Método Histórico no Ensino Superior e na Escolarização Básica

RC Destaque post 40 Método histórico
Interações sobre o método histórico entre manuais de Introdução à História (1850-1932)

Colegas, bom-dia!

A pedido da professora Margarida Oliveira, vamos explorar o “método histórico” em sua constituição e aplicação no Ensino Superior e na escolarização básica. Para melhor compreender o que faremos nas próximas oito horas, sugiro a leitura deste excerto do livro Uma introdução ao método histórico (Freitas, 2021, p.19-21), que define de modo minimalista Teoria da História e Método Histórico”.

Sejam bem-vindos”!


Um esclarecimento sobre os usos das palavras “teoria” e
“método”.

Neste livro, teoria é um tipo ideal minimalista, ou seja, conjunto de proposições generalizáveis relativas à invenção de um objeto e aos meios que viabilizam tal invenção. Teorias (neste livro) não configuram, necessariamente, um domínio do historiador ou uma disciplina, cujos objetos primeiros seriam coisas como paradigma ou matriz. Teorias são proposições articuladas que anunciam um propósito e/ou um meio de realização desse propósito.1

Quando, por exemplo, um escritor revela o desejo e a meta de estabelecer a História como ciência, de escrever a história da Alemanha ou da época moderna ele está a verbalizar proposições teóricas, isto é, a inventar (tratar) objetos designados “ciência Histórica”, “História da Alemanha” ou “História Moderna” e que podem ou não resultar na delimitação e/ou invenção de um campo ou domínio.

Quando esse mesmo escritor afirma que os meios para a construção da História da Alemanha e da História Moderna são (ou foram) os métodos “x”, “y” ou “z”, ele também está a verbalizar proposições teóricas. Em geral, os dois tipos de proposição – o que inventa um objeto e o que prescreve o meio de trazê-lo à vida – aparecem juntos e articulados (mesmo que não sejam originais o primeiro, o segundo ou ambos).

Pensar em fazer uma síntese sobre a História do Brasil ou mesmo a história de Dandara dos Palmares, por exemplo, exige uma reflexão verbalizada sobre os objetos (Brasil e Dandara) e os caminhos para inventá-los (methodos para a escrita de síntese da história do Brasil e methodos para a biografia de Dandara).2 Os dois tipos são (possuem o significado de) teoria. Mas os seus referentes (as palavras que suportam tal significado) nem sempre aparecem como “teoria”. O termo “método” é também expressão comum para significar a ação de inventar objetos e significar os meios de invenção de objetos (e vice-versa).

A opção por “teoria” ou “método” depende, então, das singularidades do vernáculo, dos jogos de poder entre disciplinas, de corporações profissionais, partidárias e religiosas e, até mesmo, da humildade de quem as emprega. Depende também das distâncias temporais entre os discursos instituidores e os discursos avaliadores da instituição de teorias e métodos.

A Introdução aos estudos históricos (1898), por exemplo, é tipificada por seus autores, Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos (1992, p.5), como um “ensaio sobre o método das ciências históricas” e julgada pelo resenhista Gabriel Monod (1909b, p.10) como o melhor livro de “teoria da História” publicado entre a última década do século XIX e a primeira década do século XX. A Apologia à História ou O ofício do historiador (1941) é tipificada por seu autor, Marc Bloch (2001, p.50), como um “memento de um artesão”, abaixo, portanto, de um “estudo dos métodos”, que ele declaradamente assume não possuir formação para fazer. Seu comentador José Carlos Reis, contudo, não hesita em afirmar que a Apologia é obra de teoria: “Bloch desenvolveu […] duas proposições inovadoras que caracterizarão a Escola dos Annales. Trata-se da nova concepção do objeto da história e do método retrospectivo”. (Reis, 2013, p.258).

Notas

[1] Para avaliar os limites e as vantagens da nossa abordagem, sugerimos compará-la com alguns dos vários significados de “Teoria da História” disponíveis na literatura: uma hipótese ou uma proposta de intervenção sobre os fatores e a mudança na experiência de determinado país ou do mundo (Zhao, 2015, p.29; Heller, 1993, p.337-9), um tipo-ideal que viabiliza a análise da obra histórica (White, 1975, p.18), uma disciplina universitária fundamental à formação do profissional de História (Rodrigues, 1969, p.440, p.444), um conjunto de “suposições” acerca do que se conhece sobre o tema, as questões que estruturam a investigação, natureza e localização das fontes, definição de atores e dos critérios de validação do conhecimento resultante da pesquisa (Fulbrook, 2002, p.4), um campo de estudos sobre a realidade e o pensamento histórico e o uso que as pessoas fazem do seu passado (Paul, 2015, p.14), “um campo” para a reflexão dialógica sobre problemas e conceitos da Epistemologia, Metodologia, Gnosiologia, Ontologia, Ética, Política, Estética e Linguística (Reis, 2019, posições 484 e 3839), “maneiras de ver o mundo”, “artefatos teóricos (conceitos, princípios e perspectivas)”, paradigmas (historicismo, positivismo ou materialismo histórico) e questões (Barros, 2017, posições 183, 377-381); e uma ciência sobre a Ciência da História (Rüsen, 2015, p.31-2).

[2] O étimo latino “methodos” é um dos fundamentos para a significação do termo “método”. Com o sentido de caminho (“chemin”, “route”), do grego odos (Clédat, 1914, 213), está presente em vários idiomas: “Methode” (Al), “méthode” (Fr), “método” (Esp), “metodo” (It). Com o methodos e o seu significado mais abrangente, “caminho” (way, Weg, route, via e camino), designamos o nosso tipo ideal.

Baixe os slides da aula sobre Introdução ao método histórico

Acesse a avaliação sobre crenças epistemológicas aqui.


Colegas do ProfHistória/UFRN que participaram das aulas das quais este texto foi um dos materiais discutidos 14/04/2023.

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Referências

FREITAS, Itamar. Uma introdução ao método histórico (1870-1930). Aracaju: Criação, 2021. Para baixar este livro clique aqui.

Práticas de pesquisa em História | Tania Regina de Luca

Práticas de Pesquisa em História (2020), escrito pela Profª. Drª Tania Regina de Luca (UNESP), finaliza a coleção História na Universidade (2020), da Editora Contexto, que teve, em seu conselho, De Luca, Prof. Dr. Paulo Miceli (UNICAMP) e Profª. Drª. Raquel Glezer (USP). Mestre e Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, professora de cursos de graduação e do programa de pós-graduação em História da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, campus de Assis, e, pela Contexto, “[…] é organizadora dos livros História da imprensa no Brasil e O historiador e suas fontes e coautora dos livros Nova História das mulheres no Brasil, Fontes históricas e História da cidadania” (DE LUCA, 2020, Orelha do livro), nesta obra, à convite da editora, De Luca busca responder: por onde começar uma nova pesquisa em História?

Voltada ao público de graduação, sem pretensão de ser, ou tornar-se, um receituário de História, a obra convida o leitor a

[…] percorrer um amplo panorama que tem por finalidade apresentar, de forma didática, procedimentos e métodos que distinguem a produção do conhecimento historiográfico e, desse modo, incentivá-lo a participar ativamente desse instigante desafio que é escrever História, elaborando e executando seu próprio projeto de pesquisa (DE LUCA, 2020, p. 11). Leia Mais

Colunas de São Pedro: a política papal na Idade Média central – RUST (RBH)

RUST, Leandro Duarte. Colunas de São Pedro: a política papal na Idade Média central. São Paulo: Annablume, 2011. 569p. Resenha de: COELHO, Maria Filomena Pinto da Costa. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.32, no.64, DEZ. 2012.

Leandro Rust é um historiador que, como poucos, enfrentou o desafio de Walter Benjamin: escovar a história a contrapelo. Tarefa difícil, sobretudo, se o objeto de estudo escolhido pertence à categoria dos grandes monumentos historiográficos, como é o caso do papado. Em termos políticos, sua história configura um modelo referencial que transcende as estruturas religiosas, para chegar a significar a fonte de inspiração e de experiência do Estado laico no Ocidente. Nesse sentido, a história do papado na Idade Média, principalmente entre os séculos XI e XIII, tem sido entendida como fundamental para a compreensão das origens do processo de fortalecimento/centralização do Estado. Mais concretamente, a historiografia chegou mesmo a criar um momento gerador, que ficou conhecido como Reforma Gregoriana.

A interpretação histórica que deu sustentação ao longo dos últimos dois séculos à matriz política e institucional do Ocidente vem sofrendo críticas e há uma série de trabalhos historiográficos que já se transformaram em referência obrigatória, oriundos de diferentes quadrantes (historiografia anglo-saxã, italiana, francesa e ibérica – esta em menor medida). Entretanto, esse fenômeno restringe-se basicamente às realidades políticas do poder laico. Há uma profusão de grupos de pesquisa dedicados a revisitar os documentos/monumentos que fundaram a história do poder e das instituições e a promover um debate intenso sobre a tradição explicativa que, sobretudo a partir do século XIX, apresenta o Poder sob uma única forma e fonte, derivativo, de cima para baixo e, comumente, agindo contra a sociedade para controlá-la e dominá-la desde fora. Os resultados dessas pesquisas e debates são evidentes e abrem novas possibilidades para se contar a história do Estado no Ocidente. Mas não deixa de chamar atenção que a Igreja, como objeto de estudo, tenha ficado de fora dessa renovação, a ponto de muitas vezes se achar que ela, como instituição do tipo estatal, foi a única a realmente entender e experimentar a essência daquele modelo político. As explicações para essa ausência/presença são variadas, e o livro de Leandro Rust é de grande ajuda para refletirmos sobre isso, pois desvela a construção da imagem de uma instituição que enfrentou grandes desafios políticos no século XIX e início do XX, e que se colocou como a guardiã e precursora dos melhores valores políticos do Ocidente, cujas fundações remontariam à Reforma Gregoriana.

Mas Leandro Rust não caiu na armadilha pueril de querer apresentar uma nova interpretação que desacreditasse a velha historiografia. Sua proposta denota outro sentido, totalmente afinado com o que deve ser o ofício do historiador, qual seja o de explicar por que, em determinados momentos da história, o passado é explicado de certa maneira. Sua reflexão desdobra-se em várias direções e cronologias. Interessam-lhe, evidentemente, os documentos da época a estudar, mas também a historiografia que deu sentido a esses registros. Assim, o livro Colunas de São Pedro reafirma a máxima de que a história se faz com documentos, claro, mas também com historiografia.

Colunas de São Pedro divide-se em duas partes que, de acordo com o título, dão sustentação à própria instituição da ecclesia: territorialidade do poder e o poder sobre o tempo. Embora essas duas colunas de sustentação sejam aparentemente familiares àqueles mais versados na historiografia da Igreja medieval, o fato é que reside justamente nelas o grande desafio que o autor propõe: perceber esses sustentáculos de forma diferente. Não se trata de diminuir sua força, mas de mostrar que o material de sua composição é outro.

Para tanto, foi necessário partir de uma profunda análise da historiografia – sem dúvida, um dos pontos altos do livro. A forma como os historiadores da Igreja e do político foram solidificando explicações e conceitos, a ponto de naturalizá-los, requer do pesquisador um refinado trabalho de crítica, permanente. Entre os muitos exemplos que vão surgindo ao longo do livro, destacamos o problema do conceito ‘instituição’, o qual Leandro Rust teve de enfrentar logo no início de seu trabalho. Se, por um lado, o conceito poderia adquirir uma feição explicitamente anacrônica, por outro, havia a dificuldade de definir seu conteúdo, uma vez que na experiência da pesquisa cabia quase tudo. O autor deixa entrever ao longo do livro os caminhos escolhidos – o método – para desentranhar o conceito às fontes. Um belo exercício de história que nos permite entender a instituição papal na Idade Média como ‘poder decisório dos papas’, por meio de registros já sobejamente conhecidos: sínodos e concílios. A pedra basilar, entretanto, assenta-se na maneira como o historiador olha para esses documentos/monumentos. Não como instituições ‘já prontas’, universais, mas com a curiosidade daquele que quer entender como é que se chegou à redação desse texto e o que ele quer dizer no momento da sua produção. A política que pulsa nas instituições.

Uma das colunas da tradição historiográfica da Igreja é a lei positivada. Nas palavras de Rust, uma “imagem, amplamente veiculada, dos integrantes do poder pontifício agindo sob cerrada obediência a regras textuais e coleções canônicas … a Sé Romana como um espaço social diferenciado no medievo, burocratizado e dominado por uma lógica de juristas” (p.27). Ao considerar a própria historiografia como parte integral do objeto de estudo, foi possível chegar à compreensão de que a imagem citada estava profundamente vinculada a outro problema historiográfico: o da ideia de Reforma. Uma ideia que se materializa e se ‘repete’ na história e que adquire na contemporaneidade a incontornável força de ‘um projeto político’. A esse respeito, os documentos escolhidos pelo autor – também usados por essa mesma historiografia – possibilitam outra interpretação. Os textos legais, quando interpretados em seu contexto, revelam-se não como fruto da vontade autocrática de um papa-monarca, mas como resultado de intensas negociações e pactos complexos que integram a voz do pontífice à dos mais diversos grupos de poder da cristandade, por toda a Europa. Uma territorialidade do poder que está longe de se centrar exclusivamente em Roma, que adquire conotações regionalizadas, e que só pode ser configurada graças às lógicas das redes pessoais, das quais o papado tenta participar ativamente. No mesmo sentido, a coluna do tempo não está feita de eternidade, mas de finitude; o papado recorre ao tempo dos homens para dar voz às suas decisões, mas, no mesmo espírito da maleabilidade e da pessoalidade jurídica, também o tempo é móvel e mutável. Assim, será possível, quando necessário e conveniente, inventar permanências e continuidades, legitimar causas e reestruturar a voz da autoridade.

Para Leandro Rust, as práticas reformadoras não são a chave explicativa para a compreensão da política do papado de 1040 a 1210. Ao propor que se entenda a ascensão do papado como um fenômeno político – e não cultural, social, ou econômico – há um deslocamento importante: não era a ‘reforma’ que conferia sentido histórico a essa ascensão. Então, deixar de falar em Reforma Gregoriana – como propõem alguns autores – para adotar expressões como Reforma Papal ou Reforma Eclesiástica não é uma saída para o problema historiográfico. O protagonismo da ‘reforma’ remete diretamente para o discurso reformista do catolicismo de fins do século XIX e do Concílio Vaticano II. A análise cuidadosa que Rust faz da documentação permite compreender que embora a questão moral e a espiritualidade fossem importantes, não eram estes aspectos que delineavam o curso da política.

A conclusão de Leandro Rust é historiograficamente contundente:

O século XI assinala a ascensão política da Sé de Roma, não como a precursora de uma centralização do tipo moderno e burocrático, mas como uma Igreja forçada a superar fraquezas excepcionais. Entre as décadas de 1040 e 1130, o exercício do poder pontifício seguiu à risca a mesma lógica delineada pelas experiências de tempo que pouco nos lembra a “construção de um Estado moderno”. Ele contou com uma disposição regular, perpetuada por gerações de modo constante, interpessoal, estabelecida como modalidade de integração decisória de grande abrangência social e prolongada permanência. Esta disposição estável e coletiva do modo de tomar decisões constitui o que entendemos por institucionalidade papal … As instituições pontifícias com as quais nos deparamos eram ações sociais dotadas de um sentido particular, elas tinham, de fato, finalidades específicas, que não eram alheias à sociedade senhorial, mas tampouco eram “criações” do papado … As instituições pontifícias, portanto, não podem ser definidas no ponto de partida de uma pesquisa histórica. Elas não podem ser previamente classificadas e categorizadas para que o investigador possa, só então, sondar o que a documentação tem a dizer sobre elas.

O capítulo 6, sobre o Cisma de 1130, merece um comentário destacado. Sem dúvida, é nele que o leitor consegue ver com mais clareza o descentramento da política papal, a sua natureza polinuclear, ou seja, como ela era sustentada por várias colunas senhoriais, ao ponto de o centro político do Cisma ter sido a Gália, e não Roma. Muito antes do século XIV, e de Avignon, a política papal já primava pelo deslocamento e pela mobilidade – não pela centralização e fixação.

Por último, não se pode deixar de destacar o exaustivo trabalho com as fontes. Leandro Rust encara o desafio de reler com cuidado uma documentação sobejamente conhecida para desvendar outros significados. O resultado desse esforço denota, apesar de sua juventude, grande conhecimento e erudição, o que lhe permite reconstruir intrincadas redes políticas e desvendar as tramas do discurso jurídico-institucional.

Maria Filomena Pinto da Costa Coelho – Programa de Pós-graduação em História (PPGHIS) e Departamento de História, Universidade de Brasília (UnB). Instituto de Ciências Humanas, Campus Universitário Darcy Ribeiro – ICC Norte. 70910-900 Brasília – DF – Brasil. E-mail: [email protected].

O pequeno x: da biografia à história – LORIGA (RBH)

LORIGA, Sabina. O pequeno x: da biografia à história. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. 231p. Resenha de: ARIENTI, Douglas Pavoni. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.33, no.66, JUL./DEZ. 2013.

Em obra publicada na França sob o título de Le Petit x: de la biographie à l’histoire, que foi recentemente traduzida e publicada no Brasil pela Editora Autêntica, integrando a coleção “História e historiografia”, sob o título de O Pequeno x: da biografia à história, a historiadora e professora da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), de Paris, Sabina Loriga revisita a historiografia do século XIX e nos brinda com um trabalho que discute o espaço destinado ao indivíduo no Século da História. Retomando a discussão sobre biografia, já trabalhada no capítulo “A biografia como problema”, publicado no livro organizado por Jacques Revel e traduzido no Brasil como Jogos de escala, a autora se aprofunda e nos oferece uma análise acerca da atualidade de obras soterradas em nome de uma história mais científica.

Com uma produção acadêmica conhecida no Brasil, seu primeiro trabalho traduzido foi “A experiência militar”, publicado no livro História dos Jovens, organizado por Giovanni Levi e Jean-Claude Schmitt. Destaquemos aqui também o capítulo “A tarefa do historiador”, do livro Memórias e narrativas (auto)biográficas; o artigo “A imagem do historiador, entre erudição e impostura”, da coletânea Imagens na história: objetos de história cultural; o artigo intitulado Ser historiador hoje, publicado pela revista História: debates e tendências, e duas entrevistas: para a revista Métis: história e cultura, realizada por Benito ­Schmidt e intitulada “Entrevista com Sabina Loriga: a História Biográfica”, e outra mais recente, realizada por Adriana Barreto de Souza e Fábio Henrique Lopes, professores da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e disponível na Revista História da Historiografia, intitulada “Entrevista com Sabina Loriga: a biografia como problema”.

Profissional atenta ao estado atual do debate historiográfico, a autora tem se dedicado a compreender os desafios e os limites do trabalho historiográfico e as tarefas da história nos aspectos epistemológicos e teóricos, a relação entre história e biografia, memória e história e construção do tempo histórico. Assim, O Pequeno x se junta a outros trabalhos que se dedicam a discutir a tão em voga relação entre história e biografia, como, por exemplo, o trabalho de François Dosse, publicado no Brasil em 2009 sob o título de O desafio biográfico. Embora tanto Dosse como Loriga centrem suas discussões na relação biografia-história ou indivíduo-coletivo, as duas obras se distinguem principalmente pelo foco: a autora opta pelo século XIX, ao passo que o historiador francês passa pelo gênero biográfico de maneira mais geral, dos gregos à publicação de sua obra. Com o objetivo de discutir do ponto de vista teórico o que é escrever uma vida, o autor identifica três tipologias que, apesar de não serem estanques, permitem localizarmos temporalmente os diferentes gêneros de narrativas biográficas: os modelos heroico, modal e hermenêutico. Segundo Dosse, a biografia modal “consiste em descentralizar o interesse pela singularidade do percurso recuperado a fim de visualizá-lo como representativo de uma perspectiva mais ampla … O indivíduo, então, só tem valor na medida em que ilustra o coletivo” (Dosse, 2009, p.195).

Esse momento que o autor intitula de “eclipse da biografia”, localizado no século XIX, período em que a disciplina se aproxima das outras ciências sociais ávidas por cientificidade, principalmente da sociologia durkheimiana, contribui para o desdém dos historiadores (mas não só destes) em relação à biografia. É exatamente esse o período em que se centra a obra de Sabina Loriga. Ao recuperar autores como Carlyle, Humboldt, Meinecke, Burckhardt, Dilthey e Tolstoi, ela nada contra a corrente e busca perceber a importância das individualidades em um período marcado por explicações totalizantes, cujas preocupações obscureciam os sujeitos históricos ou até os excluíam das narrativas.

Tomando o indivíduo como mote do seu trabalho, embora não se restrinja a discutir somente aspectos referentes à biografia, Loriga escreve uma história da historiografia em um período posterior aos abalos provocados pelo linguistic turn na História, e chega a ser bastante ácida nas suas críticas aos relativismos da pós-modernidade. Assumindo explicitamente que não se trata de um “retorno à ordem”, acredita ter encontrado no século XIX trabalhos heurísticos ainda úteis aos historiadores contemporâneos, obras essas que a autora analisa de uma perspectiva hermenêutica.

Pouco contextualizados, por vezes lançados num vazio, segundo a visão dos menos íntimos da historiografia europeia do século XIX, tais autores aparecem como figuras valorizadas sob uma análise interpretativa crítica. A autora dá voz à imaginação ao aproximá-los às preocupações atuais dos historiadores – são obras do seu tempo lidas por um olhar do século XXI. Além do trabalho de transposição temporal e de inserção desses autores em um debate contemporâneo, Loriga aproxima-os dos problemas enfrentados atualmente na escrita da história, sem deixar de nos apresentar os limites, contradições e paradoxos presentes em suas obras. Todavia, inegavelmente, advoga em favor deles com base em fontes convencionais para quem trabalha com historiografia, principalmente livros e conferência, por vezes cruzados a missivas. Dessa forma, a autora lê e interpreta, mergulha nas obras e proporciona um debate entre autores em que ela atua como árbitro, selecionando e orientando as falas, criando coesões e dando sentido aos textos, pinçando os pontos positivos aos olhares do historiador contemporâneo e elucidando projetos distintos daqueles vencedores, ou cristalizados como vencedores, que expulsaram os indivíduos das narrativas históricas no século XIX.

Apresentando-nos esses velhos historiadores como sábios anciãos, Loriga demonstra que muitas críticas e preocupações consideradas pós-estruturalistas já estariam presentes nesses autores do século XIX: como as críticas de Droysen à ideia de origem, comungada por Tolstoi, e a assumida perspectiva hermenêutica do autor, assim como o posicionamento acerca da impossibilidade de reconstrução do passado, apregoada pelo autor a partir da metáfora de que a justaposição de todos os cacos de um prédio não o recriaria. Também nos expõe as denúncias de Hintze às naturalizações e de Meyer às generalizações, além da valorização da subjetividade do historiador como fonte de conhecimento por parte de Meinecke. O assumido posicionamento de Dilthey acerca da impossibilidade da racionalidade humana pura e da sua perspectiva analítica que considerava a dinamicidade da vida, e que por isso não deveria ser fragmentada na escrita da história, também entra na pauta da historiadora. Já para Carlyle, como a vida não era coesa, não era função dos historiadores atribuírem sentido a ela.

Humboldt, por sua vez, valorizava a imaginação do historiador, mas se afastava da ficção, o que, para a autora, pressupõe o dever do historiador. Loriga também analisa Dilthey com base na assumida postura do autor diante da relação entre indivíduo, meio e temporalidade, suas relações estabelecidas com as expectativas do futuro, suas memórias e seu presente. O historiador da arte Burckhardt também nos é apresentado com base em sua relação com o tempo, ou melhor, em seu problema com o próprio tempo. Além da valorização dos mitos por parte do autor suíço, suas críticas à ideia de progresso – uma vez que para ele o único ponto positivo da modernidade seria a consciência histórica –, a autora mobiliza fragmentos da sua obra que ilustram a sua descrença na existência de um método universal para a história e destaca a importância da imaginação do historiador, ideia comungada por Humboldt quando este se refere aos preenchimentos lacunares.

Em O Pequeno x, a perspectiva multicausal de Tolstoi também é valorizada. Ademais, as diferenças existentes entre a realidade e a narração histórica, o passado compreendido como inacessível e as causas dos fenômenos inalcançáveis à razão, as relações do autor com a memória e o testemunho, a possibilidade de alcançar a liberdade apenas como experiência interior e suas estratégias narrativas, possibilitam uma leitura heurística das obras de Tolstoi. A lucidez desses autores, ou a lucidez dos desenhos criados por Loriga desses intelectuais é surpreendente.

Partindo desses autores, Sabina Loriga retorna ao século XIX e, longe de propor uma análise acusatória contra historiadores que excluíram os sujeitos da história, pinça os que atuaram na valorização das individualidades e escreveram histórias que se aproximavam do que a autora aprecia atualmente no fazer historiográfico, sobretudo com base na atual importância adquirida pelas biografias. Por mais que existam silenciamentos, recortes e por vezes uma demasiada valorização dessas obras, o livro de Loriga possibilita questionarmos a pretensa hegemonia das explicações que excluíam as atuações individualizadas dos sujeitos no século XIX e problematizarmos a construção e valorização de uma memória científica da História. Além disso, sua leitura proporciona o debate sobre as atuais análises críticas ao modelo científico de história que tem proliferado nos trabalhos que discutem historiografia e que excluem de suas narrativas obras que fogem aos modelos que buscavam bases científicas, estáveis e objetivas para a história, seus alvos principais.

Douglas Pavoni Arienti– Mestrando, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bolsista CNPq. [email protected].