Mulher e Literatura: história, gênero e sexualidade | Cecil J. A. Zinani

O imbricado narrativo literário é tão revelador de um mundo imaginário de modelos de gênero quer seja em relação às estratégias dominantes quanto de corpos não conformados que resistem à imposição de normas. Neste sentido, encaminho nestas linhas algumas discussões presentes na obra auferida em torno das aproximações entre a literatura e a história, as relações de gênero e modelos de feminilidade. Também se apresenta exemplos da autoria feminina latino-americana em relação a diferentes vivências de personagens mulheres.

Nesta obra, o conjunto de textos apresenta mulheres escritoras, suas protagonistas e demais personagens em diferentes obras literárias latino-americanas contemporâneas. O livro foi organizado em três seções: história, gênero e sexualidade. Estas três seções e as diversas autorias contemplam a necessidade de outros olhares sobre as narrativas cujas tramas tecem imaginários diferenciados. Assim, percebe-se a tentativa de aproximação entre várias áreas do conhecimento humano como a psicologia, antropologia e a história para dar conta das relações entre mulheres, homens e de sexualidades não conformadas. Destarte, a literatura e seu contexto são reveladores de histórias minúsculas, mas tão ricas e significativas como as demais histórias.

O primeiro texto “História da Literatura: discussões alternativas” prima pela revisão da historiografia da literatura e seus cânones. Neste texto, Cecil Jenanine Albert Zinani inova ao aproximar a história e literatura a partir dos sistemas propostos pelo sociólogo da literatura Niklas Luhmann. Por estas discussões advoga-se a instabilidade de categorias explicativas e das hierarquias nos cânones literários provocando uma renovação na historicidade do gênero narrativo.

O segundo texto “Literatura e história: fronteiras instáveis”, de autoria de Amanda D. Parizote, nos oferece um olhar sobre as diferentes discussões que estabeleceram fronteiras entre a ficção e a história e de autores que as desconstruíram. Ainda contempla uma análise primorosa sobre a memória dos desaparecidos durante a ditadura Argentina e o processo identitário dos bebês raptados pelos ditadores. O texto também ressalta como a escrita feminina não se calou diante destas experiências negadas pela escritura oficial da história argentina. Este estudo centra-se no romance “A veinte años Luz”, de Elsa Osório. Neste romance, percebeu-se que a linguagem liberta a experiência do silêncio para reescrever a história daquele período.

O artigo terceiro “A História de Malinche Revisitada”, de Salete Rosa Pezzi dos Santos, tece importantes considerações sobre as identidades literárias na América Latina. Para este feito revisita o romance “Malinche” de Laura Esquivel. O romance é construído a partir da história da índia Malinche, mediadora entre os conquistadores espanhóis e os nativos americanos do México. Na narrativa é dada a voz a Malinche que deixa de ser apenas uma “traidora” de seu grupo para reconhecer o poder das palavras e de rever a experiência de dominação do povo da qual faz parte e de si própria pelos espanhóis.

“O prazer do corpo e o prazer do texto em La Casa de La Laguna” analisa o romance “La Casa de La Laguna”, do escritor porto-riquenho Rosário Ferre, o qual conta a história de duas famílias cuja narradora e protagonista é Isabel. Ela narra a condição feminina de submissão e a possibilidade ou não de ruptura com a dominação masculina de mulheres do enredo. A escrita torna-se então a possibilidade de liberação feminina. Já no texto “As irmãs Mirabal: literatura e memória” Cecil J. A. Zinani analisa a trajetória de duas mulheres sobreviventes da repressão durante a ditadura de Trujillo. Elas rememoram os anos de ditadura na República Dominicana no romance “Tempo das Borboletas” de Julia Alvarez. A autora traz à tona a trajetória pessoal, familiar e de pessoas que enfrentaram os meandros da ditadura. Assim, o texto captura as subjetividades de mulheres e homens que protagonizaram a resistência contra a repressão.

O texto conjunto de Cecil J. A. Zinani e de Natália B. Polesso analisa o conto “O 35.º ano de Inês”, de Tânia Jamardo Fallaice. Os conflitos internos da personagem Inês marcam o conto. Como filha solteira de uma família matriarcal, Inês experimenta a transgressão, mas não consegue romper com os mandatos sociais esperados para uma mulher. Com este conto procura-se expor as vicissitudes do feminino tocando em questões essenciais como o desejo e a emancipação de um ser humano que não pretende que seu corpo torne-se o destino.

O artigo de Salete R. P. dos Santos prima pela análise da obra da autora mexicana Ángeles Mastretta “Mulheres de Olhos Grandes”, cuja narrativa é composta de 37 pequenas histórias com três mulheres como personagens principais. Elas subvertem os padrões sociais para vivenciar novas experiências com o corpo feminino. Os olhos grandes referem-se a amplas e irrestritas possibilidades de invenção de subjetividades e liberdades para as mulheres.

“Pele nua do espelho: a procura inquietante por uma identidade” é o oitavo texto escrito por Raquel H. S. dos Santos e Cecil J. A. Zinani. Com foco na obra de Patrícia Bins “Pele Nua do Espelho” analisa-se o processo de construção identitário da mulher. Através de uma carta, a personagem Antonia ressignifica suas experiências femininas relacionando realidade e fantasia. Ao refletir no espelho percebe o seu duplo e o outro deixando entrever uma identidade liberta de padrões e preconceitos em relação ao gênero feminino bem como provoca a instabilidade identitária da mulher.

O conto “La intrusa” do escritor argentino Jorge Luis Borges é tema de artigo produzido por Geneviève Fae e Cecil J. A. Zinani. O conto é analisado a partir da ausência de protagonismo feminino. O enredo centra-se em uma relação triangular, ou seja, dois irmãos moravam juntos na fazenda e posteriormente passam a compartilhar uma mulher na casa e por ela se apaixonam. Porém, a mulher representa então uma ameaça ao laço afetivo fraterno. Ela é levada por eles a um bordel, mas continuam a visitá-la. O título aparece como um indicativo dos males que poderiam ser causados por aquela mulher. Assim, faz-se acreditar que o perfil ideal de mulher seria apenas a submissão e o recato e os desejos e sentimentos dela não tinham importância. Portanto, a presença feminina no conto deveria ser marcada pela sujeição e não como sujeito ativo da história. Pelo conto, entende-se que a paz social é dirigida pelos homens másculos.

Marília Conforto é a autora do artigo sobre o romance “O Quarto Fechado” de Lya Luft. Um velório marca a vida de familiares de forma diferenciada em relação as suas vidas e com o morto. A morte é a protagonista porque os personagens humanos darão a ela uma significação de reordenação de seus mundos. O sofrimento da perda torna-se o traço de união. As personagens femininas percebem a partir desta morte que suas identidades estão em construção e fragmentação após longo processo de silenciamento, violências e embates com a visão androcêntrica de mundo.

Salete R. P. dos Santos enfoca no seu artigo “Quando a voz feminina constrói realidades” as mudanças ocorridas com o alargamento da autoria feminina após a década de 1980 na América Latina. As escritoras chilenas Isabel Allende e Gabriela Mistral denotam a relevância desta autoria porque em suas páginas emergem personagens femininas envoltas em transgressões e construções de identidades plurais para as mulheres. Esta escritura por mãos femininas e as recentes representações de mulheres são indicativos de novas histórias na literatura.

Para discutir as escolhas identitárias para uma mulher Tânia M. C. Wagner apresenta o romance “A noiva escura”, de Laura Restreppo. Além do drama pessoal da personagem principal, a narrativa contempla a situação sócio-cultural do povo colombiano. A protagonista da narrativa prostitui-se devido à pobreza e a perda da mãe e do irmão. Com a possibilidade de um relacionamento estável ela casa e sai do estabelecimento de prostituição. Porém, o estigma social em relação as suas atividades marca a dificuldade em construir uma identidade feminina inventiva porque os mandatos continuam relacionados à dominação masculina, principalmente do marido. Sair do matrimônio representa então a liberdade da personagem principal.

Cecil J. A. Zinani novamente nos brinda com uma análise e desta vez da obra “A doce canção de Caetana”, de Nélida Piñon. Nesta análise aponta-se para o simulacro e o real em relação ao presente e passado da cantora Caetana e as diferentes experiências com a sexualidade dela com outros personagens. Ela decepciona muitos homens porque já não correspondia aos estigmas criados para o corpo feminino e o seu passado. Caetana, depois de vários anos, retorna a sua comunidade natal com a expectativa de realização artística. Assim, entre desejos e realizações, as frustrações de vários personagens tornam-se evidentes na obra, desestabilizando certezas sobre as relações entre os gêneros.

“Como água para chocolate”, de autoria da mexicana Laura Esquivel, é nesta obra discutida coletivamente por Vanessa Zucchi, Cecil J. A. Zinani, Salete R. P. dos Santos e Tânia M. C. Wagner. O romance narra situações conflituosas de mulheres da família de La Garza durante a revolução mexicana. Estas condições de conflito darão visibilidade às experiências femininas desestabilizando o poder patriarcal e, consequentemente, abrem perspectivas democráticas nas relações de gênero.

No próximo artigo mantém-se a autoria acima, exceto Vanessa, e soma-se ao grupo Eder Correa para analisar a obra “Romance Negro com Argentinos”, escrito por Luiza Valenzuela. Neste texto reflete-se sobre a identidade nacional a partir da mudança de dois escritores argentinos para Nova Iorque. Processos ditatoriais, como ocorridos na Argentina e no Brasil, estão presentes metaforicamente na narrativa porque construíram fronteiras nas identificações pessoais e nacionais. O assassinato de um dos personagens principais figura como representação da morte simbólica da identidade nacional. Além dessa análise, os autores acima entendem que Luiza Valenzuela constrói personagens femininas na perspectiva ginocêntrica polarizando, desta forma, novamente as relações de poder entre os gêneros.

Sobre a sexualidade na literatura Tânia M. C. Wagner apresenta a obra “Duas Iguais: manual de amores e equívocos assemelhados”, de Cíntia Moscovich, para discutir o amor homossexual entre duas personagens de uma comunidade judaica. As escolhas amorosas e as identificações de gênero são confrontadas com os valores daquela comunidade. Embora o desejo e as afetividades estejam definidos, o ideal normativo heterossexual está presente e apenas as circunstâncias específicas como a doença de uma das protagonistas define a escolha amorosa e sexual.

Este é o conjunto de uma obra com muitas perguntas e discussões sobre a essência e a desconstrução do feminino. Assim, há textos que reafirmam a cultura feminina e outros que alargam o entendimento de gênero muito além dos corpos biológicos e assim o próprio sexo não é uma condição pré-discursiva. Em ambas as abordagens estão aquelas que por muito tempo foram varridas para o limbo ou estavam “debaixo do tapete” e agora pela autoria feminina tem visibilidade histórica e identidades múltiplas desestabilizando assim a dominação masculina.

Tânia Regina Zimmermann – Professora da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.


ZINANI, Cecil J. A.; SANTOS, Salete R. P. dos (Orgs.). Mulher e Literatura: história, gênero e sexualidade. Caxias do Sul: Educs, 2010. Resenha de: ZIMMERMANN, Tânia Regina. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.1, n.2, p. 137-141, jan./jun. 2012. Acessar publicação original [DR]

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