Densidade urbana. Um instrumento de planejamento e gestão urbana | Claudio Acioly Júnior e Forbes Davison

A primeira frase do livro se trata de uma citação de Jane Jacobs em seu livro Morte e vida de grandes cidades em 1961, questionando qual seria a densidade ideal para a vida de uma cidade. Já se passaram quase 60 anos e essa continua sendo uma discussão frequente na vida de urbanistas e planejadores urbanos. Claudio Acioly e Forbes Davidson toparam o desafio de participar dessa discussão ao resolverem publicar em formato de livro os resultados de suas pesquisas sobre o tema: Densidade urbana: um instrumento de planejamento e gestão urbana.

A busca pela cidade ideal passa pela discussão sobre exemplos práticos existentes, cidades compactas e verticalizadas como Hong Kong, Nova Iorque e Tóquio são melhores? Ou o melhor modelo passa pela linearidade de Los Angeles e Brasília? Os autores esclarecem logo de início que se trata de um debate complexo, que percorre por efeitos e consequências bem concretas, mas também por questões muitas vezes culturais. Leia Mais

Formas de liberdade: gratidão/condicionalidade e incertezas no mundo escravista nas Américas | Jonis Freire, María Verónica Secreto

O livro aqui resenhado reúne textos de especialistas de diferentes países a respeito da experiência da escravidão e da liberdade na América Latina e Caribe. Com alguma variação de abordagem, estilo e perspectiva, os trabalhos transitam entre a história social e a micro-história, explorando uma rica documentação de natureza administrativa, eclesiástica, legislativa, judiciária e notarial. O livro é composto por nove capítulos que se estendem espacialmente pelo Caribe francês, por diferentes regiões da América hispânica, de norte a sul do continente, e pelo Brasil, concentrando-se de modo preponderante nos séculos XVIII e XIX. Alguns são escritos em espanhol, outros em português. Leia Mais

Afrolatinoamérica: Estudos Comparados | Viviana Gelado e María V. Secreto

Este volumen organizado por María V. Secreto y Viviana Gelado, investigadoras argentinas que viven y enseñan en Rio de Janeiro, es el resultado fructífero de una serie de encuentros de historiadores, antropólogos, historiadores del arte y críticos literarios, entre Argentina y Brasil. Aunque casi todos los artículos tratan sobre los afrodescendientes en el Río de la Plata (salvo la contribución de Gelado sobre Arturo A. Schomburg), los contenidos de este libro constituyen una excelente introducción a diversas temáticas y análisis sobre la historia y la cultura negra en la América Latina de los siglos XIX y XX. Como las organizadoras señalan, este libro fue ideado para un público brasileño, en tanto está publicado allí, y trata de divulgar investigaciones sobre la América española en temas que son centrales para la historia brasileña, de lo cual proviene la mirada comparativa. Asimismo, cada una de estas contribuciones constituye una puerta a aportes más amplios y extensos, que estos autores han realizado sobre la literatura negra en el Río de la Plata y el Caribe, la esclavitud y el proceso de emancipación, y las representaciones de y sobre los afrodescendientes en el arte y la cultura popular rioplatense. Leia Mais

Currículo de História: Reflexões Sobre a Problemática da Mudança a partir da Lei 10.639/2003 – TORRES (RL)

TORRES, Marcele Xavier. Márcia Serra Ferreira. “Currículo de História: Reflexões Sobre a Problemática da Mudança a partir da Lei 10.639/2003”. In: MONTEIRO, Ana Maria (et al.). Pesquisa em ensino de História: entre desafios epistemológicos e apostas políticas. Rio de Janeiro: Muad/Faperj, 2014. Resenha de: ROSA, Tatiane Mendes. Revista do LHISTE, Porto Alegre, v.3, n.5, p.99-104, jul./dez, 2016.

O propósito aqui é fazer uma resenha reflexiva a partir do texto: “Currículo de História: Reflexões Sobre a Problemática da Mudança a partir da Lei 10.639/2003” (MAUD x FAPERJ, 2014) das Professoras Marcele Xavier Torres e Márcia Serra Ferreira, a obra traz uma análise sobre a obrigatoriedade de inserção da História da África e dos africanos no ensino de História no Brasil a partir da Lei 10.639/2003.

A inovação da introdução curricular em relação à História da África nos estudos da História do Brasil a partir da lei 10.639/03 é um tema que gradativamente vem sendo debatido e levado a publicações de pesquisas, artigos, ensaios, etc. A publicação da pesquisa organizada por Marcele X. Torres e Márcia S. Ferreira, reforça a importância desta lei no desenvolvimento histórico educacional em nosso país.

As autoras atuam com pesquisas nas áreas de História e Educação, contribuindo no aprimoramento da formação de professores, educadores e pesquisadores. Um dos resultados destas pesquisas pode ser verificado no livro “Pesquisa em Ensino de História: entre desafios epistemológicos e apostas políticas (2014)” caracterizada por uma coletânea de textos acadêmicos elaborados por pesquisadores que atuam no campo educacional. O texto escolhido traz a reflexão da pesquisa dividida em duas partes, distribuída em 12 páginas, proporcionando ao leitor uma compreensão do tema, possibilitando uma busca maior de detalhes e informações na bibliografia e livros indicados. A obra também proporciona uma análise sobre o que vem sendo desenvolvido nos centros acadêmicos sobre a lei 10.693/03 e aplicado nos currículos escolares.

A apresentação das ideias das autoras se faz presente no desenvolver da pesquisa apresentada onde fica nítida ao leitor a compreensão do conteúdo pesquisado, visto que, na elaboração do texto publicado se faz uma trajetória de conceitos permitindo a objetividade da proposta. Elas trabalham com a compreensão de que o homem é o protagonista de sua própria história e agente formador de suas mudanças em um futuro desconhecido. É possível identificar a transformação do novo e/ou novidade no trecho que nos fala: “[…] o ‘novo’ não é apenas o que resulta de uma mudança estrutural, tampouco esta em transformação radi cal promovida por uma instituição. […]” (TORRES; FERREIRA, 2014: p. 84), o novo para acontecer necessita de um lugar (ambiente) e condições de equilíbrio para se constituir. Para o escritor Ferretti (1995), segundo as autoras:

[…] a mudança como resultado das iniciativas de alterações que são incorporadas a diferentes objetos, com vistas a atender a determinados objetivos que se configuram tomando como ponto de partida os problemas identificados na realidade que se pretende mudar. (TORRES; FERREIRA, 2014: p. 84).

Os conceitos desenvolvidos servem de base para chegarmos ao ponto de estudo do Currículo Escolar onde há a necessidade de mudança e inovação para atender a inserção de novos conteúdos que tratem de temas não abordados antigamente com tamanha eficiência, mas que na atualidade esses temas devem ser mais trabalhados para atender a realidade e compreensão dos alunos.

As professoras Marcele e Márcia utilizam outras referências teóricas para debater a mudança curricular, para isso consideram o autor Popkewitz que contribui com seus escritos na questão da transição da mudança onde se faz necessário ter um paralelo entre o que se foi praticado no tempo transcorrido em associação a atualidade, gerando assim um deslocamento que estabelece rompimentos e seguimentos, como fica evidenciado em: “[…] pensar a partir da relação entre o passado e o presente significa ‘identificar interrupções, descontinuidades e rupturas da vida institucional’ (Popkewitz, 1997, p. 22).” (TORRES; FERREIRA, 2014: p.86). Este autor também considera importante o estudo regional na pluralidade da sociedade abrangendo fatos locais mais peculiares dentro das relações de poder existente e acredita que as alterações podem ser feitas através de uma reforma educacional a partir do uso de termos pertencentes ao aprendizado escolar. Em relação a esta alteração de significados as autoras nos trazem o escritor Silva que em seus escritos nos mostra que “no contexto da história do Currículo é preciso desconfiar particularmente da tentação de atribuir significado e conteúdo fixos a disciplinas escolares que podem ter em comum apenas o nome.” (SILVA, 1995: p. 8 apud TORRES; FERREIRA, 2014: p.87). Seguindo nesta linha de mudança curricular o temos o comentário das autoras sobre Goodson onde:

“[…] as mudanças devem ser compreendidas como o resultado de um conflito entre assuntos internos e relações externas, pois ‘quando o interno e o externo estão em conflito (ou dessincronizados) a mudança tende a ser gradual ou efêmera” (GOODSON, 1997: p. 56 apud TORRES; FERREIRA, 2014: p.87).

Nesta primeira parte do texto as autoras fazem a reflexão que o Currículo atua como formador de entendimento da consciência social, local competitivo rodeado de ambição e de relações desiguais de empoderamento. Ambas as autoras deste artigo reafirmam que a mudança curricular seja na universidade, seja na escola “[…] não é um processo fácil tratando-se de um movimento no qual se ‘inventam tradições’[…]” (TORRES; FERREIRA: 2014 p.88)”. O estudo da História da África e da cultura afro-brasileira e africana no ensino de História se encaixa no contexto acima abordado por se tratar de uma nova interpretação no contexto tradicional curricular.

A segunda parte do texto nos trás a mudança no ensino de História a partir da Lei 10.639/2003 que refere à obrigatoriedade de revisão curricular na Educação Fundamental do ensino de História da África e da cultura afro-brasileira e africana no Brasil. O teor desse tema é justificado pelas autoras por conter fundamentos de alterações importantes no ensino da disciplina de História, por que é uma ciência que possui a pratica curricular de mostrar a soberania do homem branco em relação ao homem não branco, especificamente o africano, nas relações de convivência em nossa sociedade, ou seja, as autoras não buscam uma nova disciplina escolar com essa temática e sim, procuram aflorar as inquietudes da História Nacional oficial ensinada para outro viés histórico não relacionado com a conjuntura social presente.

A História como disciplina escolar, assim como o a educação no Brasil é baseada no sistema educacional europeu (séc.XX), sendo contada a partir do olhar do estrangeiro. Nestas circunstâncias a História sempre foi vista pelo heroísmo e bravura do seu ator principal o homem branco, onde é representado por figuras ilustres, um ser humano independente e com capacidade de “civilizar” o mundo. Com o passar do tempo e dos acontecimentos a disciplina de História teve mudanças baseada nas produções acadêmicas européias e pelos diferentes cenários políticos sociais surgidos no passar dos anos, mas sem perder o eurocentrismo. Com a extensão do sistema educacional brasileiro no final do século XX foi possível que outros grupos não elitizados freqüentassem as escolas, esse fato ocasionou uma alteração na homogeneização do perfil social dos alunos que freqüentavam o educandário, destinado antes aos filhos da elite política brasileira. Sendo assim, “[…] seja pela transformação do perfil do alunado, seja pelo crescimento dos movimentos sociais voltados para a inclusão de grupos historicamente marginalizados, os currículos foram sendo crescentemente contestados.” (TORRES; FERREIRA, 2014: p.90). Ao longo do tempo os conteúdos desenvolvidos em História sofreram indagações por não retratar a História da África e dos afro-brasileiros no Brasil gerando uma revisão disciplinar. O final do século XX em nosso país é caracterizado por uma História marxista que retrata a disputa de classes sociais e as relações de produções. Com base nisso, tivemos algumas alterações nos currículos escolares, onde ficou evidenciado “hegemonicamente pela inclusão da luta dos africanos, tanto na África quanto no Brasil, em uma perspectiva estrutural mais ampla, envolvendo dominantes e dominados. […]” (TORRES; FERREIRA, 2014: p.90). As autoras nos remetem a contextualização que a partir do final do processo da Ditadura Militar no Brasil as discussões sobre igualdade e democracia conquistaram maior visibilidade na luta pela inclusão das minorias e dos grupos marginalizados pela História Oficial. Coube ao ensino de História motivar o aluno a indagar seu eixo histórico e analisar seu papel de ator social.

No ensino de História do Brasil a contar do inicio do século XXI tivemos o estabelecimento da Lei 10.639/2003 que consiste no ensino de História da África e cultura afro-brasileira como já citado anteriormente. Esta lei busca readquirir as ações afirmativas dos negros na formação da sociedade brasileira impulsionando a população negra ao seu reconhecimento social. A lei foi decretada em 2003, mas a luta por esse reconhecimento legitimado vem de muito tempo que pode ser verificado, por exemplo, no Movimento Negro que sempre lutou pela integração da História e cultura afro-brasileira nos currículos escolares. Mesmo sendo uma lei, a mesma não garantiu até o momento que essa mudança nos currículos escolares seja eficaz em relação aos contextos anteriormente desenvolvidos nas escolas através da visão do outro, no caso do olhar eurocêntrico. Após 13 anos de implantação a lei 10.639/03 ainda não rompeu com o “costume” de se retratar o negro africano e o afro-brasileiro somente como escravizado e submisso ao opressor europeu. A alteração é gradual e necessita de orientação de como deve ser aplicada, pois toda mudança curricular envolve fatores externos que vão além do ambiente escolar, envolvidos em uma cultura intrínseca. A modificação do currículo escolar faz parte do processo de transição do conteúdo histórico a ser desenvolvido com o alunado, mas para que essa transformação ocorra é preciso também que se faça um preparatório do corpo docente para trabalhar essa temática em aula, pois a lei é de 2003, mas há professores que começaram a atuar antes deste período e para os que atuam após esta data também se faz necessária uma formação para que haja preparo e referencial teórico que embase as aulas ministradas sobre a cultura africana no Brasil e a formação da nossa identidade no elo Brasil Africano e África Brasileira. A responsabilidade dessa alteração de paradigmas históricos se faz presente no embate político social onde uma nova retratação entraria em conflito com uma “tradição” secular no contexto social brasileiro.

Após a leitura do texto referido para este trabalho fico com algumas indagações: quais os motivos para a lei 10.639/03 não ser aplicada? Há interesse da parte governamental para que não haja uma nova historiografia em relação aos negros africanos e aos afro-brasileiros? Os professores recebem orientações didáticas em suas formações para desenvolverem em aula o referido tema? Os currículos escolares no âmbito nacional já estão atuando na proposta da lei? Atualmente, há algum tipo de verificação nos diários escolares para averiguar o que esta sendo desenvolvido? As ações afirmativas e a valorização do povo negro onde estão? Os professores estão recebendo ou receberam material didático para embasarem as aulas? Há formações de professores que abordam essa questão? Cabe somente aos professores de História trabalhar com a proposta da lei 10.639/03? Existe racismo nas escolas do Brasil? Alguma pesquisa já foi feita com os alunos de matriz africana para verificar se os mesmos já se sentiram descriminados, injustiçados ou envergonhados nas aulas que tratam sobre a formação do nosso país? As perguntas são inúmeras e não pararam por aqui. Será preciso fazer mais pesquisas sobre o tema abordado para elucidar essas questões. Com base no texto resenhado e nas perguntas acima, trago questões pertinente quando se trata da negritude brasileira e da formação afro descendente do Brasil, o racismo, o preconceito e a discriminação na escola. Para esta analise utilizei o livro “Superando o Racismo na Escola”, organizado por Krabengele Munanga, Brasil, 2005. Em minha carreira como Professora de História já sofri perguntas dos alunos tais como “bah, mas a senhora não tem cara de Professora!”, “Sora, a senhora fala de religião de matriz africana só porque a senhora é preta?”, “Sora, porque a senhora usa esse “troço” (turbante) na cabeça, tá com piolho?’’, “a senhora acredita em saravá?” foram perguntas que fizeram refletir sobre o convívio escolar de uma pessoa afro-brasileira. Como nos diz Sant’ana (2005): “[…] não dá para fugir da curiosidade dos alunos e nem é aconselhável camuflar as respostas. O jeito é enfrentar a questão de frente. […]” (SANT’ANA, 2005: p.40). E para enfrentarmos essas questões é necessário contextualizar a história do negro no Brasil e a nossa relação de identidade com o continente africano. Acredito que a maioria dos alunos ainda tenha a visão estigmatizada do negro escravizado, sofredor, pacífico e submisso ao branco europeu, como também percebo que as informações referentes à cultura africana merecem maior elucidação, pois ainda é vista como algo pejorativo onde usar turbante, usar elementos da religião de matriz africana ou falar sobre a Mama África no ambiente escolar assim como em toda nossa sociedade parece algo que causa estranheza ou afronta a cultura nacional. A figura do Professor é primordial para elucidar essas questões de racismo, preconceito e discriminação, pois o aluno inicia na escola em idade de formação da sua personalidade e é na escola que temos o nosso maior convívio social com as diferenças.

Referências

SANT’ANA, Antônio Olimpio. “História e Conceitos básicos sobre o Racismo e seus derivados” IN MUNANGA, Kabengele (organizador). Superando o Racismo na Escola. 2ª Ed. Revisada. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.

TORRES, Marcele Xavier. Márcia Serra Ferreira. “Currículo de História: Reflexões Sobre a Problemática da Mudança a partir da Lei 10.639/2003” IN MONTEIRO, Ana Maria (et al.). Pesquisa em ensino de História: entre desafios epistemológicos e apostas políticas. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Muad x Faperj, 2014.

Tatiane Mendes Rosa – 1 Professora de História Rede Pública. E-mail: [email protected]

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Heidegger e o mito da conspiração judaica mundial – TRAWNY (RFA)

TRAWNY, P. Heidegger e o mito da conspiração judaica mundial. Tradução Soraya Guimarães. Rio de Janeiro: Mauad, 2015. Resenha de: SANTOS, Eder Soares. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.28, n.43, p.365-372, jan./abr, 2016.

Lançado na Alemanha no início de 2014 e publicado em língua portuguesa no Brasil, no final de 2015, pela editora Mauad, com tradução de Soraya Guimarães Hoepfner, o livro Heidegger e o mito da conspiração judaica mundial, de Peter Trawny, tem se tornado um novo ponto de partida para a discussão do chamado “caso Heidegger”, ou seja, o envolvimento de Heidegger com o nazismo.

O livro surge como resultado do trabalho de edição, realizado por Trawny, dos Cadernos negros, lançados na coleção das obras completas de Heidegger pela editora Vittorio Klostermann. Neles, o autor discute e comenta algumas das passagens mais polêmicas escritas por Heidegger sobre os judeus e o judaísmo. Destacamos algumas delas:

Também a ideia de um entendimento com a Inglaterra, no sentido de compartilhar as “prerrogativas” do imperialismo, não alcança o processo historial em sua essência, pois a Inglaterra, agora no âmbito do americanismo e do bolchevismo, por sua vez, também no âmbito do judaísmo mundial, participa do jogo até o fim. A pergunta pelo papel do judaísmo mundial não é racial, mas sim uma pergunta metafísica pelo modo de ser do tipo de ser-homem, que, completamente desarraigado, pode assumir o desenraizamento de todos os entes de Ser, enquanto “tarefa” histórica mundial. (HEIDEGGER, 2014, GA 96, p.243; TRAWNY, 2015, p.38-39)

Por meio de um talento calculador acentuado, os judeus “vivem” de há muito sob o princípio de raça, razão pela qual resistem veementemente contra a sua aplicação irrestrita. A instituição da cria racial não tem origem na própria “vida”, mas sim na subjugação da vida pela maquinação. O que se opera com esse planejamento é a desrracialização total dos povos através de seu próprio assujeitamento à instituição e recorte uniformizado e unidimensional dos entes. Com a desrracialização, um autoestranhamento dos povos – a perda da história – ou seja, o âmbito de decisão de Ser vira um só. (HEIDEGGER, 2014, GA 96, p.56; TRAWNY, 2015, p.30)

A escalada momentânea do judaísmo tem, porém, seu fundamento no fato de a metafísica do Ocidente, especialmente em seu desdobramento moderno, ser o ponto de ancoragem para o alargamento de uma racionalidade vazia e uma aptidão para o cálculo que, desse modo, ganham morada no “espírito”, sem jamais alcançar sua própria decisão. Quanto mais originárias e principais as futuras decisões e questões, mais inacessíveis elas permanecem para essa “raça”. (HEIDEGGER, 2014, GA 96, p.46; TRAWNY, 2015, p.37)

Partindo de passagens como as elencadas, Trawny sustenta duas teses em seu livro: 1) há um antissemitismo onto-historial nas reflexões de Heidegger; e 2) essas reflexões provocam um movimento de contaminação em sua obra. Trawny deixa isso claro ao afirmar que:

A visão sobre Heidegger ganha uma nova faceta, até então desconhecida: em uma determinada parte do seu percurso filosófico, o filósofo tornou público um certo antissemitismo em seu pensamento, que pode ser precisamente descrito como um antissemitismo onto-historial. (TRAWNY, 2015, p.17)

O conceito de “contaminação” é para o que se segue, de um modo específico, muito importante. O antissemitismo que infesta determinadas passagens dos Cadernos negros, contamina, toca outras. Como consequência, o pensamento que até então foi comprometido teoricamente sob uma perspectiva neutra se mostra sob uma outra ótica. (TRAWNY, 2015, p.18)

Trawny tenta justificar esses pressupostos fazendo uso tanto de passagens dos Cadernos negros, como de textos publicados nas obras completas de Heidegger, mostrando que este constrói uma narrativa de um início e de um outro começo da história do ser. Para o editor, “tudo o que em Heidegger está associado ao nacional-socialismo tem sua proveniência na narrativa do ‘primeiro começo’ com os gregos e do ‘outro começo’ com os alemães” (TRAWNY, 2015, p.33).

Em seguida, o autor se concentra em retomar diferentes passagens dos Cadernos negros que deixam claras as posições antissemitas de Heidegger, expressas nesses seus diários pessoais, em especial nas reflexões entre os anos de 1938 e 1945. São destacados, em especial, os tipos de antissemitismo onto-historial em Heidegger (cf. TRAWNY, 2015, p.37-62), o conceito onto-historial de “raça” (cf. TRAWNY, 2015, p.63-72), um possível efeito da contaminação antissemita de Heidegger em relação a seu mestre Edmund Husserl (cf. TRAWNY, 2015, p.88) e a questão da exterminação dos judeus e a indiferença de Heidegger (cf. TRAWNY, 2015, p.101-112). Por fim, Trawny levanta a tese da contaminação do pensamento do filósofo com a seguinte questão:

Como devemos lidar com antissemitismo onto-historial de Heidegger em relação à Shoah? Agora não está mais apenas em debate a necessidade ou não de se defender o “erro político” de Heidegger contra um “politicamente correto” e assim defender, voluntária ou involuntariamente, as relações que destroem a esfera pública (se é que seja possível). Há um antissemitismo no pensamento de Heidegger que – como é próprio a um pensador – corresponde a uma (impossível) justificativa filosófica, mas que não vai ultrapassar dois ou três estereótipos. A construção da narrativa onto-historial o torna ainda pior; é o que conduz à contaminação desse pensamento. (TRAWNY, 2015, p.123)

Quanto aos Cadernos negros, eles são compostos por 34 cadernetas de notas de capa preta, tendo sido escritos entre 1930 e 1970. Neles, Heidegger dá vazão a seus pensamentos privados, classificando-os como Considerações, Observações, Quatro Cadernos, Indicações e Provisórios, além de Vigília e Noturnos. Dessa série de cadernos, faltam as Considerações I, que não foram encontradas em seu espólio (cf. TRAWNY, 2015, p.19). Esses cadernos foram reunidos nos volumes 94, 95, 96 e 97 das Obras completas.

O estilo de escrita presente nessas cadernetas – diferente de muitos escritos de Heidegger, que parecem tratados – aparece na forma de aforismos que variam entre curtos e longos, às vezes assumindo o formato de pequenos ensaios. Muitos temas são tratados neles, como linguagem, palavra, verdade, ciência, ser e ente, temas esses já conhecidos de seus leitores. O que há de novo nesse material são os comentários antissemitas de Heidegger e o modo como esses conhecidos temas se relacionam a essas declarações.

A linguagem desses Cadernos beira o incompreensível, variando das mais obscuras e ininteligíveis passagens à tentativa de uma escrita poética que toca em temas já publicados em Contribuições à filosofia: do acontecimento apropriador (cf. HEIDEGGER, 2015), atingindo o ponto máximo em um destilar de bílis contra tudo e todos (os americanos, os ingleses, os franceses, os bolcheviques e os judeus).

Embora sejam anotações privadas e declarações de seu foro pessoal, para Trawny, não se trata de meras anotações: “trata-se de escritos filosóficos elaborados” (TRAWNY, 2015, p.20). Tendo o próprio Heidegger declarado sua aversão à publicidade (cf. TRAWNY, 2015, p.16), pergunta-se qual papel desempenham seus escritos “públicos”, ou seja, aqueles destinados a uma contribuição filosófica, e qual o papel dessa elaboração filosófica privada no conjunto inteiro de suas obras. Há um topos privilegiado onde se expressa de fato a filosofia de Heidegger?

O antissemitismo onto-historial teria sido motivado pela procura por uma história do ser em sua verdade, procura essa que Heidegger começa depois de 1930, quando se dá conta de que Ser e tempo ainda é insuficiente para responder a Seinsfrage, a pergunta pelo ser. Essa história do ser se estende entre um começo e um fim da filosofia e a necessidade de se pensar de uma vez por todas em um novo começo. O começo da filosofia é grego; seu fim, a maquinação em sua essência técnica; seu outro começo, o evento apropriador (Ereignis).

A “verdade” desses acontecimentos não se encontra fundada em nenhuma teoria da verdade, nem mesmo na alétheia, na verdade como desvelamento. Encontra-se no conto, no dito, na própria narrativa (cf. TRAWNY, 2015, p.19). Toda boa história necessita de um inimigo poderoso. A maquinação, enquanto resultado da técnica moderna, se enquadra nesse papel. Esse inimigo se mostra nas mais diferentes formas: imperialismo, cristianismo, protestantismo, americanismo, judaísmo (cf. TRAWNY, 2015, p.32). Aqueles capazes de dar movimento ao novo início são os alemães, apoiados por um nacional-socialismo espiritual que, diferente do nacional-socialismo vulgar praticado por Hitler e seus asseclas, poderia conduzir o povo alemão em sua missão de ser o destino do Ocidente (cf. HEIDEGGER, GA 95, p.24; cf. TRAWNY, 2015, p.34).

Assim, a base do antissemitismo de Heidegger é metafísica, onto-historial, apoiada em sua ambição de encontrar um novo começo para a história do ser. Contudo, nem por isso ela é menos desastrosa e insuportável.

No âmbito da maquinação, os judeus desempenham um papel essencial, na medida em que, para Heidegger, eles representam a essência da modernidade técnica. Para o filósofo, os judeus possuem o dom acentuado do cálculo e vivem segundo a ideia de raça, cujo princípio é uma subjugação da vida ao domínio da maquinação. Vivem ainda segundo um planejamento que provoca sua total desracialização, produzindo um estranhamento entre os povos e uma perda da história, tornando, assim, impossível a decisão pelo ser (Seyn) (cf. HEIDEGGER, GA 96, p.67; cf. TRAWNY, 2015, p.43).

O calcular – e o poder calcular antecipadamente – é o símbolo maior da maquinação, é o seu gigantesco (das Riesige). O calcular próprio da maquinação provocaria uma determinação de mundo que traria como consequência, para os judeus, a falta de mundo (Weltlosigkeit). Segundo Trawny, Heidegger quer “transformar uma atribuição antissemita muito banal (de um ‘talento acentuado’) em historicidade do ser – e é nessa figura de pensamento que seu antissemitismo está ancorado” (cf. TRAWNY, 2015, p.41). Nessa história, calculabilidade, racionalidade e judaísmo andam de mãos dadas para Heidegger. Até que ponto levar a sério as considerações dos Cadernos negros quando se vê o filósofo querer imputar ao judaísmo a descoberta da racionalidade calculadora num contexto onto-historial? (cf. TRAWNY, 2015, p.43).

Trawny levanta um problema metodológico: como lidar com o antissemitismo onto-historial de Heidegger? E essa questão se torna ainda mais grave: os Cadernos negros revelam que estão presente em suas reflexões um antissemitismo que faz parte de seus pensamentos filosóficos. Então, até que ponto e em qual extensão não há uma contaminação geral na obra de Heidegger?

Vendo por esse ângulo, esse antissemitismo onto-historial estaria infiltrado em várias dimensões da filosofia de Heidegger, o que implicaria revermos sua recepção. Na opinião de Trawny:

Até hoje, o envolvimento de Heidegger no nacional-socialismo foi um problema que resultou em condenações parcialmente exageradas, mas também em reservas justificadas. Agora com a publicação dos Cadernos negros, a existência de um antissemitismo específico que de fato surge em uma época na qual o pensador se posiciona de maneira muito crítica contra o nacional-socialismo real existente não pode ser ignorada. (TRAWNY, 2015, p.131)

Os Cadernos negros exigem uma reflexão em vários níveis: em relação a seu conteúdo, é preciso investigar qual é o significado das declarações antissemitas de Heidegger, assim como também investigar suas outras passagens e saber até que ponto elas se inter-relacionam. É necessário verificar ainda como essas reflexões privadas se relacionam com o restante de sua obra. Além disso, é preciso refletir sobre o estilo filosófico de apresentação desses cadernos: seu modo de apresentação e reflexão apresentam elementos suficientes para afirmarmos que algo de filosófico acontece ali? Essa questão, por sua vez, remete a outra: o que a filosofia se tornou? O que Heidegger queria nos mostrar ao autorizar que esses cadernos só fossem publicados no final do conjunto total de suas obras reunidas? Por fim, precisamos saber como devemos trabalhar com seus textos e tratar seu pensamento filosófico.

No Brasil, o trabalho mais sensato e instigante continua a ser o livro de Zeljko Loparic, Heidegger réu: um ensaio sobre a periculosidade da filosofia (1990), em que o autor coloca a questão de como, afinal, podemos julgar não só a filosofia de Heidegger, mas toda e qualquer filosofia.

Recentemente, a obra Cadernos negros foi tema de debate no XIX Colóquio Heidegger, de 2014, que contou com a presença do editor Peter Trawny. A reação dos pesquisadores presentes no evento variou entre a necessidade de uma revisão de seus próprios posicionamentos sobre a filosofia de Heidegger, a partir das declarações nesses Cadernos, e a impressão de que tais escritos deveriam ser lidos à parte diante de toda a filosofia heideggeriana, não sendo esses Cadernos por si só suficientes para contaminar o que já conhecemos das profundas discussões filosóficas trazidas por Heidegger. Esse é um debate aberto que começa a tomar corpo em solo brasileiro. A recente tradução do livro de Trawny poderá fomentar com excelência essas discussões.

Referências

LOPARIC, Z. Heidegger réu: um ensaio sobre a periculosidade da filosofia. Campinas: Papiros, 1990.

HEIDEGGER, M. Überlegungen VII-XI (Schwarze Hefte 1938/39. GA 95. Ed. Peter Trawny. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 2014. HEIDEGGER, M. Überlegungen XII-XV (Schwarze Hefte 1939/41). GA 96. Ed. Peter Trawny. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 2014.

HEIDEGGER, M. Contribuições à filosofia do acontecimento apropriador. Tradução M. Casanova. Rio de Janeiro: Via Veritas, 2015.

TRAWNY, p.Heidegger e o mito da conspiração judaica mundial. Tradução Soraya Guimarães Hoepfner. Rio de Janeiro: Mauad, 2015.

Eder Soares Santos – Universidade Estadual de Londrina, (UEL), Londrina, PR, Brasil. Pós-doutorado em Filosofia. E-mail: [email protected]

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A Inquisição Contestada: críticos e críticas ao Santo Ofício português (1605-1681) | Yllan Mattos

[…] Passar um homem infortúnios Ruínas, perdas, naufrágios, por acaso, ou por desastre no mundo é ordinário. Mas não há maior desgraça, nem mais lastimoso caso, do que um triste nascer, por herança, desgraçado. Que um morgado de misérias, É mui triste morgado, ainda mal, ainda negro, que por seu mal vêm tantos! Como estou de posse dele, de dor e de pena estalo. E o coração me faz dentro do peito pedaços […].1

O Tribunal da Santa Inquisição em Portugal foi criado em 1536, com o intuito de zelar pela pureza da fé católica dando início a um processo de perseguição àqueles que de alguma forma cometeram, pronunciaram ou defenderam heresias, na qual os cristãos-novos seriam suas principais vítimas. Em um segundo momento, os sodomitas, bígamos, blasfemos, luteranos e feiticeiros (em menor número), se tornaram alvos constantes por parte do Tribunal. Leia Mais

História da comunicação: experiências e perspectivas | Igor Sacramento e Letícia Cantarela Matheus

História da Comunicação: experiências e perspectivas é uma coletânea, organizada por Igor Sacramento – da Universidade Federal do Rio de Janeiro – e Letícia Cantarela Matheus – da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, composta de 14 capítulos advindos da contribuição de pesquisadores renomados de universidades norte-americanas e brasileiras do Rio de Janeiro e de São Paulo. A obra está dividida em duas partes. A primeira, denominada Sistemas, traz 6 capítulos. A segunda – Meios – traz 8, a que se segue um conjunto de minicurrículos dos autores e dos organizadores. A coletânea se constitui num panorama bastante útil para quem busca adentrar nas discussões acerca das investigações referentes a práticas jornalísticas ou midiáticas e seus modos de enunciar, pois faz circular diferentes abordagens cujas contribuições aos estudos do campo da comunicação merecem divulgação. Leia Mais

Nietzsche: uma introdução filosófica – FIGAL (V)

FIGAL, Günter. Nietzsche: uma introdução filosófica. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012. Resenha de: MERTENS, Roberto saraiva Kahlmeyer. Veritas, v. 59, n. 1, p. 15-19 jan.-abr. 2014.

Em fins de 2012, foi editada a tradução de Nietzsche: uma introdução filosófica, de Günter Figal (Mauad X, 2012). Conhecida do público europeu desde a década de 1990, esta obra de fôlego, a contar dessa data, vem contribuindo com a elevação do nível das pesquisas sobre Nietzsche no exterior. Fenômeno que talvez se explique pela visada peculiar que seu autor joga sobre a filosofia de Nietzsche.

Embora apontado como um dos principais representantes da Nietzsche Forchung alemã (ao lado de Günter Abel e Volker Gehardt), Günter Figal não seria um leitor de Nietzsche no sentido estrito do termo. Formado no caldo de cultura da fenomenologia-hermenêutica, tendo sido aluno de Hans-Georg Gadamer e herdeiro direto da filosofia de Martin Heidegger (a ponto de, atualmente, ocupar a cátedra que pertencera ao filósofo na Universidade Albert-Ludwig, em Freiburg), é inevitável encontrar na interpretação que Figal faz de Nietzsche traços influentes de sua formação.

Muito mais do que exegese do texto nietzschiano, o livro deixa transparecer o esforço de partir da obra do filósofo, e das interpretações estabelecidas na fortuna crítica, para uma aproximação gradual do horizonte significativo do pensamento de Nietzsche. Assim, ao arrancar das posições, visões e conceptualizações que as leituras disponíveis oferecem-nos, Günter Figal reconstrói o cenário no qual o pensamento de Nietzsche fez-se possível, passa em revista crítica as teses consolidadas sobre tal filosofia e, por fim, descreve o que se evidencia a partir de um

Nietzsche livre dos cacoetes de algumas interpretações tradicionais. A tríade reconstrução, revisão crítica e reinterpretação (que delineia o itinerário do livro de Figal) será a mesma que oferecerá estruturação a esta resenha.

O gesto reconstrucionista é particularmente identificado no capítulo inicial. Dividido em três tópicos, no primeiro, intitulado “Sismógrafo”, o autor oferece-nos um verdadeiro inventário da recepção da obra de Nietzsche na contemporaneidade. É digno de nota que tal balanço não se restringe à cena filosófica. Figal indica como o pensamento de Nietzsche infiltrou-se nas ciências humanas e sociais por meio de Georg Simmel e de Max Weber; como os influxos das ideias estéticas do filósofo serviram de inspiração a músicos como Gustav Mahler e Richard Strauss; como o espírito da obra nietzschiana passou à literatura dos irmãos Mann (Heinrich e Thomas), de Gottfried Benn e, em especial, de Ernst Jünger. Valendo-se desta contextualização, Günter Figal indica, a partir deste último, o papel que Nietzsche desempenhara em seu tempo. Em uma época de crise, na qual a filosofia ainda se ressentia da ruína dos idealismos (para os quais Hegel e os hegelianos representavam uma espécie de aristocracia metafísica) e da ascensão bárbara do positivismo, a lucidez de Nietzsche não seria um terremoto, mas o sensor que descreve e interpreta tais abalos, ou, nas palavras de Jünger:

Ele investiga os caminhos possíveis, as rotas mais extremas sobre as quais a razão fracassará. A apreensão intelectual da catástrofe é mais terrível do que os medos reais do mundo do fogo. (…) Partir-se assim era o destino de Nietzsche: hoje é de bom tom apedrejá-lo. Do mesmo modo que depois do terremoto, as pessoas se abatem sobre o sismógrafo. Não obstante, não se pode fazer que o barômetro expie a culpa pelo furacão se não se quiser adentrar as fileiras dos primitivos.1

A metáfora do sismógrafo como indicativa do posto de Nietzsche é apenas uma das muitas tiradas felizes do ensaio de Figal neste momento propedêutico. Os tópicos que se seguem a este (a saber, “Biografia” e “Definições de posição”) reforçam pontos ali esboçados.

Sem a erudição histórica das biografias disponíveis no mercado e com uma condução que nos lembra, em certos lances, os parágrafos biográficos do primeiro volume das preleções de Heidegger sobre Nietzsche, a obra de Figal oferece-nos uma narrativa da vida e obra deste pensador. Do mesmo modo que Andler,2 Figal valoriza a juventude de Nietzsche: seu período de formação filológica na Escola de Pforta, seu convívio amistoso com o mestre filólogo F. W. Ritschl, o desgosto da carreira docente, a amizade malograda com R. Wagner, a maturação das ideias mais tenras da infância em A origem da tragédia e os primeiros fustigos por parte do seu ex-condiscípulo U. v. Wilamovitz-Moellendorff (o filólogo).

Deste bosquejo biográfico, entretanto, o que mais importa é a indicação de que Nietzsche, voluntariamente afastado da universidade e possuindo reduzido um círculo de amizades, volta-se para si tornando-se pela primeira vez presente como pensador por meio de sua escrita. Figal sustenta a tese de que, para Nietzsche, e ao contrário dos demais filósofos, “(…) o que está em questão para ele não é nem mesmo um programa filosófico que pudesse subsistir por si e seria designado por meio de seu nome (…). Nietzsche se retrai ante o desenvolvimento das ideias que poderiam ser aplicadas sem uma consideração da pessoa.”3 Caracteriza-se, assim, a concepção nietzschiana da “vida como literatura”.4

Os pontos de partida para a elaboração do que seria uma escrita de si e um si mesmo como filosofia é o que se encontrará no já mencionado tópico “Definições de posição”. É aí que o comentador (após a revisão literária das interpretações de Nietzsche que fizeram escola: Jaspers, Heidegger, Lukács, Adorno e Derrida) aponta o lugar que o filósofo de Röcken ocupa na história da filosofia: “(…) Nietzsche não pode mais ser pensado agora meramente em contraste com a tradição; se Nietzsche é o filósofo moderno por excelência e ao mesmo tempo pertence à metafísica, isso é uma prova do caráter metafísico da modernidade (…)”4 Tal afirmação causaria certamente desconforto aos acostumados a conceber Nietzsche como o arauto do pensamento não metafísico, convicto opositor da tradição. Entretanto, bem como Heidegger, Figal entende que Niezsche ainda possui ligação com a tradição filosófica justamente por depender de pressupostos e arrolar consequências de ideias e condutas próximas à metafísica.

É nesse momento que a principal tese do livro aparece, tal tese alinha a conduta de Nietzsche à figura paradigmática do Sócrates e liga seu pensamento a Platão. Em que sentido? Resposta: primeiramente, ao contar com a tradição de pensamento ocidental para colocar-se em diálogo com conceitos e questões filosóficas; depois, por sua filosofia tornar-se o que é na medida em que se diferencia da tradição, fazendo desta um outro de si, isto é: na maneira pouco canônica com a qual Nietzsche contempla o mundo e confronta-se com a metafísica, a tradição filosófica experimenta sua alteridade. Mas, para Figal, ainda que a filosofia de Nietzsche desconstrua as bases da metafísica e proponha-se em termos diversos da tradição (Figal não insinua que Nietzsche reproduza Platão), mesmo o “filosofar a marteladas” guardaria vestígios de sua natividade metafísica. Diante do caráter polêmico desta tese, o resumo pálido que esta resenha apresenta (coerentemente a sua proposta de recensão e adequando-se ao espaço que lhe é cabido), não permite que o leitor prescinda da leitura deste terceiro tópico do primeiro capítulo, bem como os diversos momentos adiantados do texto no qual a premissa ganha desdobramentos. É possível, entretanto, concordar com o comentador quanto a seu esforço por caracterizar de maneira mais rigorosa e uniforme a figura filosófica de Nietzsche, descerrar um filósofo “mais estranho, mais espantoso e mais conhecido ao mesmo tempo”.5 A transição do Capítulo primeiro aos próximos deixa transparecer, novamente, uma atitude hermenêutica. Denominado De fora, o primeiro momento apresentava as circunstâncias externas a partir das quais ingressaríamos na leitura da obra em busca de uma compreensão do pensamento de Nietzsche. Destarte, partindo das compreensões prévias que a narrativa biográfica e as interpretações autorizadas oferecem, pode ter início o caminho de intensificação de compreensões da obra-Nietzsche. É isso que se encontra no capítulo segundo, intitulado Tempo, ser e devir. O referido nome explica-se pelos tópicos encontrados nesta seção.

Em tais pontos encontramos a tematização de noções-chave do pensamento de Nietzsche, como o devir, força plástica e arte, apresentadas por meio de citações do autor de Assim falou Zaratustra. A qualificação de Figal enquanto intérprete de Nietzsche evidencia-se desde que nos deparamos com as passagens que o autor escolhe para tematizar (tal seleção, por si só, justifica uma leitura dos tópicos). Num diálogo intrínseco à obra de Nietzsche, e sem fugir ao enfrentamento das leituras mais acatadas, Figal revisa criticamente a maneira com que conceitos, temas e questões decorrentes do pensamento de Nietzsche vêm sendo apropriados. Muito do exercício de interpretação do comentador consiste em desmontar essas interpretações cristalizadas para liberar o interpretado a um horizonte no qual seja favorável a identificação do solo no qual este estaria fundado. Movimento hermenêutico idêntico é o que se repete no terceiro e quarto capítulos.

Aguardado durante toda a leitura, é no último capítulo da obra que o problema do conhecimento aparece. Sob a alcunha de Vida do conhecimento, podemos conferir a distinta interpretação que Figal dedica aos conceitos mais fundamentais do pensamento nietzschiano, ao exemplo: o super-homem (na peculiar opção de tradução como “além-do-homem”), a vontade de poder, o eterno retorno e a psicologia (conceitos homônimos aos tópicos dignos de nota no referido capítulo). Ao apontar estes conceitos como raios para o eixo que o personagem de Zaratustra constitui, Figal pode elucidar o quanto essas noções dão voz a uma doutrina da vida. Importa, entretanto, ao comentarista indicar o quanto mesmo esta doutrina em sua presumida liberdade de pensamento ainda não teria suas bases no solo tradicional do platonismo, este contra o qual o próprio Nietzsche volta-se. Tal tarefa, que parece perpassar inteiramente Nietzsche, constitui uma introdução filosófica, que se torna mais nítida na terceira porção do trabalho.

Ao longo das 248 páginas que dão corpo à tentativa de tornar compreensível a obra de Nietzsche, o livro de Günter Figal – não seria demais assinalar – possui uma linguagem tão didática quanto plástica. Tais atributos discursivos, mais do que um requinte estético, denotam não só a maturidade do pesquisador perante seu objeto de estudo, quanto a preocupação de fazer jus à prosa filosófica do incontestável estilista que foi Nietzsche.

Publicado originalmente na forma de livro de bolso sob o selo da alemã Reclam, a editora brasileira apresenta o livro com arte e editoração elegantes, reservando-lhe lugar especial no interior da Coleção Sapere Aude, que já possui outros títulos referentes a Nietzsche.

Referências

ANDLER, Charles. La Jeunesse de Nietzsche – Nietzsche as vie et as pensée. 3. ed. Paris: Rossard, 1921.

FIGAL, Günter. Nietzsche: Uma introdução filosófica. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012.

HEIDEGGER, Martin. Nietzsche I. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

Notas

1. ÜNGER apud FIGAL, 2012.
2. ANDLER, 1921
3. FIGAL, 2012, p. 36.
4. FIGAL, 2012, p. 42
5. FIGAL, 2012, p. 13

Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens – Doutor em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professor Adjunto na Universidade Estadual do Oeste do Paraná-UNIOESTE. E-mail: [email protected].

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Thor: filho de Asgard | Geraldo Cantarino

Essa fantástica ilha do Brasil, tão estreitamente vinculada a toda mitologia de São Brandão, pertence, com esta à antiga tradição céltica preservada até os dias de hoje. Richard Henning.

Nos bancos escolares, aprendemos que o nome do nosso país, Brasil advém da abundância de determinada madeira existente no litoral, chamada pau-brasil onde se extraia um corante vermelho de grande valor comercial na Europa que entrava no Renascimento, mas ainda respirava ares medievais. Este corante púrpura, como nos esclarece Sérgio Buarque de Holanda na clássica obra da historiografia brasileira Visão do Paraíso, “desde o século IX era conhecido no comércio árabe e italiano sob os nomes de Brasil e verzino” (Holanda, 1994: 173). Desde o Oitocentos, alguns estudos já demonstravam que o nome Brasil não proveio da cor da madeira em brasa, mas teria raízes mais antigas, provenientes de mitos celtas. Constante na cartografia européia dos séculos XIII ao XVI, a fabulosa ilha de Hy-Brazil possivelmente foi inspiração para que o imaginário português preterisse esse nome aos oficiais Vera e Santa Cruz, de caráter mais político e religioso: “primeiro houve o nome, depois o lugar que foi nomeado” (Souza, 2004: 35). As denominações burocráticas cederam lugar à terminologia mítica, apesar de posteriormente alguns autores coloniais acreditarem que este nome teria advindo da madeira homônima, um engano que se perpetua até nossos dias. Durante os anos 1940 a 1960, alguns estudos historiográficos fizeram levantamentos preliminares e algumas conclusões sobre as raízes deste passado filológico (a exemplo de Sérgio Buarque de Holanda e Gustavo Barroso), acabaram não criando outras pesquisas ou influenciando novas perspectivas. Em 2000, em um pequeno verbete para o livro Dicionário do Brasil colonial, o historiador Ronaldo Vainfas afirmou que o vocábulo Brasil teria provindo do imaginário europeu pré-cabralino e que teria sido utilizado pelos portugueses como mito geopolítico. Desta maneira, as referências sobre o tema nunca passaram de pequenas citações ou estudos rápidos, não originando dissertações ou teses, nem mesmo artigos mais detalhados ou a busca de fontes confiáveis nos arquivos europeus.

É neste contexto que foi publicado o livro Uma ilha chamada Brasil, do jornalista Gerlado Cantarino. Aproveitando-se da falta de interesse genérico dos acadêmicos e dentro de uma perspectiva estritamente comercial, Cantarino publicou uma obra que peca pela linguagem extremamente coloquial, pela falta de seriedade documental e pelo grande apelo esotérico e mesmo fantasioso de seu autor.2 Mitos tradicionais do Ocidente, como a Atlântida, a presença de fenícios e vikings na América do Sul3 , entre outros, foram tratados como fatos ou possibilidades, em detrimento da “verdade oficial” mantida pela academia, num tom verdadeiramente conspiratório especialmente pelos antigos escritores de 1850 a 1940. Uma ideologia típica desde o século XIX: tentar demonstrar o verdadeiro passado nacional, originando o que muitos denominam de “Arqueologia Fantástica” ou “Neodifusionismo”, teoria que procurou demonstrar o contato transoceânico entre os europeus e americanos antes das viagens de Colombo e Cabral. Reciclando antigas narrativas de autores coloniais, estes teóricos afirmavam que diversos povos, entre eles hebreus, africanos, escandinavos e fenícios, haviam estado no Brasil e América do Sul há vários séculos. Para isso baseavam-se em supostas inscrições misteriosas encontradas nas florestas ou sertões (na realidade, arte pré-histórica dos indígenas) ou enviadas para os grandes centros (como as famosas inscrições fenícias, que com o tempo provaram ser apenas falsificações)4. Com o início do século XX, todas estas teorias demonstraram ser apenas idéias fantasiosas, sem comprovações arqueológicas e carregadas de preconceito, racismo e intolerância pelo verdadeiro passado brasileiro, o povoamento indígena. A citação de Cantarino do livro Antiga História do Brasil, de Ludwig Schwennhagen – onde afirmava que o sítio de “7 Cidades” no Piauí seria o vestígio de uma antiga cidade fenícia, na realidade, formações geológicas naturais – beira simplesmente o ridículo (Cantarino, 2005: 85-86). A reiteração da famosa pedra da Paraíba (2005: 92-93), supostamente encontrada em 1872, já foi estudada por vários especialistas, tanto epigrafistas quanto historiadores, que demonstraram ser uma fraude realizada no Brasil Imperial. Até nossos dias, existem diversos escritores, quadrinistas e roteiristas de cinema que empregam essas idéias neodifusionistas, procurando convencer o grande público de que este passado mítico realmente existiu. Infelizmente, o jornalista Geraldo Cantarino perpetua esse procedimento, criando obstáculos para que um estudo realmente sério e acadêmico possa ser efetuado sobre as origens celto-irlandesas do nome do nosso país, esse sim passível de estudo e que infelizmente foi tema apenas de abordagens parciais. O caminho para pesquisas futuras está aberto, mas resta o cuidado para os investigadores não serem atraídos para referências enganadoras e sem qualidade, a exemplo do livro Uma ilha chamada Brasil.

O jornalista Geraldo Cantarino se dispôs a desenvolver uma extensa pesquisa sobre as origens celtas do nome Brasil e, como autor da pós-modernidade tanto suas leituras e pesquisas mereciam ser mais densas e profundas como exige o período em questão – há menções à obra de autores consagrados, como Capistrano de Abreu e Gustavo Barroso – e não se fixar em autores praticamente desconhecidos e a panfletos como citados no primeiro capítulo da obra: “(…) e encontrei-me, outra vez, com aunt Caitlín que havia feito uma cópia do material distribuído na palestra de Tralee” (Cantarino, 2004: 19) esquecendo-se de pesquisas já consolidadas como a realizada nos anos 1950 por Sérgio Buarque de Holanda e que se mantém atuais.

Logo no prefácio de Uma ilha chamada Brasil, encontramos alguns problemas que denotam o desconhecimento do autor ao tratar do tema. Na página 13, o autor escreve: “(…)observatórios lunares abandonados que, embora inativos, repousam em isolamento esplêndido ao longo do litoral ocidental celta” (Cantarino, 2004: 13 – grifo nosso). Há aqui uma informação equivocada, que o leitor desconhecendo que os celtas foram povos que habitavam a Europa desde a Ásia Menor (Galácia) até a Irlanda, podem acreditar que só este último país foi um reduto celta, como, atualmente muito esotéricos querem acreditar e, pior ainda, difundir essa falsa idéia. Um outro equívoco ainda relacionado à Irlanda diz que o Brasil deve seu nome à Irlanda (Cantarino, 2004: 14). Existe uma confusão feita pelo autor, pois este nome não está associado ao folclore irlandês, mas sim aos celtas que originalmente habitaram aquele país. Mais grave ainda é observar que estas informações constantes no prefácio da obra foram escritas por um autor escocês!

A narrativa de Cantarino vai se construindo de forma extremamente informal e jocosa utilizando a primeira pessoa do singular, transparecendo que o autor está escrevendo um diário e tratando o leitor como um infante recém alfabetizado, que descobre o prazer de descobrir um novo texto. Há ainda um tom “memorialista” na narrativa extremamente parcial e não condizente com a linguagem jornalística que o autor parece quer empregar em sua obra. Ainda no primeiro capítulo há uma menção aos irlandeses que durante o século XIX migraram para o Brasil fugindo da grande fome. Este episódio foi tema de um artigo intitulado “Cego furor homicida”, escrito pelo editor Christopher Burden e publicado na revista Nossa História. O artigo em questão é muito mais completo e elucidativo do que a descrição de Cantarino e apresenta qual foi a verdadeira razão da presença irlandesa nas terras brasileiras durante o Primeiro Império.

A narrativa que em primeira instância propunha-se a apresentar aos leitores uma abordagem séria das origens celto-irlandesas do nome Brasil vai-se construindo como obra de ficção e não como narrativa jornalística comprometida com a realidade e nem como um relato histórico sério já que o autor utiliza-se de construções condizentes com as narrativas ficcionais:

“Zarpei rumo ao desconhecido. (…) Desviei da correnteza por onde passa a história oficial para percorrer antigos atalhos e rotas marginais, inclusive aquelas por onde fluem as águas mágicas do realismo fantástico. Pelo caminho, fadas, semideuses e figuras mitológicas surgiram na minha frente em aparições virtuais” (Cantarino: 2004, 37).

A jocosidade utilizada pelo autor para tratar de temas que são fontes de estudos como o realismo fantástico e a mitologia de pesquisadores como Fraçoise Le Roux e Christian Guyonvarc’h que dedicaram suas pesquisas para comporem trabalhos detalhados e extremamente sérios sobre a mitologia celta aqui parecem serem estes temas daqueles que insistem em descobrir uma outra verdade que parece se apresentar somente aos esotéricos. Cantarino, a exemplo da máxima da célebre série de TV dos anos 1990 “Arquivo X”, busca a verdade lá fora e não a aprofunda nas obras sérias dedicadas ao tema e nem apresenta novas perspectivas realmente comprometidas com a cientificidade. A descrição apresentada da ilha de Hy-Brasil não aparece como a de um paraíso, mas sim de um lugar recorrente nas narrativas infantis:

“É a morada escolhida por fadas, dragões e deuses aposentados. Ou, ainda, duendes, gnomos e antigas tribos, quando não mais encontram um lugar para ficar no mundo contemporâneo” (Cantarino, 2004: 43).

Afirmando que Hy-Brasil é o local escolhido pelos “deuses aposentados” o autor parece, mais uma vez caracterizar a ilha mítica como um objeto a ser explorado apenas pela ficção não merecendo ser o foco de estudo de historiadores e mitólogos, por exemplo.

Mas, infelizmente os equívocos do autor não transparecem apenas nas análises e interpretações sobre as origens celtas do nome Brasil, pois também ele transmite ao leitor dados errados sobre pesquisadores quando afirma ser paulista a arqueóloga Niède Guidon (Cantarino, 2004: 73). A pesquisadora em questão é francesa e trabalha no Brasil há muitos anos realizando pesquisas no Parque Nacional da Serra da Capivara no Piauí onde luta bravamente contra as intempéries e os parcos recursos governamentais para manter um dos grandes legados do homem pré-histórico brasileiro.

Uma idiossincrasia cometida pelo autor é denominar celta como raça: “(…) definir o que passou a ser chamado Raça Celta” (Cantarino, 2004: 112). Do ponto de vista da Antropologia moderna, o conceito de raças está ultrapassado, só existe uma raça há cerca de 30 mil anos na Terra, o Homo sapiens sapiens. Os celtas podem ser definidos por um conceito etno-lingüístico, como um povo falante de uma mesma língua indo-européia.

O capítulo seis do livro, intitulado “Significado religioso”, se detém a uma longa descrição de narrativas das viagens de São Brandão e sua busca pelo Paraíso. O autor ao apresentar versões da Navigatio não procura analisá-las em profundidade, apresentando ao leitor as impressões sobre a busca do paraíso de Hy-Brasil que foram construídas por poetas desde a Idade Média até o século XIX. Não há análise ou discussão densa acerca das narrativas destas viagens, somente traduções livres e pequenas conclusões inócuas sobre a busca do paraíso terreal, seja pelo santo ou por aqueles que enveredam na leitura.

Há um capítulo dedicado as representações de Hy-Brasil nas diversas artes como sugere o título “Arte e Literatura” onde o autor mais uma vez apresenta uma relação da várias representações que a busca da ilha paradisíaca recebeu desde da Idade Média até a contemporaneidade. Especificamente em um parágrafo Cantarino traça um paralelo entre a ilha de Avalon que, segundo Jean Markale trata-se de “uma ilha maravilhosa da tradição céltica, uma espécie de terra das bem-aventuranças onde há maçãs que dão frutos o ano todo e que explica seu nome derivado de uma palavra galesa e bretã, aval, maçã” (Markale, 1999: 29). O simbolismo da “Ilha das Maçãs” ou o paraíso celta foi bem analisado no artigo “Significados medievais da maçã: fruto proibido, fonte do conhecimento, ilha paradisíaca” de Adriana Zierer. Neste texto, a pesquisadora de estudos célticos faz não só uma análise pormenorizada do simbolismo da maçã nas artes plásticas e na literatura como também as representações de Avalon em diversas narrativas de origem celta e, principalmente no mito arturiano.

O tema das origens celtas do nome Brasil é, ainda, infelizmente pouco explorado por pesquisadores brasileiros, sejam eles historiadores ou críticos literários e, este desinteresse muitas vezes abre precedentes para que diletantes façam pesquisas com qualidade sofrível ou, pior sem qualidade alguma e a divulguem e perpetuem estereótipos e imagens fantasiosas. A obra em questão enquadra-se nesta descrição. Há ainda muito a ser pesquisado tanto sobre as origens celtas do nome da Terra brasilis como das raízes medievais que estão presentes e impregnadas na cultura popular e no cotidiano deste os tempos da colônia e que são constantemente desprezados pelos pesquisadores, que parecem ainda relutar em aceitar que somos fruto de uma mentalidade medieval.

Geraldo Cantarino em sua pesquisa pecou pelo uso excessivo da linguagem coloquial que é inadmissível numa pesquisa mesmo que essa seja de popularização. As descrições tornam a obra ainda mais enfadonha e denotam falta de critério por parte do autor na escolha das suas fontes. Esperamos que os estudantes universitários que ora iniciam suas pesquisas nos estudos celtas (que segundo alguns somente poucos escolhidos merecem realizá-los, o que ao nosso ver é um erro) não se inspirem nesta obra e muito menos a tomem como referência.

Notas

1. A presente resenha recebeu a colaboração do Prof. Dr. Johnni Langer (PD-USP, bolsista da FAPESP). Conceitos e idéias integrantes do texto são de co-autoria do colaborador.

2. Outro autor que recentemente retoma as teorias neo-difusionistas é o explorador norte-americano Jim Woodman, em duas obras: Ancient New World: A Journey Across Medieval América. Xlibris Corporation, 2001 e The ancient inscriptions of Paraguay. Epigraphic Societu, 1989. No primeiro livro (pp. 75-82), o pesquisador analisa o mito da ilha Hy-Brazil e no segundo, supostas inscrições existentes no Paraguai que ele interpreta como sendo de origem Celta. Por sua vez, o francês Jacques de Mahieu interpretava as ditas inscrições como sendo de origem Viking. Na realidade, elas têm origem pré-histórica indígena, sendo, portanto, fantasiosa qualquer outra interpretação. Em uma série de fotografias em um site que atualmente não está mais disponível em conteúdo pela internet (Arthur Franco: A Idade das Luzes e os Megalitos de HyBrasil), o esotérico gaúcho Arthur Franco tentava demonstrar que no Rio Grande do Sul encontravam-se diversos megálitos gigantescos, alguns com até 100 metros de altura, supostamente realizados pelos Celtas em incursões pelo Brasil. Pelo exame nas fotografias, percebemos que se tratavam de formações geológicas naturais, tomadas como artificiais. No Brasil e na América, existem casos de megalitismo, mas de origem indígena com dimensões modestas, sem nenhuma relação com o de origem européia e muito menos Carnac e Stonehenge. Este autor também publicou uma obra de cunho esotérica com conteúdo parcialmente disponível na internet: A idade das luzes. Porto Alegre: Editora Wodan, 1997 (Disponível em: http://www.bibliotecavirtual.pro.br/historia/hebreus4.html Acessado em 20 de setembro de 2006). Outro pesquisador brasileiro que defende a presença Celta no passado brasileiro é Luiz Caldas Tibiriçá, sem nenhuma comprovação científica por parte da comunidade acadêmica. Sobre suas pesquisas ver: http://www.terra.com.br/istoegente/50/testemunha/index.htm . Acessado em 20 de setembro de 2006. A internet ainda disponibiliza vários textos sobre o encontro de inscrições Celtas (ogâmicas) na América, todas sem nenhuma viabilidade científica: Irish in América before Columbus http://www.aislingmagazine.com/aislingmagazine/articles/TAM17/Columbus.html Acessado em 20 de setembro de 2006.

3. Para considerações sobre os Vikings na América do Norte, ver Langer, 2006: 28-30; sobre os navegantes nórdicos no Brasil pré-cabralino, do qual não ocorre nenhuma evidência científica até nossos dias, vide Langer, 2004: 22-25.

4. A respeito da antiga teoria de que navegadores fenícios e hebreus teriam estado no Brasil e do qual não existem comprovações arqueológicas, ver os estudos de Langer, 2002: 87-108; 2003: 75-102. Sobre os conceitos racistas, eurocêntricos e preconceituosos destas antigas teorias, ver Langer, 2001: 222-228.

Referências

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Luciana de Campos – Professora Mestre. Doutoranda em Letras, UNESP1 [email protected]

CANTARINO, Geraldo. Uma ilha chamada Brasil: o paraíso irlandês no passado brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2004. Resenha de: CAMPOS, Luciana de. As raízes celtas do Brasil. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.6, n.1, p. 44-49, 2006.

CANTARINO, Geraldo. Uma ilha chamada Brasil: o paraíso irlandês no passado brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2004. Resenha de: CAMPOS, Luciana de. As raízes celtas do Brasil. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.6, n.1, p. 44-49, 2006. Acessar publicação original [DR]

YOSHIDA Akira (Aut) et ali, Thor: filho de Asgard (T), Panini Comics (E), LANGER Johnni (Res),  Brathair (Btr), Representações (l), Thor, História em Quadrinhos

Johnni Langer – Pós- doutorando em História pela USP, bolsista da FAPESP. E-mail: [email protected]


YOSHIDA, Akira et alli. Thor: filho de Asgard. São Paulo: Panini Comics, 2005. Volume 1-12. Resenha de: LANGER, Johnni. As representações do deus Thor nas HQs. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.6, n.1, p. 50-54, 2006. Acesso apenas do link original [DR]