Understanding European Movements – New social movements, global justice struggles, anti-austerity protest | Cristina Fominaya e Lurence Cox

Nos últimos anos os movimentos sociais ressurgiram não só mediaticamente, mas também enquanto fenómeno de estudo preponderante para entender as atuais dinâmicas das democracias europeias. Se estes frutos da Grande Recessão se difundiram globalmente, foi em muitos casos na Europa que se tornaram um ator central que começa agora a institucionalizar-se. Pela primeira vez, os movimentos sociais, que se vinham constituindo desde há décadas, abalaram os alicerces e pressupostos que sustinham as democracias europeias e as suas narrativas, questionando-as e propondo alternativas. Contudo, isto não significa que estes sejam unicamente fruto de um contexto específico, pelo contrário são agentes historicamente construídos.

Por esse motivo, o livro aqui em resenha é um contributo fundamental para entender as origens dos atuais movimentos. Aquando do ciclo de protestos globais de 2010/11, muitos dos textos publicados foram, e continuam a ser, marcados pela pressa inusitada de uma análise simplista, excessivamente descritiva e sem considerar as estruturas subjacentes à emergência desses mesmos movimentos, considerando-se apenas as causas imediatas dos mesmos. Em muitos casos, fizeram-no relevando uma rutura com os anteriores movimentos, sem ter em conta o seu contexto histórico de surgimento, redes nacionais e transnacionais de atores em que estão envolvidos, mas também culturas e repertórios de protesto. É por isso necessário procurar responder a estas questões colocando-as num continuum mais lato. Neste texto procurar-se-á olhar para este livro de uma perspetiva plural, questionando as pistas que lança nos atuais debates. Assim sendo, procura-se avaliar a obra perguntando até que ponto esta é capaz de evidenciar continuidades e ruturas. Para além disso, procurar-se-á lançar pistas de pesquisa tendo em conta o que este livro apresenta.

O livro divide-se em 4 partes distintas, para além da introdução, cada uma destas com o propósito de explorar diferentes movimentos e protestos europeus. Abre-se com um capítulo que questiona a relação entre movimentos sociais e teoria social. Depois deste questionamento teórico, os capítulos empíricos dividem-se entre as origens do Movimento de Justiça Global, a sua natureza e identidade e, por fim, os recentes movimentos anti-austeridade. O argumento que se encontra no cerne deste livro e que trespassa a grande maioria dos capítulos é que há uma continuidade histórica entre os diferentes movimentos e protestos em análise.

Após a introdução, os editores desta obra procuram demonstrar, naquele que é talvez o mais interessante texto deste livro, de que forma, por um lado a teoria social europeia se desenvolveu em boa parte fruto da sua relação com movimentos sociais diferindo dessa forma da tradição americana, e por outro, desconstruir os mitos de origem europeia acerca dos movimentos sociais. Como argumentam: “

(…) as ferramentas conceptuais para estudar os movimentos europeus são uteis a uma escala micro, mas incapazes de lidar com questões macro que são centrais para os movimentos europeus. Uma tradução acrítica do excepcionalismo americano (a fraqueza histórica da esquerda política e do movimento operário) tornou-se num pressuposto operacional dos movimentos sociais enquanto um nível particular do sistema político. Isto deixa totalmente de fora a experiência europeia onde os movimentos democráticos, nacionalista, operário, fascista, antifascista, comunista e anticomunista têm repetidamente refeito e remodelado Estados e reorganizado sociedade inteiras à sua própria imagem. ” (p.8)

De facto, não se pode esquecer que grande parte dos grandes autores e teóricos europeus do último século nas ciências sociais são ou foram parte dos movimentos eles próprios (dão como exemplo Marcuse e de Beauvoir), o que tem efeitos dúplices ao influenciar o seu pensamento e sendo eles próprios influentes no movimento. A sua visão sobre os novos movimentos sociais acaba por isso por ser mais complexa e enquadrada no contexto europeu.

A segunda parte deste livro intitula-se “Percursores Europeus do Movimento de Justiça Global” e procura entender sobre diferentes pontos de vista e diferentes casos as origens do Movimento de Justiça global, a partir de exemplos tão distintos como o italiano, francês e inglês. Ainda que pareça reduzido no que diz respeito aos casos, demonstram que não só há continuidades históricas em cada caso, como o próprio contexto influi sobre a formação dos movimentos. Desta forma note-se, por exemplo, o capítulo de Michal Osterweil (“A anomalia Italiana: lugar e história no Movimento de Justiça Global”) em que se mostra a preponderância dos movimentos autonomistas italianos na formação de narrativas, objetivos e formas organizativas nos movimentos globais. Para além destes, esta secção é especialmente atenta a difusão de práticas de protesto (ou repertórios) entre as intricadas redes que constituem este movimento a nível nacional. São sobretudo estas redes invisíveis que constituem a base de suporte destes grupos. Mas para além disso refere-se que este movimento teve origens distintas estando envolto em múltiplas continuidades e rupturas. Se em muitos casos dão continuidade a lutas antigas, por outro as suas reivindicações mudam e transformaram-se, como mostra Cristina Flesher Fominaya (Continuidade da Cultura do Movimento: o movimento anti estradas inglês como percursor do Movimento de Justiça Global), passando-se de reivindicações locais para umas de natureza global.

A terceira parte deste livro (Cultura e identidade na construção do “movimento dos movimentos” europeu) foca-se no processo cultural e formação de identidade deste movimento, sendo que grande parte dos capítulos se centra nos processos de difusão de práticas e discursos. Um dos mais interessantes capítulos deste livro é escrito por Christian Scholl (Europa como um espaço contagioso: a difusão através das fronteiras do Euromayday e do movimento de justiça do clima) e mostra o processo de difusão na europa de reivindicações e repertórios dos trabalhadores precários e do movimento contras as alterações climáticas. Estas são lutas particularmente importantes no contexto europeu atual e que, como mostra o autor, foram disseminadas ao longo de quinze anos em diversos movimentos. Desta forma, torna-se mais inteligível o processo histórico que levou a sua constituição ao longo das últimas décadas.

Na quarta parte deste livro “Compreendendo a Nova Primavera Europeia: Antiausteridade, 15-M, Indignados”, os vários capítulos mostram o caracter nacional de cada protesto/movimento e a sua imersão no mesmo, sem deixar de ter em atenção como estes refletem redes transnacionais. Salientam-se aqui dois capítulos sobre o 15-M e os Indignados em Espanha. O capítulo de Kerman Calvo demonstra que quem se mobilizou para este episódio de luta, isto é, as bases sociais do movimento, foram os jovens, com formação universitária, de esquerda e inseguros quanto às suas opções de vida futura. A sua principal motivação, segundo o autor, foi “lutarem por [terem] uma voz”. Complementar a esta análise, Eduardo Romanos rejeita que o movimento tenha uma natureza espontânea, como tende a ser considerado. Pelo contrário, irá demonstrar que o mesmo resulta de um conjunto de redes submersas de organizações previamente existentes que se mobilizaram para o efeito, beneficiando do apoio generalizado da população. Os vários capítulos desta secção tendem a repetir estes argumentos, procurando as genealogias e bases dos atuais movimentos no seu contexto nacional de formação.

Na conclusão, os editores avançam um conjunto de questões para futuras pesquisas sobre os protestos anti-austeridade. A primeira questão que colocam é se se pode considerar os protestos anti-austeridade a que se tem assistido nos últimos anos em várias partes do globo como parte de um mesmo ciclo? Tendo em conta a sua dispersão geográfica, qual é a ligação entre os diversos protestos e movimentos com outros de reivindicações semelhantes? Esta é, como reconhecem, uma questão empírica. O outro bloco de questões que colocam refere-se à continuidade: são estes protestos novos ou dão continuidade a ciclos de protesto prévios? Como dizem: ”Os debates entre novos versus velhos são populares na literatura, mas por vezes bastante estéreis. Uma linha mais frutífera de inquérito, e que foi adotada por muitos dos contribuintes para este volume, pergunta quais os elementos que são novos e que podem ser vistos como desenvolvimentos face a movimentos e redes prévias” (p. 255). Por fim, a última questão remete para o uso das novas tecnologias e a sua importância no contexto das atuais mobilizações. O argumento mais importante, nesta parte do livro, é que estes processos não operam num vazio histórico e cultural, pelo contrário, são antes de mais situados e contextuais, estando incorporados em múltiplas redes. São por isso processos longos e situados, mas ao mesmo tempo transnacionais que articulam diferentes espaços e realidades. Como dizem, é necessário continuar o esforço que este livro representa de perceber, através de etnografias sérias, o que é e será a construção de democracia “por baixo” na Europa.

Este livro constitui um excelente contributo para questionar abordagens mais imediatistas da crise, lançando pistas para pesquisas futuras e ajudando a entender as democracias europeias por outra perspetiva. Não há de todo uma utilização cega, apriorística com base numa receita de esquemas previamente existentes. Pelo contrário, as análises são baseadas em abordagens originais empírica e metodologicamente (com trabalho histórico e etnográfico). Ao ultrapassar a dicotomia entre novos e velhos movimentos vai-se mais longe analiticamente, reconciliando dimensões distintas como o nacional e transnacional. Isto permite identificar de forma mais clara as continuidades e ruturas entre movimentos. Ainda que abordem brevemente os movimentos surgidos com a crise, o livro em foco permite sobretudo questionar as abordagens mais recentes e assim abrir pistas para pesquisas futuras. É precisamente sobre este ponto que pretendo debruçar-me de seguida.

Apesar de diversas, as abordagens neste livro tendem a perseguir um argumento de cariz cultural sem localizar muitas das vezes os movimentos no seu contexto político específico. Ainda que se atenda a particularismos contextuais é por demais evidente que não se considera esta dimensão do problema. Gostaria assim de ensaiar um argumento partindo não só do contributo que este livro expressa, mas também considerando esta dimensão de análise, ajudando a complementar as pistas de pesquisa sobretudo no que diz respeito às reações à crise e à austeridade. Como refere Offe (2013) as reações políticas à crise na europa têm sido diversas, indo desde o colapso ou a transformação do sistema de partidos – incluindo-se aqui o surgimento de partidos populistas ou extremistas de esquerda ou direita; emergência de movimentos sociais diversos; e por fim, erupções episódicas de violência das populações excluídas. Deve-se ter em conta que todas estas têm bases sociais de apoio distintas, apesar de muitas das vezes os seus objetivos serem indistintos. Como denota Roberts (2008) na sua pesquisa sobre as consequências políticas dos processos de liberalização na América Latina, os contra movimentos foram plurais e envolveram uma rede de atores institucionais e não institucionais que têm importância na compreensão do resultado final.

Este volume é ténue no que diz respeito a explorar relações com outros atores que não apenas os movimentos. O foco é sobretudo em movimentos sociais e como estes se concretizam em protestos. Os últimos anos têm mostrado que as dinâmicas de protesto antiausteridade e dos movimentos sociais não se esgotam unicamente nestes, mas estão antes embrenhadas em configurações que envolvem diversos tipos de atores. Resulta por isso que os movimentos são não só condicionados por partidos e sindicatos, podendo eles próprios evoluir pela via institucional. Daí que, em muitos casos, os sindicatos continuem a ser um elemento fulcral na reconstituição das dinâmicas de protesto e resistência. Não se trata assim de entender os atuais movimentos à luz de continuidade e ruturas, ou face a novos e velhos movimentos, mas antes face à sua integração no conjunto das contingências e atores do processo político. Ao invés de uma perspetiva de raiz culturalista e movimentista que parece muita das vezes estar em voga e vincada neste livro, pronunciar-se-ia antes uma perspetiva acerca do processo político.

Resulta que neste livro não há referências explicitas a sindicatos, ou mesmo partidos. Estes são muitas das vezes os principais aliados dos movimentos, sendo escolas de formação, e compartilhando objetivos e reivindicações, ainda que os seus repertórios e culturas de protesto sejam por vezes diferentes. Falta também entender dentro deste conjunto de questões de que forma os movimentos contribuem para a formação de atores institucionais como os variados partidos que pululam na atual cena europeia.

Assim, se o argumento do livro era o de evitar uma reprodução das dicotomias entre novos e velhos movimentos, esta acaba por entrar de forma subtil ao não se considerarem também estes atores. A ligação entre atores institucionais e não institucionais é em meu entender fulcral para a compreensão das diferentes configurações de protesto que se constituem em diferentes países.

A isto acresce a constituição de uma agenda comparativa, tanto no espaço como no tempo. Apesar de no livro figurarem vários casos/países, não há capítulos de análise comparada que permitam analisar de forma mais aprofundada diferentes casos e daí depreender mecanismos e processos mais gerais de formação dos casos e países. Isto é, falta aprofundar casos distintos e a sua transformação ao longo do tempo. Ao invés disso, há vários estudos de caso que não se interligam entre si o que enfraquece o argumento geral presente no livro. Por exemplo, no que se refere ao caso espanhol, faltam alguns textos prévios na primeira parte para que um leitor menos informado pudesse compreender as raízes históricas dos movimentos e protestos abordados. Da mesma forma, outro exemplo desta continuidade ténue é como na segunda parte os vários capítulos se focam no caso italiano e ao chegar às mais recentes lutas não há qualquer capítulo sobre o mesmo no que se refere à crise da zona euro. Assim, se se evoca a importância histórica do caso italiano porque não abordá-lo também adiante nas suas continuidades? Por que razão ao invés de um movimento como aquele que surge em Espanha, emerge antes um partido de cariz populista como o Movimento 5 Estrelas, quando Itália figura entre os países mais importantes na constituição dos protestos e narrativas anti-globalização?

Outra questão que parece ficar por responder, no que a continuidades e ruturas diz respeito, é relativa ao ideário destes movimentos. A rejeição de uma democracia representativa substituída por uma de cariz participativo é pouco discutida na última parte deste livro, sendo que a presença de assembleias já se encontrava presente em Itália no “Movimento dos Movimentos”. A natureza das reivindicações que cariz político era já evidente e há uma clara continuidade neste aspeto que aqui não é discutida (ou é apenas brevemente mencionada).

Assim, pese embora os aspetos enumerados, este livro constitui sem dúvida, uma primeira contribuição inestimável para compreender os atuais movimentos na Europa e romper com alguns pressupostos das atuais análises. Todavia, e como referi, apesar de muitos argumentos certeiros, falha por vezes na concretização dos mesmos.

Referências

OFFE, CLAUS. (2013). Participatory Inequality in the Austerity State: A Supply-Side Approach. IN Politics in the Age of Austerity, A. Schäfer and W. Streeck. Cambridge, Polity.

ROBERTS, KENNETH M. (2008), The Mobilization of Opposition to Economic Liberalization, Annual Review of Political Science, 11.


Resenhista

Tiago Carvalho – Doutorando – Departamento de Sociologia Universidade de Cambridge. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

FOMINAYA, Cristina Flesher; COX, Laurence (Eds.). Understanding European Movements – New social movements, global justice struggles, anti-austerity protest. Routledge, 2013. Resenha de: CARVALHO, Tiago. Movimentos sociais na Europa: continuidades e ruturas. Oficina do Historiador. Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 237- 243, jan./jun. 2016. Acessar publicação original [DR]

 

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