Uma história do roubo na Idade Média – CANDIDO (RH-USP)

CÂNDIDO DA SILVA, Marcelo. Uma história do roubo na Idade Média. Bens, normas e construção social do mundo Franco. São Paulo: Fino Traço, 2014. 152 pp. Resenha de: COELHO, Maria Filomena. Revista de História (São Paulo) n.173 São Paulo July/Dec. 2015.

O livro de Marcelo Cândido preenche uma lacuna importante da história do Direito – o roubo na Idade Média –, mas, sobretudo, propõe uma forma de olhar para esse crime/delito que abarca outro problema central do medievo, que é o do crescimento e institucionalização da Igreja no seio da sociedade. Portanto, trata-se de uma obra de História que apresenta um problema e o interpreta de maneira complexa, o que permite ao leitor vislumbrar as várias ramificações e implicações que atravessam a vida em sociedade, mas que, muitas vezes, por defeito da necessidade de transformá-la em objeto de estudo, são reduzidas pelos historiadores a fenômenos isolados, cujas interpretações reforçam a tendência às explicações atomizadas e compartimentadas sobre o passado. É o que encontramos, por exemplo, em algumas “histórias da Igreja” elaboradas na primeira metade do século XX. Uma história do roubo na Idade Média mostra que é possível e necessário fazer História de outra maneira.

As fontes escolhidas para embasar o livro são velhas conhecidas dos historiadores que se dedicam ao estudo dos reinos merovíngio e carolíngio, na Alta Idade Média: hagiografias, crônicas, leis, atas conciliares. Assim, o autor parte de documentação já utilizada pela historiografia para oferecer uma interpretação que se afasta radicalmente de algumas propostas consagradas que foram naturalizadas pelo campo da História e se transformaram em espécies de “conclusões óbvias” de referência, às quais deveriam chegar todos os trabalhos que se dedicassem ao tema. No caso do roubo, não é difícil lembrar, por exemplo, de um tipo de abordagem social que insiste em sublinhar que, diante da justiça, os poderosos serão poupados e os pobres punidos. É a conclusão a que chega, por exemplo, Anne-Marie Helvétius em seu estudo sobre os relatos de vingança dos santos na hagiografia franca. Mas, ao se esquadrinhar as fontes e ver o que elas têm a dizer sobre o roubo, descobre-se uma realidade que é muito mais rica e complexa do que os esquemas “explicativos” comportam. Ao mesmo tempo, a decisão de ampliar a tipologia das fontes e colocar em xeque velhas classificações anacrônicas que predeterminavam a adequação entre temas de investigação e documentos a utilizar, o historiador vislumbra um panorama sistêmico e dinâmico, no qual se entrelaçam valores políticos, religiosos, jurídicos, como se se tratasse de uma só coisa. Ainda na ordem das “conclusões óbvias” que precisam ser desfeitas, Marcelo Cândido chama a atenção para a velha ideia de que as leis na Idade Média seriam apenas o resultado escrito de costumes e práticas sociais antigas, com pouquíssimo espaço para a criação do novo. De fato, é já senso comum reduzir os tempos medievais às suas características consuetudinárias, a ponto de se entender que as iniciativas legislativas de caráter inovador transformar-se-iam fatalmente em letra morta. A recente renovação dos estudos sobre o poder e a justiça, de viés societário, parece inspirar-se nessa perspectiva, ao acentuar a tendência que os medievais teriam para a resolução de conflitos por meio da composição entre as partes, longe da autoridade e dos tribunais. Aliás, também cabe aqui certa ideia de que os medievais desconheciam o direito individual sobre bens, preferindo a fórmula da posse coletiva sobre as coisas. Estas propostas, é bom que se diga, colocam-se no polo oposto ao dos institucionalistas (que têm em François-Louis Ganshof um dos mais ilustres representantes entre os medievalistas), mais antigo, no qual não era difícil encontrar interpretações que atestassem o poder mágico das leis, que dependeriam apenas de encontrar governantes eficientes que as aplicassem com rigor, de forma a mudar a sociedade de acordo com seu projeto político e institucional. Enfim, nem uma coisa nem a outra, tal como podemos acompanhar ao longo de Uma história do roubo na Idade Média.

Marcelo Cândido da Silva é professor de História Medieval na Universidade de São Paulo (USP), onde fundou o Laboratório de Estudos Medievais (Leme). Suas atividades de pesquisa há muito se voltam para a Alta Idade Média e, mais concretamente, para os reinos merovíngio e carolíngio, com diversos artigos publicados em revistas científicas nacionais e estrangeiras, capítulos de livros em obras coletivas que reúnem os resultados de pesquisas realizadas em torno dessa mesma temática, bem como de livros, entre os quais se destaca A realeza cristã na Alta Idade Média. Os fundamentos da autoridade pública no período merovíngio (séculos V-VIII), desdobramento de sua tese de doutorado defendida na Université de Lyon em 2002. Embora o livro que agora se resenha seja parte dessa trajetória, percebe-se, na forma como está estruturado, tratar-se de uma obra de maturidade, fruto de um percurso intelectual que permite cruzar diversas perspectivas com erudição.

O livro está composto por cinco capítulos: 1) Normas e construção social; 2) O roubo nas hagiografias; 3) O roubo na legislação real; 4) O roubo nos cânones conciliares; 5) O problema dos bens da Igreja. Esta configuração representa a própria estruturação do problema, uma vez que o autor parte da discussão teórica e historiográfica do papel das normas na Idade Média, na perspectiva da construção daquela sociedade, para, em seguida, detalhar a forma que o roubo assume nas vidas dos santos, nas leis do rei e nas decisões dos concílios, com o objetivo de mostrar que aquilo que a historiografia muitas vezes entende pertencer a dimensões diferentes compõe uma unidade substantiva e inseparável. Isso é especialmente visível na construção e diferenciação da parte mais especial da sociedade cristã: a Igreja. Nas palavras do autor:

O ladrão, o proprietário e os bens são criações documentais tanto quanto personagens da vida social: toda a dificuldade está em tentar definir os limites entre uma e outra manifestação! Talvez a tarefa dos historiadores esteja menos em tentar resolver essa ambiguidade (o que dificilmente poderia ser feito sem o recurso à dicotomia entre “ideal” e “realidade”) do que em entender a sua dinâmica, compreender a sua função. Não se trata, evidentemente, de negar a existência do real, mas de levar em conta a mediação realizada pelos textos em toda a sua amplitude (…). Eles permitem que se alcance o universo das concepções sociais acerca do roubo, do furto e da violência em geral e, mais importante ainda, as formas pelas quais as normas que coíbem essas práticas, que também são o fruto de uma autoridade pública, participam do processo de construção das relações sociais e dos próprios sujeitos (p. 15).

A maneira como a sociedade constrói e manifesta seus valores positivos e negativos tem, no plano simbólico, sua dimensão preferencial. Nesse sentido, a História encontrou na Antropologia reflexões importantes que permitiram compreender que tais construções e manifestações não se reduziam às relações sociais, mas que se estendiam com igual peso às relações que os sujeitos estabeleciam com os bens. Assim o demonstra também Marcelo Cândido, ao sublinhar esse mesmo aspecto nas fontes que sustentam seu trabalho. Ou seja, como o combate ao roubo e a práticas similares é fundamental para a definição relativa da posição que os sujeitos e os bens ocupam na sociedade. É possível constatar grande variedade de termos para designar aquele que rouba, com acentuada conotação moral, e percebe-se que a preocupação não recai sobre “o comportamento do criminoso, mas no estatuto do proprietário dos bens atacados” (p. 23), sem que isso se reduza ao que entendemos hoje por capacidade econômica dos envolvidos. Tal evidência é particularmente nítida nos casos de roubo de bens eclesiásticos, que servem como fio condutor ao livro e que permitem também compreender que as normas dedicadas a combater o delito constroem, juntamente com as hagiografias e as crônicas, a sociedade cristã. Seguindo de perto os debates recentes dos historiadores do direito em torno do papel das normas na Idade Média, presentes, sobretudo, na obra de Ian Thomas, o autor considera que elas não podem ser vistas unicamente como instrumentos de repressão a comportamentos desviantes, mas, sobretudo, como discursos mediadores de situações de conflito e, talvez o mais importante, como formulações jurídicas que “alteram a própria identidade das pessoas e das coisas que essas normas buscam preservar” (p. 31).

Ao se analisar as hagiografias do mundo franco, percebem-se aspectos fundamentais no que diz respeito ao roubo. O primeiro é que não há, de acordo com nossos padrões atuais, uma conexão lógica entre o valor econômico dos bens roubados e a punição, ou o perdão. O segundo é que, como já se disse, não se confirma que a justiça dos santos privilegiasse os mais ricos em detrimento dos mais pobres. A lógica opera com outros parâmetros, entre os quais se destacam o arrependimento explícito do transgressor e a restituição dos bens roubados. Trata-se de ofensa e dano infligidos aos santos e aos bens eclesiásticos que, ao serem considerados como entes e patrimônio da esfera do sagrado/divino, somente podem ser satisfeitos em sua essência jurídica por meio da restauração da situação anterior ao crime. Entretanto, o mais importante é que as situações apresentadas nas hagiografias não se resumem ao plano espiritual nem tampouco ao plano exemplar e moralizador. Elas fazem parte da formulação em curso na sociedade sobre os bens e sua propriedade, em conjunto com as leges bárbaras e os cânones conciliares.

Para entender melhor as bases em que se assentam as leis régias sobre o roubo, Marcelo Cândido sublinha que o fato de que os textos jurídicos pareçam dar destaque às noções de posse e utilização dos bens não elimina o direito de propriedade. Ambas as situações são contempladas pela norma e, frequentemente, para um mesmo caso. Partindo do Pactus Legis Salicae, por ser o corpus legal com maior ressonância na organização jurídica do mundo franco, o autor pretende descobrir “em que medida a qualificação jurídica do roubo nele estabelecida está presente em textos de outra natureza (cânones conciliares, hagiografias, histórias), através dos esquemas de qualificação jurídica, independentemente da imposição de normas sob a forma da coerção” (p. 71). Tal como nas hagiografias, constata-se grande preocupação com a composição/pacificação e a devolução dos bens roubados, em detrimento da qualificação dos bens e da tipificação das ações. Mas, o mais importante é perceber que, dependendo da situação, a norma desloca as fronteiras entre sujeitos e bens, com grande potencial criativo.

A partir do procedimento de assimilação entre sujeitos, sujeitos e coisas, e de sua qualificação, as normas no mundo franco conciliam seu potencial técnico em modificar a vida social com uma natureza, na qual todos os componentes, inclusive as instituições e o Direito, são ordenados segundo os imperativos da Salvação (p. 78). A ficção jurídica consiste em travestir os fatos, declará-los distintos daquilo que realmente são, e tirar dessa adulteração e falsa suposição as consequências normativas que se ligariam à verdade conscientemente simulada. A ficção requer, portanto, a consciência daquilo que é falso (p. 81).

No que tange aos cânones conciliares, o roubo aparece, evidentemente, circunscrito aos bens eclesiásticos, e, embora os concílios possam ser considerados parte do exercício do poder monárquico, para Marcelo Cândido eles não são uma “extensão da legislação real”, uma vez que têm especificidades que os identificam como textos da Igreja, coisa que de resto pode ser comprovada na forma como neles se caracterizam as relações entre os sujeitos e os bens. Assim, o direito de propriedade dos bens eclesiásticos não deve se submeter aos princípios do uso e da posse, bem como a qualquer outro que comprometa o poder amplo e irrestrito da Igreja sobre seus bens e direitos. A elaboração textual vai se tornando cada vez mais intrincada, mas claramente na direção de elevar os bens da Igreja acima dos demais, recorrendo a associações poderosas, como a de “bens de Deus” ou a de “bens dos pobres”. Isso faz daquele que rouba bens eclesiásticos um ladrão de Deus ou um ladrão dos pobres. Neste ponto, destaca-se a intenção transformadora da lei, que atinge a própria divindade:

As raízes dessa “personificação” da divindade estão na necessidade de defender os bens da Igreja contra os ataques dos laicos. A relação da norma com as práticas sociais reside, precisamente, em que o ponto de partida para a elaboração dessas normas é uma situação precisa que a sociedade pretende alterar. Seria um equívoco buscar na norma um retrato das práticas sociais; o que se encontra nela é uma reconstrução dessas mesmas práticas. O Deus dos textos conciliares não é o mesmo dos textos teológicos, mas uma espécie de Deus-proprietário, um qualificativo jurídico. Eis porque o estatuto daquele que se ataca aos bens eclesiásticos nada importa em face do estatuto Daquele que é o seu proprietário legítimo (p. 100).

Como resultado do aumento de casos de desrespeito aos bens da Igreja, observa-se também nos textos hagiográficos um crescimento em torno da qualificação jurídica e da presença de procedimentos judiciários nas narrativas. A vingança divina (ultio divina) manifesta-se com frequência como punição ao roubo, num claro sintoma do que se acaba de dizer. Também os que atuam como juízes nas diversas situações obedecem às lógicas da justiça, como no tocante à revelação da intenção oculta da actio criminalis. Nem sequer os animais escapam ao enquadramento jurídico, como sujeitos da lei: animal-ladrão. Enfim, bens eclesiásticos em disputa transformam-se em causas da Igreja, que precisam ser esvaziadas de sua concretude e reelaboradas por meio daquilo que se entende ser a sua natura e o genus causae para serem finalmente apresentadas como questio universa. É esta a realidade! Por meio das narrativas hagiográficas, Marcelo Cândido mostra que, nos casos de roubo, é possível ver o processo de construção dessa realidade essencial que trans-forma as relações entre pessoas e coisas em relações entre sujeitos e bens.

Enfim, o livro mostra que, para o contexto analisado,

o roubo não era considerado um crime contra os bens. Eles são secundários. É a partir do proprietário que todas as formas de qualificação, inclusive aquelas que conduzem à definição da natureza dos bens, são elaboradas e projetadas sobre os diversos casos de roubo. A qualificação do roubo no mundo franco não considerava o valor de mercado dos bens roubados, mas o estatuto daquele que era vítima do roubo (p. 137).

Nesse sentido, portanto, os artifícios da lei criam a optima pars da sociedade cristã que dava vida ao reino dos francos: a Igreja.

Maria Filomena Coelho –Doutora em História Medieval pela Universidade Complutense de Madri. Estágio pós-doutoral em História do Direito e das Instituições – Universidade Nova de Lisboa. Professora adjunta do Departamento de História do Instituto de Ciências Humanas.

Assim na terra como no céu: … Paganismo, cristianismo, senhores e camponeses na Alta Idade Média ibérica (séculos IV-VIII) – BASTOS (Topoi)

BASTOS, Mário Jorge da Motta. Assim na terra como no céu… Paganismo, cristianismo, senhores e camponeses na Alta Idade Média ibérica (séculos IV-VIII). São Paulo: EdUSP, 2013. 264 p. Resenha de: COELHO, Maria Filomena Pinto da Costa. Assim na terra como no céu. Topoi v.16 n.30 Rio de Janeiro Jan./June 2015.

Eis um livro que tem uma grande contribuição a dar: é um belo exercício de história. Seu autor, Mário Jorge da Motta Bastos, é professor de História Medieval na Universidade Federal Fluminense e desenvolveu sua trajetória como pesquisador sobre a Idade Média ibérica. Mas, para este historiador, mais importante do que o tempo e o espaço sobre os quais se debruça é a perspectiva da qual se parte. Neste sentido, ele deixa as coisas claras desde o início: a história só é possível a partir do presente, como um problema que se coloca ao passado, no intuito de dar sentido à vida dos homens e mulheres em sociedade. Mário Jorge Bastos aparece em cada palavra que escreve – não apenas nas entrelinhas -, assumindo o protagonismo do texto, e fazendo jus à tradição marxista, com a qual se alinha. Portanto, trata-se de um livro de história que expressa com muita clareza de onde se parte, os caminhos que se pretende percorrer e de que forma se fará esse percurso.

Nos tempos que correm, em que nos vamos acostumando com o “mais ou menos”, não deve passar despercebido o trabalho acadêmico realizado com seriedade e competência e, no que tange à disciplina da História, dentro de parâmetros que permitem acompanhar a construção do objeto de estudo, as interpretações que se tecem sobre o passado e, finalmente, as conclusões a que se chega. Creio que é somente sobre essa base que o trabalho do historiador pode, ou não, ser considerado (julgado?) legítimo. Assim, o livro é um exercício de história, cuja extrema transparência permite ao leitor acessar de forma segura os fundamentos teóricos e os problemas que se entrelaçam no texto e que conduziram o autor em sua leitura dos documentos.

No intuito de prestar tributo à franqueza acadêmica que Mário Jorge Bastos derrama em sua obra, devo dizer que não sou marxista. Entretanto, li Assim na terra como no céu… com o prazer do historiador que encontra um bom livro de história. Na forma como o texto é redigido, todos os aspectos são importantes: desde os desafios de ser marxista no mundo de hoje – com todas as idiossincrasias que a palavra encerra -, passando pelas dificuldades que o historiador enfrenta ao sistematizar de forma compreensível aquilo que desejaria que fosse apreendido por um só golpe de vista, até o hermetismo de algumas fontes primárias. O autor põe tudo a descoberto.

Assim na terra como no céu… parte de um problema que a historiografia dedicada à alta Idade Média do Ocidente entende como fundamental: a conversão ao cristianismo. Portanto, trata-se de um tema que já foi esmiuçado por muitos autores, apoiado por um leque de explicações e de abordagens igualmente vasto. A proposta de Mário Jorge Bastos desenvolve-se em seis capítulos: 1) O processo de senhorialização da sociedade ibérica; 2) A Igreja no quadro da sociedade senhorial; 3) A revelação divina; 4) Continuidade ou transformação?; 5) Caráter, relações e campos de intervenção do poder divino; 6) Os santos e a liturgia. É por meio deste plano que o autor pretende explicar de que maneira se entrelaçam paganismo, cristianismo, senhores e camponeses na Península Ibérica, entre os séculos IV e VIII.

Diferentemente de muitas das interpretações já clássicas da historiografia que versam sobre a temática, o livro apoia-se numa premissa basilar: o estudo do passado só faz sentido se ancorado na vida em sociedade. Portanto, para que a “conversão ao cristianismo” alcance o patamar de um problema de história, na sua totalidade, precisa ser entendido em sociedade, revelando, de uma só vez, suas implicações culturais, políticas e econômicas. São as transformações ocorridas nas relações sociais que explicam a conversão e as características de que ela se reveste. De forma mais ampla,

Qualquer tentativa de enfrentamento, prático e/ou teórico, do “núcleo duro” das abstrações religiosas deve orientar-se pela apreensão da lógica social em meio à qual essas se inscrevem, considerando-se a articulação das abstrações com as relações sociais e os modos de produção historicamente específicos. (p. 19)

Fazer história é desvendar a essência da articulação das globalidades sociais historicamente dadas, nível fundamental de seu conhecimento porque capaz de explicar, num mesmo movimento, o funcionamento real da sociedade e a aparência que a mesma assume para seus integrantes (…), porque permite inscrever a religião nos fluxos históricos globais nos quais a mesma se insere, e não como um elemento secundário, reflexivo ou “epifenomênico” em relação aos processos mais essenciais, porque “mais materiais”, mas como um elemento primário essencial à articulação das sociedades, em especial daquelas historicamente anteriores ao advento do capitalismo. (p. 20)

De um só golpe, Mário Jorge Bastos critica “gregos e troianos”. A religião não pode ser entendida pelos historiadores numa dimensão mágica, capaz de por si mudar a sociedade, nem tampouco como uma manifestação de somenos importância, mais adequada aos estudos sobre a cultura. Ambas as posições, tão comuns na historiografia, e que travaram ruidosas batalhas acadêmicas, fazem exatamente a mesma coisa: retiram a religião da história. O desafio de trazer a religião para dentro da história é complexo, uma vez que, para além de exigir o estudo e interpretação da própria sociedade em análise, supõe ainda o diálogo crítico com os grandes temas da síntese historiográfica, como é o caso da transição/passagem da Antiguidade à Idade Média, na qual os historiadores entendem que a conversão ao cristianismo teve um papel fundamental. Neste caso, o livro apresenta já na introdução a maneira como se pretende enfrentar o problema, além de resumir brevemente as principais correntes e suas implicações. A velha dicotomia “cristianismo × paganismo” ainda é considerada pelo autor como um aspecto importante a ser discutido, uma vez que as soluções propostas nos últimos tempos pelos historiadores não ajudam a explicar a religião em sociedade (“no âmago das relações sociais”). Ora se afirma a vitória do cristianismo, ora a resistência do paganismo, numa lógica de forças monolíticas que se enfrentam, e cujos resultados são interpretados às vezes como virtude, às vezes como desvio. Mensuram-se, até mesmo, os níveis de paganismo e de cristianismo!

A saída, para o autor, encontra-se na possibilidade de atribuir à cultura a dimensão de amálgama, como resultado do sentido que a sociedade constrói sobre suas mudanças na história. Assim, reconhece-se uma aproximação às propostas do historiador inglês marxista Edward P. Thompson, para quem a cultura representava um nível de análise fundamental. Daí deriva também a defesa da utilização do conceito de classe para se estudar a sociedade ibérica, uma vez que não se trataria de “uma categoria estática, o que supõe uma derivação mecânica de classes que surgiriam, imediatamente, das próprias relações de produção, desconsiderando-se as relações sociais de mais amplo teor nas quais estas se inserem” (p. 46). Seguindo a Thompson, consistiria em compreender que “as classes ‘acontecem’ ao viverem, os homens e as mulheres, suas relações de produção, e ao experimentarem suas situações determinantes, dentro de um conjunto de relações sociais com uma cultura e expectativas herdadas, e ao modelarem estas expe­riências em formas culturais” (p. 46).

Para atingir o objetivo proposto, Mário Jorge Bastos parte, então, da sociedade ibérica. Em seus primórdios, identifica as transformações cruciais que explicam o sentido que o cristianismo alcançou, encontrando-as na constituição da família. Com base num corpus documental rico e variado, e já muito trilhado pelos historiadores, o autor desvela as mudanças que se operaram no seio das famílias senhoriais e camponesas, cujo resultado mais evidente foi a nucleação, em detrimento do modelo da família extensa, acompanhada de um sistema de inter-relações sociais verticais do parentesco, que coloca a aristocracia no vértice dessa relação.

A Igreja, como instituição basilar do período, somente poderá ser compreendida a partir do papel que aquela aristocracia assume, sobretudo ao nível local, na reelaboração social dessas estruturas de parentesco. Portanto, a Igreja, com seu inegável crescimento, é fruto dessa aristocracia e do campesinato, e não uma espécie de guardiã da virtude institucional, que a duras penas sobrevive à ignorância da sociedade e das superstições pagãs. O título do segundo capítulo, “A igreja no quadro da sociedade senhorial”, não deixa dúvidas quanto à posição do autor com relação ao imponente legado jurídico que essa instituição nos deixou para o período visigodo, e que costuma influenciar os historiadores:

É totalmente outra a perspectiva que assumo, tendo em vista que o objeto deste estudo não é a doutrina jurídica da igreja, mas são as práticas e relações sociais efetivas que estruturaram a instituição e a sociedade global na qual a mesma estava inserida. Nesse sentido, a recorrência da afirmação, o ajuste e a ampliação daquele conjunto de normas expressam as tensões e os conflitos característicos do funcionamento contraditório da realidade social ibérica do período, o que explica a incapacidade dos legisladores de promover a sua plena resolução. (p. 104-105)

No que se refere aos níveis inferiores da sociedade, a Igreja faz-se representar nos párocos, cujas condições jurídicas não diferem muito daquelas que atam os camponeses aos senhores. São, portanto, clérigos dependentes no âmbito do senhorio. Neste sentido, a conclusão do autor aponta para o papel primordial que a Igreja alcançou na qualidade de fruto mais visível da sociedade senhorial.

Como dito, as fontes documentais que embasam o livro são aquelas já conhecidas pela historiografia. No quarto capítulo, Mário Jorge Bastos apoia-se num desses famosos documentos, De corretione rusticorum, de Martinho de Braga, no intuito de desvelar os eixos centrais da argumentação cristã, sem deixar de destacar as formas como a historiografia costuma interpretar esse tipo de discurso. Com relação ao primeiro aspecto, é importante compreender que a ortodoxia era atravessada por uma infinidade de interpretações e de disputas eclesiásticas em torno da verdade. Os concílios são reveladores desse ambiente de multiplicidades teológicas, que devem ser explicados também na perspectiva da luta pelo reconhecimento de uma única autoridade que exercesse o poder, e que preservasse a Igreja da total entropia que os particularismos supunham. Assim, é imprescindível que o historiador não perca de vista a fragilidade da fronteira entre heresia e ortodoxia, que se estabelecia ao sabor dessas disputas. O autor sugere que é justamente sobre essa elasticidade que se vai construindo a unidade da Igreja, muito embora se deva afastar completamente aquela surrada ideia de que a instituição virtuosa cede, de forma inteligente e calculada, frente à ignorância e ao paganismo para não perder demasiado terreno, ou, então, aquela outra interpretação de que a Igreja se desvirtua, devido à “paganização” de seus membros. A mensagem mais importante de Martinho de Braga, em seu sermão, incide sobre a forma (súmula) como “vincula os crentes ao projeto global de ordenação social deliberado pelas elites clericais” (p. 123), revelada pela divindade. Ignorar a vontade de Deus é o caminho para a perdição, que só pode ser evitado por meio da submissão àqueles que poderão conduzir à verdade: o clero ortodoxo. Somente este pode identificar o que é sagrado, bem como as práticas corretas de devoção, as quais necessariamente devem ter a sua intermediação. Caso contrário, trata-se de manifestações demoníacas e pagãs que devem ser suprimidas, sob a pena de condenação eterna. A estratégia do discurso de Martinho, para impossibilitar que essas manifestações possam ser vistas como parte de um “sistema religioso concorrente”, é retirar-lhes qualquer conteúdo sagrado, e apresentá-las como práticas laicas e históricas. Trata-se, portanto, de uma proposta religiosa que quer abarcar a realidade total e colocar a Igreja como a única capaz de realizar plenamente a história humana, de acordo com os desígnios de Deus, e a elite clerical como a autoridade cognitiva cristã que interpreta corretamente o mundo.

Do que se disse até aqui, depreende-se um projeto político de hegemonia. Este conceito será apresentado pelo autor de maneira a ressaltar a necessidade de entendê-lo numa perspectiva dinâmica, de constantes transformações, coisa que de resto fez a elite cristã ibérica. Se para os historiadores parece importante decidir se a época era mais de continuidades ou de rupturas, para esses medievais era na tradição que se ancorava o movimento da história. As mudanças que eles propunham eram “uma versão do passado que deve ligar-se ao presente e ratificá-lo, inclusive pelas transformações que se impõem à sua plena adequação” (p. 138). A hegemonia assenta-se no passado, na tradição, e mesmo que o historiador decida tratar-se de ‘reminiscência/sobrevivência’, ela é vivida com o significado que o presente lhe atribui. Ao mesmo tempo, é preciso não esquecer que a hegemonia eficaz precisa contar com o ‘consentimento dos dominados’ – conceito de Maurice Godelier -, o qual se obtém graças à constante reafirmação dos sentidos do poder, que se assenta na “partilha das representações do mundo” (p. 152). Ao desenvolver os argumentos, Mário Jorge Bastos deixa bastante clara a inutilidade das medições sobre o que há de continuidade ou de ruptura; o importante é que o historiador não deixe de explicar de que forma esses aspectos se amalgamam no cotidiano da sociedade. A chave reside em ampliar os horizontes do que se entende por economia na Idade Média, o que permitirá concluir que “toda naturalização das relações sociais de produção desemboca, necessariamente, em sua sobrenaturalização” (p. 158). Portanto, o fenômeno alcança senhores e camponeses que elaboram e dão sentido às relações que estabelecem entre si e com a natureza, por meio da religião. Tal proposta afasta-se daquelas que reduzem a religião ao nível das ideias, como se fosse possível partir unicamente do pensamento para desvendar seu significado. Apoiado em Marx, o autor sublinha que “a religião remete ao quadro geral da estrutura social e a processos sociais concretos (…) isto é, a uma apreensão global da sociedade, uma vez que constitui e expressa suas hierarquias e desigualdades, imiscuindo-se aos processos de dominação e resistência” (p. 164).

A proposta que o cristianismo oferece à sociedade nos primeiros séculos da Idade Média é englobante, de acordo com a máxima de que o poder divino tudo abarca. Tal capacidade de intervenção de Deus na vida dos homens é visível nos escritos de Ambrósio, Agostinho, Isidoro de Sevilha, Aurélio Prudêncio, Ildefonso de Toledo e outros autores a quem recorre Mário Jorge Bastos para fundamentar sua reflexão. Assim, as relações sociais são também uma preocupação da divindade, que se manifesta por meio da sacralização dos laços de dependência, da fidelidade e dos vínculos pessoais. A retórica do cristianismo revela uma profunda interligação entre o plano terrestre e o celestial, não como simples estratégia de legitimação da ordem social, mas como resultado da profunda imbricação entre as relações sociais de produção e o plano religioso. A própria monarquia visigoda constrói-se, como prática e discurso, sobre a concepção do ungido de Deus, senhor de terras e de homens, coisa que não o diferenciava qualitativamente do tipo de poder que era exercido pela aristocracia.

A difusão dos valores sociais da aristocracia cristã assume especial visibilidade com o culto aos santos e às suas relíquias. Criam-se ambientes onde se materializa o modelo e difundem-se narrativas. Por um lado, os lugares de culto povoam-se de provas que avalizam a existência histórica dessas virtudes (os santos) e as hagiografias encarregam-se de disseminar a sua fama. Os mosteiros e as igrejas são os lugares ideais para esse fim, aos quais a própria aristocracia se associa, por meio das fundações, da participação direta no corpo eclesiástico, e dos enterramentos, que compartilham o mesmo espaço físico dos santos. Ao analisar as famosas hagiografias ibéricas do período, o autor mostra como o discurso que lhes dá sentido assenta-se nas relações de patrocínio, fidelidade e dependência, bem como na afirmação da Igreja como a única ordo capaz de guiar os cristãos à salvação. Da mesma forma, os rituais propiciatórios (oferendas) afirmam e revitalizam a “concepção senhorial das relações sociais fundadas na munificência, na liberalidade característica da aristocracia, mas que atuam em prol do fortalecimento de seu prestígio social, de seu poder e, em última análise, de capacidade de impor-se aos seus dependentes” (p. 229). Oferece-se ao senhor (Deus) não porque ele precise, mas para que ele restitua os dons, abençoados e multiplicados.

Mas, ficaria ainda uma pergunta: como interpretar a pertinácia daquilo que a autoridade classificava como heresia?

Ora, a contumácia manifesta nessas concepções e práticas dissonantes, renitentes e heterodoxas parece-nos revelar um processo muito mais complexo, em seu curso, do que o da suposta unificação religiosa atingida com a “conversão do Ocidente ao cristianismo”, complexidade intimamente articulada às contradições sociais intrínsecas à implantação da sociedade senhorial no período, e manifestação vigorosa dos conflitos que matizaram todo seu processo! (p. 233)

Enfim, Mário Jorge Bastos mostrou que assim como as coisas se organizavam na terra, refletiam-se no céu. Para tanto, foi necessário entender que as relações de produção organizavam-se de maneira complexa, sob formas jurídicas, políticas e culturais específicas (tipos de dominação, de coerção, de propriedade e de organização social), presentes desde o início do processo como parte constitutiva e primordial. Portanto, não se trata de apresentar essa dimensão como secundária, ou mero reflexo, o que se afasta completamente da ideia de que a base econômica se reflete mecanicamente na superestrutura. Um exercício de história que permite repensar as maneiras como a historiografia tem explicado a “conversão do Ocidente ao cristianismo”, bem como acompanhar a renovação da abordagem marxista da História. Mas, diante das dificuldades que a Academia tem para conviver com a pluralidade, talvez o livro seja marxista demais para gregos e marxista de menos para troianos…

Maria Filomena Pinto da Costa Coelho – Doutora em História Medieval pela Universidad Complutense de Madri (Espanha) e professora da Universidade de Brasília (UnB). Brasília, DF, Brasil. E-mail: [email protected].

Colunas de São Pedro: a política papal na Idade Média central – RUST (RBH)

RUST, Leandro Duarte. Colunas de São Pedro: a política papal na Idade Média central. São Paulo: Annablume, 2011. 569p. Resenha de: COELHO, Maria Filomena Pinto da Costa. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.32, no.64, DEZ. 2012.

Leandro Rust é um historiador que, como poucos, enfrentou o desafio de Walter Benjamin: escovar a história a contrapelo. Tarefa difícil, sobretudo, se o objeto de estudo escolhido pertence à categoria dos grandes monumentos historiográficos, como é o caso do papado. Em termos políticos, sua história configura um modelo referencial que transcende as estruturas religiosas, para chegar a significar a fonte de inspiração e de experiência do Estado laico no Ocidente. Nesse sentido, a história do papado na Idade Média, principalmente entre os séculos XI e XIII, tem sido entendida como fundamental para a compreensão das origens do processo de fortalecimento/centralização do Estado. Mais concretamente, a historiografia chegou mesmo a criar um momento gerador, que ficou conhecido como Reforma Gregoriana.

A interpretação histórica que deu sustentação ao longo dos últimos dois séculos à matriz política e institucional do Ocidente vem sofrendo críticas e há uma série de trabalhos historiográficos que já se transformaram em referência obrigatória, oriundos de diferentes quadrantes (historiografia anglo-saxã, italiana, francesa e ibérica – esta em menor medida). Entretanto, esse fenômeno restringe-se basicamente às realidades políticas do poder laico. Há uma profusão de grupos de pesquisa dedicados a revisitar os documentos/monumentos que fundaram a história do poder e das instituições e a promover um debate intenso sobre a tradição explicativa que, sobretudo a partir do século XIX, apresenta o Poder sob uma única forma e fonte, derivativo, de cima para baixo e, comumente, agindo contra a sociedade para controlá-la e dominá-la desde fora. Os resultados dessas pesquisas e debates são evidentes e abrem novas possibilidades para se contar a história do Estado no Ocidente. Mas não deixa de chamar atenção que a Igreja, como objeto de estudo, tenha ficado de fora dessa renovação, a ponto de muitas vezes se achar que ela, como instituição do tipo estatal, foi a única a realmente entender e experimentar a essência daquele modelo político. As explicações para essa ausência/presença são variadas, e o livro de Leandro Rust é de grande ajuda para refletirmos sobre isso, pois desvela a construção da imagem de uma instituição que enfrentou grandes desafios políticos no século XIX e início do XX, e que se colocou como a guardiã e precursora dos melhores valores políticos do Ocidente, cujas fundações remontariam à Reforma Gregoriana.

Mas Leandro Rust não caiu na armadilha pueril de querer apresentar uma nova interpretação que desacreditasse a velha historiografia. Sua proposta denota outro sentido, totalmente afinado com o que deve ser o ofício do historiador, qual seja o de explicar por que, em determinados momentos da história, o passado é explicado de certa maneira. Sua reflexão desdobra-se em várias direções e cronologias. Interessam-lhe, evidentemente, os documentos da época a estudar, mas também a historiografia que deu sentido a esses registros. Assim, o livro Colunas de São Pedro reafirma a máxima de que a história se faz com documentos, claro, mas também com historiografia.

Colunas de São Pedro divide-se em duas partes que, de acordo com o título, dão sustentação à própria instituição da ecclesia: territorialidade do poder e o poder sobre o tempo. Embora essas duas colunas de sustentação sejam aparentemente familiares àqueles mais versados na historiografia da Igreja medieval, o fato é que reside justamente nelas o grande desafio que o autor propõe: perceber esses sustentáculos de forma diferente. Não se trata de diminuir sua força, mas de mostrar que o material de sua composição é outro.

Para tanto, foi necessário partir de uma profunda análise da historiografia – sem dúvida, um dos pontos altos do livro. A forma como os historiadores da Igreja e do político foram solidificando explicações e conceitos, a ponto de naturalizá-los, requer do pesquisador um refinado trabalho de crítica, permanente. Entre os muitos exemplos que vão surgindo ao longo do livro, destacamos o problema do conceito ‘instituição’, o qual Leandro Rust teve de enfrentar logo no início de seu trabalho. Se, por um lado, o conceito poderia adquirir uma feição explicitamente anacrônica, por outro, havia a dificuldade de definir seu conteúdo, uma vez que na experiência da pesquisa cabia quase tudo. O autor deixa entrever ao longo do livro os caminhos escolhidos – o método – para desentranhar o conceito às fontes. Um belo exercício de história que nos permite entender a instituição papal na Idade Média como ‘poder decisório dos papas’, por meio de registros já sobejamente conhecidos: sínodos e concílios. A pedra basilar, entretanto, assenta-se na maneira como o historiador olha para esses documentos/monumentos. Não como instituições ‘já prontas’, universais, mas com a curiosidade daquele que quer entender como é que se chegou à redação desse texto e o que ele quer dizer no momento da sua produção. A política que pulsa nas instituições.

Uma das colunas da tradição historiográfica da Igreja é a lei positivada. Nas palavras de Rust, uma “imagem, amplamente veiculada, dos integrantes do poder pontifício agindo sob cerrada obediência a regras textuais e coleções canônicas … a Sé Romana como um espaço social diferenciado no medievo, burocratizado e dominado por uma lógica de juristas” (p.27). Ao considerar a própria historiografia como parte integral do objeto de estudo, foi possível chegar à compreensão de que a imagem citada estava profundamente vinculada a outro problema historiográfico: o da ideia de Reforma. Uma ideia que se materializa e se ‘repete’ na história e que adquire na contemporaneidade a incontornável força de ‘um projeto político’. A esse respeito, os documentos escolhidos pelo autor – também usados por essa mesma historiografia – possibilitam outra interpretação. Os textos legais, quando interpretados em seu contexto, revelam-se não como fruto da vontade autocrática de um papa-monarca, mas como resultado de intensas negociações e pactos complexos que integram a voz do pontífice à dos mais diversos grupos de poder da cristandade, por toda a Europa. Uma territorialidade do poder que está longe de se centrar exclusivamente em Roma, que adquire conotações regionalizadas, e que só pode ser configurada graças às lógicas das redes pessoais, das quais o papado tenta participar ativamente. No mesmo sentido, a coluna do tempo não está feita de eternidade, mas de finitude; o papado recorre ao tempo dos homens para dar voz às suas decisões, mas, no mesmo espírito da maleabilidade e da pessoalidade jurídica, também o tempo é móvel e mutável. Assim, será possível, quando necessário e conveniente, inventar permanências e continuidades, legitimar causas e reestruturar a voz da autoridade.

Para Leandro Rust, as práticas reformadoras não são a chave explicativa para a compreensão da política do papado de 1040 a 1210. Ao propor que se entenda a ascensão do papado como um fenômeno político – e não cultural, social, ou econômico – há um deslocamento importante: não era a ‘reforma’ que conferia sentido histórico a essa ascensão. Então, deixar de falar em Reforma Gregoriana – como propõem alguns autores – para adotar expressões como Reforma Papal ou Reforma Eclesiástica não é uma saída para o problema historiográfico. O protagonismo da ‘reforma’ remete diretamente para o discurso reformista do catolicismo de fins do século XIX e do Concílio Vaticano II. A análise cuidadosa que Rust faz da documentação permite compreender que embora a questão moral e a espiritualidade fossem importantes, não eram estes aspectos que delineavam o curso da política.

A conclusão de Leandro Rust é historiograficamente contundente:

O século XI assinala a ascensão política da Sé de Roma, não como a precursora de uma centralização do tipo moderno e burocrático, mas como uma Igreja forçada a superar fraquezas excepcionais. Entre as décadas de 1040 e 1130, o exercício do poder pontifício seguiu à risca a mesma lógica delineada pelas experiências de tempo que pouco nos lembra a “construção de um Estado moderno”. Ele contou com uma disposição regular, perpetuada por gerações de modo constante, interpessoal, estabelecida como modalidade de integração decisória de grande abrangência social e prolongada permanência. Esta disposição estável e coletiva do modo de tomar decisões constitui o que entendemos por institucionalidade papal … As instituições pontifícias com as quais nos deparamos eram ações sociais dotadas de um sentido particular, elas tinham, de fato, finalidades específicas, que não eram alheias à sociedade senhorial, mas tampouco eram “criações” do papado … As instituições pontifícias, portanto, não podem ser definidas no ponto de partida de uma pesquisa histórica. Elas não podem ser previamente classificadas e categorizadas para que o investigador possa, só então, sondar o que a documentação tem a dizer sobre elas.

O capítulo 6, sobre o Cisma de 1130, merece um comentário destacado. Sem dúvida, é nele que o leitor consegue ver com mais clareza o descentramento da política papal, a sua natureza polinuclear, ou seja, como ela era sustentada por várias colunas senhoriais, ao ponto de o centro político do Cisma ter sido a Gália, e não Roma. Muito antes do século XIV, e de Avignon, a política papal já primava pelo deslocamento e pela mobilidade – não pela centralização e fixação.

Por último, não se pode deixar de destacar o exaustivo trabalho com as fontes. Leandro Rust encara o desafio de reler com cuidado uma documentação sobejamente conhecida para desvendar outros significados. O resultado desse esforço denota, apesar de sua juventude, grande conhecimento e erudição, o que lhe permite reconstruir intrincadas redes políticas e desvendar as tramas do discurso jurídico-institucional.

Maria Filomena Pinto da Costa Coelho – Programa de Pós-graduação em História (PPGHIS) e Departamento de História, Universidade de Brasília (UnB). Instituto de Ciências Humanas, Campus Universitário Darcy Ribeiro – ICC Norte. 70910-900 Brasília – DF – Brasil. E-mail: [email protected].