Sobre a intolerância / Revista Trilhas da História / 2019

Abordar a intolerância, desde uma perspectiva historiográfica, é um grande desafio. E não apenas pelo seu caráter sensível. A negação da alteridade, a recusa em olhar o outro como um igual é fenômeno diverso, complexo e, também por isso, polissêmico em termos conceituais. Além disso, a questão do “outro” é algo de crucial importância para entendermos aspectos enquadrados nas mais diversas escolhas conceituais e cronológicas do campo historiográfico. Afinal, a intolerância é um fenômeno de lastro na experiência da modernidade, uma tradição arraigada nas relações humanas ou um fenômeno ainda mais hodierno?

Como se um eterno retorno daquilo que os humanos estariam fadados a ser, a intolerância pode ser observada em diversas práticas e representações da experiência humana. Contudo, enquanto historiadores e historiadoras, acreditamos que a intolerância não deve ser interpretada apenas a partir do prisma da rejeição como forma inata de (não) sociabilização entre os diferentes ou iguais. Mais que isso, é um fenômeno de implicação social (religiosa, política e econômica) construído em seus determinados tempos e espaços. Seja como forma de negação da razão humana ampliada ao “outro”, ou mesmo como uma estratégia industrial pensada para silenciar e exterminar os indivíduos diferentes e indesejados, a intolerância é um sinal presente nas complexas relações que marcam experiências históricas e expressões do tempo presente.

Desdobramento do Ciclo de Palestras realizado pelo curso de História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (Campus Três Lagoas), este dossiê tem como objetivo fomentar a discussão em torno da intolerância na história e apresentar algumas abordagens possíveis.

Em “A história da população negra no Brasil e os Direitos Humanos: Uma conversa necessária em tempos de intolerância”, Delton Aparecido Felipe aborda as lutas históricas dessa população no país. Questão umbilicalmente intrincada na construção de uma identidade nacional, por sua vez exclusivista e excludente por definição, o artigo problematiza questões como direitos, Direitos Humanos e a realidade histórica dos negros, fornecendo também uma grande contribuição para o entendimento da questão Republicana no Brasil.

Em “(In)tolerância e religiões afro-brasileiras: uma análise do jornal O Diário do Norte do Paraná (Maringá-PR, século XXI)”. Vanda Fortuna Serafim e Giovane Marrafon Gonzaga oferecem uma análise que põe luz à questões recentes da intolerância racial e religiosa. A partir dessa análise, compreendemos com mais propriedade o caráter histórico e atual do racismo no Brasil, a sua dimensão religiosa, e também a necessidade de compreender a intolerância como traço constituinte de uma nacionalidade, imaginada para ser excludente.

Wellington do Rosário de Oliveira em “No lodaçal dos vícios: mulheres meretrizes e o discurso jornalístico do Correio do Paraná (1932-1937)” parte também da análise de um periódico paranaense para estudar a prostituição nas ruas de Curitiba, em um contexto de higienização e modernização urbana, na década de 1930.

O dossiê conta também com dois artigos que tratam especialmente da ditadura civil-militar no Brasil. Com enfoques diferenciados, é possível observar a relação complexa entre Estado e Sociedade nas formas de repressão e negação da política como espaço de mediação, diálogo e representação. “A Ditadura Militar no Brasil e a narrativa histórica: Esquadrão da Morte na Comissão da Verdade do Estado de São Paulo”, de Aline de Jesus Nascimento, focaliza a experiência de grupos de extermínio construídos em paralelo às estruturas do estamento ditatorial. Além disso, as complexas questões envolvidas nas relações entre memória e história são levantadas.

Em “Ditadura militar, propaganda e otimismo no Brasil dos anos 1970”, David Antonio de Castro Netto aborda as propagandas como forma de construção de consensos e enquadramentos sociais, observando como a propaganda foi utilizada como forma de desmobilização, assim como estratégia de negação do “outro” para além da violência e do exterminismo.

Trabalhando com um recorte cronológico que reflete o processo de transição democrática no Brasil, o artigo “Lésbicas e o combate às discriminações nas páginas do boletim ChanaComChana” de Paul Silveira-Barbosa e Gabriela Coutinho Sales, traz uma importante análise sobre a lesbofobia, a heteronormatividade, assim como as formas de resistência em um contexto democrático, todavia marcado por formas diversas dos legados autoritários.

A intolerância é, sem dúvida, um elo que une os textos deste dossiê temático, que trata de objetos que são, a princípio, desconexos. Agradecemos às autoras e aos autores, assim como desejamos a todos uma boa leitura!

Seções: Artigos livres, ensaio e resenha

Este número conta ainda com artigos livres, ensaio e fontes. Na primeira modalidade temos o texto Clayton Ferreira e Ferreira Borges “A historiografia francesa do século XIX nas páginas da Revue Historique (1876-1914)” que analisa quantitativamente e qualitativamente a produção historiográfica publicada no periódico francês Revue Historique, no periódico entre os anos de 1876-1914. O debate historiográfico também é abordado por Daniel da Silva Klein em “Tropologia em Hayden White: apontamentos historiográficos”. Onde o autor dialoga com os elementos centrais da tese de Hayden White, pensando sua recepção critica na historiografia e apontando caminhos possíveis para sua superação.

Na sequência o artigo “Os 50 anos da Assembleia de Deus no Brasil em pauta: múltiplos olhares na imprensa sobre as comemorações na cidade do Rio de Janeiro (1961)” de Augusto Diehl Guedes, na perspectiva da história das religiões, desenvolve análise de fontes da grande imprensa e da mídia confessional que cobriram o evento do cinquentenário da Assembleia de Deus no Brasil, em 1961. A imprensa também é a fonte utilizada por Jorge Tibilletti de Lara para discutir “As impressões da primeira grande epidemia de dengue do Brasil entre os jornais O Globo, O Fluminense e Jornal do Brasil (1986)” que aborda os debates em diversos grupos da sociedade, como médicos, sanitaristas, movimento popular e governos acerca da doença que aparece pela primeira vez como epidemia no Brasil.

A seção Artigos Livres traz por fim a contribuição de Carlos Prado para a compreensão de um debate que permeia os movimentos de esquerda desde a segunda década do século XX, sobre o caráter das revoluções em países periféricos, no texto: “A revolução chinesa e o problema das revoluções nos países ditos coloniais ou semicoloniais (1924-1927)”.

O texto da graduanda da Universidade Estadual de Maringá, Giovana Eloá Mantovani Mulza, na seção “Ensaio de graduação”, se soma ao debate da intolerância na História, foco do dossiê apresentado acima. Em “De la Demonomanie des Sorciers: a caça às bruxas na concepção de Jean Bodin” a autora discute a intolerância religiosa na França do século XVI, a partir da obra De la Demonomanie des Sorciers de Jean Bodin surgida em 1580.

Na mesma seara das intolerâncias a seção “Fontes” apresenta entrevista “Sobre a alteridade, a intolerância e a história: uma entrevista com Karl Schurster” realizada pelos organizadores do dossiê Rafael Athaides e Odilon Caldeira Neto. Por fim, esta seção traz a contribuição da graduanda na UFMS / CPTL, Núbia Sotini Santos, intitulada “Operários itinerantes: algumas considerações sobre as fichas funcionais da Noroeste do Brasil” que apresenta fontes de pesquisa sob a guarda do Núcleo de Documentação Histórica Honório de Souza Carneiro.

Odilon Caldeira Neto – Professor Doutor. Universidade Federal de Santa Maria

Rafael Athaides – Professor Doutor. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

Santa Maria- RS e Três Lagoas-MS, junho de 2019


CALDEIRA NETO, Odilon; ATHAIDES, Rafael. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.8, n.16, jan. / jun., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Autoritarismo e conservadorismos políticos / História e Cultura / 2016

Tomando o Iluminismo enquanto momento inaugural da segunda modernidade, como ponto de inflexão para uma autorreflexão e para a busca pela racionalidade (Kant, 1968) e por uma autonomia política individual rumo ao cosmopolitismo (Kant, 1984 e 2004), percebe-se, em sua herança intelectual, dualidades básicas no centro das ações e das ideias políticas contemporâneas.

Essas dualidades referem-se, em essência, ao conflito fundamental pela inclusão ou exclusão de elementos ou grupos políticos de uma dada sociedade. Entre a evolução e o enraizamento, a tradição e a modernidade, observamos uma intensa contraposição, especialmente nos últimos dois “breves” séculos, de ideias e conceitos que fundamentam parte considerável das ideologias e a própria política moderna, como Nacionalismo e Cosmopolitismo, Conservadorismo e Liberalismo, Autoritarismo e Democracia, etc. (Funke et. al., 2011. p. 8). Essas contraposições dicotômicas se tornam ainda mais contrastantes em momentos de crises, quando ganham força posicionamentos e ideias conservadoras, assim como ações e políticas autoritárias.

Já no século XX, o avanço tecnológico e a composição da sociedade de massas trouxeram um novo momento, no qual os discursos e os meios de repressão se tornam ainda mais violentos, assim como crescem as possibilidades de interações e circularidade de ideias. Assim, as diversas formas do Conservadorismo e do Autoritarismo encontram nesse ambiente condições propícias para se desenvolverem e se relacionarem, ainda que tenham passado por modificações marcantes.

A partir dessas questões, que voltam à tona com intensidade em tempos recentes, surgiu o intuito do dossiê temático “Autoritarismo e Conservadorismos Políticos”, que os organizadores têm o prazer de apresentar. Os quatorze manuscritos selecionados demonstram a pertinência dos estudos sobre o tema e do próprio campo de estudos, suas vicissitudes, interações ou mesmo idiossincrasias, assim como diversas abordagens historiográficas possíveis.

Abrindo o volume, o texto de Thiago Possiede da Silva aborda a gestação de ideias e práticas autoritárias no Chile e suas implicações nas relações entre elites dirigentes e classes trabalhadoras durante a primeira década do século XX. Em recorte temporal semelhante, embora analisando a perseguição aos anarquistas no Brasil, o artigo de Bruno Corrêa Benevides auxilia a esclarecer a relação entre a negação de alteridade e repressão política que daria o tom às décadas seguintes.

Em relação ao papel desempenhado pelos intelectuais, dois artigos trazem novas análises sobre a construção de modelos autoritários baseados, de modo não mimético, em experiências externas. O texto de Felipe Xavier trata especificamente dos escritos de Delio Cantimori sobre a Alemanha nazista, enquanto a contribuição de Fábio Gentile analisa a questão do “autoritarismo instrumental” em Oliveira Vianna, assim como suas relações com o fascismo italiano.

Tratando especificamente de organizações fascistas (ou do fascismo enquanto movimento), Gabriela Grecco analisa a interação das porções “culturais” da Falange Española, suas relações e disputas face ao poder institucionalizado do Estado. Em relação às experiências e atividades da Ação Integralista Brasileira, Rodrigo Santos de Oliveira e Michelle Vasconcelos abordam o papel dos três principais intelectuais camisas-verdes na construção de um modelo totalitário à nação brasileira, enquanto Rafael Athaídes analisa as mensagens comoventes na imprensa integralista como estratégia política destinada às porções militantes, mas também ao projeto de nação.

Ainda sobre o integralismo brasileiro, todavia no período do “pós-guerra”, Leandro Pereira Gonçalves e Alexandre de Oliveira tratam da questão da problemática contingente militante na passagem da Ação Integralista Brasileira ao Partido de Representação Popular, que sem dúvida trazem implicações historiográficas.

Para além das formações e consequências de modelos autoritários que protagonizaram em especial o período do entreguerras, as contribuições ao dossiê também abrangem a segunda grande “onda” autoritária do século XX, cujo ápice decorre entre os anos 1960 e 1970. Da mesma forma que o primeiro bloco de artigos, neste os fenômenos também são analisados por várias autoras e autores a partir de abordagens diversificadas. É o caso, por exemplo, de Mila Burns, que trata sobre o papel da Diplomacia Brasileira na deposição de Salvador Allende em torno das interações entre atores e instituições internacionais. Já Juan Besoky aborda as disputas entre as porções da direita peronista que compõem o nacionalismo argentino durante a década de 1970.

A construção do regime de exceção brasileiro é analisada em duas contribuições. Thiago Nogueira de Souza analisa a movimentação anticomunista de parlamentares brasileiros da Ação Democrática Parlamentar, enquanto David Castro Netto trata sobre a relação entre propaganda, os manuais da Escola Superior de Guerra e o regime militar brasileiro. Já Gustavo Bianch, empreende uma leitura crítica sobre a tese do “oposicionismo nato” dos estudantes durante a ditadura, a partir da análise sobre organizações estudantis de direita.

Por fim, mas não menos importante, Bruno Biazetto, a partir da análise de percepções de intelectuais norte-americanos sobre o fenômeno conservador local, fornece uma ampla visão sobre o estado da arte, que se inicia na Era Reagan e se estende a expressões políticas como o Tea Party e a candidatura (e agora eleição) de Donald Trump.

Evidentemente, grande parte dos textos atentam para dinâmicas relacionadas a regimes de exceção – ou às tentativas de construção de ordens autoritárias. No entanto, conforme aventado, a hodiernidade da questão desconhece barreiras temporais ou mesmo divisões de mundo, inclusive entre “Ocidente” e “Oriente”. Assim, a entrevista realizada com o professor Dr. Andreas Umland, um dos expoentes nos estudos do autoritarismo pós-soviético, nos oferece uma visão acerca de um quadro complexo e por vezes pouco analisado do lado de cá, coroando a edição do presente volume. Como organizadores, esperamos que este dossiê auxilie a suscitar novas compreensões, discussões, possibilidades de pesquisas e, sobretudo, o diálogo entre as diferentes formas de vivenciar o mundo.

A todos (as), uma boa leitura!

Odilon Caldeira Neto – Professor substituto do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com estágio doutoral junto ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL). Investigador-coordenador da “Rede Direitas, História e Memória” (http: / / direitashistoria.net). E-mail: [email protected]

Vinícius Liebel – Historiador, doutor em Ciência Política pela Freie Universität Berlin (FU-Berlin). Pós-doutorado pela Universidade de São Paulo (USP). Professor colaborador do PPG-História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), bolsista Capes-PNPD na mesma instituição. E-mail: [email protected]


CALDEIRA NETO, Odilon; LIEBEL, Vinícius. Apresentação. História e Cultura. Franca, v. 5, n. 3, dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Radicalismos políticos / Oficina do Historiador / 2016

O começo do novo milênio refreou já amplamente as esperanças que a história tivesse chegado ao seu fim, ou seja que a derrota do último grande totalitarismo do século XX deixasse as portas abertas à construção de uma ordem internacional regida pelos princípios liberais e pelos modelos democráticos representativos. Ao contrário dessas prospecções, esses primeiros dezesseis anos de Século XXI testemunharam, mais uma vez, o ingresso na história mundial do conceito de crise; crise de longo curso e em diferentes dimensões: ideológica, econômica, geopolítica.

Essa crise tomou, com certeza, novas faces a nível internacional – hoje o radicalismo religioso dentro do paradigma de um alegado choque de civilizações ou a instabilidade financeira global – mas provocou, a nível nacional, fenômenos constantes na história do homem: a entrada de novos atores sociais e políticos, a produção de dinâmicas de conflito, a transferência, de uma parte a outra de um mesmo continente ou até de continentes diferentes, de ideias e práticas políticas frequentemente traduzidas segundo os sabores locais, a construção de memórias e discursos funcionais à transmissão dessas experiências. Como em todos os momentos de crise e de confrontação, essas irrupções tomam a forma do radicalismo face à realidade existente e correm o risco de serem encaixadas nas grandes narrativas históricas, diluindo, assim, as características peculiares que as tornam tão ricas do ponto de vista epistemológico mesmo em referência ao fenómenos mais amplos.

O intuito do dossiê temático Radicalismos Políticos é exatamente o de retomar a longa e prolífica linha historiográfica da crise, do conflito e da radicalização no século XX sem solução de continuidade com o novo milênio. Esse objetivo é perseguido através da apresentação de casos de estudo cuja matriz política é condutível às grandes famílias políticas da modernidade – a direita e a esquerda – mas cujas peculiaridades geográficas e identitárias permitem apurar ainda mais o conhecimento das tão diferentes facetas com que essa dicotomia clássica se encarnou nas duas margens do Atlântico.

Embora os casos selecionados respeitem a divisão dos sujeitos entre direita e esquerda, tanto os organizadores como os autores estão conscientes da hibridação que os diferentes sujeitos políticos sofrem em época de convulsões ideológicas e políticas. Dessas hibridações há sinais claros nos textos apresentados. O acento, contudo, é posto no caráter diacrônico dos casos: uma série de experiências surgidas ao longo de todo o século XX, com particular referência às épocas de maior convulsão: os anos trinta e os anos sessenta, mas também nesse breve começo de novo milénio.

Na frente das direitas, particular destaque é dado ao principal movimento fascista da América Latina, a Ação Integralista Brasileira (AIB). Rodrigo Santos de Oliveira e Michelle Vasconcelos do Nascimento apresentam o processo de construção, por parte da AIB, da própria identidade na contraposição entre valores sociais integralistas e erros ideológicos dos adversários, legitimando, assim, o próprio caráter regenerativo e resolutório da crise nacional. O ímpeto identitário dos integralistas é reforçado pela análise de Alexandre Oliveira e Vinícius Ramos sobre a peculiaridade da AIB como movimento fascista que, à diferença do fascismo italiano, resistiu o mais possível à laicização do Estado, à construção de uma religião civil e à secundarização da religião católica como factor de mobilização das massas.

A ponte entre as duas margens do Atlântico é reconstruída por Pedro Ivo Tanagino que, no seu estudo, apresenta o mito conspiratório da AIB, cujas raízes e utilização como factor de mobilização resultam centrais nos movimentos nacionalistas de massa de entreguerras. Essa diferenciação do fascismo brasileiro face ao modelo original europeu encontra prelúdios nas especificidades doutrinárias dos intelectuais conservadores latino-americanos face aos europeus. Em particular, Luiz Mário Costa apresenta o trabalho dos primeiros anos do século XX de dois destacados intelectuais contra-revolucionários: o brasileiro Gustavo Barroso e o português Alfredo Pimenta. O intuito de desmontar a suposta fraternidade intelectual luso-brasileira, tomando como indicador a polêmica entre os dois mestres de pensamento sobre um tema central para as direitas – o Império – cujas dimensões do heroísmo e da missão civilizadora marcam o discurso dessa família política ao longo de toda a sua trajectória de declínio no século XX.

A analise das direitas nas margens lusófonos do Atlântico e na primeira metade do século é acompanhada pela investigação das congêneres e contemporâneas na América hispânica. Em particular, Olga Echeverría apresenta as direitas argentinas e uruguaias perante a consolidação dos regimes fascista e nacional-socialista na Europa. A autora refere, em particular, o efeito de radicalização que o nazi-fascismo exerceu nalgumas dessas direitas latino-americanas, descortinando, assim, aquele processo recorrente de marginalização das facções radicais face às moderadas mais aptas a colaborar com os partidos mainstream do arco da governação. Também nesses casos de estudo, a tônica é posta na diferença e particularidade dos sujeitos analisados, sublinhando a contraposição entre a postura interclassista e de massa do partido uruguaio face ao caráter elitista das direitas argentinas.

A radicalização de parte das direitas Hispano-americanas, em particular das camadas juvenis, é retomada por Ernesto Bohoslavsky e Gabriela Gomes, desta vez no contexto das amplas mobilizações civis dos anos sessenta e setenta. Acerca desse período, o foco é habitualmente posto sobre os meios de esquerda (camponeses, operários, intelectuais). Os autores, pelo contrário, oferecem um panorama da juventude estudantil que se radicaliza num sentido nacionalista e anticomunista na Argentina e no Chile entre 1959 e 1973, através de várias organizações, como a famosa Tacuara, antes da instauração das ditaduras militares.

A relação entre ditadura e direitas é abordado por Eduardo Chaves, com a análise da construção da memória de Dercy Furtado, deputada estadual, nos anos Setenta, do partido de suporte ao regime militar brasileiro: a Aliança Renovadora Nacional (ARENA). A dimensão da militância estudantil como da construção da própria imagem revelam facetas interessantes do ingresso e da saída do radicalismo político durante o ciclo de crise, ou melhor de percepção da crise.

Na frente das esquerdas, as contribuições apresentadas apontam para os três mais importantes períodos de crise dos últimos cem anos: o eclodir do movimento operário entre século XIX e XX, as batalhas sindicais dos anos sessenta e a crise financeira global do século XXI, que afetou duramente os países do Sul. Aqui os sujeitos analisados pertencem principalmente ao meio anarquista na sua alvorada e à extrema-esquerda pós-materialista. O repertório de mobilização do anarcosindicalismo é apreciado por Luiz Felipe Mundim na França do final do século XIX. O objetivo é reconstruir as origens da mobilização e dos métodos escolhidos para descrever o processo de radicalização que tornará o anarcosindicalismo um ator central nos conflitos sociais do princípio do Século XX. A mesma família política é apresentada por Luciano Telles, cuja análise da revista A Lucta Social descortina os processo de radicalização à esquerda dos operários brasileiros da zona de Manaus e a sua aproximação de classe ao tenentismo, à sombra de reivindicações comuns de justiça social.

A peculiaridade do anarquismo como movimento importante mas à margem da crescente onda comunista no século XX é retomada pelo estudo de Maurício Brum. Dentro da célebre experiência de Salvador Allende no Chile, o autor centra a sua análise do radicalismo de esquerda nos anos Sessenta sobre o único partido chileno que não integrou a Unidade Popular: o Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR). O intuito é perceber as razões pelas quais uma organização radical escolhe um determinado posicionamento num momento decisivo de crise e as modalidade que emprega nessa luta política marginal. Finalmente, no novo milénio e no contexto da crise econômica global, o enfoque é dado menos a uma presença e mais a uma ausência: o caso de Portugal contemporâneo, pois, é emblemático para se perceber como os efeitos de uma crise em determinados países não se reproduzam em outros. Nesse sentido e postas as condições similares entre países do Sul de Europa, José Santana Pereira analisa a esquerda radical portuguesa e, em comparação com a emergente esquerda populista grega (Syriza) e espanhola (Podemos), explica as razões do fracasso das tentativas de construção de um novo sujeito “populista” também nas margens do rio Tejo.

A radicalização dos movimentos sociais tanto a direita como a esquerda determinada pelas crises é também focalizada por Tatiana Poggi, na dimensão particular do contraste legislativo aos chamados crimes de ódio na Europa ocidental. Nesse sentido, a autora analisa o processo que levou ao reconhecimento e defesa legal dos direitos humanos (civis, políticos e sociais) constantemente ameaçados pelas dinâmicas de conflito.

A variedade temática, geográfica, cronológica e metodológica do número monográfico apresentado é mais que uma escolha, é uma escolha justificada pela necessidade sobre um tema como o dos movimentos políticos e sociais em conflito que merece, há anos, uma atenção crescente pela literatura científica. Como demonstram as resenhas de Tiago Carvalho e Tiago Moreira Ramalho sobre duas recentes obras de relevo acerca desse tema, a interdisciplinaridade e pluralidade é fundamental para satisfazer cada vez mais o caráter cumulativo da ciência.

Por fim, algumas questões de grande relevância para as ciências sociais estão dispostas na entrevista realizada com os investigadores António Costa Pinto (Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa) e André Freire (Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa). Nela, podemos verificar diferentes caminhos de pesquisas, questões interpretativas e, especialmente, contribuições para temáticas tão urgentes.

Como organizadores, temos a certeza que os trabalhos aqui apresentados são de grande ajuda não só para a investigação comparativa sobre radicalização de movimentos políticos e sociais, mas também para as áreas específicas temáticas, temporais ou regionais. Agradecemos ao corpo editorial da revista Oficina do Historiador, aos autores, pareceristas e entrevistados, por este dossiê temático. Desejamos a todos uma boa leitura!

Odilon Caldeira Neto (UFRGS)

Leandro Pereira Gonçalves (PUCRS)

Riccardo Marchi (ISCTE-IUL)


CALDEIRA NETO, Odilon; GONÇALVES, Leandro Pereira; MARCHI, Riccardo. Apresentação. Oficina do Historiador. Porto Alegre, v. 9, n. 1, jan. / jun., 2016. Acessar publicação original [DR]

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