Nietzsche: uma introdução filosófica – FIGAL (V)

FIGAL, Günter. Nietzsche: uma introdução filosófica. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012. Resenha de: MERTENS, Roberto saraiva Kahlmeyer. Veritas, v. 59, n. 1, p. 15-19 jan.-abr. 2014.

Em fins de 2012, foi editada a tradução de Nietzsche: uma introdução filosófica, de Günter Figal (Mauad X, 2012). Conhecida do público europeu desde a década de 1990, esta obra de fôlego, a contar dessa data, vem contribuindo com a elevação do nível das pesquisas sobre Nietzsche no exterior. Fenômeno que talvez se explique pela visada peculiar que seu autor joga sobre a filosofia de Nietzsche.

Embora apontado como um dos principais representantes da Nietzsche Forchung alemã (ao lado de Günter Abel e Volker Gehardt), Günter Figal não seria um leitor de Nietzsche no sentido estrito do termo. Formado no caldo de cultura da fenomenologia-hermenêutica, tendo sido aluno de Hans-Georg Gadamer e herdeiro direto da filosofia de Martin Heidegger (a ponto de, atualmente, ocupar a cátedra que pertencera ao filósofo na Universidade Albert-Ludwig, em Freiburg), é inevitável encontrar na interpretação que Figal faz de Nietzsche traços influentes de sua formação.

Muito mais do que exegese do texto nietzschiano, o livro deixa transparecer o esforço de partir da obra do filósofo, e das interpretações estabelecidas na fortuna crítica, para uma aproximação gradual do horizonte significativo do pensamento de Nietzsche. Assim, ao arrancar das posições, visões e conceptualizações que as leituras disponíveis oferecem-nos, Günter Figal reconstrói o cenário no qual o pensamento de Nietzsche fez-se possível, passa em revista crítica as teses consolidadas sobre tal filosofia e, por fim, descreve o que se evidencia a partir de um

Nietzsche livre dos cacoetes de algumas interpretações tradicionais. A tríade reconstrução, revisão crítica e reinterpretação (que delineia o itinerário do livro de Figal) será a mesma que oferecerá estruturação a esta resenha.

O gesto reconstrucionista é particularmente identificado no capítulo inicial. Dividido em três tópicos, no primeiro, intitulado “Sismógrafo”, o autor oferece-nos um verdadeiro inventário da recepção da obra de Nietzsche na contemporaneidade. É digno de nota que tal balanço não se restringe à cena filosófica. Figal indica como o pensamento de Nietzsche infiltrou-se nas ciências humanas e sociais por meio de Georg Simmel e de Max Weber; como os influxos das ideias estéticas do filósofo serviram de inspiração a músicos como Gustav Mahler e Richard Strauss; como o espírito da obra nietzschiana passou à literatura dos irmãos Mann (Heinrich e Thomas), de Gottfried Benn e, em especial, de Ernst Jünger. Valendo-se desta contextualização, Günter Figal indica, a partir deste último, o papel que Nietzsche desempenhara em seu tempo. Em uma época de crise, na qual a filosofia ainda se ressentia da ruína dos idealismos (para os quais Hegel e os hegelianos representavam uma espécie de aristocracia metafísica) e da ascensão bárbara do positivismo, a lucidez de Nietzsche não seria um terremoto, mas o sensor que descreve e interpreta tais abalos, ou, nas palavras de Jünger:

Ele investiga os caminhos possíveis, as rotas mais extremas sobre as quais a razão fracassará. A apreensão intelectual da catástrofe é mais terrível do que os medos reais do mundo do fogo. (…) Partir-se assim era o destino de Nietzsche: hoje é de bom tom apedrejá-lo. Do mesmo modo que depois do terremoto, as pessoas se abatem sobre o sismógrafo. Não obstante, não se pode fazer que o barômetro expie a culpa pelo furacão se não se quiser adentrar as fileiras dos primitivos.1

A metáfora do sismógrafo como indicativa do posto de Nietzsche é apenas uma das muitas tiradas felizes do ensaio de Figal neste momento propedêutico. Os tópicos que se seguem a este (a saber, “Biografia” e “Definições de posição”) reforçam pontos ali esboçados.

Sem a erudição histórica das biografias disponíveis no mercado e com uma condução que nos lembra, em certos lances, os parágrafos biográficos do primeiro volume das preleções de Heidegger sobre Nietzsche, a obra de Figal oferece-nos uma narrativa da vida e obra deste pensador. Do mesmo modo que Andler,2 Figal valoriza a juventude de Nietzsche: seu período de formação filológica na Escola de Pforta, seu convívio amistoso com o mestre filólogo F. W. Ritschl, o desgosto da carreira docente, a amizade malograda com R. Wagner, a maturação das ideias mais tenras da infância em A origem da tragédia e os primeiros fustigos por parte do seu ex-condiscípulo U. v. Wilamovitz-Moellendorff (o filólogo).

Deste bosquejo biográfico, entretanto, o que mais importa é a indicação de que Nietzsche, voluntariamente afastado da universidade e possuindo reduzido um círculo de amizades, volta-se para si tornando-se pela primeira vez presente como pensador por meio de sua escrita. Figal sustenta a tese de que, para Nietzsche, e ao contrário dos demais filósofos, “(…) o que está em questão para ele não é nem mesmo um programa filosófico que pudesse subsistir por si e seria designado por meio de seu nome (…). Nietzsche se retrai ante o desenvolvimento das ideias que poderiam ser aplicadas sem uma consideração da pessoa.”3 Caracteriza-se, assim, a concepção nietzschiana da “vida como literatura”.4

Os pontos de partida para a elaboração do que seria uma escrita de si e um si mesmo como filosofia é o que se encontrará no já mencionado tópico “Definições de posição”. É aí que o comentador (após a revisão literária das interpretações de Nietzsche que fizeram escola: Jaspers, Heidegger, Lukács, Adorno e Derrida) aponta o lugar que o filósofo de Röcken ocupa na história da filosofia: “(…) Nietzsche não pode mais ser pensado agora meramente em contraste com a tradição; se Nietzsche é o filósofo moderno por excelência e ao mesmo tempo pertence à metafísica, isso é uma prova do caráter metafísico da modernidade (…)”4 Tal afirmação causaria certamente desconforto aos acostumados a conceber Nietzsche como o arauto do pensamento não metafísico, convicto opositor da tradição. Entretanto, bem como Heidegger, Figal entende que Niezsche ainda possui ligação com a tradição filosófica justamente por depender de pressupostos e arrolar consequências de ideias e condutas próximas à metafísica.

É nesse momento que a principal tese do livro aparece, tal tese alinha a conduta de Nietzsche à figura paradigmática do Sócrates e liga seu pensamento a Platão. Em que sentido? Resposta: primeiramente, ao contar com a tradição de pensamento ocidental para colocar-se em diálogo com conceitos e questões filosóficas; depois, por sua filosofia tornar-se o que é na medida em que se diferencia da tradição, fazendo desta um outro de si, isto é: na maneira pouco canônica com a qual Nietzsche contempla o mundo e confronta-se com a metafísica, a tradição filosófica experimenta sua alteridade. Mas, para Figal, ainda que a filosofia de Nietzsche desconstrua as bases da metafísica e proponha-se em termos diversos da tradição (Figal não insinua que Nietzsche reproduza Platão), mesmo o “filosofar a marteladas” guardaria vestígios de sua natividade metafísica. Diante do caráter polêmico desta tese, o resumo pálido que esta resenha apresenta (coerentemente a sua proposta de recensão e adequando-se ao espaço que lhe é cabido), não permite que o leitor prescinda da leitura deste terceiro tópico do primeiro capítulo, bem como os diversos momentos adiantados do texto no qual a premissa ganha desdobramentos. É possível, entretanto, concordar com o comentador quanto a seu esforço por caracterizar de maneira mais rigorosa e uniforme a figura filosófica de Nietzsche, descerrar um filósofo “mais estranho, mais espantoso e mais conhecido ao mesmo tempo”.5 A transição do Capítulo primeiro aos próximos deixa transparecer, novamente, uma atitude hermenêutica. Denominado De fora, o primeiro momento apresentava as circunstâncias externas a partir das quais ingressaríamos na leitura da obra em busca de uma compreensão do pensamento de Nietzsche. Destarte, partindo das compreensões prévias que a narrativa biográfica e as interpretações autorizadas oferecem, pode ter início o caminho de intensificação de compreensões da obra-Nietzsche. É isso que se encontra no capítulo segundo, intitulado Tempo, ser e devir. O referido nome explica-se pelos tópicos encontrados nesta seção.

Em tais pontos encontramos a tematização de noções-chave do pensamento de Nietzsche, como o devir, força plástica e arte, apresentadas por meio de citações do autor de Assim falou Zaratustra. A qualificação de Figal enquanto intérprete de Nietzsche evidencia-se desde que nos deparamos com as passagens que o autor escolhe para tematizar (tal seleção, por si só, justifica uma leitura dos tópicos). Num diálogo intrínseco à obra de Nietzsche, e sem fugir ao enfrentamento das leituras mais acatadas, Figal revisa criticamente a maneira com que conceitos, temas e questões decorrentes do pensamento de Nietzsche vêm sendo apropriados. Muito do exercício de interpretação do comentador consiste em desmontar essas interpretações cristalizadas para liberar o interpretado a um horizonte no qual seja favorável a identificação do solo no qual este estaria fundado. Movimento hermenêutico idêntico é o que se repete no terceiro e quarto capítulos.

Aguardado durante toda a leitura, é no último capítulo da obra que o problema do conhecimento aparece. Sob a alcunha de Vida do conhecimento, podemos conferir a distinta interpretação que Figal dedica aos conceitos mais fundamentais do pensamento nietzschiano, ao exemplo: o super-homem (na peculiar opção de tradução como “além-do-homem”), a vontade de poder, o eterno retorno e a psicologia (conceitos homônimos aos tópicos dignos de nota no referido capítulo). Ao apontar estes conceitos como raios para o eixo que o personagem de Zaratustra constitui, Figal pode elucidar o quanto essas noções dão voz a uma doutrina da vida. Importa, entretanto, ao comentarista indicar o quanto mesmo esta doutrina em sua presumida liberdade de pensamento ainda não teria suas bases no solo tradicional do platonismo, este contra o qual o próprio Nietzsche volta-se. Tal tarefa, que parece perpassar inteiramente Nietzsche, constitui uma introdução filosófica, que se torna mais nítida na terceira porção do trabalho.

Ao longo das 248 páginas que dão corpo à tentativa de tornar compreensível a obra de Nietzsche, o livro de Günter Figal – não seria demais assinalar – possui uma linguagem tão didática quanto plástica. Tais atributos discursivos, mais do que um requinte estético, denotam não só a maturidade do pesquisador perante seu objeto de estudo, quanto a preocupação de fazer jus à prosa filosófica do incontestável estilista que foi Nietzsche.

Publicado originalmente na forma de livro de bolso sob o selo da alemã Reclam, a editora brasileira apresenta o livro com arte e editoração elegantes, reservando-lhe lugar especial no interior da Coleção Sapere Aude, que já possui outros títulos referentes a Nietzsche.

Referências

ANDLER, Charles. La Jeunesse de Nietzsche – Nietzsche as vie et as pensée. 3. ed. Paris: Rossard, 1921.

FIGAL, Günter. Nietzsche: Uma introdução filosófica. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012.

HEIDEGGER, Martin. Nietzsche I. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

Notas

1. ÜNGER apud FIGAL, 2012.
2. ANDLER, 1921
3. FIGAL, 2012, p. 36.
4. FIGAL, 2012, p. 42
5. FIGAL, 2012, p. 13

Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens – Doutor em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professor Adjunto na Universidade Estadual do Oeste do Paraná-UNIOESTE. E-mail: [email protected].

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Ser e tempo – HEIDEGGER (FU)

HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Campinas/Petrópolis: Editora da Unicamp/ Vozes, 2012. Resenha de: KAHLMEYER-MERTENS, Roberto Saraiva. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.14, n.2, p.169-174, mai./ago., 2013

No final do ano de 2012, editou-se uma nova tradução de Ser e tempo para o português. Esta obra de Martin Heidegger é um marco na investigação fenomenológica por apresentar uma fenomenologia que não toma por pressuposto uma consciência sintetizadora de vivências e por não se perfazer mediante um procedimento metódico-fenomenológico (como, nos dois casos, ainda propunha Edmund Husserl). Com acento ontológico-existencial e depurando o método em atitude fenomenológica, o livro de Heidegger contribui para inaugurar novos caminhos ao pensamento contemporâneo. A obra, entretanto, é considerada por alguns uma excrescência linguística, dada a especificidade técnica de seu vocabulário e as formulações num “idioma” filosófico sui generis. Isso faz com que Ser e tempo exija dedicação e atenção de seus leitores e ofereça um sem-número de dificuldades próprias da língua e da filosofia aos que se candidatam a traduzi-lo.

No Brasil, uma primeira tradução de Ser e tempo foi editada entre os anos de 1985-1986; entretanto, essa versão para o português, mesmo passando por revisões ao longo de suas inúmeras edições, ainda padece de problemas que dificultam sua leitura,1 o que faz com que esse empreendimento incipiente fique aquém das expectativas do público estudioso.

Uma segunda tradução de Ser e tempo, elaborada de maneira descontínua pelo professor Fausto Castilho desde 1949, foi também concluída na década de 80, quando ganhou a revisão que lhe conferiu homogeneidade terminológica e coerência em seu arranjo geral. Esta nova transposição para o português repara, em boa medida, alguns dos fatores que geravam insatisfatoriedade na anterior. É o que se faz patente, mesmo em uma primeira aproximação ao texto, quando nele encontramos um discurso mais direto, fluido e livre de afetações de estilo que só fazem obstruir a leitura. Estas qualidades, apenas possíveis graças a uma maior literalidade do texto e a um adicional cuidado com a sintaxe das línguas alemã e portuguesa, são traços de consistência que deixam transparecer a qualificação filosófica e linguística desse experimentado tradutor de obras clássicas.

Um exame comparativo do texto português com o original alemão nos permite identificar certa tendência da nova versão em privilegiar termos cuja etimologia oriunda do latim é presente. Fica nítida, assim, a opção do tradutor em utilizar o vocabulário português de matriz latina, na certa acreditando que, ao lançar mão deste expediente, se colocaria em contato com a significação mais primordial das palavras.

Reconhecemos que a utilização dessa “metodologia” de tradução pode propiciar soluções plausíveis e, mesmo, elegantes; é o que se vê, por exemplo, na transposição do vocábulo alemão Umwelt. A tradução brasileira anterior reservava para este a expressão “mundo-circundante” (como mais tarde também se veria na tradução norte-americana de Stambauth, com Surrounding World) (Heidegger, 1996). A atual, por sua vez, utiliza “mundo-ambiente”, escolha que, seguindo as francesas que optam por monde ambient (Heidegger, 1964, 1986) e a italiana, com mondo-ambiente (Heidegger, 1953), preserva, benfazejamente, a noção de âmbito ou ambiência, presentes na compreensão coloquial do termo “meio ambiente”. A atual versão brasileira, entretanto, optou prudentemente por não utilizar esta expressão (meio ambiente), talvez evitando associações equivocadas com o discurso de preservação ambiental hoje amplamente difundido (opção que a clássica tradução para língua inglesa de Macquarrie e Robinson não se opôs a fazer ao usar environment) (Heidegger, 1962).

Outra solução acertada é a transposição de Schuld por “culpa” (em vez de “débito”, como se tem na primeira tradução). Ao utilizar o termo, no contexto da conquista da existência autêntica do ser-aí, Castilho não apenas retoma a literalidade da palavra, quanto reaviva os laços que esta possui com a tradição teológico-cristã em meio a qual – lembremos – Heidegger se formou. Do mesmo modo, por meio do vocábulo “culpa”, é possível se identificar mais claramente os influxos que as ideias de Kierkegaard teriam sobre a filosofia heideggeriana na época da redação de Ser e tempo.

Sem que se tenha qualquer tipo de má vontade com a nova colação – mas agindo com a isenção que manda o amicus Plato sed magis amica veritas2 – será necessário reconhecer que o recurso ao latim não é algo que possa ser feito indistintamente. Uma leitura mais atenta da nova versão nos mostrará que o referido procedimento, por vezes, contrasta com vertentes de tradução que se estabeleceram e se consolidam na forma de cânon desde os anos 70 (data em que se editaram as primeiras obras de Heidegger em português no Brasil). As referidas vertentes orientam a criação da massa crítica em torno da filosofia heideggeriana. Deste modo, indicamos que a terminologia diferenciada estabelecida na mais nova versão (esta centrada em opções muito próprias) acaba, em alguns casos, nos colocando diante de implicações hermenêuticas pouco desejáveis. A presente resenha crítica da tradução de Fausto Castilho examina, a partir daqui, na impossibilidade de ser cabal, apenas algumas dessas escolhas e seus desdobramentos questionáveis.

Comecemos pela expressão Dasein, noção em torno da qual se elabora a analítica da existência constante em Ser e tempo, justamente por essa nomear a essência do humano. Embora haja, não apenas no Brasil,3 uma tendência a traduzir o termo literalmente para o português pela locução “ser-aí”, Dasein parece repelir as traduções que lhe são atribuídas, de sorte que, sobre o vocábulo, ainda não há consenso definitivo entre tradutores e comentadores de Heidegger. Evidência disso se encontra nas tentativas inglesas, que ora usam There-being (Richardson, 1967), ora being-there (Dreyfus, 1995); também a sua versão francesa (Heidegger, 1964) por être-là é discutível, a ponto de o próprio Heidegger ter objetado sobre o uso do -là, que indicaria um distanciamento locativo que alteraria a ideia do “aí” constante no prefixo germânico Da-. Isso porque, para o filósofo: “O ‘aí’ (Da) em Ser e tempo não significa uma definição de lugar para um ente, mas indica a abertura na qual o ente pode estar presente para o homem, inclusive para si mesmo” (Heidegger, 2009, p.159).

Na primeira edição brasileira, a tradução dada à palavra Dasein precisaria transigir com a artificialidade de certa interpretação. Ao verter Dasein por “presença” (conforme justifica a tradutora), o vocábulo latino praesentia seria tomado por parâmetro, supostamente tendo no prefixo prae (“pré-”) a dinâmica existencial daquele ente que se antecipa a si mesmo, e, no radical -sentia (“-sença”), a forma derivada do verbo latino essere correspondente ao alemão sein (“ser”), que indicaria a dimensão ontológica do Dasein. Ao nos colocarmos diante deste argumento, ponderamos o quanto tal opção não se distanciaria da intenção primordial de Heidegger ao se servir do termo Dasein. Afinal, se acatarmos tal justificativa, restaria indagar sobre os motivos que teriam levado o filósofo a não utilizar, neste contexto, o vocábulo Präsenz, disponível em sua língua.

Ademais, “presença” se distancia sobremaneira da etimologia da palavra alemã Dasein, afinal, onde aqui se identifica o advérbio de lugar Da, ali se tem um prefixo “pré-” que não se presta a determinar o “aí” enquanto abertura do ser-aí para seu mundo-fático, horizonte originário no qual se constituem as possibilidades de ser do referido ente.4 Não apenas distante da etimologia original, o termo “presença” se põe em desacordo com o significado que Heidegger tem primordialmente em vista quando usa a expressão Dasein, uma vez que aponta, exatamente, para a experiência oposta a do ente que existe. Isso porque, para a analítica da existência, um ente presente seria aquele dado de antemão (Vorhandenheit), seria um ente cujo modo de ser não dependeria da dinâmica do existir, mas que se apresentaria sob o modo de ser da constância (ständige Anwesenheit), determinação vigente e indispensável à tentativa metafísica de tornar os entes pensáveis. Uma tal “metafísica da presença” é, exatamente, o que Heidegger confronta na ontologia fundamental de Ser e tempo.

É provável que tenha sido por essas dificuldades, e em nome da maior fidedignidade possível aos intuitos heideggerianos, que Castilho escolheu conservar o referido vocábulo em alemão, a exemplo das traduções para o inglês, da francesa e da espanhola (Heidegger, 1964, 1996, 1997). Devemos reconhecer que, assim procedendo, são evitados os muitos inconvenientes que a transposição da palavra suscita; por outro lado, perdemos, com isso, boa oportunidade de pensar tão importante termo filosófico em nossa língua. É preciso que se diga, todavia, que, sob o ponto de vista do conceito, manter Dasein no original não é atitude menos interpretativa do que a primeira. Neste caso, teríamos uma leitura que sugere que Dasein, em si mesmo, teria pouco a dizer, e que, por este motivo, poderia ficar sem ser traduzido, esperando que seu significado fosse depreendido a partir dos contextos nos quais o termo comparece. O estranhamento que este posicionamento provoca se reforça quando lembramos que, contando com uma louvável edição bilíngue, nos seria permitido conferir no original, a qualquer tempo, qualquer tradução portuguesa dada a Dasein.

Adiante, guardando as ordens de aparição e relevância dos conceitos, poderíamos ressaltar casos em que certas opções (feitas a partir do referido recurso ao latim) induzem em problemas conceituais. É o que vemos na transposição da palavra Verstehen por “entendimento”. Nesta, se identifica, primeiramente, uma aproximação ao vocábulo latino intellegere; em segundo lugar, a tentativa de apoiar tal opção nas versões de Ser e tempo para a língua inglesa, que se servem do termo understanding (= entendimento). No inglês, understanding talvez fosse o único vocábulo para traduzir Verstehen (= compreensão),5 solução que, diga-se de passagem, se aproximaria bastante semântica e etimologicamente do alemão, e que até serviria para traduzi-lo plenamente não fossem as atávicas ligações que a palavra inglesa possui com uma tradição anglo-saxã de pensamento fortemente influenciada pelo empirismo.

Traduzir Verstehen por “entendimento”, sem qualquer sobreaviso, talvez pudesse dar ao leitor a falsa impressão de que a fenomenologia de Heidegger teria por propósito um diálogo com a filosofia de Locke ou com a de Hume; entretanto, se isso soa apenas como uma conjectura, é certo dizer que tal opção turva o conceito de compreensão, crucial para a tradição hermenêutica que – de Schleiermacher a Dilthey – fala alto na fenomenologia heideggeriana, marcando indelevelmente projetos filosóficos vivos naquela obra.

Outro ponto que nos oferece matéria para pensar é a tradução da tríade de conceitos referentes aos comportamentos do ser-aí, Sorge, Besorge e Fürsorge, traduzida por “preocupação”, “ocupação” e “preocupação com o outro” (diferentemente da primeira versão brasileira na qual constava, respectivamente: “cura”, “ocupação” e “preocupação”). Fica nítido que o novo tradutor procurou optar por termos que possuíssem um mesmo radical, remontando ao escopo heideggeriano de evidenciar que as duas últimas expressões (e as experiências por elas expressadas) seriam derivadas da primeira.

Em alemão coloquial, Sorge (palavra da qual se originam as outras) significa preocupação. Talvez por este motivo a tradução em apreço tenha optado por este termo. No entanto, o uso cotidiano desta expressa ansiedades ou inquietações pelas quais, às vezes, se passa na vida. Ora, não é neste sentido habitual que o filósofo compreende Sorge; é isso que encontramos em Ser e tempo: “A expressão nada tem a ver com ‘sofrimento’, ‘aborrecimento’, nem ‘preocupação com a vida’, que podem ser onticamente encontradas em todo ser-aí” (Heidegger, 2012, p.181). Neste caso, se não desejarmos incorrer no preciosismo da palavra “cura”, mais apropriado seria o uso do termo “cuidado”,6 mesmo que tal solução implique o obscurecimento daquele radical. Isto nos parece mais justificado do que alterar o cânon que, até então, reservava a palavra Fürsorge para designar uma preocupação com os demais seres-aí, ou, como indicaria o prefixo Für- : “ocupação para com o outro”.

Já seria possível entrever os impactos e eventuais confusões que a substituição dos termos (“cuidado” por “preocupação”, e “preocupação” por “preocupação com o outro”) acarretaria sobre as pesquisas em andamento e sobre a literatura especializada que usa “cuidado” para referir-se a este modo de ser do ser-aí. O mesmo ocorre com as traduções de existentiell e Faktizität (“existencial” e “facticidade”, referentes ao ontológico do ser-aí) por “existenciário” e “factualidade”, que apontam à direção oposta (traços ônticos do mesmo ente). Tais alterações fariam, mesmo, com que os nomes de dois dos projetos filosóficos integrantes de Ser e tempo sejam indevidamente alterados para “analítica existenciária” e “hermenêutica da factualidade” (sic). Ainda seria possível questionar, por fim, se “resolução”, palavra usada no contexto do comportamento singular do ser-aí, seria adequada para traduzir Entschlossenheit (usualmente vertido por “decisão”). Embora recorrido por alguns intérpretes de línguas latinas (Heidegger, 1951, 1964, 1986, 1997), a resolutio no conceito de “resolução” suscita a errônea ideia de um ato de vontade, de um arbítrio que seria propriedade de um sujeito, o que muito se distancia da maneira com a qual Heidegger trata do conceito de decisão e do ente capaz de atender ao chamado do ser, rearticulando-se a um conjunto de sentidos e significados próprios à existência autêntica.

Ao longo de toda a nova tradução de Ser e tempo, encontraremos alterações terminológicas. Diante da impossibilidade de considerar cada escolha feita, asseguramos que, em muitos casos, temos o ganho de clareza trazido pelo recurso à etimologia dos termos; outros há em que as mudanças não chegam a fazer diferença substancial frente às versões anteriores; é o que se pode avaliar a partir do rol de comparações que se segue. Na atual edição, o termo Weltlichkeit é traduzido, como no francês, por “mundidade” (onde na primeira edição brasileira tínhamos “mundanidade”); Verweisung é vertida por “remissão” (na antiga tradução se lia “referência”); Bewandtnis é traduzida por “conjuntação” (onde antes se lia “conjuntura”); Bedeutsamkeit é “significatividade” (antes se tinha “significância”), e innerweltlich begegnende Seiende seria “entes do-interior-do-mundo” (em vez de “entes intramundanos”)… Diante dessas opções, houve quem apontasse o comprometimento estético que algumas das palavras sofreram na conversão para o português. Seria justo, neste caso, lembrar que a própria terminologia de Ser e tempo, diante da necessidade de descrever fenomenalmente seus “objetos”, seria responsável, mesmo no alemão, por certos exotismos. Nessas horas, aquilo que Heidegger disse sob as dificuldades de expressão da fenomenologia vem em defesa de seus tradutores:

No que se refere à rudeza e à “falta de beleza” na expressão das análises que se seguem, convém notar que uma coisa é contar algo sobre ente numa narração, outra é apreendê-lo em seu ser. Para levar a cabo tarefa referida por último, faltam, no mais das vezes, não só as palavras, mas, sobretudo, a “gramática” (Heidegger, 2012, p.131).

Convictos da não existência de uma tradução perfeita, e levando em conta as dificuldades específicas da matéria, será necessário dizer que, se considerarmos a legibilidade o critério de qualidade para toda tradução, este empreendimento em torno à nova tradução de Ser e tempo foi bem-sucedido. Isso porque, como já foi mencionado acima, por meio de uma linguagem mais objetiva, fluente e sóbria, lucrou-se uma melhor compreensibilidade, e não apenas isso; mesmo possuindo incontornáveis arestas, o texto estabelecido parece se aproximar, mais fidedignamente, ao sentido presente no original, conseguindo reproduzir tonalidades mais próximas à experiência do pensamento de Heidegger.

A nova colação brasileira de Ser e tempo constitui, por fim, alternativa à preexistente e, ao trazer o texto alemão-português, torna-se também a primeira edição bilíngue que se conhece no Ocidente (assim notifica Fausto Castilho em seu prefácio). Mais do que apenas um luxo, este seria um recurso certamente útil à pesquisa, benefício que devemos à iniciativa das Editoras Unicamp (Coleção Multilíngues de Filosofia) e Vozes (que possui os direitos de Ser e tempo para o português).

Notas

1 Isso pode ser comprovado com uma leitura dos §§ 15-18, tópicos sensivelmente comprometidos na antiga tradução.

2 “Sou amigo de Platão, mas sou mais amigo da verdade”, ditado atribuído a Aristóteles.

3 É o que se vê em traduções portuguesas (Heidegger, 2002) e nas traduções de Sein und Zeit para as demais línguas latinas, como a de Gaos, ser ahí, para o espanhol (Heidegger, 1951), e a de Chiodi, Esserci, em italiano (Heidegger, 1953).

4 Como se viu na citação de Heidegger imediatamente acima.

5 Uma vez que comprehension traduz uma ideia de um “abarcamento” que apenas forçosamente estaria associada àquele contexto específico. Contudo, alguns poucos intérpretes ainda insistem na utilização deste termo (Richardson, 1967).

6 Amplamente utilizado por tradutores e comentaristas de Heidegger. É o que se vê com a tradução inglesa, ora como care (Heidegger, 1962, 1996), ora como concern (Richardson, 1967), e no francês como souci (Heidegger, 1964, 1986), na espanhola (Heidegger, 1997).

Referências

DREYFUS, H. L. 1995. Being-in-the-world – A commentary on Heidegger’s “Being and time”. Cambridge, The MIT Press, 370 p.

HEIDEGGER, M. 1996. Being and Time. New York, State University of New York Press, 487 p.

HEIDEGGER, M. 1962. Being and Time. Harper San Francisco, San Francisco, 589 p.

HEIDEGGER, M. 2002. Caminhos da floresta. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 455 p.

HEIDEGGER, M. 1951. El ser y el tiempo. Fondo de Cultura Económica, México, 480 p.

HEIDEGGER, M. 1953. Essere e tempo. Fratelli Bocca, Roma, 455 p.

HEIDEGGER, M. 1986. Être et temps. Gallimard, Paris, 596 p.

HEIDEGGER, M. 1964. L’être et le temps. Gallimard, Paris, 328 p.

HEIDEGGER, M. 2009. Seminários de Zollikon – Protocolos, diálogos, cartas. Petrópolis, Vozes, 370 p.

HEIDEGGER, M. 2012. Ser e tempo. Campinas/Petrópolis, Editora da Unicamp/ Vozes, 1200 p.

HEIDEGGER, M. 1997. Ser y tiempo. Santiago de Chile, Editorial Universitária, 498 p.

RICHARDSON, W.J. 1967. Heidegger – Through phenomenology to thought. The Hague, Martinus Nijhoff, 765 p.

Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Toledo, PR, Brasil. E-mail: [email protected]

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[DR]

 

Introdução às ciências humanas – tentativa de uma fundamentação para o estudo da sociedade e da história – DILTHEY (V)

DILTHEY, Wilhelm. Introdução às ciências humanas – tentativa de uma fundamentação para o estudo da sociedade e da história. Trad. de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. Resenha de: MERTENS, Roberto Saraiva Kahlmeyer. Veritas, Porto Alegre v. 57 n. 3, p. 223-226, set./dez. 2012.

Durante décadas, em nosso país, os estudos das ciências humanas (especialmente as sociais) se serviram das leituras de Marx ou de autores marxistas para compor massa crítica. Repertório criado, é preciso dizer que, ainda hoje, muitas das pesquisas nessa área continuam a receber orientação do referido paradigma. Sem querer apreciar a validade ou a aplicabilidade dessas matrizes em nosso momento atual (e da necessidade ou não de uma gradativa substituição por um novo paradigma para as humanidades), apenas ponderamos que, talvez pelo seu longo período de vigência, ficou inibido o interesse de pesquisadores e das editoras por outros autores representantes das demais linhas de pensamento. Sanando este débito, vemos alguns nomes e títulos clássicos da filosofia e das ciências humanas sendo traduzidos e publicados recentemente para o português do Brasil, entre eles está Wilhelm Dilthey (1833-1911) e sua Introdução às ciências humanas (1883).

Uma avaliação empírica nos permite indicar que o autor é pouco conhecido fora das rodas acadêmicas e precariamente estudado mesmo no interior delas, de sorte que a presente obra pode oportunizar um contato com as ideias deste filósofo, hermeneuta, psicólogo, historiador e pedagogo, que foi um dos primeiros a lançar um olhar lúcido sobre a inadequação dos métodos que elas importaram das ditas ciências naturais.

Para Dilthey, a metodologia das ciências naturais exerceria um efeito negativo sobre as outras, isso porque, por valer-se de compreensões hipotéticas (ou ainda, “hipostasiadas”), as ciências naturais posicionariam os objetos das ciências humanas tal como fazem com os objetos da natureza, interpretando-os como dados em sua mera aparência e duração. Desse modo, as ciências naturais (positivas) exerceriam uma ação “abstrativa” sobre o conhecimento acerca do humano. Tal ação seria decorrente da lida hipotético-positiva das ciências naturais, e tal lida oferece o risco de descaracterização da experiência humana na pauta das ciências que dela se ocupa. Nos termos do pensamento diltheyano, a ação das ciências abstrativas retira os “objetos” das ciências humanas do horizonte que lhes é próprio, na medida em que decompõe, esfacela e destrói o referido horizonte (a isso o filósofo chama de “desvivificação”).

Com essa descrição, central na Introdução às ciências humanas, a crítica às ciências abstrativas disparada por Dilthey abriu terreno para uma enxurrada de análises e desdobramentos que, em sua época (décadas finais do século XIX e iniciais do XX), chegaram a alçar até mais notoriedade do que as premissas de seu primeiro propositor. Spengler, Scheler e Spranger são apenas alguns nomes que, seguindo as pegadas de Dilthey, reforçam a premissa de que as ciências do homem, da sociedade e da história precisariam assentar-se em um solo que lhes garantisse fundamentação adequada (uma vez que esse embasamento, como já vimos, não poderia ser fornecido pelas ciências naturais, mas, antes, seria dado na humanidade das ciências do espírito).

Mas, o que, nesta tarefa de embasamento, chamaríamos de ciências da realidade histórico-social? Em que terreno se poderia lançar os alicerces das ditas ciências humanas? Onde se poderiam fundamentar as ciências do espírito de modo às mesmas não padecerem da mencionada “desvivificação”? A resposta do filósofo dada em seu livro não poderia ser mais simples: no próprio espírito, no horizonte humano, horizonte que Dilthey especifica com o termo vivência. “O ponto de partida é a vivência”. Tal sentença será repetida à exaustão ao longo das quase quinhentas páginas da obra em apreço.

Tomando por consideração as vivências (a própria vida dos fenômenos, realidade absoluta que garante a correlação entre a consciência e seus objetos em um contexto efetivamente histórico), Dilthey se serve do método hermenêutico para, com ele, reconstituir o laço que as ciências humanas possuem com o humano. Assim, uma fundamentação das referidas ciências ocorreria ao passo em que, hermeneuticamente, se possibilitaria um compreender acerca de como o conhecimento humano se faz desde o horizonte próprio ao espírito, sem que os procedimentos explicativos (abstrativos) do positivismo nisso interfiram.

O conceito de vivência, a clássica distinção entre compreender e explicar, ao lado de outros pontos que compõem bases para as ciências particularidades da sociedade e da história, são apresentados satisfatoriamente por um Dilthey ocupado em oferecer uma visão de conjunto das ciências do espírito, na conexão com uma ciência fundante necessária. Esta primeira parte da obra, por definir conceitos e métodos; delimitar o lugar autônomo das ciências da realidade histórico-social frente às ciências naturais; fornecer visões gerais sobre as ciências particularidades da sociedade e da história e distinguir entre as duas classes de ciência, é considerada por Max Weber (outro seguidor de Dilthey) o primeiro estudo sério no qual se aborda o problema metodológico das chamadas ciências humanas.

A obra, entretanto, não se limita apenas a uma apresentação deconceitos e temáticas acerca de pontos que o filósofo julgava impres-cindíveis no campo das ciências. Intuindo (semelhantemente ao Hegel da Fenomenologia do espírito) que toda ciência depende das condições de nossa consciência, Dilthey dedica a segunda parte da obra à interpretação da constituição definitiva da ciência histórica e, por meio dela, das ciências humanas em geral. Realiza-se, assim, a tentativa de fundamentar o estudo da sociedade e da história (como o subtítulo da Introdução anuncia). O que se presencia neste momento é, então, a análise dos fatos constituintes do núcleo das ciências humanas e sua correspondência com a história; história, esta, apreendida como manifestação da vida sob o ponto de vista da humanidade.

Ao longo das quatro seções que compõem esta segunda parte do livro, vemos Dilthey buscar a restauração de elementos da base histórico-material que constitui o conhecimento humano; base, essa, que teria sido tanto negligenciada pelo projeto crítico do kantismo, quanto pelo idealismo radical hegeliano. Ao retomar essas bases históricas, Dilthey tenta esclarecer que as vivências da consciência, e as visões de mundo que elas constituem em cada época, acabam por traduzir as concreções do espírito objetivo em um tempo. Isso explica a extensa narrativa historiográfica contida no tópico intitulado Metafísica como base das ciências humanas: seu domínio e sua decadência, na segunda parte do livro. No referido momento, o filósofo descreve e analisa visões de mundo dos povos antigos e de seu pensamento místico, os povos europeus modernos e seu estágio metafísico, e a dissolução da posição metafísica ante a realidade. Fica patente, ali, a admirável erudição do autor que dedica, além de leituras refinadas de Platão e Aristóteles, dezenas de páginas à filosofia medieval árabe, ultrapassando em muito as expectativas do leitor com formação filosófica média que, geralmente, não costuma ir além de notícias sobre Avicena e Averróis (fato que justifica o entusiasmo de Eugenio Imaz, seu tradutor para a língua espanhola, que reputa sua cultura “prodigiosa”, “oceânica”). Aspecto que, por si só, já é suficiente para legitimar a publicação do livro.

Avaliada sob o ponto de vista da tradução, a edição brasileira apresenta uma versão elaborada de maneira atenta à tendência dos estudos mais atuais da obra de Dilthey. Desse modo, mesmo a tradução da expressão alemã Geisteswissenschaften por “ciências humanas” (que poderia ser contestada em favor da literal “ciências do espírito”) encontra precedente nas traduções de língua inglesa e endosso junto a comentaristas especializados, que se inclinam a acatar que “ciências humanas” traz melhor a conexão de sentido da realidade histórica e social do que a nomenclatura “ciências do espírito”, na qual a noção de “espírito” facilmente pode sugerir erroneamente uma independência de homens reais. Não fosse esse argumento suficiente, a escolha se mostra editorialmente plausível, uma vez que cria maior identidade com o público de alguns dos cursos universitários brasileiros, dos denominados cursos de ciências humanas.

Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens – Doutor em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Estuda o autor alemão Martin Heidegger desde o ano de 1995, tendo interesse também pela filosofia clássica alemã. Autor de Heidegger & a Educação (Autêntica, 2008). E-mail: [email protected].

 

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