Negros de prestígio e poder: ascensão social/estilos de vida e racismo na cidade de Salvador | Ivo de Santana

O livro é resultado da tese de doutorado em Ciências Sociais defendida na Universidade Federal da Bahia, em 2009, com foco nas “trajetórias profissionais de pessoas negras que vivenciaram processos de mobilidade social na administração pública” (p. 35) na capital baiana. A temática não é inédita para Ivo de Santana, já que havia desenvolvido pesquisas nos anos 1990 sobre executivos negros em organizações bancárias, tendo publicado sobre o assunto um artigo na Afro-Ásia, n. 23 (2000).

Desde as primeiras páginas anuncia-se um recorte metodológico preciso sobre quais sujeitos foram escolhidos nas microdinâmicas da ascensão: “comandante de corporação militar, reitor de universidade, corregedor-chefe de polícia, delegado titular, diretor de hospital, diretor de faculdade, juiz, desembargador, superintendente de instituição, dentre outros postos de prestígio e visibilidade” (p. 35). E salienta o autor que todos fazem parte de uma mesma geração. A escolha da investigação empírica concentrou-se em entrevistas, levando em conta as histórias de vida, as experiências e reflexões dos próprios sujeitos da pesquisa.

O livro está estruturado em quatro capítulos: 1) “Relações raciais: a diversidade de termos e conceitos”; 2) “A ascensão social dos negros como campo de estudo”; 3) “O trabalho de campo: desafio de recontar a própria trajetória”; e 4) “Experiências de ascensão: uma geração de entremeio”.

Duas perguntas são previamente apontadas para compreender a relação entre desigualdades raciais e ascensão social, e as perspectivas traçadas pelo autor: “como se constituem esses processos de ascensão social? Como a experiência de ascensão é valorizada pelos sujeitos [negros] que a vivenciaram?” (p .44).

Apontando que pesquisas sobre camadas médias negras foram feitas desde os anos 1940, Ivo de Santana afirma peremptoriamente que a maioria dessas investigações realizadas “são ainda insuficientes para a compreensão desse processo” (p. 44), e que muitas delas, “por terem um viés quantitativo, desmereceram, em certa medida, as subjetividades de seus interlocutores” (p. 44). Esse é o momento do livro em que o autor ressalta a sua diferença para com os estudos até então realizados. E penso que essa marca é o que sempre esperamos de uma empreitada intelectual de tal porte.

No capítulo 1, a opção foi analisar termos e conceitos que constituem o escopo do campo das relações raciais – identidade, negro, raça, racismo, preconceito, discriminação, democracia racial – no intuito de “tornar mais compreensíveis as experiências de ascensão aqui estudadas” (p. 67).

Havemos de reconhecer algo muito recorrente em diversas pesquisas sobre relações raciais, e mesmo sobre o ativismo negro e suas organizações: nos discursos dos ativistas, seja em entrevistas, ou em publicações negras, como jornais e boletins, esses termos e conceitos estão costumeiramente inter-relacionados e formam, portanto, uma espécie de conjunto retórico-argumentativo direcionado tanto para o interior dos movimentos negros, quanto para a arena pública.

Ao chamar a atenção para o conceito de democracia racial na sociedade brasileira, Ivo de Santana utiliza o seguinte argumento, o qual, de antemão, já aponto algo que pode indicar simplismos interpretativos:

Foi nessa tensão entre a realidade e sua interpretação que surgiu a teoria da democracia racial que, afirmando-se como mito, satisfazia aos interesses da elite do país em um momento em que se buscava solução para o “problema racial”, considerado um forte complicador na definição da nacionalidade brasileira. No seu discurso, ela eliminava a desigualdade entres as três raças formadoras da sociedade brasileira, afirmando que existia uma relação de igualdade entre elas e firmando-se, progressivamente, como uma imposição política, na qual se destacava a proibição social ou até institucional de se falar em racismo e preconceito racial. O mito começa a ser desfeito, pelo menos no plano cognitivo, a partir do estudo piloto da Unesco, pioneiro em indicar o racismo ocultado sob o discurso da democracia racial (p. 77).

Essa questão, destacada no capítulo 2, não é tão simples. Penso que é necessário salientar que disputas regionais, desde os anos 1930, estavam presentes no embate entre os organizadores dos congressos afro-brasileiros, respectivamente Gilberto Freyre e Edison Carneiro, realizados no Recife e em Salvador; se essas posturas acadêmicas envolviam concepções sobre o caráter científico das pesquisas sobre a “problemática negra”, também demonstravam percepções das práticas políticas no ativismo, e no meio intelectual e acadêmico. Daí, aponto algumas perguntas candentes até os anos 1950: Qual seria a prioridade das pesquisas? O estudo das relações raciais? A luta do negro deveria coincidir com a luta operária? O caminho da libertação racial seria o mesmo da libertação social? A luta de classes negaria a negritude? O preconceito de cor ocultaria fatores econômicos ou ultrapassaria a linha de classes?

Eram indagações que refletiam um ambiente político-acadêmico tenso entre ativistas negros, intelectuais negros e não negros, presentes, por exemplo, no Congresso do Negro Brasileiro, promovido pelo Teatro Experimental do Negro, entre agosto e setembro de 1950. E o que se manifestava como defesa da democracia racial não era de exclusividade de intelectuais e acadêmicos brancos. Muito pelo contrário, intelectuais e ativistas negros também defendiam a democracia racial como um valor positivo da sociedade brasileira, ao mesmo tempo que denunciavam a existência do preconceito racial. Ou seja, isso não se constituía um paradoxo argumentativo, como acontecerá na reemergência do ativismo negro no Brasil na década de 1970.

Daí que é necessário compreender as disputas interpretativas, inclusive na adoção de teorias marxistas para criticar Gilberto Freyre, feitas por sociólogos paulistas como Florestan Fernandes, e, noutra direção, até mesmo pelos governos militares e a grande imprensa nos anos 1970. Ou, se quiserem ir além, considerem a interpretação de que o Brasil se constituía um paraíso racial, como era visto por intelectuais e ativistas afro- -americanos, até o advento dos movimentos pelos direitos civis nos Estados Unidos. Algo que revela uma mudança radical na interpretação da sociedade brasileira por intelectuais e ativistas afro-americanos e a sua influência sobre o ativismo negro brasileiro. Passamos, então, entre as décadas de 1960-1970, de ser um paraíso para um verdadeiro inferno racial.

Penso que há uma história datada das relações entre a intelectualidade que se debruçou sobre as relações raciais na Terra Brasilis e o ativismo negro que não pode ser desprezada. Por certo, uma história tensa nas interpretações, mas de muita proximidade, e ocasionais distanciamentos, que deveria ser observada – vide a participação conjunta de intelectuais brancos e intelectuais e ativistas negros nos congressos afro-brasileiros da década de 1930 e o do TEN na década de 1950.

O capítulo 3 é dedicado à demonstração do trabalho de campo, os sujeitos da pesquisa, os instrumentos utilizados (roteiro, caderno de campo etc.), o ambiente onde as entrevistas ocorreram, a relação do autor com os selecionados, indicando o nível de empatia, confiança e intimidade anteriormente existente. O intuito foi “apontar possibilidades e singularidades observadas no confronto entre pesquisador e sujeitos pesquisados em situação de similaridades, tanto de condição sociorracial como de contextos vivenciados” (p. 124). Foram selecionados vinte profissionais negros que ascenderam no serviço público, entrevistados em um período (2005- 2006) de grande efervescência na arena política. Era visível, nesse período, ações e políticas públicas direcionadas para a quebra das desigualdades raciais. E vale ressaltar que nos seis primeiros anos do século XXI as instituições de Estado não passaram ao largo das tensões raciais, muito menos na definição de quais políticas poderiam ser orientadas e definidas, a exemplo das cotas para ingresso nas universidades públicas estaduais e federais.

Ivo de Santana era adotado como um “insider étnico” pelos sujeitos de sua pesquisa. A identificação, que se torna autoidentidade do próprio pesquisador, é apontada da seguinte forma:

Durante os depoimentos, era comum o uso do ‘nós’ ao mencionar determinados fatos, assim como expressões do tipo ‘você sabe do que estou falando’. Era como se estivessem me incluindo, partilhando experiências, buscando a confirmação de trajetórias e vivências comuns (p. 126).

Essa similitude é assim reafirmada: “éramos todos negros e tínhamos semelhante situação sociorracial” (p. 127), acrescentando que o pesquisador e a maioria dos seus entrevistados estavam na faixa etária dos 50 a 55 anos.

Para a definição de cor/raça dos entrevistados, a opção metodológica deu-se da seguinte maneira:

excluí os mulatos ou mestiços e privilegiei aqueles que, pelos caracteres fenotípicos, pareceram-me ter menos chances de escaparem da categoria ‘negros’ e que, afora isso, também se autodeclaravam como tal (p. 134).

Destaco nesse capítulo o cuidado do autor em apontar as estratégias metodológicas traçadas e executadas, o lugar do pesquisador em campo, aí inclusas as dificuldades encontradas, o diálogo que estabeleceu com a literatura das Ciências Sociais sobre as pré-noções teóricas, a vigilância epistemológica, a aproximação com os sujeitos da pesquisa, o exercício do estranhamento, os instrumentos da pesquisa – o roteiro da entrevista, o caderno de campo, e o local da entrevista (lar ou ambiente de trabalho) etc..

No capítulo 4, os sujeitos da pesquisa falam sobre seus percursos e trajetórias de ascensão social. O intuito é discutir

questões relacionadas à subjetividade, à identidade, ao cotidiano e outras dimensões da vida social desses indivíduos, visando a compreender como eles constroem representações sobre o processo de ascensão social e, de algum modo, contribuir para as reflexões sobre a relação entre a biografia pessoal, identidade negra e ascensão social dessa coletividade (p. 164).

Nas falas dessas pessoas, a diversidade se faz presente. Ivo de Santana destaca que, nos depoimentos, “o exercício da memória e a disposição para relembrar sentimentos, fatos e impressões muitas vezes doloridas do passado, tiveram importância essencial” (p. 164). Diz ainda que destacou

pontos que se apresentaram comuns à maioria das histórias individuais. Esses tópicos serão subdivididos em categorias temáticas, na tentativa de promover uma reconstituição mais aproximada do percurso biográfico dessas pessoas e aumentar a compreensão sobre a forma como elas encararam tais vivências, tanto no presente como no passado (p. 166).

Os tópicos vão do ambiente doméstico à “tomada da consciência racial”; do “projeto de ascensão familiar”, leia-se educação, à inserção na universidade; da participação no ativismo negro ao ingresso no serviço público; do estilo de vida e “comportamentos” à experiência do racismo. Obviamente, o autor não descarta a discussão sobre as identidades expressas por esses “negros bem-sucedidos”: a racial, a de classe e a social, visualizadas como parte de um processo complexo nas suas respectivas trajetórias. Os depoimentos proporcionam vigor analítico, levando o leitor a compreender os sujeitos, ainda que haja riscos em tomá-los no seu conjunto e inferir considerações que possam ir além do grupo selecionado.

Tenho a convicção de que os percursos dos negros traçados por Santana muito nos revela sobre processos de ascensão e o lugar singular das identidades (racial, social e de classe) e do racismo. Trata-se de um livro que atualiza essa problemática nas Ciências Sociais, discutindo a literatura existente e, o que é mais relevante, a pertinência dos depoimentos coletados, as inquietações apreendidas e manifestas. É uma obra atual e deveras importante para os estudos afro-brasileiros.


Resenhista

Jocélio Teles dos Santos – Universidade Federal da Bahia. https://orcid.org/0000-0001-6720-9595


Referências desta Resenha

SANTANA, Ivo de. Negros de prestígio e poder: ascensão social, estilos de vida e racismo na cidade de Salvador. Rio de Janeiro: Ape Ku Editora e Produtora, 2020. Resenha de: SANTOS, Jocélio Teles dos. “Negros bem-sucedidos”: identidades (racial, social, de classe) e racismo. Afro-Ásia, n. 64, p. 705-710, 2021. Acessar publicação original [DR/JF]

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