Liberdades Negras nas Paragens do Sul | Gabriel Aladrén; Egressos do Cativeiro, c.1798 – c.1850) | Roberto Guedes; A Remissão do Cativeiro, c.1750 – c.1830 | Márcio de Sousa Soares

A historiografia brasileira já conta com um número substantivo de pesquisas sobre alforrias e a vida de africanos e afro-descendentes no período posterior à libertação. Em se tratando do primeiro tema, as investigações versam, em especial, sobre as modalidades de manumissão e o perfil de escravos alforriados. No que tange aos libertos, as pesquisas apresentam conclusões dicotômicas, ora associando-os à pobreza e marginalidade, ora à ascensão econômica. A primeira vertente teve início em 1942, com algumas considerações feitas por Caio Prado Júnior (Formação do Brasil Contemporâneo, 1942), como a relação estabelecida entre esse segmento da população e os grupos intermediários da sociedade colonial, ou seja, aqueles que não se inseriam nas categorias de senhores nem de escravos. Os estudos subsequentes como os de Laura de Mello e Souza (Desclassificados do Ouro, 1982) e Núbia Braga Ribeiro (Cotidiano e Liberdade, 1996) adotaram essa linha interpretativa ao considerarem esse segmento social como desclassificado, temido socialmente e sujeito a políticas de controle pela administração portuguesa. Outros trabalhos, porém, negligenciaram a associação à pobreza e marginalidade e deram lugar às investigações acerca da ascensão econômica desses grupos, como Sheila de Castro Faria (A Colônia em Movimento, 2004), Eduardo França Paiva (Escravos e Libertos nas Minas Gerais, 1996 e Escravidão e Universo Cultural na Colônia, 2001), Cláudia Cristina Mól (Mulheres forras, 2002), dentre outros.

Os três livros recentes de Roberto Guedes, Márcio de Sousa Soares e Gabriel Aladrén se destacam nesse campo por procurarem integrar o estudo das alforrias ao exame das trajetórias sociais dos egressos do cativeiro durante a vigência do regime escravista. As referidas publicações são fruto de trabalhos apresentados em programas de pós-graduação: os trabalhos de Guedes e Soares foram originalmente defendidos como teses de doutoramento na UFRJ, em 2005, e na UFF, em 2006; o livro de Aladrén resultou de uma dissertação de mestrado defendida na UFF, em 2008.

Guedes e Soares priorizam a análise das famílias de libertos e seus descendentes e sua atuação na dinâmica econômica local. O primeiro estudou Porto Feliz, em São Paulo, e, o segundo, Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro. Já Aladrén se deteve nas trajetórias individuais e analisou os ex-escravos a partir dos acontecimentos políticos que inquietaram a região de Porto Alegre nas três primeiras décadas do século XIX.

Esses autores atribuem importante papel aos escravos em prol da liberdade e de melhoria das condições de vida após a sua efetivação. Embora fosse um acordo entre desiguais, a alforria consistia em uma doação feita pelo proprietário, mas, acima de tudo, aceita pelos escravos. Tratava-se, portanto, de uma troca que gerava novos vínculos entre os forros e seus antigos senhores, os quais se perpetuavam para o resto de suas vidas. Os ex-senhores esperavam dos escravos alforriados (gratuitamente ou sob condição) constante respeito e subordinação. Qualquer desvio ou rompimento dessas referências colocava em risco a legitimidade do novo status.

Várias discussões já propuseram que as manumissões estariam vinculadas à negação da ordem escravista, mas os três autores as analisam como parte de um sistema composto pela tríade tráfico, escravidão e liberdade. A alforria seria parte estrutural da escravidão, amortecendo conflitos inerentes à relação existente entre escravos e seus proprietários. Outro ponto marcante desses trabalhos consiste na idéia de que, após a conquista da liberdade, os libertos buscavam melhores condições de vida. Ainda que encontrassem limitações inerentes à condição social, estiveram atentos às oportunidades que lhes eram apresentadas e conseguiram trilhar caminhos diferenciados daqueles em que se encontrava grande parcela dessa população.

A ascensão econômica não indicou necessariamente ascensão social. Em especial, Roberto Guedes e Márcio de Sousa Soares mostram que a mobilidade social era geracional, ou seja, acontecia predominantemente para gerações que descendiam dos libertos. Os casamentos com pessoas livres contribuíram fortemente para isso. Também evidenciam que as categorias de cor encontradas em registros coloniais e do período imperial eram fundamentais para a inserção de pretos e pardos na hierarquia social vigente.

Os três livros contribuem de maneira decisiva para os estudos sobre a escravidão no Brasil. Além de levantar dados sobre as alforrias em regiões pouco exploradas pelos historiadores que os antecederam, como as áreas rurais e o sul do país, ainda avançaram na análise da vida dos escravos após a libertação. Os três pesquisadores utilizaram métodos qualitativos e seriais. Recorreram à micro- história e reuniram fontes diferenciadas que permitem conhecer múltiplas experiências dos homens e mulheres investigados. Os registros referentes à justiça colonial e imperial como os processos crime e as ações cíveis forneceram importantes recursos para tal perspectiva.

O trabalho de Roberto Guedes consiste na análise de quatro gerações de famílias de Porto Feliz, compostas por libertos e seus descendentes, entre os anos de 1798 e 1850. A partir de cruzamento onomástico, o autor acompanha a dinâmica econômica e social de seus membros, com o objetivo de compreender as principais estratégias de mobilidade social em âmbito familiar. Márcio Soares fez um estudo da escravidão, priorizando a região de Campos dos Goytacazes no período que compreende a segunda metade do século XVIII e as três primeiras décadas do século XIX. Seu foco, contudo, é a investigação das complexas relações entre senhores e escravos em uma região rural. Observou principalmente as estratégias sociais que favoreciam o acesso à liberdade e a inserção social de libertos e seus descendentes.

Gabriel Aladrén trata basicamente dos padrões de alforrias encontrados nas proximidades de Porto Alegre e das experiências dos egressos do cativeiro e seus descendentes entre os anos de 1800 e 1835, período de grandes conflitos militares como as Guerras Cisplatinas e a dos Farrapos. O autor acredita que esse conturbado momento contribuiu para o recrutamento de escravos e libertos para o exército, milícias e guerrilhas, favorecendo, por sua vez, a incidência de alforrias, inserção e mobilidade social dos mesmos.

Os estudos desses autores partem de uma abordagem que relaciona as forças econômicas e sociais. As três localidades sofreram mudanças significativas na economia. Em Porto Feliz, o crescimento da produção de alimentos e de açúcar na primeira metade do século XIX foi responsável por um considerável aumento do contingente populacional na região, acompanhado também pelo crescimento de escravos. O mercado de gêneros alimentícios passou a ser controlado por pequenos proprietários. Isso implicou uma população composta por pessoas de parcos recursos em meio a uma parcela reduzida de produtores que concentravam maiores posses. Campos dos Goytacases verificou grande expansão açucareira entre os anos de 1750 a 1830, voltada para a exportação. Esse processo foi acompanhado por uma concentração de propriedade de escravos, sem impedir, contudo, que pequenos e médios proprietários tivessem acesso à sua posse. Já a região de Porto Alegre era formada pela vila e algumas freguesias como a Aldeia dos Anjos e Viamão. Caracterizada por extensa área rural, suas fazendas, chácaras e campos conjugavam a produção agrícola e agropecuária para o abastecimento interno.

O ponto de partida dessas pesquisas foi o estudo das alforrias. Os autores buscam conhecer as principais características dessa prática a partir do levantamento de fontes como registros de batismos, testamentos, cartas de liberdade e livros de notas. Analisam os perfis dos senhores, dos escravos alforriados e o significado dessas libertações para ambos. As incidências foram significativas nas três localidades, seguindo os padrões anteriormente vigentes na América Portuguesa. Eram predominantes as concessões para as mulheres e escravos nascidos na colônia, favorecidos com libertações gratuitas, condicionais ou pagas por terceiros, em detrimento dos africanos que compravam a própria liberdade.

No final da década de 1970, Jacob Gorender (O Escravismo Colonial, 1978) afirmou que as manumissões foram associadas aos interesses senhoriais, e que um escravo estaria mais propenso a receber a liberdade em momentos de crise econômica. Contudo, Aladrén, Souza e Guedes adotaram outro viés para a compreensão das alforrias, valorizando o papel que tiveram no contexto do sistema escravista. Para esses autores, as concessões em testamentos e pias batismais foram compreendidas como um reforço do paternalismo inerente à escravidão. Essa atribuição cabia unicamente ao proprietário, e seu desdobramento era a produção de dependentes, pois era fruto de um arranjo entre desiguais. Obediência, respeito e gratidão deveriam pautar as relações entre o ex-senhor e o liberto para que o mesmo pudesse manter o novo status alcançado. Salvo algumas exceções, o empenho desses homens e mulheres era sempre em função de ganhos pessoais. Seus esforços visavam a conquista da própria liberdade ou de terceiros, sem nunca questionar a instituição da escravidão.

Roberto Guedes ainda destaca a função importante que os casamentos entre escravos desempenhavam no incentivo à liberdade. No primeiro momento, os senhores acabavam adquirindo status quando incentivavam as uniões entre seus cativos. Em Porto Feliz, as alforrias eram prerrogativas mais direcionadas às escravas, que passavam a ser agregadas, enquanto seus maridos permaneciam na condição de escravos. Essas uniões eram duradouras e somente rompidas pela morte de um dos cônjuges. Predominavam as uniões exogâmicas entre os próprios crioulos e entre os africanos.

Soares destaca que as liberdades concedidas em testamentos e pias batismais, de alguma forma, se associavam a razões morais e afetivas. Do intercurso sexual entre escravas e seus senhores acabavam nascendo crianças que recebiam alforria como forma dos pais se redimirem do erro de ter gerado um filho em cativeiro. Os altos índices de ilegitimidade entre as crianças batizadas levam a crer que as alforrias em pia batismal eram formas veladas de reconhecimento da paternidade. Já o momento da morte mostrou-se propício para que os senhores concedessem a liberdade a seus cativos, ou parte deles. Em ocasiões de doenças ou mesmo velhice, alguns fiéis buscavam a salvação da alma e a remissão de suas culpas.

Tendo em vista a incidência de concessões de manumissões onerosas, esses estudos abordam os artifícios empregados pelos libertos como forma de acumularem pecúlio e até mesmo ascenderem economicamente. A idéia de que a ascensão econômica não significou necessariamente mobilidade social é comum aos três trabalhos; o que os diferencia são as metodologias utilizadas para a análise desse aspecto.

A partir do levantamento de inventários post mortem, Gabriel Aladrén busca conhecer as ocupações dos libertos da região de Porto Alegre. Os indícios apontam para o envolvimento em atividades agrícolas e o acesso à terra. Utiliza processos crime como forma de viabilizar a reconstituição de algumas trajetórias de libertos que praticaram ou sofreram algum tipo de delito. A análise de dados pessoais e de depoimentos de pessoas próximas permitiu identificar eventos marcantes na vida de ex-escravos daquelas paragens. A inserção no meio social, o estabelecimento de redes de sociabilidade, o acesso a bens materiais e até mesmo o alcance de uma posição mais favorável são alguns deles.

O método utilizado por Roberto Guedes em seu estudo é peculiar. O autor acompanha gerações de cinco famílias de egressos do cativeiro da região de Porto Feliz e se reporta a diferentes momentos de suas vidas para mostrar que a combinação entre estabilidade familiar, trabalho e boas relações contribuíam para a ascensão econômica. Encerra seu livro afirmando que os escravos contraíam matrimônio, conseguiam a liberdade, herdavam bens, tornavam-se proprietários de escravos e contribuíam para que seus descendentes deixassem de carregar o estigma da escravidão a partir da percepção social da cor.

Soares chega às mesmas conclusões; porém, seu método se baseia na análise de casos específicos, sem acompanhar registros de uma mesma família, como o fez Guedes. Mostra que as possibilidades de obterem melhores condições de vida eram condicionadas a fatores como bons casamentos, relações com pessoas influentes da sociedade, mas também às ocupações de postos militares ou em irmandades. A presença de ao menos um desses aspectos era suficiente para diferenciar um liberto de outras pessoas com a mesma condição social. Ao analisar testamentos e inventários post-mortem, verifica que eles acumularam posses e acabaram se comprometendo com a escravidão ao se tornarem proprietários de escravos. As alforrias recebidas e acompanhadas de bens que os senhores, por vezes, os deixavam, contribuíram muito nesse sentido. Para esse autor, a mudança de status favoreceu a alteração da identificação da pessoa quanto à cor. Essa atribuição era dinâmica e variava conforme as diferentes gradações da hierarquia social.

A análise das hierarquias raciais vigentes nos períodos colonial e imperial é outro ponto abordado nesses trabalhos, porém mais explorado por Aladrén. O autor lembra que a escravidão no Brasil não foi pautada em bases raciais, embora a classificação da população, sobretudo no que se referia a escravos e seus descendentes, tivesse sido estruturada a partir das categorias estamentais vigentes no Antigo Regime português. Nesse sentido, concorda com Hebe Mattos (Escravidão e cidadania no Brasil monárquico, 2000) ao considerar que, na prática social, houve uma hierarquia relativa à raça nos tempos coloniais, que foi redefinida a partir da independência da América Portuguesa e da construção da nova nação.

Em se tratando da colônia, as designações dos escravos, libertos e seus descendentes eram determinadas pela classificação de cor e origem. Fatores como riqueza, posição social e comportamento também tinham peso. Tais critérios não eram rígidos; formas diferenciadas podiam ser atribuídas de acordo com a época, região e a pessoa que os empregava. Os autores observam que a alteração ou até mesmo o desaparecimento dos designativos de cor ocorriam quando se tratava de pessoas que provinham da terceira geração de descendentes de escravos e, principalmente, no caso de ex-escravos que contraíam matrimônio com livres. O trabalho supracitado de Hebe Mattos e também o de Sheila de Castro Faria (A colônia em movimento, 1998) evidenciam ainda que o termo pardo indicava miscigenação, embora não deixasse de eximir a marca da ascendência escrava. Já o termo “pardo livre” surgiu a partir do aumento da população de egressos do cativeiro e de seus descendentes, em fins do século XVIII e início do XIX, como uma necessidade de diferenciar aqueles que não passaram pela experiência do cativeiro.

Aladrén compara ainda os designativos conferidos aos escravos no momento em que iam receber a liberdade e as assinaturas encontradas depois de libertos. Assim, verifica que os mapas de população elucidam uma linguagem oficial, porém não tão distinta daquela utilizada nas práticas cotidianas da população. Com o processo de independência e de construção da nação brasileira nas primeiras décadas do século XIX, foram observadas “formas específicas de racialização”. As expressões utilizadas acabavam delimitando socialmente as fronteiras entre pessoas brancas, libertos e seus descendentes.

Para compreender as estratégias de inserção social dos pretos e pardos no período das Guerras Cisplatinas e da Independência do Brasil, Aladrén estudou o recrutamento das tropas regulares. No final do período colonial, a convocação seguia critérios raciais. As tropas classificadas como de primeira linha admitiam somente homens brancos ou de pele bem clara. Já as de segunda aceitavam brancos, pardos e também pretos. Segundo Aladrén, os conflitos ocorridos na região de Porto Alegre e, sobretudo, a conjuntura gerada com os movimentos de emancipação da América Portuguesa contribuíram de maneira decisiva para que a composição do exército tomasse novos formatos, passando a recrutar escravos, livres e também libertos. Os escravos e libertos se alistavam voluntariamente nos batalhões visando futuramente a alforria e a melhoria das condições de vida ou a mobilidade social. Parcela considerável daqueles que lutavam ao lado de seus senhores recebiam a liberdade.

O reconhecimento social dos direitos garantidos a libertos e seus descendentes pela legislação do Império do Brasil é outro tema que chama a atenção do autor. Para conhecer esse aspecto, ele analisa alguns conflitos cotidianos por meio de processos crime. Assim, avalia o posicionamento desses e das demais pessoas envolvidas em demandas judiciais. Conclui que os brancos daquela sociedade, nas primeiras décadas do século XIX, ainda operavam de acordo com os padrões hierárquicos do Antigo Regime. Alguns continuavam desqualificando negros com discursos racialistas, provando que, mesmo conquistando postos mais elevados, acabavam sendo vistos com desconfiança.

O principal aspecto que diferencia o trabalho de Aladrén dos demais autores resenhados é o peso que ele confere às mudanças políticas como determinantes na inserção social dos libertos e seus descendentes. De maneira geral, os três livros trazem avanços notáveis para o campo de estudos sobre os ex- escravos e seus descendentes. No primeiro momento, analisam as alforrias locais sem perder de vista as características estruturais que engendravam essa prática. As modalidades, o perfil dos escravos libertados, as possibilidades de anulação de status alcançado, são fatores que ajudam a visualizar a complexidade da escravidão na América Portuguesa e no Brasil Independente. Não há como apreender esse complexo sistema sem passar pelas alforrias, pois elas são parte constitutiva do mesmo. Em um segundo passo, buscam compreender a inserção social dos egressos do cativeiro. Enquanto Guedes e Soares se baseiam no estudo de casos de famílias de libertos e suas estratégias de mobilidade social em um contexto de expansão econômica, Aladrén se detém nas trajetórias individuais em um período compreendido por profundas mudanças políticas.

A passagem da escravidão para a liberdade acarretou mudanças significativas. A aquisição de capacidade civil foi a principal delas, pois permitiu o direito à constituição de família, à mobilidade, à herança e à propriedade. Por maior que fosse a autonomia de um escravo, suas prerrogativas não se equiparavam às de um liberto. Em um momento de intensas transformações políticas como as da virada do século XVIII para o XIX e, especificamente, no contexto de independência da América Portuguesa, ocorreram mudanças significativas para a população liberta. Soares e Guedes não exploram esse contexto político; Aladrén, por sua vez, enfrenta a questão, mas valoriza basicamente a inserção social incentivada pela necessidade de novos recrutamentos para as forças militares em conflito. Em função disso, restringe-se à análise do gênero masculino, mesmo tendo em vista que as mulheres eram as mais alforriadas no período por ele abordado.

O exame da inserção de libertos e seus descendentes na América Portuguesa e no Brasil Independente é o principal fio condutor desses trabalhos. Os três autores conduzem suas pesquisas na contramão de parte da historiografia, anteriormente mencionada, que tende a considerar os ex-escravos como uma subcategoria social. Ao contrário, Guedes, Soares e Aladrén empregam métodos peculiares e revelam as diferentes estratégias por eles adotadas em função de galgarem melhores condições de vida. Mais do que discutir os caminhos para a manumissão e o perfil dos manumissos, esses historiadores mostram que homens e mulheres forras souberam alongar o horizonte da liberdade, fosse por meio da constituição de família, da inserção em irmandades e ou ordens militares.

Os referidos estudos ainda somam- se à historiografia e tornam evidente que as esferas públicas foram palco das mais variadas reivindicações iniciadas por egressos do cativeiro na passagem do século XVIII e XIX. O acesso à justiça, sobretudo no período colonial, pode indicar que ela funcionou como um importante instrumento de garantia do que hoje entendemos por direitos civis para os ex- escravos. É possível que os litígios tivessem uma conotação de luta pela afirmação das conquistas dos ex- escravos após a obtenção da liberdade. A investigação das práticas cotidianas nos contextos de inserção política nos momentos que antecederam a Constituição de 1824, enfim, ainda não foi explorada.

Renata Romualdo Diório – Doutoranda em História pela Universidade de São Paulo (FFLCH/ USP – São Paulo/Brasil). E-mail: [email protected]


ALADRÉN, Gabriel. Liberdades Negras nas Paragens do Sul: alforria e inserção social dos libertos em Porto Alegre. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. GUEDES, Roberto. Egressos do Cativeiro: trabalho, família e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c.1798 – c.1850). Rio de Janeiro: Mauad X/FAPERJ, 2008. SOARES, Márcio de Sousa. A Remissão do Cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos dos Goitacases, c.1750 – c.1830. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009. Resenha de: DIÓRIO, Renata Romualdo. Alforria e mobilidade social nos séculos XVIII e XIX: os casos de Porto Feliz, Campos dos Goitacases e Porto Alegre. Almanack, Guarulhos, n. 1, p.155-161, jan./jun., 2011.

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Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX / João J. Reis

De africano escravizado a liberto na Bahia. Senhor de escravos e chefe de junta de alforria. Sacerdote de candomblé, sendo afamado babalaô, e homem católico, membro de irmandade negra. Essas são algumas facetas da vida de Domingos Sodré, narradas pelo historiador João José Reis, conhecido especialista da escravidão. Se a Bahia já possuía tradição em estudos sobre o candomblé, o livro de João Reis apresenta uma nova perspectiva.

Amparado em ampla pesquisa documental e utilizando a metodologia micro-histórica, o autor descortina a vida desse personagem, ao mesmo tempo em que analisa a formação do Candomblé na Bahia do século XIX.

No capítulo inicial, “A polícia e os candomblés no tempo de Domingos”, Reis apresenta ao leitor o aparato policial da Bahia oitocentista, responsável por reprimir as práticas culturais dos africanos, em especial os batuques e principalmente o candomblé, visto pelas elites como um obstáculo à civilização almejada na província. Mas o perigo representado pelo candomblé e sua supressão não era ponto pacífico entre as autoridades. As políticas de repressão e permissão em relação às praticas religiosas de matriz africana foram pontos delicados. Como mostra o autor, “as autoridades policiais com frequência se desentendiam” (p. 25), e subdelegados eram amiúde acusados de permissividade em relação aos candomblés que batiam alto sob seus olhos e ouvidos.

Entretanto, outras autoridades estavam especialmente decididas a extinguir tais práticas do seio da população, adotando uma linha dura contra os candomblés. Temos como exemplos o chefe de polícia Antônio de Freitas Henriques e o subdelegado da freguesia de São Pedro, Pompílio Manoel de Castro, responsáveis pela prisão de Domingos Sodré em 25 de junho de 1862. Mas a despeito da repressão mais ferrenha de alguns personagens em particular, o candomblé conseguiu sobreviver na Bahia oitocentista. Como explica João Reis, “a tolerância constituía um movimento discreto entre os envolvidos com o candomblé e as autoridades diretamente responsáveis pelo policiamento nos diversos distritos da cidade, fossem subdelegados ou inspetores de quarteirão” (p. 52), isto é, gente que lidava mais diretamente com os “sacerdotes, devotos e clientes”.

No capítulo seguinte, “De africano em Onim a escravo na Bahia”, João Reis narra as aventuras e desventuras de Domingos entre as duas margens do Atlântico, desde seu nascimento no final do século XVIII na cidade de Onim (atual Lagos, Nigéria), passando pelo conflito que envolveu os meio-irmãos Osinlokun e Adele pelo trono de Lagos, em 1823, até seu desembarque na Bahia. Domingos foi adquirido pelo coronel de milícias Francisco Maria Sodré Pereira, vivendo durante esse período em escravidão no engenho Trindade, no Recôncavo baiano, ao lado de uma maioria de escravos que, como ele, eram nagôs, o nome étnico dado aos africanos falantes de iorubá, convivendo ainda com escravos de outras nações africanas. Embora não tenha encontrado informações sobre essa época da vida do africano, o autor utiliza informações referentes a outros escravos que trabalhavam nesse engenho para recriar a atmosfera em que vivia Domingos – recurso frequentemente utilizado pelo autor, como mostrarei adiante.

A alforria de Domingos data de 1836, concedida após a morte de seu senhor. E como liberto, Domingos teria agora de se adaptar mais uma vez às novas condições. A paranóia que se seguiu ao levantes dos malês (1835) tornou a vida dos africanos libertos – e dos nagôs, em particular – ainda mais difícil, com o recrudescimento de medidas de controle, como a repressão aos festejos e comemorações africanas, os chamados batuques. Diante de toda essa legislação anti-africana, o autor conclui que “quando se tratava de africano, uma linha tênue dividia a condição de escravo daquela de liberto” (p. 92).

Domingos conseguiu negociar alguns espaços de autonomia na sociedade escravista, o que lhe permitia atuar como adivinho. Esse é o tema do capítulo seguinte. No quilombo de Domingos – foi assim que as forças policiais descreveram as moradias coletivas de africanos – as autoridades policiais encontraram “diversos objetos de feitiçaria”. O autor descreve os objetos rituais encontrados na casa de Domingos – roupas, jóias, panos-da-costa etc. -, mas presta especial atenção aos objetos de culto e seus significados. Esse, aliás, é um ponto alto do livro. A desenvoltura com que o autor navega na bibliografia africanista – e mais especificamente naquela referente à religião tradicional dos orixás, o èsin ibílè – é realmente notável. Graças a esse conhecimento e sensibilidade etnográfica, foi possível a João Reis imaginar – ou em seus próprios termos, “adivinhar” – o significado dos objetos rituais, a exemplo dos búzios, contas e “santos de pau”.

Domingos atuava principalmente como adivinho, “babalaô”, um sacerdote de Ifá, divindade da adivinhação, sendo provavelmente um maioral entre eles, um “papai”, como se referia o jornal O Alabama aos líderes dos candomblés. Ele sem dúvida adaptou e inovou certos procedimentos rituais na diáspora, embora mantivesse certas regras de adivinhação, que trouxe da África. Sua competência como babalaô seria testada pelos seus parentes de nação, os nagôs, “acostumados com estavam a consultar constantemente adivinhos em suas próprias terras” (p. 136).

Domingos Sodré foi preso por sua prática de adivinhação e suposta feitiçaria, cuja relação é analisada no capítulo 4. O Código Criminal do Império não tinha uma legislação específica sobre essas práticas, vistas como “superstições” no discurso desqualificador da época. Além disso, candomblé e feitiçaria era uma combinação perigosa, pois através de sortilégios os escravos adquiriam remédios para “amansar senhor” e promoviam a alforria à revelia senhorial – a principal chave na qual aparentemente atuava Domingos.

Após sua prisão, Domingos teve de assinar um termo de obrigação no qual se comprometia a “mudar de vida”, abandonando a vida de “candomblé e feitiçaria”, sob pena de ser expulso para a África, dispositivo utilizado pelas autoridades para punir os africanos envolvidos em candomblé, sobretudo seus líderes. Alguns tiveram esse destino, como Grato e Gonçalo Paraíso. A liberta nagô Constança do Nascimento também foi deportada para a África, mas não sem antes protestar bastante, levando o caso até o ministro da Justiça. Apesar dessa ferrenha repressão, o candomblé conseguiu resistir, entre outras razões, graças ao recrutamento de gente poderosa, branca e “engravatada”.

Em “Feitiçaria e alforria”, João Reis examina, através do processo movido por Domingos Sodré contra Elias Seixas, a atuação do papai enquanto chefe de uma junta de alforria, organização de crédito que visava a libertar africanos escravizados. Era provavelmente baseada no esusu, instituição de crédito iorubá. Sua atuação como chefe de junta de alforria é exemplo do respeito e importância enquanto líder religioso que Domingos usufruía entre outros africanos. Mas as atividades de Domingos, seja como adivinho ou como chefe de junta interferia num domínio exclusivo dos senhores, a alforria, expediente fundamental da política de controle paternalista, algo que preocupava as autoridades baianas.

Na introdução do livro, João Reis afirma que “o leitor perceberá que nosso personagem sai frequentemente de cena para dar lugar ao seu mundo e a outros personagens que o povoam, através dos quais sua história é em grande medida contada” (p. 16). É exatamente o que acontece no sexto capítulo, “Uns amigos de Domingos”. Nele, o autor narra a história de três africanos libertos, também envolvidos com candomblé: Manoel Joaquim Ricardo, haussá, envolvido com o tráfico de escravos enquanto ainda era ele mesmo um cativo, tornando-se mais tarde um próspero comerciante e um dos libertos mais ricos da época; Cipriano Pinto, também haussá, que teve seu candomblé invadido em 1853 e terminou sendo levado para o Aljube e posteriormente deportado para a África. Por fim, Antão Pereira, liberto bem sucedido, mas que terminou preso no final de 1872 sob a acusação de estupro, embora pesasse sobre ele também a fama de candomblezeiro. Terminou seguindo a sina de outros líderes de candomblé: a deportação para a África.

Os três casos reforçam a ideia de que os libertos lideravam o candomblé oitocentista, talvez em virtude da mobilidade e capacidade de levantar recursos. Ademais, demonstram como as fronteiras étnicas não impediam o contato entre as lideranças, com a circulação de pais e mães-de-santo de diferentes grupos étnicos, como Domingos, nagô, Joaquim Ricardo e Cipriano Pinto, haussás, Mariquinhas Velludinho, jeje, e tantos outros.

O capítulo final, “Domingos Sodré, africano ladino e homem de bens”, destrincha outras passagens da vida do liberto, como sua experiência no grêmio católico, embora não abandonasse sua atividade como sacerdote do candomblé. Domingos tinha as religiões como complementares, e não como sincréticas. Embora nascido na outra margem do Atlântico, Domingos lutava para legitimar-se membro da nação brasileira, como se comprova pelo ato de vestir uma farda de veterano da independência no momento de sua prisão. E assim como outros libertos, africanos ou não, Domingos também era senhor de escravos, embora fosse um pequeno escravista. Suas escravas eram todas nagôs como ele, tendência comum entre os libertos, que escravizavam gente da mesma nação. Mas Reis questiona se realmente essas escravas eram “sua própria gente”, isto é, se ele escravizou gente vinda de Lagos ou não. Caso sim, ele abandonou certas regras africanas de escravização.

Com o fim do tráfico transatlântico de escravos, Domingos buscou novas atividades para investir, como os bens imóveis. Mas na década de 1880, já velho e provavelmente doente, o liberto depositou certa quantia na Caixa Econômica, instituição financeira privada.

Entretanto, ao morrer em 1887, com estimados noventa anos, não deixou muito para sua esposa Delfina, presa com ele em 1862. Ela morreria em agosto de 1888, na miséria, após anos auxiliando seu marido, quem sabe até ritualmente.

Em sua conclusão, João Reis faz uma crítica ao conceito de crioulização, que poderia ser utilizado para definir a vida de Domingos Sodré. Ele poderia ser ainda definido como “crioulo atlântico”, outro termo consagrado na bibliografia internacional. Para substituí-los, João prefere o uso da noção de ladinização. Na sociedade escravista, o ladino era o africano que já tinha aprendido a língua e os costumes dos brancos, sem esquecer necessariamente seus valores da África. Nesse sentido, o uso de ladinização serve para “todas as gerações de africanos natos que […] tiveram com o tempo de adaptar, reinventar e criar de novo seus valores e práticas culturais, além de assimilar muitos dos costumes locais, sob as novas circunstâncias e sob a pressão da escravidão deste lado do Atlântico” (p. 317). E por sua grande capacidade de adaptar elementos culturais do mundo dos brancos às práticas que trouxe da África, negociando posições e cultivando relações dentro e fora da comunidade africana, Domingos era um mediador cultural, “um perfeito ladino” (p. 319).

Depois de ler essa obra e escrever essa resenha, posso afirmar que estamos diante de um trabalho cuidadoso, na melhor tradição da história social, onde personagens se cruzam todo o tempo no universo social e cultural de Domingos Sodré. O leitor encontrará profundidade analítica, num texto que realça as conexões entre África e Brasil – uma tendência nos estudos sobre a escravidão -, sobretudo para os libertos como Domingos. Há de acentuar também o trabalho etnográfico desenvolvido nesse livro, que buscou interpretar os significados dos objetos de culto relacionados ao biografado, bem como aos outros líderes do candomblé na Bahia oitocentista. Aliado a esses aspectos, o texto apresenta uma narrativa leve e fluida, característica presente em outros trabalhos de João Reis. Enfim, só nos resta agora aguardar e tentar adivinhar qual a próxima surpresa o autor terá a nos oferecer.

Carlos Francisco da Silva Jr. – Mestrando em História (UFBA). E-mail: [email protected].


REIS, João José. Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo, Companhia das Letras, 2008. 463 p. Resenha de: SILVA JR., Carlos Francisco da Silva. Outros Tempos, São Luís, v.7, n.10, p.287-291, 2010. Acessar publicação original. [IF].