O Crime do Restaurante Chinês – Carnaval, Futebol e Justiça na São Paulo dos anos 30 | Bóris Fausto

Considerações iniciais

Há no panorama teórico da historiografia uma intensa discussão conceitual, que tem sido descrita como uma disputa entre paradigmas rivais (CARDOSO, 1997: 3). De um lado, aqueles que embasam seus esforços numa ótica iluminista, o que significa acreditar na capacidade da razão humana em descobrir e ordenar as forças em atuação no universo. Entre estes, ainda de acordo com Cardoso, podem ser enquadrados os marxistas, positivistas e mesmo aqueles ligados à “Nova História”. Trabalhos realizados a partir dessas diretrizes tendem a buscar uma visão holística do processo histórico, agregando os fenômenos sob explicações totalizantes.

Na outra ponta estão aqueles que abandonam tentativas generalizantes de explicação, enfatizando a singularidade dos objetos e a impossibilidade de reuni-los sob uma mesma rubrica sem que se percam suas qualidades fundamentais. A esses se atribui a filiação a certo “paradigma pós-moderno”. O movimento tendencial parece apontar para a ascensão da ótica pós-moderna em detrimento do paradigma iluminista.

Muito se discute sobre as implicações políticas dessa sucessão conceitual. O que se tem afirmado, e que constitui a maior crítica que se faz às abordagens pós-modernas, é que, sem a assunção de uma posição totalizante dos fenômenos, as ciências sociais – em especial a História – perdem força interpretativa, tornando-se impotentes na atuação social direta. Em outras palavras, tornam-se inócuas e inofensivas, deixando de contribuir com a luta por transformações sociais. É evidente que tais admoestações partem de estudiosos que acreditam numa ciência comprometida com a revolução social.

Entre as correntes historiográficas contemporâneas que abolem a busca por panoramas totalizantes está a micro-história. Por definição, trabalhos ligados a esta metodologia exercem o olhar de foco sobre os indivíduos, objetos muito pequenos de cuja análise, quase sempre, surge a percepção do sigular, do particular, justamente aquilo que nega e derruba as generalizações. A aleatoriedade e o imprevisível aparecem como fatores determinantes dos acontecimentos, o que leva à suposição de que são pedras fundamentais da história, dificultando o estabelecimento de padrões e “leis”. É nesse sentido que se torna ilustrativa a nova obra de Bóris Fausto, “O Crime do Restaurante Chinês – Carnaval, Futebol e Justiça na São Paulo dos anos 30”, um exemplo prático de abordagem micro-histórica. Tal leitura torna-se uma oportunidade de observar a validade dos argumentos arrolados na discussão conceitual que se desenrola atualmente.

O Crime

O crime, eixo central da obra aqui analisada, ocorreu em 2 de março de 1938, uma quarta-feira de cinzas. É necessário que se conheça as linhas gerais dos acontecimentos narrados na obra para que se possa prosseguir com as discussões.

Pedro Adukas, cozinheiro lituano radicado no Brasil, foi quem primeiro descobriu a chacina que ocorrera em seu local de trabalho, um restaurante situado nas imediações da Praça da Sé. Percebeu a falta do cadeado que mantinha trancada a pesada porta de metal e, ao entrar no salão do restaurante, deparou-se com dois cadáveres. Eram os corpos do lituano José Kulikevicius e do brasileiro de origem nordestina Severino Lindolfo Rocha, ambos empregados do estabelecimento, que costumavam dormir no refeitório, no topo de mesas transformadas em precárias camas. Prosseguindo no seu trajeto, Adukas encontrou o cadáver de seu patrão e proprietário do restaurante, o chinês Ho Fung. Nos fundos do terreno, nas dependências usadas como residência do casal proprietário, encontrou a esposa do patrão, a chinesa Maria Akiau, morta sobre a cama. Os três homens sucumbiram a golpes de uma peça de madeira usada como mão-de-pilão. A mulher fora estrangulada. Não havia sinais de roubo: o cofre contendo mais de vinte contos de réis e um dicionário de português estava intacto.

A notícia do crime logo se espalhou e chocou a população de uma cidade ainda não acostumada a tais ocorrências. Os jornais dedicaram grande espaço em suas edições para noticiar o caso; a polícia, inicialmente, buscou suspeitos entre os membros da pequena comunidade chinesa da capital. Os rumos da investigação mudaram quando um depoente lançou suspeitas sobre Arias da Silva, jovem de 22 anos, recém-chegado de Franca, no interior do Estado. Negro, pobre e pouco escolarizado, tornou-se rapidamente o principal suspeito.

Arias da Silva foi então submetido a um cerrado interrogatório, no qual técnicas “científicas” foram empregadas. Os laudos emitidos pelos renomados especialistas responsáveis pelo caso – documentação reproduzida e analisada por Fausto na obra – apontaram sérias evidências da responsabilidade de Arias pelo crime. Após 8 dias nesse regime, o suspeito confessou ser o autor da chacina.

A defesa do réu foi providenciada pela União Negra Brasileira, entidade encabeçada por cidadãos negros que haviam ascendido socialmente. O advogado Paulo Lauro, reconhecido valor no direito criminal, assumiu o caso. Arias foi submetido a dois julgamentos em Juri Popular e um último presidido por altas autoridades judiciárias, e em todos foi absolvido por pequena margem de votos (4×3, 4×3, 2×1). A estratégia da defesa foi enaltecer as qualidades de Arias e, principalmente, atacar a validade dos laudos científicos emitidos na fase de inquérito. Após passar quatro anos preso, Arias foi libertado e caiu novamente no anonimato da vida comum. A polícia, que considerava ter resolvido o caso, não reabriu as investigações, e o crime ficou impune.

Micro-história

Ao delimitar seu tema, Bóris Fausto ligou-se à corrente historiográfica conhecida como micro-história. Na sua “Breve Explicação”, seção inicial da obra, ele explica os motivos dessa escolha, usando uma imagem para descrever o campo de ação aberto pela análise do fato isolado: as trajetórias dos personagens e suas interações com o contexto social são como fachos de luz, capazes de alcançar lugares escuros de uma sala que a luminária do teto não alcança (FAUSTO, 2009: 10).

Carlo Ginzburg, um dos grandes propositores dessa abordagem historiográfica, busca defender sua validade a partir dos sucessos de Giovanni Morelli, um estudioso especializado em reconhecer a autoria de obras de arte, especialmente de pinturas. Morelli criou um método que consistia em desprezar os aspectos mais evidentes de uma obra, para concentrar a análise nos detalhes, no secundário. Nesses recantos pouco observados repousa a assinatura, a impressão inconfundível da personalidade. Segundo Morelli, a personalidade deve ser procurada onde o esforço pessoal é menos evidente, menos intenso. […] São nossos pequenos atos inconscientes que revelam o nosso caráter, mais do que qualquer atitude formal, cuidadosamente preparada por nós (MORELLI apud GINZBURG, 2001: 146). A lógica que preside estas atitudes pode ser transportada para a prática do historiador. Ao deixar de lado as observações gerais, de grandes movimentos, e se concentrar num detalhe no interior desse grande quadro, o historiador terá chance de captar a verdadeira “identidade” do objeto. Ao inquirir o particular, ações humanas e significados antes invisíveis vêm à tona.

Exemplos dessa capacidade analítica refinada da micro-história podem ser apontados na obra de Fausto. Uma análise totalizante tenderia a chegar a conclusões que explicassem as tensões do período como simples contraposições entre ricos e pobres, negros e brancos, polarizando essas relações ao extremo. A observação do caso particular demonstra que havia matizes muito sutis nessa dicotomia: se a pobreza e a condição étnica de Arias o tornaram suspeito principal do crime, foram responsáveis também pela formação de bolsões de simpatia à sua figura entre a opinião pública, o que afinal levou a sua absolvição.

O crime e o “outro”

A discussão central da obra é a contraposição entre duas vertentes antagônicas de compreensão e explicação do ato criminoso em particular, e da própria natureza humana em geral. O embate entre duas correntes conceituais a respeito do crime, do criminoso e de suas punições é a reedição, no campo jurídico, de uma discussão antiga e recorrente sobre a diversidade humana e o fundo etnobiológico da criminalidade.

Esboçam-se duas formas de explicar o comportamento humano: uma que o considera fruto de um desenvolvimento cultural, outra que o vê condicionado por fatores biológicos dos quais não se pode escapar. É obvio que essa segunda linha de pensamento justificava a hierarquização da sociedade, onde as “raças” mais avançadas tinham o dever de dominar para civilizar. Essa forma de pensar permitia a permanência de privilégios e desigualdades, e foi conscientemente escolhida como matriz de explicação pelos intelectuais brasileiros do final do século XIX e início do XX, no momento mesmo em que ela experimentava certa marginalização na Europa. (SCHWARCZ, 1993: 64)

Dessa visão determinista do comportamento humano derivava o pensamento jurídico cristalizado na Escola Positiva de Criminologia. Seus artífices detectavam a propensão ao crime a partir de certos “estigmas” físicos e psíquicos, e defendiam que determinadas “raças” tendiam naturalmente à vida delituosa. Essa escola tratava de atrair a criminologia do campo jurídico para o território médico-científico, patologizando o ato anti-social. O criminoso é um doente, o crime, um sintoma, a pena ideal um tratamento, e não um castigo (FAUSTO, 2009: 89). Essa corrente de pensamento foi adotada por todos os elementos acusatórios – autoridades policiais, cientistas e técnicos a serviço da polícia, promotoria – em todas as fases do processo, na tentativa de evidenciar os sinais, para eles claros, da personalidade criminosa inata e essencial de Arias da Silva.

Na outra extremidade, encontravam-se aqueles que se apegavam a concepções clássicas sobre o crime, rotuladas jurídico-racionalistas. A raiz desse pensamento jurídico se encontra nas formulações do milanês Cesare Beccara, que no século XVIII renovou a teoria do direito ao adaptar os princípios liberais à reflexão jurídica. Entre outras modificações importantes, postulou que o indivíduo é sujeito a direitos e deveres, e é capaz de se adaptar às leis e normas sociais; independentemente de qualquer circunstância, étnica ou social, o indivíduo escolhe transgredir ou respeitar as leis, é responsável por suas ações, moral e penalmente.

O antagonismo dessas duas frentes permeia a obra, sendo motivo de constantes observações e comentários do autor, que não deixa escapar nenhuma oportunidade, oferecida pelo desenrolar dos acontecimentos, de assinalar os momentos de choque entre elas. Prevaleceu, afinal, a desconfiança nos métodos da Escola Positiva, uma vez que o réu foi absolvido por falta de provas. Concorreu para isso o brilhante trabalho do advogado de defesa, que desde o primeiro momento buscou formas de combater os pressupostos da Escola Positiva, desmontando assim a peça central da acusação.

Considerações Finais

Prescindindo da pretensão de ser totalizante, abrindo mão de propor um grande sistema de interpretação, análise e explicação de seu objeto, a obra oferece um quadro dos anos 1930. A partir da trajetória de Arias da Silva entendem-se aspectos do pensamento criminológico da época, enraizado numa visão racista da humanidade. Percebe-se a articulação entre imprensa, opinião pública e sistema judiciário, num momento em que ainda se engendravam as estratégias de comunicação de massa. Pode-se ver, ainda, a imigração e as transformações na cidade de São Paulo nos anos 1930.

No conjunto, a obra iluminou muitos aspectos do contexto em que viveu o protagonista, abrindo frentes de observação que não poderiam ser alcançadas por outras metodologias. A opção pela narrativa tornou o livro atrativo para um grupo maior de leitores, levando a obra a frequentar as listas de “mais vendidos” por algum tempo; “O Crime do Restaurante Chinês” prova que não é preciso ser simplista para agradar. Considerações historiográficas importantes foram levadas a um grupo maior de pessoas, o que pode indicar um caminho para popularizar escritos de historiadores, que raramente atravessam as barreiras do mundo acadêmico.

A obra, inatacável do ponto de vista técnico, bem sucedida em seus aspectos formais, é uma ponta de lança a indicar as novas tendências da historiografia brasileira.

Referências

CARDOSO, Ciro Flamarion. Introdução: História e Paradigmas Rivais. In: Domínios da História – Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997. p.

FAUSTO, Bóris. O Crime do Restaurante Chinês – Carnaval, Futebol e Justiça na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

JENKINS, Keith. A História Repensada. Tradução: Mário Vilela. São Paulo: Contexto, 2001.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das raças – Cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870 – 1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.


Resenhista

Daniel Rincon Caires – Pesquisador do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM). Pós-Graduando pela Pontifícia Universidade Católica (PUC – SP).


Referências desta Resenha

FAUSTO, Bóris. O Crime do Restaurante ChinêsCarnaval, Futebol e Justiça na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Resenha de: CAIRES, Daniel Rincon. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 5, n. 9, jan./jun. 2011. Acessar publicação original [DR]

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