Raça, Ciência e Saúde no contexto da escravidão e do pós-Abolição | Revista Maracanan | 2021

Maconha contexto da escravidão e do pós-Abolição
Maconha | Foto: Notícias Chapecó

Durante as últimas duas décadas tem crescido o interesse historiográfico por temas como saúde, doença e ciência e, em especial, a saúde da população negra. A ampliação do debate sobre as múltiplas intersecções entre esses campos de análise e sociedade é de extrema relevância para reflexões acerca do Pensamento Social Brasileiro. Além disso, tem contribuído para a construção de novos campos de estudo, trazendo à tona pesquisas inovadoras tanto para o campo da História das Ciências e da Saúde como para a História do Negro no Brasil.

A Revista Maracanan publica o Dossiê Temático “Raça, Ciência e Saúde no contexto da escravidão e do pós-Abolição” em um momento crucial para os estudos em Saúde no Brasil e, também, para a História do Brasil. A relação entre saúde, doença e ciência tem sido posta em evidência, por exemplo, com pesquisas que apontam que a população negra tem sido a mais afetada pela pandemia da Covid-19 no Brasil, tanto em número de mortos como também em termos socioeconômicos.[1]

O volume apresenta artigos que tratam das muitas relações entre Raça, Ciência e Saúde em uma perspectiva histórica. Os textos e a entrevista que compõem esse Dossiê Temático discutem os estudos sobre as raças, passando por pesquisas sobre a saúde dos escravizados, sua relação com os médicos e suas próprias práticas de cura até o estudo da eugenia e suas representações sobre o negro, as práticas higienistas do início do século XX e a saúde da população negra no pós-Abolição.

Objetivamos contribuir para a construção de um amplo e democrático debate científico, que priorize as múltiplas abordagens e enfoques teórico-metodológicos sobre raça, ciência, saúde e contribua também para reflexões acerca da sociedade brasileira contemporânea, ainda com as marcas indeléveis dos mais de 350 anos de escravização.

Desde o início dos anos 2000, os debates acerca dos direitos da população negra tornaram-se objeto de interesse da sociedade brasileira. Temas como o acesso às universidades assim como o direito à saúde vêm ganhando força nos movimentos sociais e nos debates acadêmicos. Neste contexto, torna -se de extrema importância para área de História das Ciências e da Saúde conectar-se à outras áreas temáticas como a historiografia da Escravidão e do pós-Emancipação, para criar objetos e temas que lançam novos olhares a estes já consolidados campos historiográficos.

A entrevista que abre esse Dossiê Temático tem valor histórico ímpar para o campo das Histórias das Saúde e das Doenças, mas também para reflexões sobre História, pesquisa histórica e tempo presente. O historiador Sidney Chalhoub concedeu uma entrevista virtual a  Paula Habib e Silvio Lima. O roteiro, elaborado em conjunto pelos três organizadores do Dossiê, foi concebido para que o entrevistado tivesse a oportunidade de falar sobre raça, ciência e saúde, temas do Dossiê, mas também sobre sua trajetória profissional. Na conversa, o professor de Harvard e professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas, falou sobre os tempos de graduação, mestrado e doutorado, a efervescência do pensamento em torno dos estudos sobre Escravidão, o ambiente acadêmico nas instituições pelas quais passou e sobre suas pesquisas.

Acreditamos ser importante mencionar os 25 anos da primeira edição do livro Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial, em 2021. O livro pode ser considerado um marco no campo dos estudos sobre doença, saúde e ciência e, definitivamente, contribuiu para que muitas pesquisas se desenvolvessem a partir desses temas. Na entrevista, Chalhoub traz importantes reflexões sobre o livro. A pandemia de Covid-19, decretada em 13 de março de 2020 pela Organização Mundial da Saúde, contribuiu para que o debate sobre ciência, saúde e doença ampliasse o escopo e o interesse, não apenas de profissionais das Ciências Humanas e das Ciências da Vida, mas em especial do público em geral. Cidade Febril, que já era um livro consagrado e bastante acessível, como reconhece o próprio Chalhoub, voltou ao centro das reflexões sobre saúde e doença no Brasil, contribuindo, mais uma vez, para a ampliação e divulgação de pesquisas e estudos sobre o tema. Nesse sentido, ressaltamos novamente a relevância da entrevista e convidamos leitores a mergulharem na conversa com Sidney Chalhoub.

O artigo que abre este dossiê tem como tema a apresentação do corpo feminino nos jornais do Rio de Janeiro nas últimas décadas do século XIX. Daniela Magalhães da Silveira em “Não é exatamente de mulheres que a república precisa: é de pares para os seus cavalheiros – Ciência, ficção e narrativa sobre mulheres pobres e trabalhadoras nos jornais diários (Rio de Janeiro, 1896)”, proporciona ao leitor reflexões sobre o que chama “mulheres reais”. A autora discute como, na perspectiva de formar novos leitores, os jornais estudados buscam mobilizar mulheres como esse novo público leitor.

Num diálogo reflexivo e crítico com os escritos de Monteiro Lobato e suas posturas eugenistas, Arlindo Ferretti Junior, Euler Renato Westphal & Roberta Barros Meira, apresentam ““Acima da América está o sangue”: a eugenia nos escritos de Monteiro Lobato”. A partir de dois textos do autor, produzidos na primeira metade do século XX, o artigo discute as características eugenistas articuladas às perspectivas cientificistas daquele tempo histórico e apresenta o modo pelo qual as ideias eugenistas circulavam, bem como sua força nas tensões presentes no projeto de construção da identidade nacional.

Indo para o Nordeste brasileiro temos reflexões acerca do termo Morenidade pensada a partir da mestiçagem no século XX em “Quem é pardo no nordeste brasileiro? Classificações de “Morenidade” e tensões raciais” de Niara Oiara da Silva Aureliano & Nara Maria Carlos de Santana. Suas análises apresentam os termos preto e pardo e sua relevância social nas construções e ressignificações de identidades. Por meio da História Cultural, a pesquisa analisa as produções simbólicas acerca dos nordestinos e as diferentes classificações e denominações descritas em distintos discursos.

Silvio Cezar de Souza Lima nos apresenta uma reflexão no artigo intitulado “O embrutecido, o imoral e o civilizado – Racismo científico, mestiçagem e imigração na obra de Nicolau Joaquim Moreira”. A partir da análise acerca do pensamento racial de Nicolau Joaquim Moreira, o autor discorre sobre perspectivas dos termos raça e mestiçagem, comparando com os projetos do médico no que tange às políticas imigratórias brasileiras. Lima mostra como Moreira condenava a mistura racial defendendo as chamadas “raças puras”.

No artigo “O discurso médico-científico sobre a maconha no pós-abolição: o racismo científico como pressuposto para a emergência da ideologia proibicionista”, os autores Saulo Carneiro Pereira dos Santos, Pedro Henrique Monteiro da Silva & Francismary Alves da Silva acompanham a atuação profissional do médico José Rodrigues Costa Dória. O texto analisa o discurso médico-científico sobre a maconha no início do século XX e a associação do racismo científico e da eugenia com o advento da ideologia proibicionista, informada principalmente por preconceitos de raça e classe.

A criminalização de práticas culturais das populações negras também é um dos pontos centrais do artigo “Negros, loucos e endiabrados: uma breve revisão histórica sobre a repressão policial à religiosidade afro-brasileira no início da década de 1930”, de Ronivaldo Moreira de Souza & Maurício Ribeiro da Silva. O tema central é a perseguição policial à religiosidade mediúnica, em especial aos cultos afro-brasileiros na primeira metade da década de 1930. A pesquisa aponta para a incorporação do imaginário social em torno do negro e do indígena na legislação, utilizada como justificativa para as ações repressivas contra as religiosidades afrobrasileiras.

Ainda na encruzilhada entre raça, doença mental e crime, “Degeneração, subalternidade e favela: Anália, ‘uma mulher de cor preta’ no Rio de Janeiro pós-abolicionista” de Pedro Felipe Muñoz & Allister Teixeira Dias, traz o estudo sobre Anália, uma mulher negra, pobre e favelada, condenada a 15 anos de prisão por assassinato e com múltiplas internações no Hospício Nacional de Alienados. No artigo, os autores constroem um estudo sobre seu diagnóstico e suas condições de vida como moradora do morro da Mangueira e abordam questões sobre as normas culturais impostas às mulheres negras, bem como problematizam o tema das habitações populares e expansão das favelas no Rio de Janeiro na primeira metade do século XX.

Finalizando este dossiê, temos “O Verme da Guiné e a coleção de helmintos do Instituto Oswaldo Cruz (CHIOC)”. Olívia da Rocha Robba & Keith Valéria Barbosa partem da análise do Dracunculus Medinensis Linneaus, o verme da Guiné coletado por Oswaldo Cruz e que integra a Coleção Helmintológica do Instituto Oswaldo Cruz (CHIOC), para construir um diálogo entre coleções científicas, História da Medicina e das Doenças. O texto traz uma conexão entre o tráfico transatlântico de escravizados africanos, apontando importantes aspectos da relação entre tráfico atlântico e condições de saúde e doenças dos cativos no século XIX.

Na seção de artigos livres temos os trabalhos: “Interesses empresariais e a política de saneamento urbano durante a ditadura civil-militar brasileira (1964 – 1988)” de Pedro Henrique Campos, “O nacionalismo de extrema direita de Ferdinando de Carvalho” de Ricardo Antonio Souza Mendes, “Entre a revolução e a barbárie: a matriz durkheimiana de estabilização política em Da divisão social do trabalho (1893 – 1964)” de Diego Martins Dória Paulo, “Crítica à utopia/crítica à modernidade: sobre o alcance e as limitações da teoria da história de Reinhart Koselleck diante da atual crise do tempo” de Júlia Freire Perini & Marcelo Durão Rodrigues da Cunha e “Construções típicas são um aborto? Presentismo e germanidade nos conflitos da passagem de Roberto Burle Marx por Blumenau” de Ricardo Machado.

Destacamos, ainda, a seção especial que abre este número da revista, um artigo em homenagem ao crítico literário e historiador da literatura Alfredo Bosi (1936-2021), falecido recentemente, vítima da pandemia da Covid-19. Haroldo Ceravolo Sereza em “Alfredo Bosi: história, prosa, poesia e resistência, faz uma bela reflexão sobre perdas, derrotas e da necessidade dos intelectuais de se contrapor às ideologias dominantes e resistir.

Encerramos esta edição com dois estudos em Notas de Pesquisa: “Os censores no Império Luso-brasileiro (1808 – 1821): estudo prosopográfico” de Maíra Moraes dos Santos Villares Vianna e “O jogo movediço da liberdade: notas sobre estratégias de afirmação e resistência negra no campo educacional” de Stephane Ramos da Costa.

Convidamos todas e todos para a leitura deste número 27 da Maracanan. Esperamos que tenham uma prazerosa e frutífera pesquisa!

Nota

1. Há diversas pesquisas em andamento que apontam essa relação entre a saúde da população negra e a pandemia causada pela Covid-19. Para uma análise preliminar ver: Barros, Rubem, “Desigualdade social e racial é fator importante por trás de óbitos relacionados à Covid-19”. Revista FAPESP, 22 de março de 2021. Link para acesso: https://revistapesquisa.fapesp.br/desigualdade-social-e-racial-e-fatorimportante-por-tras-de-obitos-relacionados-a-covid-19 / Data do Acesso: 05 de julho de 2021.


Organizadores

Paula Arantes Botelho Briglia Habib – Professora Adjunta de História do Brasil República, no curso de Educação do Campo, no Instituto do Noroeste Fluminense de Educação Superior da Universidade Federal Fluminense (Infes/UFF). Doutora em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz (COC/FIOCRUZ) e Mestre em História Social pela Unicamp. E-mail: [email protected]  https://orcid.org/0000-0002-5503-5134  http://lattes.cnpq.br/4715013949595967

Iamara da Silva Viana – Professora da Pontifica Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Doutora em História Política pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, com estágio na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS/Paris), Mestre em História Social e Especialista em História do Brasil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. [email protected]  http://orcid.org/0000-0002-7290-4995  http://lattes.cnpq.br/8734218761246193

Silvio Cezar de Souza Lima – Professor adjunto da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutor e Mestre em História das ciências e da saúde pela Casa de Oswaldo Cruz (COC/FIOCRUZ).  E-mail: [email protected]  https://orcid.org/0000-0002-5422-7214   http://lattes.cnpq.br/6615962296256883


Referências desta apresentação

HABIB, Paula Arantes Botelho Briglia; VIANA, Iamara da Silva; LIMA, Silvio Cezar de Souza. Apresentação. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n. 27, p. 07-11, maio/ago. 2021. Acessar publicação original [DR]

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