Um oceano, dois mares, três continentes | Wilfried N’Sondé

Sem fôlego! É assim que ficamos quando lemos, analisamos e refletimos sobre uma obra tão intensa e cativante como Um oceano, dois mares, três continentes, um romance histórico que nos transporta numa viagem ao século XVII, para o epicentro da maior catástrofe da humanidade: o comércio transatlântico. Ao narrar, embora de forma romanceada, a viagem do primeiro “embaixador do Reino do Kongo no vaticano” (p. 44), Wilfried Nsondé mostra, uma vez mais, que muito ainda está por descortinar não só em relação a essa figura emblemática da história do Kongo, mas sobretudo, em relação ao tráfico de escravos. A obra resulta da imaginação do autor para tecer as malhas do romance (histórico, porém romance), bem como do seu domínio histórico-científico na contextualização dos diferentes acontecimentos que, acreditamos, está assente num extenso e profundo trabalho de pesquisa em arquivos e literatura especializada.

Numa análise sócio-histórica completa, Nsondé apresenta o padre Nsaku ne Vunda, bacongo2,  nascido na aldeia de Boko, batizado António Manuel que, seduzido pelo catolicismo alimentado pelos missionários, envereda pela vida religiosa. É nessa condição, e enquanto pároco na sua aldeia natal, que é mandado chamar por sua majestade “Manzou a Nimi, rei dos Bakongo de ontem, hoje e amanhã, chamado também Álvaro II3 pelos seus irmãos cristãos desde o batismo” (p. 39), dando assim início à ação que se desenrola ao longo de toda a obra, numa concatenação perfeita de acontecimentos históricos devidamente referenciados e explorados. É esse descortinar de acontecimentos que nos permite dividir a obra em duas partes: a primeira, corresponde ao início da viagem de Nsaku ne Vunda do Kongo para o Novo Mundo (continente americano) e, a segunda, do Novo Mundo para o continente europeu. Leia Mais

Mashinamu na Uhuru: conexões entre a produção de arte makonde e a história política de Moçambique (1950-1974) | Lia Laranjeira

Nos últimos anos (ou mesmo décadas), diversos são os historiadores, artistas, cientistas sociais e juristas que vêm interrogando os limites de uma história oficial centrada unicamente na atuação da Frente de Libertação Moçambicana e no consequente acesso ao poder político e econômico de que, aparentemente, desfrutam os que comungam desta narrativa.655 Na literatura, nomes como João Paulo Borges Coelho e Ungulani Ba Ka Khosa (mas não só), ao incluírem em suas obras personagens e acontecimentos reais e fictícios, fontes históricas diversas e memórias de gente comum, tanto rediscutem a história oficial quanto oferecem um novo caminho interpretativo sobre a vasta experiência histórica moçambicana. Em Memórias Silenciadas (Khosa, 2013), por exemplo, o personagem Antônio resume o poder estabelecido no pós-independência a “um grande campo de tênis privado onde os pequenos donos se limitam a estender a rede a seu bel prazer em locais que acham seus, por direito adquirido nas matas de libertação. Um direito circunscrito à pequena elite” (Khosa, 2013, p. 101).

Na cena musical, destaca-se a atuação de figuras como o rapper Mano Azagaia, cuja canção As mentiras da verdade tece provocações acerca do passado recente ao entoar “Que a revolução não foi feita só com canções e vivas; Houve traição, tortura e versões escondidas”.656 Além desses, filmes como Virgem Margarida (2012), de Licínio Azevedo, rememoram uma das feridas mal cicatrizadas do pós-independência moçambicano: os campos de reeducação. No campo jurídico, não se pode esquecer da atuação do constitucionalista franco-moçambicano Gilles Gistac, assassinado em 2015 após indicar que não haveria impedimentos constitucionais para a governança nas províncias de forma autônoma ao governo central, conforme reivindicara o partido Renamo. Leia Mais

Magnífica e Miserável: Angola desde a guerra civil | Ricardo Soares Oliveira

Magnifica e Miserável: Angola desde a guerra civil é um livro de autoria do investigador português Ricardo Soares de Oliveira, publicado originalmente em língua inglesa (Magnificent and Beggar Land: Angola since the civil war) e seis meses mais tarde dado à estampa pela editora portuguesa Tinta-da-China. A publicação desse livro provocou em certo entusiasmo incontido em alguns meios jornalísticos e acadêmicos em Portugal e o Reino Unido, que se manifestaram nos comentários qualificativos sobre o autor e a obra constantes na contracapa da versão inglesa, assim como da versão portuguesa tais como: “lúcido, brilhante” e “fascinante, provocativo”, por um lado, “profundo conhecedor da política do petróleo em Angola” e “melhor estudo sobre Angola em inglês”, por outro. Salvo engano, o livro mereceu algumas de resenhas críticas à versão inglesa1 que ampliam e levantaram a discussão sem que a mesma fosse sentida no meio acadêmico angolano e de língua portuguesa.

Magnífica e Miserável apresenta-nos uma capa que ilustra o pôr do sol da costa de Luanda e os escombros do mausoléu, obra quase abandonada, infraestrutura imponente à soviética onde repousa os restos mortais do primeiro presidente de Angola independente, António Agostinho Neto. Esta ilustração sinaliza o que entendemos ser o início da representação caricatural, – da magnificência – que se pode encontrar reforçada no texto. Leia Mais

Jinga de Angola: A rainha guerreira da África | Linda M. Heywood

Muito se fala sobre a Rainha Jinga1: os adjetivos utilizados para mencioná-la não lhe poupam as características marcadamente de poder e ousadia. “Jinga de Angola: A rainha guerreira da África”, recente trabalho da historiadora Linda Heywood, lançado em língua inglesa no de 2018 e publicado no Brasil em 2019, não foge a esta regra. Dividida em sete partes, que acompanham cronologicamente a vida de Jinga, e com um posfácio assinado por Luís Felipe de Alencastro, a obra ressalta a perspectiva da liderança feminina e astúcia da rainha africana que é conhecida por muitos e cuja atuação histórica é relembrada em cantos de congado e cantos populares pelo Brasil.

Jinga Mbande Gambole, Ana de Sousa, Ngola Kiluanje e Ngola Jinga Ngombe e Nga — estes são todos os nomes adotados por Jinga em diferentes circunstâncias, de sua longa vida, na qual testemunhou e vivenciou ativamente, mudanças profundas, de origem externas, mas também internas. Essa adoção de diferentes nomes revelavam a busca por identidade e também apontavam para sua destreza, em circular por mundos e culturas diferentes e ainda assim, registrar sua marca e presença. Leia Mais

As voltas do passado. A Guerra Colonial e as lutas de libertação | Miguel Cardina

Existem livros que surpreendem pela originalidade do título; outros surpreendem pela qualidade do conteúdo ou pela lógica de organização dos textos. A obra organizada por Miguel Cardina e Bruno Sena Martins surpreende nos três aspectos. Na obra intitulada “As voltas do passado: a Guerra Colonial as lutas de libertação”, Cardina e Martins reúnem um expressivo conjunto de 51 pesquisadores de diferentes nacionalidades e apresentam aos leitores um livro fracionado em 46 textos. Acionando uma ampla rede de pesquisadores e de instituições acadêmicas da África e da Europa, os organizadores apresentam ao leitor uma amostra qualificada das interpretações que a Guerra Colonial produziu na historiografia portuguesa e na historiografia dos países africanos que outrora foram colônias de Portugal.

Neste sentido, o livro pode ser considerado um projeto editorial ousado, por dois motivos: primeiro porque buscou incorporar os significados da Guerra Colonial para Portugal e para os povos africanos que desafiaram a política colonial lusitana; e, segundo, porque transitou entre os fatos da Guerra Colonial e as memórias construídas a partir destes fatos. Na Introdução os organizadores ressaltam que a problematização da memória é um dos objetivos da obra e afirmam que As voltas do passado é um livro que se preocupa com “o regresso da guerra aos sucessivos presentes, em combinações irregulares entre a evocação de um passado constitutivo e os usos seletivos da memória.” Leia Mais

Crítica da razão negra | Achille Mbembe

Tomemos de empréstimo ao texto de Achille Mbembe uma passagem que nos servirá de ponto de partida para este comentário sobre sua obra Crítica da razão negra, recém-publicada no Brasil:

Há nomes que carregamos como um insulto permanente e outros que carregamos por hábito. O nome “negro” deriva de ambos. Por fim, mesmo que determinados nomes possam ser lisonjeiros, o nome “negro” foi, desde sempre, uma forma de coisificação e de degradação. Seu poder era extraído da capacidade de sufocar e estrangular, de amputar e de castrar. Aconteceu com esse nome o mesmo que com a morte. Uma íntima relação sempre vinculou o nome “negro” à morte, ao assassinato e ao sepultamento.1 Leia Mais

Working the System. A Political Etnography of the New Angola | Jon Schubert

A relação das pessoas comuns, seja um feirante usando transporte público, seja um professor universitário do alto de seu gabinete, com a estrutura de um Estado autoritário – esse é o tema do recente estudo de Jon Schubert “Working the System. A political etnography of the New Angola” sobre a Angola do pós-guerra civil. Procurando mapear a partir de uma pluralidade de sujeitos de diferentes estratos sociais da sociedade luandense a relação com o Estado, corporificado materialmente e simbolicamente no que os informantes chamam de “o sistema”, Schubert procurou tocar em várias questões sensíveis da história recente de Angola para ir além de análises mais generalizantes que se detém aos grandes movimentos da política e da economia da reconstrução do país: a estabilização autoritária da política interna, o crescimento econômico vertiginoso do país por causa do petróleo, a concentração de poder nas mãos do maior partido político, o lado vitorioso da guerra civil, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA).

Seus questionamentos são em torno de como esse “sistema” funciona no cotidiano das relações sociais, retomando reflexões gramscinianas de como pessoas que estariam excluídas da participação do processo decisório – que estariam às margens do sistema – acionam essa estrutura política de forma criativa e até subversiva, negociando espaços e tencionando o sistema vigente. Como sugere o título em inglês, o termo “working” no gerúndio sugere o estudo do funcionamento cotidiano do sistema assim como do que faz o sistema funcionar, seja estudando os grupos políticos que se consolidam no poder material e discursivamente após o fim da guerra, seja entendendo os termos de negociação da sociedade civil frente a esse regime e suas características. Leia Mais

Água: uma novela rural | João Paulo Borges Coelho

Água, uma novela rural é o décimo primeiro livro de João Paulo Borges Coelho (JPBC), nome que vem ganhando notoriedade tanto na literatura africana quanto nos estudos literários. Evidência neste sentido é a crescente produção crítica de sua obra, a exemplo do congresso intitulado: O cartógrafo da Memória: A poética de João Paulo Borges Coelho, realizado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em julho de 2017, a publicação da coletânea de artigos: Visitas a João Paulo Borges Coelho: leituras, diálogos e futuros (Editora Colibri, 2017) e o Dossiê: Passados antecipados, futuros empoeirados: os caminhos da ficção de João Paulo Borges Coelho, da Revista Mulemba (UFRJ, 2018) . Importa situar que os prêmios José Craveirinha da Literatura (2004) pelo romance As Visitas do Dr. Valdez, o Leya de romance histórico (2010) com O Olho de Hertzog contribuíram para o reconhecimento de sua obra literária composta por dois livros de contos, três novelas e sete romances.

Além de escritor, JPBC é historiador e professor no Departamento de História da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, Moçambique. Sua produção acadêmica é constante, sendo sua tese de doutorado, até hoje, uma das principais referências no tocante aos processos de deslocamento na região de Tete1. Em outra ocasião, argumentei que o aprofundamento de sua contundente experiência acadêmica incentivou sua escrita literária pois foi precisamente em Tete, província central circundada pela Zâmbia, Zimbábue e Malaui, o cenário escolhido para sua primeira obra literária, As duas sombras do rio (2003), que versou sobre a guerra civil moçambicana (1976-1992)2. Contudo, vale ressaltar, que os dois espaços de produção textual, a literatura e a história, são para JPBC complementares, segundo suas próprias palavras: “Assumo-me como eu próprio, uno e indivisível, embora com as contradições e conflitos que, de uma maneira ou de outra, nos atravessam a todos. Não estou dentro do acadêmico ou do escritor, eles é que estão dentro de mim”3. Leia Mais

AbeÁfrica | ABEA | 2018

Abe Africa

A AbeÁfrica: revista da Associação Brasileira de Estudos Africanos (Rio de Janeiro, 2018-), publicação semestral da Associação Brasileira de Estudos Africanos publica trabalhos inéditos desenvolvidos em torno dos Estudos Africanos em perspectiva interdisciplinar, envolvendo campos do conhecimento tais como a Antropologia, Ciência Política, Educação, Geografia, História, Literatura e Crítica Literária, Relações Internacionais, Sociologia e outros.

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

ISSN 2596-0873

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