Race for Profit: How Banks and the Real Estate Industry Undermined Black Homeownership | Keeanga-Yamahtta Taylor

Keeanga Yamahtta Taylor Imagem KQED
Keeanga-Yamahtta Taylor | Imagem: KQED

In the context of a COVID-19 world, housing and living standard inequities are a phenomenon that have surely been exacerbated. The conditions created by global pandemic have undoubtedly contributed further to greater poverty in many areas—from housing, to jobs, to access to food security and water resources (informed by colonial legacies in North America especially). Any discussion of histories related to global or regional housing must be considered from this sort of lens. In this sense, the recent book Race for Profit: How Banks and the Real Estate Industry Undermined Black Homeownership, published not long before the pandemic began in 2020 offers prescient analysis.

In Race for Profit Keeanga-Yamahtta Taylor argues that “unprecedented public-private partnership in the production of low-income housing tethered the HUD [Department of Housing and Urban Development] and the FHA [Federal Housing Administration] to real estate brokers, mortgage bankers, and homebuilders” (p.4). The historiographical focus rests on a critique of the “declensional framing” of “urban crisis” through the late 1960s and 1970s, which Taylor suggests, “belies the dynamic and innovative methods of financing generated to develop the urban housing market” (p.5). As she forcefully argues:

[f]ar from being a static site of dilapidation and ruin, the urban core was becoming an attractive place of unparalleled opportunity, a new frontier of economic investment and extraction for the real estate and banking industries. The race for profit in the 1970s transformed decaying urban space into what one U.S. senator described as a ‘golden ghetto’ where profits for banks and real estate brokers were never ending, while shattered credit and ruined neighborhoods were all that remained for African Americans who lived there (p.4). Leia Mais

Vozes negras na história da educação: racismo/educação e movimento negro no Espírito Santo (1978- 2002) | Gustavo Henrique Araújo Forde

O livro ora resenhado é resultado da pesquisa realizada pelo autor no doutorado em educação na Universidade Federal do Espírito Santo. Selecionada no Edital de projetos da Secretaria de Estado da Cultura do Estado do Espírito Santo. O texto revela uma face ainda muito silenciada da presença da população negra na história da educação brasileira.

As principais questões que movimentaram Forde ao longo da pesquisa foram: de que modo a educação foi constituída como pauta central do movimento negro do Espírito Santo? Quais usos e sentidos foram atribuídos à educação pelo conjunto desse movimento? De que maneira a militância negra movimenta e mobiliza seus espaços-tempos para o combate ao racismo na educação? De que modo a categoria “negro” é concebida na agenda política do movimento negro? Quais implicações o movimento negro tem produzido no contexto da educação escolar? São questões que o autor responde de forma crítica ao longo de cada capítulo do livro. Leia Mais

Cofradías de indios y negros: origen/ evolución y continuidades | Teresa Eleazar Serrano Espinosa

Resultado del proyecto “Las cofradías y organizaciones cívico-religiosas en México, siglos XVI-XIX”, y producto también del encuentro “Las cofradías, panorama histórico y antropológico en México”, realizado en 2014, la obra que reseñamos reúne diez estudios monográficos en torno a este tema ya bien conocido de nuestra historiografía. Como es común en los libros colectivos, su riqueza se encuentra en la diversidad de objetos de estudio y de metodologías de análisis, bien que en este caso encontramos tanto planteamientos muy clásicos como algunos realmente originales. Según se indica desde el título, en el amplio y casi inabarcable océano del universo cofrade, la coordinación de la obra eligió en concreto una categorización a partir de criterios étnicos. Esta delimitación se hace aún más específica a partir de un marco cronológico novohispano, según se aclara en la presentación, en la que además se explica la voluntad de reflexionar historiográficamente sobre su conformación “entre grupos marginales”. Se extraña un poco que no haya en esa introducción un balance historiográfico, pues sólo se remite al lector a una obra previa derivada del mismo proyecto. Dicho balance acaso hubiera propiciado una reflexión más profunda en torno a la noción misma de cofradía y las ambigüedades del vocabulario utilizado para definirla. Lo mismo se habla de ellas en términos de “asociación” que de “institución colonial”, y en los capítulos siguientes también se les reconoce como “corporación”, nociones todas que ameritarían una explicación particular. En cambio, la presentación anticipa las líneas generales que efectivamente se encuentran en el desarrollo del capitulado: la relación conflictiva con “diversas autoridades”; su “larga duración” a pesar de ello, y su “dinámica económica”, es decir, sus bienes y sus usos. Leia Mais

Colour Matters: Essays on the Experiences/ Education/ and Pursuits of Black Youth | Carl E. James

Carl E. James Imagem Tweeter
Carl E. James | Imagem: Tweeter

Dr. Carl E. James (FRSC) is currently the Jean Augustine Chair in Education, Community and Diaspora in the Faculty of Education at York University. Over the past three decades, his scholarship has focused on the intersections of race, ethnicity, culture, language, and identity in the Canadian context. Dr. James’ essay collection entitled Colour Matters: Essays on the Experiences, Education, and Pursuits of Black Youth is a culmination of his research about Black Canadian youth.

A key feature of this collection is that James structures the chapters with a “Call and Response” style, a linguistic form originating in sub-Saharan Africa. James describes this as a conversation that is meant to provoke larger critical dialogues. Each chapter begins with a “Call” that is, an essay drawn on primary and secondary research conducted by James over the past two decades. The second part of the chapter is a “Response” from one of ten internationally recognized scholars from the United Kingdom, Canada, and the United States. This structure allows the reader to integrate new perspectives about each topic. Leia Mais

Selling Black Brazil: Race/Nation/ and Visual Culture in Salvador/Bahia | Anadelia Romo

Em seu novo livro, a historiadora Anadelia Romo explora a construção de Salvador da Bahia como uma cidade “negra” por meio de uma fonte inovadora: guias turísticos ilustrados da cidade, escritos em português, dirigidos ao público nacional, em um momento de expansão do turismo doméstico (décadas de 1940-1960). Os guias, na sua maioria escritos por romancistas, jornalistas ou acadêmicos conhecidos, documentam mudanças importantes nas concepções de identidade local e regional. Mas eles são especialmente reveladores, argumenta Romo, pelas formas com que suas ilustrações ajudaram a estabelecer uma nova iconografia da cidade – uma iconografia que, ela argumenta, tornou-se “aceita como comum e natural” (p. 9), mas (naturalmente) possui uma história complexa e reveladora. Selling Black Brazil conta essa história. Leia Mais

Modernidades negras: a formação racial brasileira (1930-1970) | Antonio Sérgio Alfredo Guimarães

De acordo com Ítalo Calvino, “Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura”.1 O livro Modernidades negras, de Antonio Sérgio Guimarães, já nasceu um clássico. Primeiro, porque o autor tem a capacidade de poucos para sintetizar teorias raciais, de desigualdades, o racismo e agora a modernidade negra no Brasil, temas presentes em vários artigos dele que se tornaram clássicos. Em segundo lugar, dentro do contexto atual, em que a memória está cada vez mais relacionada aos relatos curtos sobre períodos recentes, o autor faz um recuo histórico e recupera um debate importante relacionado à raça, cor, etnia, racialização, identidade nacional, formação racial, cultura negra e racismo, no contexto nacional, e a partir dessa perspectiva é capaz de informar muito rapidamente às novas gerações sobre quando vigorava a crença na democracia racial no país. Leia Mais

Da Pedra do Sal Até Coelho da Rocha – Ilé Ase Ópó Àfónjá | Ed Machado

Na metade do século XIX, mais da metade da população brasileira era negra, esses números ainda são uma realidade. Não à toa, muitos estudiosos dizem ser o Brasil, um país com instituições europeias de cultura africana. Não precisavam os estudiosos afirmarem, ao olharmos paras ruas do Brasil, vemos África em todos os cantos, na música, na culinária, na dança, na língua e principalmente, na cor da pele do nosso povo. Com a religiosidade, não seria diferente.

Através da história oral, de documentos e cartas trocadas por mãe Aninha e sua filha, mãe Agripina, Ed Machado remonta toda a trajetória da criação de um dos primeiros terreiros de candomblé do Brasil. Leia Mais

Escritos de Liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista | Ana Flávia Magalhães Pinto

A narrativa sobre a circulação e experiências de homens negros livres, letrados, pensadores ativos na vida social no Rio de Janeiro e em São Paulo nas últimas décadas de vigência da escravidão é o tema predominante nessa obra, que teve sua origem no trabalho de pesquisa para o doutorado da autora, defendido na Universidade de Campinas em 2014. Agora vertida em livro e compondo o 46º volume da coleção Várias Histórias.

Marcada por um trabalho procedimental baseado na micro-história, a pesquisa é fartamente ancorada em um trabalho diligente e preciso sobre a documentação escolhida, explorada sob a autoridade de quem oportuniza ao leitor superar a visão, dominante em certa historiografia, de que se tratava de homens únicos e/ou isolados em sua geração e sociedade. Oferece-nos a autora desse livro a oportunidade de acessar, em sua proposta narrativa, uma prosopografia de negros brasileiros em atividade política e conexões urbanas, nas últimas décadas do século XIX, marcada pela “politização da raça a partir de escritos de liberdade (p.24). Leia Mais

Frontiers of Citizenship: A Black and Indigenous History of Postcolonial Brazil | Yuko Miki

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Yuko Miki | Foto: Fordham News |

MIKI Y Frontiers of citizenshipA especialização no campo das pesquisas históricas trouxe inegáveis avanços para o nosso conhecimento a respeito das indagações que fazemos sobre o passado. Ao lado desses avanços há armadilhas, quase que inevitáveis, especialmente para os historiadores em formação. É na definição dos recortes – seja ele espacial, cronológico, bibliográfico ou de grupos sociais – que se antevê o tamanho do cabresto que cerceia a visão do autor e retroalimenta interpretações de escolas clássicas. São recortes que não nascem livremente de perguntas – o único meio de dar unidade coerente à pesquisa, como ensinava Marc Bloch – e, sim, estão naturalizados pelos campos ou pelas instituições. No Brasil, uma das especializações mais curiosas é a que separa de forma extremamente rígida a história dos povos indígenas e dos escravizados afro-brasileiros. De modo geral, persiste a crença de que o avanço territorial da escravização afro-brasileira tinha como sua consequência o desaparecimento ou perda de importância dos povos indígenas. Os estudos sobre o século XIX vem sistematicamente negando essa perspectiva, mas muitas vezes também criando uma história dos povos indígenas no Império do Brasil quase autônoma à da escravização dos afro-brasileiros. [3]

Frontiers of Citizenship, de Yuko Miki, já mereceria ser saudado por explorar essa primeira “fronteira”: a que separa a história de afro-brasileiros e de indígenas no Império do Brasil. Mais uma vez, o olhar estrangeiro nos ajuda a questionar os cânones da história nacional. Miki nascida em Tóquio, mas há muitos anos radicada nos Estados Unidos, onde é professora da Fordham University (NY), conta ao longo do livro o seu estranhamento em ver a história desses dois grupos tão apartada. Por outro lado, o livro – e especialmente seus comentários de contracapa – lhe atribuem muitas vezes uma originalidade que não é verdadeira. Muitos pontos – sobretudo em relação à história dos povos indígenas – podem ser pouco conhecidos do público estrangeiro, mas são absolutamente sabidos entre os historiadores brasileiros. A despeito disso, o esforço em buscar uma única interpretação, ou mesmo pontos de encontros, para a história de indígenas e afro-brasileiros escravizados é um ganho real.

Desde o início o livro chama a atenção por essa fusão que não está apenas na capa – uma bela arte de sobreposição de imagens de indígenas e afro-brasileiros – mas por se tratar de um volume da “Afro-Latin America” da Cambridge que tem como recorte espacial o vasto território conhecido na historiografia por ser aquele que foi alvo de D. João, em 1808, para se fazer guerra aos indígenas botocudos. Poucos territórios têm tão marcadamente um tema e uma cronologia: a guerra justa contra os botocudos e o período de 1808 a 1831, quando esta prática é extinta pelo Parlamento. Quase que exclusivamente tratado pela historiografia sobre os povos indígenas, é centro de discussão para as políticas indigenistas e as modalidades de trabalho imposta a estes povos. [4]

Miki implode esses parâmetros. Em primeiro lugar, avança a análise até o final do Império, permitindo revelar um quadro de mudanças muito mais complexo do que aquilo que se vê apenas até 1831, passando inclusive pelo Regulamento das Missões (1845) [5], o movimento abolicionista e a própria abolição. Ainda mais importante, Miki tenta enxergar essa região – que ela chama de “Fronteira Atlântica”, algo que problematizaremos adiante – como uma espécie de síntese, de um laboratório do Império. Afinal, foi ali que se abriu no começo do século XIX uma política generalizada de extermínio indígena. É verdade que isto jamais foi suprimido no Império português, mas especialmente depois de Pombal as políticas que tentavam transformar os indígenas em portugueses tornaram-se centro da estratégia do Império na disputa por territórios com Madri.

Ao mesmo tempo, o espaço colonial é o símbolo de uma mudança política com a vinda da Corte, Corte que não valorizava mais “zonas tampão” – papel que o território e os botocudos tinham ocupado até 1808 para impedir o desvio de pedras preciosas. Ao invés disso, o que se precisava era expandir-se “para dentro”, feliz expressão de Ilmar Mattos que fará ainda mais sentido já no Império do Brasil. [6] A expansão agrícola na “Fronteira Atlântica” é acompanhada de tentativas de implementação de novas alternativas de propriedade e trabalho. A mais famosa dessas iniciativas é a Colônia Leopoldina, incentivada pela própria Coroa através da vinda imigrantes e a distribuição de pequenas propriedades. A rápida transformação dessa experiência em apenas mais uma grande monocultura tocada com braços de escravizados afro-brasileiros, somada ao fato de ter se tornado um dos símbolos da resistência escravista, é extremamente destacado pela autora. Em alguma medida, o tom pessimista de toda a obra é sintetizado no “fracasso” da Colônia Leopoldina em manter-se com o trabalho livre.

Ainda que não dito explicitamente, Miki parece descrever um processo de mudança que nunca ocorre totalmente, como se o peso do passado fosse intransponível. A polissemia da palavra fronteira é habilmente explorada pela autora. A “Fronteira Atlântica” é a região que estuda. Os indígenas e afro-brasileiros estão fisicamente nesta fronteira, mas a sua cidadania também está em uma fronteira mais intangível, em uma área difícil de saber com clareza quem está dentro e quem está fora. Ainda que se valendo de análises já bastante conhecidas – sobretudo, de Sposito e Slemian [7] – Miki faz uma problematização dessa questão, lembrando que a constituição brasileira não era racializada. Ou seja, não era a cor da pele que determinava os direitos políticos. Por outro lado, condições jurídicas intrinsicamente ligadas à condição de homens e mulheres não brancos – como ser escravo ou considerado “selvagem” no caso dos indígenas – excluíam essas pessoas do “pacto político”. É apenas no final do livro – já discutindo o abolicionismo e o final do Império – que Miki deixa explícito que a negativa de direitos políticos para indígenas e negros era um projeto e não uma deficiência do sistema. Nesse ponto, há uma perfeita sintonia entre os projetos que analisa para indígenas e para os escravos após a abolição: em todos esses casos jamais se pensa em entregar terras e autonomia a esses povos. Ao contrário, a condição de subordinados, tutelados por fazendeiros ou religiosos é vendida como a única forma para impedir que ex-escravizados ou indígenas se entregassem ao ócio. Um discurso que se sustentou por décadas – e no caso dos indígenas, por séculos – e que ela registrou ecoar até mesmo entre os mais radicais abolicionistas da “Fronteira Atlântica”.

Se ao discutir a extensão da condição de cidadãos para indígenas e afro-brasileiros, Miki consegue uma análise mais integrada, o mesmo não acontece a respeito de outros aspectos. O exemplo mais evidente nesse sentido é o uso desses homens como mão de obra. Há, evidentemente, a demonstração de que em todo esse território havia o emprego significativo de indígenas e afro-brasileiros. No entanto, este são universos que estavam no mesmo território, mas que a narrativa organiza em sistemas produtivos bastante distintos. Ou seja, o enfoque para os indígenas está, de modo geral, nas missões e os escravizados afro-brasileiros nas fazendas. A pureza dessas separações tão estanques é difícil de acreditar em um território como esse. Bezerra Neto já mostrou que as fazendas monocultoras do Pará, por exemplo, sempre foram tidas como tocadas por mão de obra exclusivamente escravizada afro-brasileira, mas na verdade dividia os campos com indígenas. [8]

Antes que se diga que se trata das “excentricidades” do Cabo Norte, Marco Morel, em belíssimo e recente trabalho sobre os botocudos, justamente mostra como a sua mão de obra era frequentemente requisitada para os mais diferentes tipos de trabalho, ocupando frentes inclusive no entorno da Corte. Além do trabalho em obras públicas, Morel dá vários exemplos de como eram recorrentes as denúncias do emprego de indígenas em fazendas em toda essa região, muitas vezes desviados de instituições públicas sob a alegação de que era um método de civilização mais barato. [9] Para além disso, Miki passa ao largo da discussão mais interessante da historiografia recente: aquela que implode a visão dicotômica que separava todo o trabalho no Brasil do século XIX nas categorias de trabalho livre ou trabalho escravo. Em vez disso, há uma gigantesca zona cinzenta – não só no Brasil, mas em todo o mundo – em que homens livres são obrigados a trabalhar sob as mais diferentes formas de coerção, inclusive físicas. [10] Indígenas e afro-brasileiros eram especialmente alvo dessas ações que Miki totalmente ignora no livro.

Por fim, há ainda uma última consideração geral: a ideia de classificar esta região de ataque aos botocudos como “Fronteira Atlântica”. Miki insiste muito na ideia da fronteira, certamente influenciada pela tradição americana e critica o pouco uso desse termo na historiografia brasileira. No entanto, esta designação parece ter muitas fragilidades: no Império do Brasil, no processo de “expansão para dentro”, a fronteira é o recorrente e não a exceção. Nesse sentido, a região estudada por Miki parece estar longe de ser algo particularmente singular.

Mais especificamente sobre a distribuição dos capítulos é importante salientar que as suas divisões são temáticas, ainda que de modo geral a evolução dos capítulos também siga em alguma medida um avanço cronológico. Assim, o primeiro capítulo explora as “fronteiras da cidadania”, enquanto o segundo busca dar uma interpretação ao que ela chama de “política popular” (em tradução livre). Nos capítulos seguintes, outros temas giram em torno de tópicos como a mestiçagem, a violência, os “campos negros” e o abolicionismo. Os capítulos podem ser lidos separadamente, quase sem prejuízo do seu entendimento, o que por sua vez revela um problema de coesão da obra no seu conjunto. Também é peculiar a mistura de abordagens mais “estruturais” – como as discussões da cidadania a partir de documentos do centro político do Império – com narrativas totalmente focadas na “agência”. Especialmente nesse último ponto a obra encontra mais dificuldades. Há alguns insights maravilhosos, mas custa enxergar que alguns eventos possam ser usados para generalizações reiteradamente feitas.

Apesar das críticas, Frontiers of Citizenship é um livro que provoca muitas reflexões e incomoda ao buscar análises de ângulos inusuais. Isso por si só já basta para merecer a sua leitura.

Notas

3. Entre outras novas evidências, percebe-se o uso da mão de obra indígena mesmo em regiões irrigadas com escravizados afro-brasileiros, como São Paulo ou mesmo a região do Vale do Paraíba, pelo menos até um determinado período. Entre outros, veja LEMOS, Marcelo Sant’ana. O índio virou pó de Café? Resistência indígena frente à expansão cafeeira no Vale do Paraíba. Jundiaí: Paco Editorial, 2016; DORNELLES, Soraia Sales. Trabalho compulsório e escravidão indígena no Brasil imperial: reflexões a partir da província paulista. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 38, nº 79, 2018.

4. Para uma síntese, SPOSITO, Fernanda. As guerras justas na crise do Antigo Regime português. Análise da política indigenista de D. João VI. Revista de História (USP), v. 161, p. 85-112, 2010.

5. Trata-se da primeira lei para os povos indígenas como validade em todo o território do Império.

6. MATTOS, Ilmar Rohloff de. Construtores e herdeiros: a trama dos interesses na construção da unidade política. Almanack Braziliense, n. 01, maio de 2005.

7. SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros. Indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-45). São Paulo: Alameda, 2012; SLEMIAN, Andrea. “Seriam todos cidadãos? Os impasses na construção da cidadania nos primórdios do constitucionalismo no Brasil (1823 – 1824)”. In: JANCSÓ, István (org.). Independência: História e historiografia. São Paulo: Editora HUCITEC; FAPESP, 2005.

8. BEZERRA NETO, José Maia. Escravidão Negra no Grão Pará (séculos XVIII-XIX). Belém: Paka-tatu, 2012.

9. MOREL, Marco. A Saga dos Botocudos: guerra, imagens e resistência indígena. São Paulo: Hucitec, 2018.

10. Entre outros, MACHADO, André Roberto de A. O trabalho indígena no Brasil durante a primeira metade do século XIX: um labirinto para os historiadores. In: Henrique Antonio Ré, Laurent Azevedo Marques de Saes e Gustavo Velloso. (Org.). História e Historiografia do Trabalho Escravo no Brasil: novas perspectivas. 1ed.São Paulo: Publicações BBM / Alameda, 2020; Mamigonian, Beatriz G. Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017; LINDEN, Marcel van der. Trabalhadores do Mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Campinas: UNICAMP, 2013; STEINFELD, Robert J. The invention of free labor: the employment relation in English & American Law and Culture, 1350-1870. EUA, The University of North Carolina Press, 1991.

Referências

BEZERRA NETO, Jose Maia. Escravidao Negra no Grao Para (seculos XVIII-XIX). Belem: Paka-tatu, 2012.

DORNELLES, Soraia Sales. Trabalho compulsorio e escravidao indigena no Brasil imperial: reflexoes a partir da provincia paulista. Revista Brasileira de Historia. Sao Paulo, v. 38, nº 79, 2018.

LEMOS, Marcelo Sant’ana. O indio virou po de Cafe? Resistencia indigena frente a expansao cafeeira no Vale do Paraiba. Jundiai: Paco Editorial, 2016.

LINDEN, Marcel van der. Trabalhadores do Mundo: ensaios para uma historia global do trabalho. Campinas: UNICAMP, 2013.

MACHADO, Andre Roberto de A. O trabalho indigena no Brasil durante a primeira metade do seculo XIX: um labirinto para os historiadores. In: Henrique Antonio Re, Laurent Azevedo Marques de Saes e Gustavo Velloso. (Org.). Historia e Historiografia do Trabalho Escravo no Brasil: novas perspectivas. 1ed.Sao Paulo: Publicacoes BBM / Alameda, 2020.

MAMIGONIAN, Beatriz G. Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

MATTOS, Ilmar Rohloff de. Construtores e herdeiros: a trama dos interesses na construcao da unidade politica. Almanack Braziliense, n. 01, maio de 2005.

MOREL, Marco. A Saga dos Botocudos: guerra, imagens e resistencia indigena. Sao Paulo: Hucitec, 2018.

Resenha de MIKI, Yuko. Frontiers of Citizenship: A Black and Indigenous History of Postcolonial Brazil. New York: Cambridge University Press, 2018.

SLEMIAN, Andrea. “Seriam todos cidadaos? Os impasses na construcao da cidadania nos primordios do constitucionalismo no Brasil (1823 – 1824)”. In: JANCSO, Istvan (org.). Independencia: Historia e historiografia. Sao Paulo: Editora HUCITEC; FAPESP, 2005.

SPOSITO, Fernanda. As guerras justas na crise do Antigo Regime portugues. Analise da politica indigenista de D. Joao VI. Revista de Historia (USP), v. 161, p. 85-112, 2010.

SPOSITO, Fernanda. Nem cidadaos, nem brasileiros. Indigenas na formacao do Estado nacional brasileiro e conflitos na provincia de Sao Paulo (1822-45). Sao Paulo: Alameda, 2012.

STEINFELD, Robert J. The invention of free labor: the employment relation in English & American Law and Culture, 1350-1870. EUA, The University of North Carolina Press, 1991

André Roberto de A. Machado – Universidade Federal de São Paulo, Departamento de História. Guarulhos – São Paulo – Brasil. Professor do Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP. É graduado e doutor em História pela Universidade de São Paulo e realizou pós-doutorados no CEBRAP e nas universidades de Brown e Harvard. E-mail: andre. [email protected]


MIKI, Yuko. Frontiers of Citizenship: A Black and Indigenous History of Postcolonial Brazil. New York: Cambridge University Press, 2018. Resenha de: MACHADO, André Roberto de A. Construindo fronteiras dentro das fronteiras do Império do Brasil. Almanack, Guarulhos, n.27, 2021.

Acessar publicação original [DR]

Negros de prestígio e poder: ascensão social/estilos de vida e racismo na cidade de Salvador | Ivo de Santana

O livro é resultado da tese de doutorado em Ciências Sociais defendida na Universidade Federal da Bahia, em 2009, com foco nas “trajetórias profissionais de pessoas negras que vivenciaram processos de mobilidade social na administração pública” (p. 35) na capital baiana. A temática não é inédita para Ivo de Santana, já que havia desenvolvido pesquisas nos anos 1990 sobre executivos negros em organizações bancárias, tendo publicado sobre o assunto um artigo na Afro-Ásia, n. 23 (2000). Leia Mais

Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça / Reni Eddo-Lodge

Em uma conversa em um grupo de WhatsApp, diante de uma tirinha que ridicularizava a questão da representatividade, uma colega de profissão, negra e mãe de uma filha de três anos, também negra, comentou como a interpretação da tirinha a incomodava, porque era rasa. Recebeu como resposta de um colega de área, professor universitário, que “o incômodo faz parte da vida. É assim mesmo.”

Reni Eddo-Lodge, autora do livro Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça, escreve que desde os quatro anos ela entende viver em um mundo de privilégio branco (Eddo-Lodge, 2019, p. 81), ao reconhecer na televisão a divisão entre mocinhos e vilões representados por pessoas brancas x negras. Aparentemente, muitos de nós, brancos e brancas, ainda não nos entendemos privilegiados e esse é o motivo pelo qual a jornalista se viu motivada a escrever esse livro. Estava cansada de ouvir os mesmos argumentos contestando esse tal de privilégio branco vindos de pessoas próximas e decidiu publicar sua resposta em livro para se livrar desse fardo (o que, evidentemente, como a própria afirma, não aconteceu). Gabi de Pretas, que faz a apresentação do livro e que é criadora do canal de YouTube DePretas, recomenda o livro a pessoas brancas que se perguntam sobre seu papel na luta antirracista, àquelas que nunca se perguntaram sobre sua branquitude e a seus colegas negros e negras que já não aguentam mais esses debates.

Diante de uma conversa como a que mencionei no começo deste texto, é compreensível o cansaço que parte de nossos colegas negros, indígenas ou mulheres sentem ao se deparar repetidas vezes com a necessidade de confrontar parentes, amigos e colegas de profissão, em ambientes que deveriam ser seguros, sobre temas como esses, e ainda sair como as “encrenqueiras”, “intolerantes”, “imaturas” ou qualquer versão eufemística que nossos colegas encontram para não usar o já condenado “racismo reverso”. Eddo-Lodge faz o serviço de mostrar que a discussão do privilégio branco é ainda mais urgente. É muito mais simples contestar extremistas e supremacistas brancos, uma vez que seu posicionamento já é muito claro. Mas a insídia do racismo está em justamente passar despercebido pelas nossas relações mais íntimas e cotidianas. Como a própria Eddo-Loge afirma: “Parece haver uma crença entre alguns brancos de que ser acusado de racismo é muito pior do que o próprio racismo” (Eddo-Lodge, 2019, p. 116). E é em espaços como grupos de WhatsApp, festas familiares, ambientes de trabalho em que muitas vezes ele adquire maior perniciosidade psicológica, uma vez que são exigidas classe e elegância aos nossos colegas pretos e pretas ao retorquir seus colegas brancos.

Não encontramos, no livro, referências a teorias ou autorias que construam um arcabouço conceitual, teórico e/ou epistemológico para o racismo. Reni Eddo-Lodge, em linguagem jornalística, direta e sem muitas notas de rodapé, se utiliza principalmente de dados estatísticos, legislação e coberturas jornalísticas referentes à Inglaterra desde a 1ª Guerra Mundial e entrevistas e depoimentos de pessoas brancas e mestiças [1] para provar seu argumento: o da existência de um privilégio branco. Seu raciocínio é apresentado pela generalização de argumentos que ela destrincha capítulo após o outro, e que servem como um material didático para nos educar sobre temas recorrentes em nossas trajetórias como docentes, colegas, parceiros e parceiras: punitivismo e violência policial; cotas, representatividade e tokenismo [2]; racismo e preconceito; queda de estátuas e liberdade de expressão; interseccionalidade; acusações de fragmentação e diversionismo pela própria esquerda. Para ao fim compreendermos que racismo não é algo referente apenas a ações individuais, morais. Racismo é problema estrutural, que organiza todas as nossas relações sociais, cegando a branquitude e permitindo-lhe que chegue ao ponto de responder a uma mãe negra que o incômodo faz parte da vida (“Quando focam em ofensas, ao invés de sua própria cumplicidade em um sistema drasticamente injusto, eles transferem, com sucesso, a responsabilidade de consertar o sistema dos beneficiados por ele para aqueles mais inclinados a perder por causa dele” [Eddo-Lodge, 2019, p. 116-117]). Ironicamente, se há uma coisa para que “Porque não converso mais com pessoas brancas sobre raça” serve é para incomodar. É muito desconfortável, como bem alertou Gabi de Pretas, ler Reni e se perceber como alguém a quem já ocorreram alguns dos argumentos que ela contesta.

A reivindicação não é apenas por igualdade, já que isso presume ainda a manutenção de um sistema que permanece exclusivo, com apenas o revezamento dos indivíduos que ocupam os espaços de poder. A reivindicação de Reni, e de tantas outras, e que incomoda a tantos de nós ao ponto de rechaçá-las, acusando-as de reivindicação de superioridade moral, é de reformulação total do sistema: “O ônus não está em mim para mudar. Ao contrário, está no mundo ao meu redor” (Eddo-Lodge, 2019, p. 155).

Ao final do livro, Eddo-Lodge tem a generosidade de sugerir algumas possibilidades para essa mudança. Que reconstruamos, pois, esse mundo. Nossas crianças não merecem se conformar com a inevitabilidade de seus incômodos.

Notas

1. Esse é o termo utilizado no livro para indicar filhos de casamentos interraciais.

2. No livro, a tradutora Elisa Elwine define tokenismo da seguinte forma: “tokenismo é uma expressão inglesa que se refere à prática de fazer esforço simbólico com o objetivo de ser inclusivo para membros de minorias. Seria uma forma de aparentar igualdade racial ou sexual” (Eddo-Lodge, 2019, p. 72).

Aryana Costa – Professora do Departamento de História / UERN – campus Mossoró, trabalha com ensino de História e historiografia.


EDDO-LODGE, Reni. Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça. Belo Horizonte: Letramento, 2019. 214 p. Tradução de Elisa Elwine. Resenha de: COSTA, Ariana. “Mas nem todo branco…”. Humanas – Pesquisadoras em Rede. 20 jul. 2020. Acessar publicação original. [IF]

 

Frontiers of Citizenship. A black and Indigenous history of Postcolonial Brazil – MIKI (FH)

MIKI, Yuko. Frontiers of Citizenship. A black and Indigenous history of Postcolonial Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 2018. 314p. Resenha de: SANTOS, Murilo Souza dos. “Fugir para a escravidão”: Geografia insurgente e cidadania na fronteira do Brasil pós-colonial. Faces da História, Assis, v.7, n.1, p.493-497, jan./jun., 2020.

Há um esforço recente, e cada vez mais imperioso entre os pesquisadores, de questionar a maneira pela qual história e antropologia estudaram as populações indígenas e afrodescendentes na América Latina. Fruto de uma política colonial que tratava índios e negros separadamente, outrossim perpetuada nos regimes de governos subsequentes, a tradicional análise dessas populações restou seccionada e, frequentemente, dicotômica (WADE, 2018). Por objetivar explorar as temáticas de raça, nação e, sobretudo, cidadania por meio das interconexões entre as histórias de negros e indígenas, Frontiers of Citizenship: a black and Indigenous history of Postcolonial Brazil, de Yuko Miki, é um livro que se insere nesse esforço novo e promissor. Entre os diversos prêmios e honrarias que recebeu até o momento, estão o Wesley-Logan Prize em História da Diáspora Africana, concedida pela American Historical Association, e o Warren Dean Memorial Prize como o melhor livro sobre História do Brasil publicado em inglês, dado pela Conference on Latin American History (CLAH), que lhe concedeu, ainda, menção honrosa no Howard F. Cline Prize, dedicado à Etno-História da América Latina.

A pesquisa que resultou nesse livro é também motivada por um segundo incômodo da autora: a compreensão de que a historiografia brasileira não teria dado a devida atenção às fronteiras, espaço no qual, segundo ela, a relação entre raça, nação e cidadania havia sido de fato testada e definida diariamente (MIKI, 2018, p. 8). Com isso em mente, Yuko Miki elege como espaço de observação o que ela escolheu chamar de fronteira atlântica: uma região que, embora jamais tenha aparecido nas fontes sob tal denominação, corresponderia ao contorno da Mata Atlântica original do sul da Bahia e Espírito Santo. Outrora proibida pela Coroa portuguesa, essa região se tornou objeto de uma colonização agressiva com o avançar do século XIX.

Os seis capítulos que compõem Frontiers of Citizenship estão estruturados em torno de um embate de visões. De um lado, as elites brancas, que pretendiam homogeneizar o povo brasileiro a fim de que fosse encaixado em uma definição pré-definida de cidadania; do outro, negros e índios, que disputavam a definição de cidadania, para que o povo, na sua heterogeneidade, nela pudesse ser incluída. Dessa maneira, enquanto o primeiro capítulo analisa os debates parlamentares acerca da definição notavelmente inclusiva de cidadania inscrita na Constituição de 1824 para contrastar com a exclusão implícita que ela pressupunha, o segundo foca nos índios e negros da fronteira atlântica para examinar como eles reagiam diante das exclusões geradas na prática. Essa intercalação está presente em todo o livro.

O segundo capítulo faz, ainda, uma análise estimulante acerca da percepção que muitos negros e indígenas tinham da monarquia como fonte de justiça e proteção, ao ponto de inúmeras revoltas terem sido desencadeadas pela forte ressonância dos boatos de emancipação. Todavia, a menos que se considere o crescendo de violência que caracteriza a expansão do Estado no período como consequência das formas de resistência adotadas por negros e índios, Yuko Miki fica longe de cumprir com o principal objetivo assumido para esse capítulo, qual seja o de “demonstrar como a expansão do Estado foi moldada pelas mesmas pessoas que procurou excluir” (MIKI, 2018, p. 25, tradução nossa).

Os capítulos terceiro e quarto se complementam no objetivo de mostrar que a adoção da mestiçagem como meio de criar um povo brasileiro homogêneo implicava tanto na crescente inclusão desigual dos negros escravizados quanto na efetiva extinção dos índios. Assim, o terceiro capítulo argumenta que as elites urbanas combinaram o indigenismo romântico e a nova ciência antropológica com a expressão das leis para criar uma situação legal, na qual “para se tornar cidadãos, os índios precisavam ser civilizados e, uma vez civilizados, não eram mais índios” (MIKI, 2018, p. 133, tradução nossa). O quarto, por sua vez, demonstra as consequências práticas desse projeto de mestiçagem por meio da comparação de dois casos de violência oriundos da fronteira atlântica: de um lado, a erosão do poder dos proprietários de escravos sobre eles; do outro, a transformação dos índios no Brasil pós-colonial em corpos matáveis.

O ponto principal do livro está nos capítulos quinto e sexto, cujo sentido é mostrar que a perspectiva de liberdade negra e autonomia indígena se tornaram inseparáveis da luta pela terra. No quinto capítulo, Yuko Miki observa que, nos anos finais da escravidão, muitos quilombolas criaram assentamentos tão próximos da região na qual estavam legalmente escravizados que se podia ouvir seus batuques à noite. A partir dessa constatação, e inspirando-se na ideia de geografia rival, elaborada por Edward Said e usada pelos geógrafos para descrever a resistência à ocupação colonial, Miki formula o conceito de geografia insurgente para designar a prática política que ela entende como “fugir para a escravidão” (fleeing into slavery, no original). Seria por meio da geografia insurgente, do fugir para a escravidão e não para longe dela, que as pessoas escravizadas deixaram de resistir à sociedade escravista para, finalmente, desafiá-la por dentro; vivendo como pessoas livres em seu meio e, desse modo, expressando “os termos pelos quais queriam viver na sociedade brasileira” (MIKI, 2018, p. 214, tradução nossa).

Por seu turno, no sexto capítulo, a autora observa que, apesar das divergências de opiniões quanto ao futuro dos indígenas e libertos, tanto missionários quanto abolicionistas e escravocratas compartilhavam a visão de que eles deveriam ser disciplinados para uma cidadania limitada e fundamentalmente servil. A iminência da abolição revigorou o interesse das elites pela possibilidade de transformação dos indígenas em “cidadãos úteis” por meio da disciplina do trabalho conjuntamente à negação do acesso à terra (os mesmos termos que posteriormente seriam reproduzidos nas discussões sobre os libertos). Tal confluência de pontos de vista teria ajudado a conjugar, do outro lado, as perspectivas de negros e indígenas. Para a autora, a forma como eles interpretaram liberdade e cidadania não apenas repreendeu radicalmente essas ideias racializadas, naquele contexto, como teve repercussões duradouras no período republicano.

Como se pode ver, o conceito de geografia insurgente é central para a tese defendida em Frontiers of Citizenship. Sua pressuposição é a de que a convivência na comunidade do quilombo teria transformado a consciência de liberdade numa prática política coletiva pela qual as pessoas escravizadas reimaginaram suas vidas como pessoas livres dentro da própria geografia em que estavam destinados a permanecer escravizado (MIKI, 2018, p. 174). Interessa mostrar, finalmente, que os escravizados não apenas lutavam para proteger o que lhes eram pessoalmente importantes, mas, muito além, eles afirmavam uma visão específica da política de cidadania e anti-escravidão (MIKI, 2018, p. 26). De que maneira? Yuko Miki sabe que a multiplicidade de motivos que levavam os escravizados a fugir em pouco se confunde com semelhante ideologia. A engenhosidade do conceito de geografia insurgente está justamente na capacidade de transformar uma motivação factível, “a luta pela geografia”, em um significante para a cidadania (MIKI, 2018, p. 251), ainda que para tal inferência não haja indícios capazes de sustentá-la. Já no epílogo, a autora nos lembra que, com a Constituição de 1988, o direito à terra se tornou, legalmente, um meio para reivindicar uma cidadania plena. O problema que se coloca, em suma, é que se, por um lado, tal conquista é verdadeira, por outro, soa forçoso dizer que tal associação foi forjada conscientemente pelos afro-brasileiros no período de escravidão e pré-emancipação (MIKI, 2018, p. 257). Dessa maneira, o que seria a mais importante contribuição do livro fica reduzida a uma ilação ou, mais apropriadamente, à amostra de um equívoco metodológico denominado por Frederick Cooper como ultrapassar legados, isto é, “afirmar que algo no tempo A causou algo no tempo C sem considerar o tempo B, que fica no meio” (COOPER, 2005, p. 17).

Frontiers of Citizenship é um trabalho vigoroso, que consegue demonstrar com sucesso a impossibilidade de compreender temas como raça, nação e cidadania sem envolver tanto as histórias da diáspora africana quanto a das Américas indígenas. Por outro lado, e essa é a principal crítica, não analisa alguns conceitos que são cruciais para a sua própria fundamentação mas, pelo contrário, aplica-os nas fontes sem historicizá-los. Cooper, já mencionado, mostrou, em Citizenship, Inequality and Difference (2018), que apenas recentemente o conceito de cidadania foi constituído como inerentemente igualitário, mas por Yuko Miki aplicar esse conceito sem a devida contextualização, a existência de uma cidadania desigual, tal como defendida pelas elites na conjuntura analisada, soa como mera injustiça. Similarmente, raça e nação lhe parecem ser concepções tão unívocas que sequer precisam ser definidas e, dessa forma, a impressão resultante é de que os sujeitos analisados agem em relação às mesmas identidades coletivas que pressupomos hoje.

Em The Problem of Slavery as History: a Global Approach, Joseph C. Miller impôs o desafio intelectual de pensar a escravidão para além da politização contemporânea. Para ele, estamos tão preocupados em condenar a escravidão, que inibimos o entendimento acadêmico dessa prática como sujeito de investigação intelectual (MILLER, 2012, p. 2). Pelo demonstrado, a abordagem dos conceitos em Frontiers of Citizenship o situa como exemplar dessa conduta que precisa ser evitada. Ainda assim, esse é um trabalho que merece atenção, não apenas pela importância do tema, mas sobretudo pela forma original com a qual Yuko Miki, frequentemente, associa os discursos sobre cidadania, escravidão e extinção com a política deles resultante.

Referências

COOPER, Frederick. Citizenship, Inequality and Difference. Princeton/Oxford: Princeton University Press, 2018.

COOPER, Frederick. Colonialism in Question. Theory, Knowledge, History. Berkeley: University of California Press, 2005.

MILLER, Joseph C. The Problem of Slavery as History: a global approach. New Haven and London: Yale University Press, 2012.

WADE, Peter. Interações, relações e comparações afro-indígenas. In: ANDREWS, George Reid; FUENTE, Alejandro de la (orgs.). Estudos afro-latino-americanos: uma introdução. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO, 2018.

Murilo Souza Santos – Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas (PPGH-UNICAMP), na linha de História Social da Cultura. Bolsista de mestrado CAPES. E-mail: [email protected].

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Negros no Espirito Santo | Cleber Maciel

A Segunda edição da obra de Cleber Maciel, organizada por Osvaldo Martins e Oliveira publicada no ano de 2016, com apoio do Governo do Estado do Espírito Santo por intermédio da Secretaria de Estado da Cultura e Arquivo Público do Estado, traz uma organização diferenciada da primeira, aparentando ter como objetivo apresentar o desenrolar da influência do historiador nas pesquisas e na formação sociopolítica no Estado. Dividido em “Prefácio” e “Posfácio”, nela encontraremos não somente a obra do Professor Cleber como também, em seu posfácio, estão localizados trabalhos de seus intitulados seguidores que por meio do mundo acadêmico aprimoram suas pesquisas e (re)visitam objetos por ele estudados com um olhar contemporâneo sobre o negro.

O Professor Cleber Maciel, como era conhecido dentro do movimento negro, desde a sua graduação na UFES sempre esteve envolvido em movimentos que lutavam pela afirmação da identidade negra, conforme fez questão de ressaltar Sandro José da Silva [1] , e obteve grau de Mestre pela Universidade de Campinas com a dissertação “Discriminações Raciais: negros em Campinas” (1988), sendo esta publicada pela editora da referida Universidade; é autor também da obra “Candomblé e umbanda no Espírito Santo” (1992) obra de referência para pesquisas direcionadas as questões quanto as religiões afrodescendentes. Leia Mais

A reprodução do racismo: fazendeiros/negros e imigrantes no oeste paulista/1880-1914 | Karl Monsma

Domingo de carnaval de 1894. Na Fazenda Sant’Anna, município de São Carlos, no Oeste paulista, cinco colonos italianos festejavam no terreiro da fazenda a folia de momo, embalados pela música, dança e bebida. Num determinado momento, o grupo decidiu ir para uma estação ferroviária, onde, em frente a uma venda, continuou a pândega em meio a transeuntes que circulavam pelo local. O “crioulo” Narciso, de aproximadamente 30 anos, fazia uma visita de cortesia ao proprietário da venda, o brasileiro branco Guilherme Hopp. Por volta das seis horas da tarde, Guilherme, com a ajuda de Narciso, começou a fechar a venda. Os italianos pediram mais vinho, e Narciso transmitiu o pedido a Guilherme, mas este se negou, dizendo que a venda estava fechada. Quando o “crioulo” comunicou a recusa aos italianos, obstruindo a porta do estabelecimento, pelo menos quatro deles o atacaram, dando-lhe “tapas e ponta-pés”. Guilherme socorreu Narciso para dentro da casa e fechou a porta. No entanto, os italianos arrombaram a porta e novamente agrediram o “crioulo” com socos e facadas, “sendo que duas foram bem visíveis, pois que a faca entrando enroscou-se, demorando o assassino em tirá-la’’. Guilherme conseguiu puxar Narciso para o interior da casa novamente e o aconselhou que se escondesse na roça de milho, afim de que pudesse escapar da fúria dos italianos. Narciso não resistiu. No dia seguinte, foi encontrado morto no milharal. Os italianos sabiam que Guilherme era quem não queria lhes vender mais vinho, mas atacaram o mensageiro “crioulo”. Algumas semanas depois, Antonio Augusto, um jovem branco brasileiro, deu pancadas num “preto” porque faltou ao trabalho na fazenda onde Antonio atuava como mestre. Em resposta, o “preto” matou Antonio com uma facada. Leia Mais

A reprodução do racismo: fazendeiros/negros/ e imigrantes no oeste paulista/ 1880-1914 | Karl Monsma

Com A reprodução do racismo, o professor Karl Monsma (Sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul) oferece uma abordagem inovadora das relações cotidianas entre imigrantes, negros e fazendeiros no período da abolição até a primeira década do século XX. No erudito livro, Monsma busca entender os processos humanos que não só produzem, mas reproduzem o racismo, apesar de grandes mudanças institucionais e/ou sociais ao longo do tempo. Ele usa o duplo contexto de abolição e imigração para mostrar um habitus racial em mudança e como os diferentes negociaram essa nova realidade, procurando as melhores condições e resultados possíveis, tanto para o indivíduo quanto para os grupos. Apesar do enfoque geográfico no oeste paulista – principalmente no município de São Carlos – a contribuição tanto historiográfica quanto metodológica do livro vai muito além desse contexto.

O livro se divide em duas partes principais. Monsma começa com uma análise teórica e hemisférica do racismo como fenômeno histórico. Primeiramente, ele navega em uma vasta literatura sociológica, antropológica e histórica para teorizar os conceitos “raça,” “racialização,” e “racismo.” Para Monsma, abordagens do conceito bourdieusiano habitus, que tomam em conta as contradições e inconsistências presentes no próprio habitus, parecem as mais produtivas, abrindo novos caminhos para combinar o conceito abstrato com observações históricas do cotidiano. Mudanças sociais ou estruturais desestabilizam o habitus racial numa sociedade—mas por que a persistência da dominação racial? Para Monsma, o racismo se reproduz em tais contextos dada a intersecionalidade do habitus racial com outros contextos humanos: redes socais, instituições, ideologias, etc. Desconsiderando o resto do livro, esse capítulo teórico já seria de leitura importante para qualquer estudante ou pesquisador interessado em tais aspectos da sociedade. Leia Mais

Sant’anna da Feira: Terra de Lucas – FRANCO; ROGÉRIO (PL)

A novíssima geração de HQ no Brasil tem articulado vitalidade criativa com resistência cultural, optando por desenvolver temas relativos à história social e cultural brasileira. Os polos de produção existentes em diferentes regiões do país, no mais das vezes, não conseguem atingir o grande público nas bancas de revistas. Nos anos 1990, visualizamos iniciativas promissoras de graphics novels brasileiras, que, infelizmente, tiveram vida efêmera por conta do monopólio da produção e distribuição dos quadrinhos norte-americanos no Brasil. Esse é um problema estrutural dos quadrinhos brasileiros e permanece como questão insolúvel. O público em geral não tem acesso à novíssima geração dos quadrinhos, causando certo descompasso entre autor e público, à exceção dos festivais e feiras realizados para aficionados e colecionadores. Paradoxalmente, a luta pela afirmação cultural dos quadrinhos brasileiros traz consigo uma liberdade editorial que proporciona uma pluralidade de estilos, para além do mercado. Leia Mais

El mar de los deseos. El Caribe hispano musical. Historia y contrapunto – GRIECO (M-RDHAC)

GRIEGO, Antonio García de León. El mar de los deseos. El Caribe hispano musical. Historia y contrapunto.  México: Siglo veintiuno editores, 2002. 244p. Resenha de: CUETO, Danny Gonzáles. Memorias – Revista Digital de Historia y Arqueología desde el Caribe, Barranquilla, n.2, jan./jun., 2005.

Danny González Cueto – Profesor e investigador del Departamento de Historia y Ciencias Sociales y membro del Grupo de Investigación en Historia y Arqueología del Caribe Colombiano de la Universidad del Norte. Editor de Memorias.

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Negros e brancos em São Paulo (1888-1988) | George Reid Andrews

Resenhista

Heliane Prudente Nunes – Professora do departamento de História da UFG. Doutora em História Econômica pela USP em 1996.

Referências desta Resenha

ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). Trad. Magda Lopes. Revisão técnica e apresentação de Maria Lígia Coelho Prado. Bauru, São Paulo: EDUSC, 1998. Resenha de: NUNES, Heliane Prudente. História Revista. Goiânia, v.4, n.1-2, p.133-136, jan./dez.1999. Acesso apenas pelo link original [DR]