Nietzsche: uma introdução filosófica – FIGAL (V)

FIGAL, Günter. Nietzsche: uma introdução filosófica. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012. Resenha de: MERTENS, Roberto saraiva Kahlmeyer. Veritas, v. 59, n. 1, p. 15-19 jan.-abr. 2014.

Em fins de 2012, foi editada a tradução de Nietzsche: uma introdução filosófica, de Günter Figal (Mauad X, 2012). Conhecida do público europeu desde a década de 1990, esta obra de fôlego, a contar dessa data, vem contribuindo com a elevação do nível das pesquisas sobre Nietzsche no exterior. Fenômeno que talvez se explique pela visada peculiar que seu autor joga sobre a filosofia de Nietzsche.

Embora apontado como um dos principais representantes da Nietzsche Forchung alemã (ao lado de Günter Abel e Volker Gehardt), Günter Figal não seria um leitor de Nietzsche no sentido estrito do termo. Formado no caldo de cultura da fenomenologia-hermenêutica, tendo sido aluno de Hans-Georg Gadamer e herdeiro direto da filosofia de Martin Heidegger (a ponto de, atualmente, ocupar a cátedra que pertencera ao filósofo na Universidade Albert-Ludwig, em Freiburg), é inevitável encontrar na interpretação que Figal faz de Nietzsche traços influentes de sua formação.

Muito mais do que exegese do texto nietzschiano, o livro deixa transparecer o esforço de partir da obra do filósofo, e das interpretações estabelecidas na fortuna crítica, para uma aproximação gradual do horizonte significativo do pensamento de Nietzsche. Assim, ao arrancar das posições, visões e conceptualizações que as leituras disponíveis oferecem-nos, Günter Figal reconstrói o cenário no qual o pensamento de Nietzsche fez-se possível, passa em revista crítica as teses consolidadas sobre tal filosofia e, por fim, descreve o que se evidencia a partir de um

Nietzsche livre dos cacoetes de algumas interpretações tradicionais. A tríade reconstrução, revisão crítica e reinterpretação (que delineia o itinerário do livro de Figal) será a mesma que oferecerá estruturação a esta resenha.

O gesto reconstrucionista é particularmente identificado no capítulo inicial. Dividido em três tópicos, no primeiro, intitulado “Sismógrafo”, o autor oferece-nos um verdadeiro inventário da recepção da obra de Nietzsche na contemporaneidade. É digno de nota que tal balanço não se restringe à cena filosófica. Figal indica como o pensamento de Nietzsche infiltrou-se nas ciências humanas e sociais por meio de Georg Simmel e de Max Weber; como os influxos das ideias estéticas do filósofo serviram de inspiração a músicos como Gustav Mahler e Richard Strauss; como o espírito da obra nietzschiana passou à literatura dos irmãos Mann (Heinrich e Thomas), de Gottfried Benn e, em especial, de Ernst Jünger. Valendo-se desta contextualização, Günter Figal indica, a partir deste último, o papel que Nietzsche desempenhara em seu tempo. Em uma época de crise, na qual a filosofia ainda se ressentia da ruína dos idealismos (para os quais Hegel e os hegelianos representavam uma espécie de aristocracia metafísica) e da ascensão bárbara do positivismo, a lucidez de Nietzsche não seria um terremoto, mas o sensor que descreve e interpreta tais abalos, ou, nas palavras de Jünger:

Ele investiga os caminhos possíveis, as rotas mais extremas sobre as quais a razão fracassará. A apreensão intelectual da catástrofe é mais terrível do que os medos reais do mundo do fogo. (…) Partir-se assim era o destino de Nietzsche: hoje é de bom tom apedrejá-lo. Do mesmo modo que depois do terremoto, as pessoas se abatem sobre o sismógrafo. Não obstante, não se pode fazer que o barômetro expie a culpa pelo furacão se não se quiser adentrar as fileiras dos primitivos.1

A metáfora do sismógrafo como indicativa do posto de Nietzsche é apenas uma das muitas tiradas felizes do ensaio de Figal neste momento propedêutico. Os tópicos que se seguem a este (a saber, “Biografia” e “Definições de posição”) reforçam pontos ali esboçados.

Sem a erudição histórica das biografias disponíveis no mercado e com uma condução que nos lembra, em certos lances, os parágrafos biográficos do primeiro volume das preleções de Heidegger sobre Nietzsche, a obra de Figal oferece-nos uma narrativa da vida e obra deste pensador. Do mesmo modo que Andler,2 Figal valoriza a juventude de Nietzsche: seu período de formação filológica na Escola de Pforta, seu convívio amistoso com o mestre filólogo F. W. Ritschl, o desgosto da carreira docente, a amizade malograda com R. Wagner, a maturação das ideias mais tenras da infância em A origem da tragédia e os primeiros fustigos por parte do seu ex-condiscípulo U. v. Wilamovitz-Moellendorff (o filólogo).

Deste bosquejo biográfico, entretanto, o que mais importa é a indicação de que Nietzsche, voluntariamente afastado da universidade e possuindo reduzido um círculo de amizades, volta-se para si tornando-se pela primeira vez presente como pensador por meio de sua escrita. Figal sustenta a tese de que, para Nietzsche, e ao contrário dos demais filósofos, “(…) o que está em questão para ele não é nem mesmo um programa filosófico que pudesse subsistir por si e seria designado por meio de seu nome (…). Nietzsche se retrai ante o desenvolvimento das ideias que poderiam ser aplicadas sem uma consideração da pessoa.”3 Caracteriza-se, assim, a concepção nietzschiana da “vida como literatura”.4

Os pontos de partida para a elaboração do que seria uma escrita de si e um si mesmo como filosofia é o que se encontrará no já mencionado tópico “Definições de posição”. É aí que o comentador (após a revisão literária das interpretações de Nietzsche que fizeram escola: Jaspers, Heidegger, Lukács, Adorno e Derrida) aponta o lugar que o filósofo de Röcken ocupa na história da filosofia: “(…) Nietzsche não pode mais ser pensado agora meramente em contraste com a tradição; se Nietzsche é o filósofo moderno por excelência e ao mesmo tempo pertence à metafísica, isso é uma prova do caráter metafísico da modernidade (…)”4 Tal afirmação causaria certamente desconforto aos acostumados a conceber Nietzsche como o arauto do pensamento não metafísico, convicto opositor da tradição. Entretanto, bem como Heidegger, Figal entende que Niezsche ainda possui ligação com a tradição filosófica justamente por depender de pressupostos e arrolar consequências de ideias e condutas próximas à metafísica.

É nesse momento que a principal tese do livro aparece, tal tese alinha a conduta de Nietzsche à figura paradigmática do Sócrates e liga seu pensamento a Platão. Em que sentido? Resposta: primeiramente, ao contar com a tradição de pensamento ocidental para colocar-se em diálogo com conceitos e questões filosóficas; depois, por sua filosofia tornar-se o que é na medida em que se diferencia da tradição, fazendo desta um outro de si, isto é: na maneira pouco canônica com a qual Nietzsche contempla o mundo e confronta-se com a metafísica, a tradição filosófica experimenta sua alteridade. Mas, para Figal, ainda que a filosofia de Nietzsche desconstrua as bases da metafísica e proponha-se em termos diversos da tradição (Figal não insinua que Nietzsche reproduza Platão), mesmo o “filosofar a marteladas” guardaria vestígios de sua natividade metafísica. Diante do caráter polêmico desta tese, o resumo pálido que esta resenha apresenta (coerentemente a sua proposta de recensão e adequando-se ao espaço que lhe é cabido), não permite que o leitor prescinda da leitura deste terceiro tópico do primeiro capítulo, bem como os diversos momentos adiantados do texto no qual a premissa ganha desdobramentos. É possível, entretanto, concordar com o comentador quanto a seu esforço por caracterizar de maneira mais rigorosa e uniforme a figura filosófica de Nietzsche, descerrar um filósofo “mais estranho, mais espantoso e mais conhecido ao mesmo tempo”.5 A transição do Capítulo primeiro aos próximos deixa transparecer, novamente, uma atitude hermenêutica. Denominado De fora, o primeiro momento apresentava as circunstâncias externas a partir das quais ingressaríamos na leitura da obra em busca de uma compreensão do pensamento de Nietzsche. Destarte, partindo das compreensões prévias que a narrativa biográfica e as interpretações autorizadas oferecem, pode ter início o caminho de intensificação de compreensões da obra-Nietzsche. É isso que se encontra no capítulo segundo, intitulado Tempo, ser e devir. O referido nome explica-se pelos tópicos encontrados nesta seção.

Em tais pontos encontramos a tematização de noções-chave do pensamento de Nietzsche, como o devir, força plástica e arte, apresentadas por meio de citações do autor de Assim falou Zaratustra. A qualificação de Figal enquanto intérprete de Nietzsche evidencia-se desde que nos deparamos com as passagens que o autor escolhe para tematizar (tal seleção, por si só, justifica uma leitura dos tópicos). Num diálogo intrínseco à obra de Nietzsche, e sem fugir ao enfrentamento das leituras mais acatadas, Figal revisa criticamente a maneira com que conceitos, temas e questões decorrentes do pensamento de Nietzsche vêm sendo apropriados. Muito do exercício de interpretação do comentador consiste em desmontar essas interpretações cristalizadas para liberar o interpretado a um horizonte no qual seja favorável a identificação do solo no qual este estaria fundado. Movimento hermenêutico idêntico é o que se repete no terceiro e quarto capítulos.

Aguardado durante toda a leitura, é no último capítulo da obra que o problema do conhecimento aparece. Sob a alcunha de Vida do conhecimento, podemos conferir a distinta interpretação que Figal dedica aos conceitos mais fundamentais do pensamento nietzschiano, ao exemplo: o super-homem (na peculiar opção de tradução como “além-do-homem”), a vontade de poder, o eterno retorno e a psicologia (conceitos homônimos aos tópicos dignos de nota no referido capítulo). Ao apontar estes conceitos como raios para o eixo que o personagem de Zaratustra constitui, Figal pode elucidar o quanto essas noções dão voz a uma doutrina da vida. Importa, entretanto, ao comentarista indicar o quanto mesmo esta doutrina em sua presumida liberdade de pensamento ainda não teria suas bases no solo tradicional do platonismo, este contra o qual o próprio Nietzsche volta-se. Tal tarefa, que parece perpassar inteiramente Nietzsche, constitui uma introdução filosófica, que se torna mais nítida na terceira porção do trabalho.

Ao longo das 248 páginas que dão corpo à tentativa de tornar compreensível a obra de Nietzsche, o livro de Günter Figal – não seria demais assinalar – possui uma linguagem tão didática quanto plástica. Tais atributos discursivos, mais do que um requinte estético, denotam não só a maturidade do pesquisador perante seu objeto de estudo, quanto a preocupação de fazer jus à prosa filosófica do incontestável estilista que foi Nietzsche.

Publicado originalmente na forma de livro de bolso sob o selo da alemã Reclam, a editora brasileira apresenta o livro com arte e editoração elegantes, reservando-lhe lugar especial no interior da Coleção Sapere Aude, que já possui outros títulos referentes a Nietzsche.

Referências

ANDLER, Charles. La Jeunesse de Nietzsche – Nietzsche as vie et as pensée. 3. ed. Paris: Rossard, 1921.

FIGAL, Günter. Nietzsche: Uma introdução filosófica. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012.

HEIDEGGER, Martin. Nietzsche I. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

Notas

1. ÜNGER apud FIGAL, 2012.
2. ANDLER, 1921
3. FIGAL, 2012, p. 36.
4. FIGAL, 2012, p. 42
5. FIGAL, 2012, p. 13

Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens – Doutor em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professor Adjunto na Universidade Estadual do Oeste do Paraná-UNIOESTE. E-mail: [email protected].

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Introdução às ciências humanas – tentativa de uma fundamentação para o estudo da sociedade e da história – DILTHEY (V)

DILTHEY, Wilhelm. Introdução às ciências humanas – tentativa de uma fundamentação para o estudo da sociedade e da história. Trad. de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. Resenha de: MERTENS, Roberto Saraiva Kahlmeyer. Veritas, Porto Alegre v. 57 n. 3, p. 223-226, set./dez. 2012.

Durante décadas, em nosso país, os estudos das ciências humanas (especialmente as sociais) se serviram das leituras de Marx ou de autores marxistas para compor massa crítica. Repertório criado, é preciso dizer que, ainda hoje, muitas das pesquisas nessa área continuam a receber orientação do referido paradigma. Sem querer apreciar a validade ou a aplicabilidade dessas matrizes em nosso momento atual (e da necessidade ou não de uma gradativa substituição por um novo paradigma para as humanidades), apenas ponderamos que, talvez pelo seu longo período de vigência, ficou inibido o interesse de pesquisadores e das editoras por outros autores representantes das demais linhas de pensamento. Sanando este débito, vemos alguns nomes e títulos clássicos da filosofia e das ciências humanas sendo traduzidos e publicados recentemente para o português do Brasil, entre eles está Wilhelm Dilthey (1833-1911) e sua Introdução às ciências humanas (1883).

Uma avaliação empírica nos permite indicar que o autor é pouco conhecido fora das rodas acadêmicas e precariamente estudado mesmo no interior delas, de sorte que a presente obra pode oportunizar um contato com as ideias deste filósofo, hermeneuta, psicólogo, historiador e pedagogo, que foi um dos primeiros a lançar um olhar lúcido sobre a inadequação dos métodos que elas importaram das ditas ciências naturais.

Para Dilthey, a metodologia das ciências naturais exerceria um efeito negativo sobre as outras, isso porque, por valer-se de compreensões hipotéticas (ou ainda, “hipostasiadas”), as ciências naturais posicionariam os objetos das ciências humanas tal como fazem com os objetos da natureza, interpretando-os como dados em sua mera aparência e duração. Desse modo, as ciências naturais (positivas) exerceriam uma ação “abstrativa” sobre o conhecimento acerca do humano. Tal ação seria decorrente da lida hipotético-positiva das ciências naturais, e tal lida oferece o risco de descaracterização da experiência humana na pauta das ciências que dela se ocupa. Nos termos do pensamento diltheyano, a ação das ciências abstrativas retira os “objetos” das ciências humanas do horizonte que lhes é próprio, na medida em que decompõe, esfacela e destrói o referido horizonte (a isso o filósofo chama de “desvivificação”).

Com essa descrição, central na Introdução às ciências humanas, a crítica às ciências abstrativas disparada por Dilthey abriu terreno para uma enxurrada de análises e desdobramentos que, em sua época (décadas finais do século XIX e iniciais do XX), chegaram a alçar até mais notoriedade do que as premissas de seu primeiro propositor. Spengler, Scheler e Spranger são apenas alguns nomes que, seguindo as pegadas de Dilthey, reforçam a premissa de que as ciências do homem, da sociedade e da história precisariam assentar-se em um solo que lhes garantisse fundamentação adequada (uma vez que esse embasamento, como já vimos, não poderia ser fornecido pelas ciências naturais, mas, antes, seria dado na humanidade das ciências do espírito).

Mas, o que, nesta tarefa de embasamento, chamaríamos de ciências da realidade histórico-social? Em que terreno se poderia lançar os alicerces das ditas ciências humanas? Onde se poderiam fundamentar as ciências do espírito de modo às mesmas não padecerem da mencionada “desvivificação”? A resposta do filósofo dada em seu livro não poderia ser mais simples: no próprio espírito, no horizonte humano, horizonte que Dilthey especifica com o termo vivência. “O ponto de partida é a vivência”. Tal sentença será repetida à exaustão ao longo das quase quinhentas páginas da obra em apreço.

Tomando por consideração as vivências (a própria vida dos fenômenos, realidade absoluta que garante a correlação entre a consciência e seus objetos em um contexto efetivamente histórico), Dilthey se serve do método hermenêutico para, com ele, reconstituir o laço que as ciências humanas possuem com o humano. Assim, uma fundamentação das referidas ciências ocorreria ao passo em que, hermeneuticamente, se possibilitaria um compreender acerca de como o conhecimento humano se faz desde o horizonte próprio ao espírito, sem que os procedimentos explicativos (abstrativos) do positivismo nisso interfiram.

O conceito de vivência, a clássica distinção entre compreender e explicar, ao lado de outros pontos que compõem bases para as ciências particularidades da sociedade e da história, são apresentados satisfatoriamente por um Dilthey ocupado em oferecer uma visão de conjunto das ciências do espírito, na conexão com uma ciência fundante necessária. Esta primeira parte da obra, por definir conceitos e métodos; delimitar o lugar autônomo das ciências da realidade histórico-social frente às ciências naturais; fornecer visões gerais sobre as ciências particularidades da sociedade e da história e distinguir entre as duas classes de ciência, é considerada por Max Weber (outro seguidor de Dilthey) o primeiro estudo sério no qual se aborda o problema metodológico das chamadas ciências humanas.

A obra, entretanto, não se limita apenas a uma apresentação deconceitos e temáticas acerca de pontos que o filósofo julgava impres-cindíveis no campo das ciências. Intuindo (semelhantemente ao Hegel da Fenomenologia do espírito) que toda ciência depende das condições de nossa consciência, Dilthey dedica a segunda parte da obra à interpretação da constituição definitiva da ciência histórica e, por meio dela, das ciências humanas em geral. Realiza-se, assim, a tentativa de fundamentar o estudo da sociedade e da história (como o subtítulo da Introdução anuncia). O que se presencia neste momento é, então, a análise dos fatos constituintes do núcleo das ciências humanas e sua correspondência com a história; história, esta, apreendida como manifestação da vida sob o ponto de vista da humanidade.

Ao longo das quatro seções que compõem esta segunda parte do livro, vemos Dilthey buscar a restauração de elementos da base histórico-material que constitui o conhecimento humano; base, essa, que teria sido tanto negligenciada pelo projeto crítico do kantismo, quanto pelo idealismo radical hegeliano. Ao retomar essas bases históricas, Dilthey tenta esclarecer que as vivências da consciência, e as visões de mundo que elas constituem em cada época, acabam por traduzir as concreções do espírito objetivo em um tempo. Isso explica a extensa narrativa historiográfica contida no tópico intitulado Metafísica como base das ciências humanas: seu domínio e sua decadência, na segunda parte do livro. No referido momento, o filósofo descreve e analisa visões de mundo dos povos antigos e de seu pensamento místico, os povos europeus modernos e seu estágio metafísico, e a dissolução da posição metafísica ante a realidade. Fica patente, ali, a admirável erudição do autor que dedica, além de leituras refinadas de Platão e Aristóteles, dezenas de páginas à filosofia medieval árabe, ultrapassando em muito as expectativas do leitor com formação filosófica média que, geralmente, não costuma ir além de notícias sobre Avicena e Averróis (fato que justifica o entusiasmo de Eugenio Imaz, seu tradutor para a língua espanhola, que reputa sua cultura “prodigiosa”, “oceânica”). Aspecto que, por si só, já é suficiente para legitimar a publicação do livro.

Avaliada sob o ponto de vista da tradução, a edição brasileira apresenta uma versão elaborada de maneira atenta à tendência dos estudos mais atuais da obra de Dilthey. Desse modo, mesmo a tradução da expressão alemã Geisteswissenschaften por “ciências humanas” (que poderia ser contestada em favor da literal “ciências do espírito”) encontra precedente nas traduções de língua inglesa e endosso junto a comentaristas especializados, que se inclinam a acatar que “ciências humanas” traz melhor a conexão de sentido da realidade histórica e social do que a nomenclatura “ciências do espírito”, na qual a noção de “espírito” facilmente pode sugerir erroneamente uma independência de homens reais. Não fosse esse argumento suficiente, a escolha se mostra editorialmente plausível, uma vez que cria maior identidade com o público de alguns dos cursos universitários brasileiros, dos denominados cursos de ciências humanas.

Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens – Doutor em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Estuda o autor alemão Martin Heidegger desde o ano de 1995, tendo interesse também pela filosofia clássica alemã. Autor de Heidegger & a Educação (Autêntica, 2008). E-mail: [email protected].

 

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Ideias sobre uma psicologia descritiva e analítica – DILTHEY (V)

DILTHEY, Wilhelm. Ideias sobre uma psicologia descritiva e analítica. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Via verita, 2011. Resenha de: MERTENS, Roberto Saraiva Kahlmeyer. Veritas, Porto Alegre v. 56 n. 3, p. 187-190, set./dez. 2011.

Em 2011, celebra-se o centenário de morte de Wilhelm Dilthey (1833-1911). Para esta data, no Brasil e no exterior, editoras e universidades vêm se mobilizando, desde o ano passado, para organizar novas edições e eventos acadêmicos sobre o filósofo alemão. Associados à Fundação Fritz Thyssen em Colônia, Alemanha, tradutores de diversos idiomas vêm vertendo a obra para o inglês, o russo e o japonês. Também traduções para o português estão sendo preparadas no Brasil.

Em nosso país, trabalhos de diferentes fases da obra de Dilthey já foram traduzidos por editoras de expressão. Até o momento, o resultado dessas publicações é um desenho sincopado da produção do autor que foi, além de filósofo, hermeneuta, psicólogo, historiólogo e pedagogo. Com todas as lacunas, entretanto, tal política editorial ainda nos é mais favorável do que a situação de penúria que enfrentávamos até a presente data, quadro em que eram quase ausentes as traduções confiáveis de Dilthey. Sem o interesse de avaliar o estado da arte das pesquisas sobre Dilthey (tarefa ampla que não seria pertinente em uma resenha), nos limitamos a indicar que a flagrante carência de estudos críticos no Brasil (lacuna que, muito mais do que uma hipótese, é uma evidência empírica) fez com que o esforço de recepção do pensamento desse autor, em nosso país, se limitasse praticamente à aplicação do método diltheyano pelo historiador Octávio Tarquínio de Sousa na redação de suas biografias e, muito posteriormente, em alguns rodapés de José Guilherme Merquior.

Formada de trabalhos heterogêneos, é lugar comum indicar que a obra de Wilhelm Dilthey é assistemática desde sua juventude; mas, essa característica não nos impede de ver um interesse comum que perpassa todos os escritos do alemão. Consideremos, por exemplo, o ensaio Ideias sobre uma psicologia descritiva e analítica, que se trata de uma obra tardia, escrita entre os anos de 1892-94 e revista em 1907-08. Tal trabalho é costumeiramente lido ao lado dos escritos literários de Dilthey (sobretudo seu Vivência e poesia), tema que comparece na obra de maturidade do autor (final da década de 1880). Por apresentar as bases psicológicas e

teóricas do conhecimento do pensamento de Dilthey, o ensaio em questão também é utilmente recomendado como introdução à obra A construção do mundo histórico nas ciências humanas, de 1905 (o que não constitui nenhum anacronismo, haja visto as datas de redação e revisão do texto de psicologia). Toda essa equivalência deve-se ao fato das referidas obras terem o mesmo pano de fundo e motivação.

Com a derrocada dos idealismos no fim do século XIX, o que vemos é uma tendência ao positivismo. Ante a drástica crise de paradigmas que grassava, chegou-se a acreditar que apenas um recurso às ciências positivas poderia garantir o acesso a um conhecimento válido. Deste modo, a filosofia parecia não ter outra escolha senão subordinar-se à ciência, rejeitando sua vocação metafísica e tornando-se, pois, algo assim como epistemologia. Destarte, em uma época na qual a sociologia é criada e a antropologia e a psicologia avançam com vigor, traz perplexidade constatarmos que o saber pretensamente rigoroso de tais ciências se encontra atrelado aos princípios e métodos das ciências positivas.

Entendendo que o idealismo foi deposto, mas que o positivismo também não constitui solução, a resposta a essa falta de alternativa é dada por Dilthey de maneira combativa e entusiástica. No interior de sua “filosofia da vida”, especialmente nas bases lançadas em Introdução às ciências humanas (1883), o filósofo propunha uma fundamentação das referidas ciências num solo próprio ao espírito e, antes, denunciando a atuação abstrativa e autonomizante que ciências naturais exerciam sobre as humanas. Segundo Dilthey, as ciências abstrativas, em seu modo de agir, cindem o fenômeno da vida, convertendo-o em objeto. Tal objeto, porém, apareceria isolado num campo de investigação sem conservar seu nexo com a própria vida. Quer dizer, para que as ciências abstrativas possam apontar um fenômeno como objeto de pesquisa, é preciso que todo o contexto do mundo vivido (isto é, o horizonte em que se dá a realidade absoluta das vivências) seja negligenciado, daí Dilthey afirmar que a abstração “desvivifica” o conhecimento.

É com base nessa premissa que o filósofo estabelece a clássica distinção entre o fazer das diferentes ciências: as naturais, abstraindo o fenômeno de seu horizonte total, isolam-no, determinam-no e explicam-no, sendo seu conhecimento retirado do que estava implícito em hipóteses (literalmente, um ex-plicare); as humanas, por sua vez, tomariam (ou deveriam tomar) o fenômeno em seu horizonte de modo a abranger ou compreender (no sentido estrito do termo latino comprehensio) seu todo, seriam, portanto, compreensivas.

A tentativa de uma fundamentação das ciências humanas (espe-cialmente as sociais e as históricas) conserva, ao longo do tempo, suas principais características e pressupostos, sofrendo reformulações de

pouca monta. Isso é o que vemos na obra Ideias sobre uma psicologia descritiva e analítica, apontada como extensão do projeto hermenêutico diltheyano que apresenta os termos da psicologia descritiva analítica, no que tange a análise das vivências do saber, a amplitude da captação de seus objetos, os valores e propósitos aos quais correspondem à descrição e análise da atividade psíquica, pontos basilares aos estudos posteriores, referentes à constituição do mundo histórico.

Embora em forma de ensaio, a obra, em nove capítulos, aborda (com até mais didática do que outros escritos do mesmo autor), primeiramente, a tarefa de fundamentação das ciências do homem, da sociedade e da história pela psicologia; após, distingue a psicologia explicativa da descritiva analítica, a estrutura, o desenvolvimento de diversidade da vida psíquica.

Entre os referidos capítulos, chamemos atenção para o primeiro. Nele, Dilthey mostra a necessidade de uma fundamentação psicológica das ciências da realidade histórico-social, mas, antes, esboça a maneira com a qual atua a psicologia científica (apresentação que vale, extensivamente, para as ciências positivas). Além de nomear estudiosos do homem comprometidos com o modelo positivista (Spencer e Taine), Dilthey indica que a psicologia científica seria explicativa, lógico-causal, dedutiva, materialista e hipotética. Uma esclarecedora reflexão acerca do modelo hipotético, paradigmático das ciências positivas, é dada ao leitor, que passa a entender a hipótese não apenas como um componente metodológico do conhecimento, mas como uma “hipostasia do real”, obstáculo epistemológico que denuncia inconsistência no próprio modo de conhecer das ciências. Tal inconsistência é ilustrada pelo próprio Dilthey quando assevera que, no conhecer pela ciência, “somos banidos para o interior de uma nuvem de hipóteses, para as quais não há nenhuma esperança de que se possa comprová-las a partir de fatos psíquicos” (p. 28). Tal afirmativa nos mostra que mesmo a explicação da natureza dependeria de uma compreensão fundamentada no psiquismo.

Também digno de atenção é o capítulo dois, no qual, por meio da distinção entre a psicologia explicativa e a descritivo-analítica, apresenta-se a interface que a filosofia do século XVIII possui com a psicologia do XIX. Daí, Dilthey desfiar o roteiro que nos leva de Wolf a Kant e, deste, à psicologia de Drobisch, passando pela de Herbart e de Waitz.

Possuidor de muitas intuições luminosas ao longo de suas 152 páginas, o ensaio de psicologia de Dilthey nos reserva, em seu oitavo capítulo, a confirmação de uma suspeita que se insinuava desde o primeiro momento, a influência que o autor exerceu sobre os autores vinculados às ditas “filosofias da existência”. Ao ler a passagem transcrita logo adiante nesse tópico referente ao desenvolvimento da vida psíquica, se faz

possível imaginar o quanto as ideias de Dilthey constituíram êmulo aos estudos de Scheler, Heidegger e Jaspers: “Não se poderia compreender o desenvolvimento do homem sem a intelecção do nexo amplo de sua existência: sim, o ponto de partida de cada estudo do desenvolvimento é essa apreensão do nexo no homem já desenvolvido e a análise desse contexto” (p. 125). O que se delineia aqui é a missão assumida por alguns pensadores do século XX em reconhecer o que há de incomensurável na existência humana.

Sob o selo da Via verita (editora que, na contramão dos apelos mercadológicos, possui um projeto editorial que pretende viabilizar versões de textos de relevo para o pensamento filosófico no século XXI) e com tradução de Marco Antonio Casanova, a edição brasileira pode ser criticamente avaliada, aqui, sob o ponto de vista da tradução: constata-se que ela apresenta uma versão elaborada de maneira atenta à tendência dos estudos mais atuais da obra de Dilthey. Por isso traduzir a expressão alemã Geisteswissenschaften por “ciências humanas” (em vez da literal “ciências do espírito”), apoiando-se em traduções precedentes para a língua inglesa e encontrando endosso junto a comentaristas especializados que se inclinam a acatar que “ciências humanas” traz melhor a conexão de sentido da realidade histórica e social do que a nomenclatura “ciências do espírito” (na qual a noção de “espírito” facilmente pode sugerir erroneamente uma independência de homens reais). Deste modo, por suas opções e acuro terminológico, a tradução brasileira se mostra claramente superior à portuguesa, apresentada sob o título: Psicologia e Compreensão – Ideias sobre uma psicologia descritiva analítica (Edições 70).

Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens– Doutor em Filosofia pela UERJ. Professor Adjunto naUniversidade Cândido Mendes (UCAM) e no Centro Universitário Plínio Leite. E-mail: [email protected]

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