias Étnicas e que acabou por constituir a principal seção do Museu de Etnologia do Ultramar (atual Museu Nacional de Etnologia), fundado em 1965.

Contudo, em vez de centrar a ação histórica na mão dos colonizadores portugueses, a autora pontua que o mercado de arte makonde voltado para museus, galerias e coleções particulares, estabelecido já no início do século XX, incentivou a produção de peças e possibilitou estratégias de resistência de milhares de makonde que se deslocaram ao Tanganyika em busca de melhores condições de vida, tema aprofundado no segundo capítulo. Neste caso, e promovendo um importante contraponto entre o discurso colonial encontrado nos relatórios confidenciais escritos por Jorge Dias e os depoimentos de artistas makonde, a autora problematiza as motivações que resultaram no deslocamento makonde ao Tanganyika – local onde a arte makonde era mais valorizada devido à atuação de um mercado voltado para turistas e colecionadores – e identifica a atuação de comerciantes de arte como Mohamed Peera. Segundo Laranjeira, tal mercado teria incentivado o aprendizado da prática e a invenção de novos estilos de escultura, como o shetane (figuras mais arredondadas e menos naturalistas) criado pelo artista Samaki Likonkoa e o estilo dimongo, rebatizado como ujamaa (com figuras humanas talhadas em um mesmo tronco e ligadas entre si, representando uma família em uma aldeia, símbolo do socialismo de Julius Nyerere) criado por Yakobo Sangwani. Portanto, o avanço do mercado consumidor de arte makonde no Tanganyika teria, segundo a autora, propiciado certa autonomia artística dos escultores (daí a categorização de arte moderna) em relação aos objetos de cultos cristãos produzidos no âmbito das missões religiosas, classificados como arte tradicional. Contudo, não escapa à autora a crítica de tais categorias, pois, ainda que fossem catalogadas como “arte moderna”, a autoria individual das esculturas eram (e ainda são) comumente substituídas por entidades coletivas que raramente fogem de uma leitura exótica.

No terceiro capítulo, a autora centra-se no simbólico Massacre de Mueda e nas muitas narrativas que o cercam, incluindo as implicações dentro e fora de Moçambique. Para dar conta da multiplicidade de vozes sobre o massacre, Laranjeira analisa duas representações artísticas sobre episódio: o filme Mueda, Memória e Massacre (1979) de Ruy Guerra e as xilogravuras produzidas por seu interlocutor Matias Ntundo. Além destes, destacam-se os dados levantados a partir da entrevista com Simoni Nchucha, personagem pouco mencionado em relação aos já conhecidos Faustino Vanomba e Kibiriti Divane e que indica a existência de outras possibilidades para se analisar o contexto colonial em Mueda, incluindo a atuação das associações de ajuda mútua, como a Makonde African Association de Dar es Salaam, Zanzibar e Mombaça, que reuniam trabalhadores das plantações de sisal e cacau, atestando a importância dos makonde estabelecidos ao norte do Rovuma.

Sustentando um equilíbrio narrativo entre o discurso colonial, o discurso da Frelimo e de seus divergentes, o capítulo final apresenta os embates no seio da Frente e destaca a importância da arte makonde desde a guerra de libertação até a patrimonialização no pós-independência. Sobre a arte na guerra, análise que torna o livro um contributo original para os estudos africanos no Brasil, a autora destaca a atuação dos guerrilheiros-escultores que viveram na base militar de Malapende, criada pela Frelimo sob orientação de Lázaro Nkavandame. A vida entre as ferramentas para esculpir e as armas para se defender dos possíveis ataques portugueses é descrita pela autora a partir dos depoimentos dos artistas Matias Ntundo e Geraldo Pitamwiu que para lá se deslocaram, ainda muito jovens, após passarem por treino militar na base de Nachingwea. As peças produzidas coletivamente na base eram vendidas na Tanzânia para custear a própria guerra de libertação e serviam como propaganda anti-colonial, a exemplo da exposição Makonde Art Show, realizada em 1969. Além de trabalhar com os guerrilheiros escultores, a autora aborda as possibilidades de se pensar a produção artística através da experiência de Augusto Chilave, um dos 102 moçambicanos que foram presos em Cabo Delgado no ano de 1963 e transferidos para a cadeia da Machava, na capital Lourenço Marques. Em depoimento emocionante, cujos trechos são transcritos no livro, Augusto Chilave rememora a sociabilidade criada entre ele e seus companheiros de prisão, como no caso de Germano Shiva, que lhe ensinou a talhar na madeira e no marfim enquanto Chilave retribuía o ensinando a ler e a escrever. Um dado interessante da experiência narrada por Chilave consiste no fato de que as peças produzidas na prisão eram comercializadas por agentes da PIDE que, por sua vez, repassava parte do lucro aos detentos possibilitando a aquisição de livros e de açúcar para adoçar o mingau dado como refeição.

Por fim, percorrendo os caminhos da arte ao longo do tempo, Laranjeira analisa os documentos produzidos pelo Departamento de Patrimônio Cultural do Ministério da Cultura durante a década de 1980 e identifica a aspiração da Frelimo em transformar certas práticas culturais “tradicionais” makonde, a exemplo do mapiko. Neste quesito a autora destaca a contradição existente nas atitudes do governo pós-independência que, por um lado, se esforçava para não ressaltar as características “étnicas” dos muitos povos moçambicanos e, por outro, utilizava a categoria “arte makonde” como construção simbólica da resistência colonial em torno deste grupo específico. Refletindo sobre tal categoria, a autora aponta que ela acaba por invisibilizar artistas makonde com estilos mais autorais, como Agostinho Ndalinga e Reinata Sadimba.

Em suma, Lia Laranjeira oferece ao leitor uma ampliação da narrativa histórica moçambicana, especialmente no que concerne à guerra de libertação, ainda dominada por um discurso oficial que, ao optar pelo enaltecimento de grandes heróis, acaba ofuscando a participação de gente comum, como os interlocutores da autora. Os muitos vestígios coletados e analisados solidamente na obra atestam que inúmeros são os caminhos e múltiplas as possibilidades para se falar do passado recente, cuja memória permanece em constante disputa (Borges Coelho, 2015). A autora também menciona que diversos personagens cujas experiências foram abordadas no livro continuam atuantes em suas práticas escultóricas, a exemplo Matias Ntundo, que anseia pela construção de uma escola de arte makonde na sua aldeia Nandimba onde possa repassar seus conhecimentos. Se a arte de fazer esculturas, o Mashinamu, no planalto de Mueda, ajudou no Uhuru, na liberdade contra a dominação colonial, hoje a prática no planalto carece de incentivos para continuar perpetuando beleza e história, como demonstram as máscaras mapiko feitas por Ntundo e que ilustram a capa deste potente livro.

Notas

655 Lembrando que, já em 1986, Aquino de Bragança e Jacques Delpechien chamaram atenção para o teor contraproducente de uma narrativa única no artigo “Da idealização da FRELIMO à compreensão da História de Moçambique”, publicado na revista Estudos Moçambicanos.

656 Sobre o debate acerca das letras de Azagaia, ver: RANTALA, Janne. Rapper Azagaia e seus críticos. Debate sobre Moçambique. Matola: Instituto Superior de Artes e Cultura, 2015, p. 127–140. Disponível em:https://www.academia.edu/10180061/Rapper_Azagaia_e_Seus_Cr%C3%ADticos_O_Debate_sobre_Mo %C3%A7ambique._Kulimar_4_2015._Matola_Instituto_Superior_de_Artes_e_Cultura. Último acesso em: 21/02/2017.

Referências

BA KA KHOSA, Ungulani. Memórias Silenciadas. Maputo: Editora Alcance, 2013.

BRAGANÇA, Aquino de; DELPECHIEN, Jacques. Da idealização da FRELIMO à compreensão da história de Moçambique. Estudos Moçambicanos, Maputo, nº 5, 1986.

BORGES COELHO, João Paulo. Abrir a fábula: Questões da política do passado em Moçambique. Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 106, 2015.

MUEDA, Memória e Massacre. Direção de Ruy Guerra. Moçambique: INC, 1979/1980 (80 min.). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=m3BmEooqgMU . Último acesso: 21/02/2018

RANTALA, Janne. Rapper Azagaia e seus críticos. Debate sobre Moçambique. Matola: Instituto Superior de Artes e Cultura, 2015 pp. 127–140. Disponível em: https://www.academia.edu/10180061/Rapper_Azagaia_e_Seus_Cr %C3%ADticos_O_Debate_sobre_Mo %C3%A7ambique._Kulimar_4_2015._Matola_Instituto_Superior_de_Artes_e_Cultura. Último acesso em 21/02/2017.


Resenhista

Fernanda Bianca Gonçalves Gallo – Pós-Doutoranda em Teoria e História Literária, bolsista FAPESP (processo n° 2018/04573-9) com projeto intitulado “João Paulo Borges Coelho e Ungulani Ba Ka Khosa: diálogos entre literatura e narrativa histórica em Moçambique”. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

LARANJEIRA, Lia. Mashinamu na Uhuru: conexões entre a produção de arte makonde e a história política de Moçambique (1950-1974). São Paulo: Intermeios, 2018. Resenha de: GALLO, Fernanda Bianca Gonçalves. “Arte Makonde” como narrativa histórica. AbeÁfrica: revista da associação brasileira de estudos africanos, v.03, n.03, p. 297-301, out. 2019. Acessar publicação original [DR]

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