Gênero, diversidades, interseccionalidades: perspectivas de análise na pesquisa histórica / Ofícios de Clio / 2019

A ascensão de movimentos e pautas conservadoras ao redor do mundo – e, de modo mais específico, intenso e preocupante, no Brasil –, impõe-nos uma série de novos desafios, tais como o enfrentamento de discursos e práticas que buscam deslegitimar os movimentos feministas. A produção e disseminação deliberadas de equívocos, por parte desses movimentos, em torno de conceitos elaborados e já estabelecidos no âmbito dos espaços acadêmicos, sob o argumento de combate a uma suposta “ideologia de gênero”, vêm causando enorme desserviço ao projeto de construção de uma sociedade mais justa e baseada na equidade de gênero. O uso dessa expressão, aliás, demostra desconhecimento sobre temas que integram uma cultura pautada no sexismo, machismo e lgbtfobia, os quais são, historicamente, objetos de sérios e profundos debates teóricos de feministas de diversos países no campo dos estudos de gênero.

As lutas feministas e a produção de saberes em torno das questões de gênero, fundamentais para a redução das diferenças que separam homens e mulheres, para a promoção de uma sociedade mais inclusiva e menos intolerante, veem-se ameaçadas por práticas sistemáticas de dissolução de políticas públicas de gênero, pela redução de verbas para as universidades, pelos cortes de bolsas de pesquisa – especialmente para a área das ciências humanas –, pelo questionamento acerca da seriedade e validade das pesquisas, dentre outras formas de deslegitimação do conhecimento. Por isso, é salutar recordar que os avanços conquistados pelas minorias, sejam étnico / raciais, de classe ou de gênero, foram resultado de lutas travadas no passado e que, de forma alguma, estão assegurados. A história está repleta de exemplos de como tais avanços são intercalados por tentativas de retrocesso, muitas vezes alcançados parcial ou totalmente.

A reivindicação por direitos sociais está na raiz do feminismo. No campo acadêmico, sua trajetória também é marcada pela constituição de espaço e visibilidade para as pesquisas nas mais diversas áreas de investigação. Na historiografia, essa observação pode ser melhor compreendida por meio dos estudos de Bonnie Smith (2003). A autora, ao questionar sobre a construção do sujeito masculino como universal, tanto na história como no concernente ao prestígio na escrita acadêmica, tece reflexões que “[…] ajudam a explicar como passamos a exaltar o historiador homem e a menosprezar ou até mesmo suprimir a obra histórica das mulheres” (SMITH, 2003, p. 156).

Não nos compete, para esta apresentação, fazer um levantamento bibliográfico sobre os estudos históricos que versam sobre a história das mulheres, o(s) feminismo(s) e / ou o gênero. Mas é importante destacarmos algumas pesquisas que influenciaram profundamente o campo acadêmico e possuem estreitas relações com as reivindicações de pautas de movimentos sociais de sua época. Michelle Perrot, em “Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros”, de 1988, e mais tarde com “As mulheres ou os silêncios da história” (2005), abriu espaço para investigações que buscaram perceber e valorizar as trajetórias de mulheres na história. Além de inovações teóricas, metodológicas, uso de fontes históricas e levantamentos de novos problemas, as inquietações contribuíram para revisitar e questionar pesquisas já consagradas na área.

Ainda na década de 1980, momento de efervescência dos movimentos identitários, e sob influência do pensamento de Michel de Foucault, Joan Scott sistematizou o conceito de gênero como categoria analítica, definindo-o como “[…] um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos e […] uma forma primeira de significar as relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 86).

Na década de 1990, com a contribuição dos movimentos LGBT, os estudos de gênero tiveram novas influências. A filósofa Judith Butler apresentou uma série de questionamentos / problemas, que serviram tanto para problematizar o caráter de uma essência feminina na mulher enquanto sexo biológico, como para desenvolver, a partir daí, sua teoria da performatividade, através da qual pode demonstrar a produção generificada dos corpos. Nessa investigação, a autora interrogou se “[…] ser mulher constituiria um ‘fato natural’ ou uma performance cultural, ou seria a ‘naturalidade’ constituída mediante atos performativos discursivamente compelidos, que produzem o corpo no interior das categorias de sexo e por meio delas?” (BUTLER, 2003, p. 8-9). Em outras palavras, a filósofa salientou que a relação sexo / gênero não é direta, tampouco compulsória. Sua contribuição teórica, portanto, abriu espaço para o entendimento das diversas identidades de gênero. Logo, as categorizações homem e mulher foram questionadas por contribuir para a universalização dos sujeitos.

Por outro lado, o gênero como categoria única de análise também foi questionado, sobretudo por feministas afroamericanas, as quais se percebiam excluídas desse monolítico denominado “mulher”, denunciando que este incluía somente mulheres brancas e de classe média. Dessa forma, teóricas com Kimberlé Crenshaw (2004), bell hooks (2019), Audre Lorde (1984), Angela Davis (2016) dentre outras, contribuíram para a formulação da noção de interseccionalidade. Por meio dessa ampliação de ferramentas metodológicas, a análise pautada nos estudos de gênero dispõe de uma observação que busca perceber os cruzamentos junto a outras categorias de análise como raça, etnia, classe, idade, geração, sexualidade, religião, nacionalidade, dentre outras.

No Brasil, os estudos de Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, por exemplo, já interrogavam sobre esses cruzamentos ao pensarem as relações de gênero desde a perspectiva racial. Para Gonzalez (2016, p. 410), “A maioria dos textos, apesar de tratarem das relações de dominação sexual, social e econômica a que a mulher está submetida […], não atenta para o fato da opressão racial”. Carneiro (2003) também destaca a importância de se pensar o racismo e seus impactos nas relações de gênero como eixo articulador do feminismo negro, sobretudo em sociedades multirraciais, pluriculturais e racistas como são as latino-americanas, por ser esse um elemento determinante na própria hierarquia de gênero.

Parte dessas questões também integram as discussões de pesquisadoras brasileiras. Segundo Rachel Soihet e Joana Maria Pedro (2007), tanto as reinvindicações advindas do movimento feminista como das observações da produção acadêmica, interrogaram sobre a generalização provocada mediante a percepção em torno do gênero como binário. Para essas autoras, outras questões atravessam as relações sociais e influenciam diretamente na construção e relações de gênero.

Mulheres negras, índias, mestiças, pobres, trabalhadoras, muitas delas feministas, reivindicaram uma ‘diferença’–dentro da diferença. Ou seja, a categoria ‘mulher’, que constituía uma identidade diferenciada da de ‘homem’, não era suficiente para explicá-las. Elas não consideravam que as reivindicações as incluíam (SOIHET; PEDRO, 2007, p. 287).

Em pesquisa mais recente, Carla Akotirene (2018, p. 14) observa que a análise interseccional deve “[…] dar instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado”, os quais influenciam diretamente na constituição das relações sociais. Ou seja, diante das relações sociais excludentes, essas três categorias não devem ser pensadas sozinhas, pois atuam de maneira relacional.1 A autora destaca também a importância de tomar a proposta interseccional com atenção, para que não seja feita uma soma de hierarquias, pois a interseccionalidade visa perceber como as diferentes categorias sociais se cruzam e contribuem para as configurações sociais. Ressalta, ainda, que essa reflexão não deve pautar-se apenas em perceber as exclusões, pois, nesse cruzamento, torna-se possível perceber as inclusões e pertencimentos proporcionados pelos marcadores sociais.

Em vez de somar identidades, analisa-se quais condições estruturais atravessam corpos, quais posicionamentos reorientam significados subjetivos desses corpos, por serem experiências modeladas por e durante a interação das estruturas, repetidas vezes colonialistas, estabilizadas pela matriz de opressão, sob forma de identidade (AKOTIRENE, 2018, p. 39).

Nesse sentido, a Revista Discente Ofícios de Clio junta-se a outros atores sociais no esforço de dar visibilidade a conhecimentos produzidos por discentes de graduação e pós-graduação, através de pesquisas de caráter teórico e prático, em torno de diversos temas relacionados com as questões de gênero e diversidade sexual, com perspectivas variadas. Diante da proposta de trazer novas contribuições para a historiografia e as áreas afins, o dossiê “Gênero, diversidades, interseccionalidades: perspectivas de análise na pesquisa histórica” reuniu artigos que buscam problematizar as questões de gênero nos mais diversos contextos históricos.

No primeiro deles, “A História das Mulheres: Uma Questão Política No Brasil”, Eduarda C. de Castro Alves, Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, historiciza a inserção dos estudos sobre mulheres no âmbito acadêmico como um processo de disputa política. Para tanto, retoma os conceitos de feminismo e gênero, os quais são resultantes de diversas lutas, reivindicações e embates políticos de mulheres que extrapolaram para o debate acadêmico e pautaram novos campos de investigação histórica e, ao longo das décadas, foram transformando o fazer histórico, tornando-o mais plural e menos centrado na produção do conhecimento dos homens por eles próprios. Alves nos instiga, ainda, a pensar nos impactos dessas produções para além do universo acadêmico, com resultados que podem interferir na vida das mulheres, inclusive das subalternizadas, como é o caso daquelas em situação de prostituição.

Em “‘Reparar o Erro Através do Casamento’: Honra, Moral e Sexualidade em um Trâmite Judicial”, Alécio Gonçalves da Silva, Graduado em História pela Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT, utiliza processos judiciais da década de 1980 como fontes históricas para realizar um estudo de caso da cidade de Cáceres, no estado do Mato Grosso. O autor observa como distintos discursos cruzam-se para controlar os corpos, a sexualidade, disciplinar as práticas cotidianas e os desejos. Nessa construção discursiva sustentada por relações de poder, Silva destaca como o patriarcalismo foi utilizado ao longo do século XX para sustentar discursos morais para a realização de uniões conjugais e serviram como forma de regular a sexualidade.

Caroline Rios Costa, em “A força da mulher argentina: resistência e luta política nas Madres de Plaza de Mayo e no grupo #NiUnaMenos”, apresenta uma significativa reflexão do protagonismo das mulheres em dois contextos diferentes na Argentina. O Madres de Plaza de Mayo ficou conhecido pela busca dos / as filhos / as desaparecidos / as durante a ditadura. As mães reunidas na praça não só questionaram sobre o paradeiro de seus / as filhos / as como promoveram importantes discussões contrárias à ditadura e outras violências sofridas pelas mulheres. Já o grupo #NiUnaMenos desenvolveu-se como forma de insatisfação e protesto contra as violências contra as mulheres, destacando-se ainda busca pela descriminalização do aborto. Com a diferença temporal de quase 40 anos, Costa destaca características de ambos os grupos e suas similaridades na reivindicação por uma sociedade mais justa e democrática.

No artigo “Processos de invisibilização das mulheres na atividade pesqueira nas legislações brasileiras entre 1846-1990”, Beatriz Lourenço Mendes, Mestranda em Direito e Justiça Social pelo Programa de Pós-Graduação em Direito – FURG, Gabriel Ferreira da Silva, Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental – FURG, Felipe Nóbrega Ferreira, Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental – FURG, destacam diversos aspectos da atividade pesqueira, como os saberes tradicionais, as mudanças provocadas pelo desenvolvimento científico, a criação de legislações e órgãos responsáveis pela fiscalização e a regulamentação da mesma. Os / as autores / as identificam o silenciamento acerca da participação das mulheres nas atividades de pesca, sobretudo por parte do Estado, ressaltando que, embora elas tenham enfrentado os problemas decorrentes da invisibilização, tal fato não as impediu de participar ativamente dessa função.

Em “Mulheres do Povo e Espaço Público na Revolução Francesa: Uma Análise Através de Imagens”, Amanda de Queirós Cruz, graduanda em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF, sob a perspectiva da história das mulheres, revisita a produção acerca da Revolução Francesa explorando fontes imagéticas produzidas durante o período revolucionário e, através delas, reflete acerca da participação ativa das mulheres durante a revolução. Seja por meio de protestos nas ruas ou organizações, as mulheres foram protagonistas na busca por melhores condições sociais. A autora observa que em protestos de grande público e “atravessando a fronteira para o lado que não lhes era permitido, simplesmente ao realizarem o ato físico de saírem da soleira da porta de seus lares e irem para a rua”, foram responsáveis pela movimentação da revolução.

Jaqueline Silva de Macedo, Mestre em História pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, utiliza a produção literária como fonte histórica para direcionar sua investigação acerca das narrativas construídas sobre a Fortuna, divindade grega e romana, em “A Fortuna no Roman de Fauvel e sua relação com a tradição literária e religiosa da Civitate Dei e da Consolatio philosophiae na Idade Média”. Buscando perceber as aproximações e distanciamentos nas narrativas empregadas, Macedo seleciona as obras Roman de Fauvel, Civitate Dei, de Agostinho e Consoloatio philosiphae de Boécio. Nessa interlocução, a autora observa como essas obras literárias contribuíram para a construção do imaginário cristão e das interpretações sobre Fortuna, e como as características da feminilidade foram reforçadas por meio de discursos pautados sobre a vontade divina.

Por fim, Miller Goulart Ferreira, Graduado em História Licenciatura pela Universidade de Brasília – UNB, através do artigo “História da homossexualidade ligada à transmissão de HIV / AIDS e abordagem na escola pelo filme Filadélfia de Jonathan Demme (1993)” procura problematizar a homofobia, sugerindo a utilização deste filme como suporte pedagógico para fomentar o debate acerca de questões relacionadas aos direitos civis e ao enfrentamento de violências contra homossexuais. Ferreira, além de indicar o uso de recursos audiovisuais na sala de aula, estabelece algumas considerações acerca do movimento gay no Brasil e Estados Unidos e da participação desses na conquista de direitos.

Nosso objetivo, nesse dossiê, foi reunir artigos que dialogassem com a pluralidade de experiências e / ou representações de gênero, feminismos, masculinidades e diversidades – enfocando relações de poder, de violência ou de resistência – em perspectiva histórica ou interdisciplinar, utilizando fontes orais, impressas, literárias, imagéticas ou audiovisuais de modo a contribuir para a promoção do debate qualificado acerca das relações de gênero, com o propósito de garantir avanços duramente conquistados e ampliar as perspectivas das mulheres na luta por uma sociedade mais equânime, menos violenta e com mais respeito às diferenças.

Uma boa leitura a todes!

Nota

1. Para Akotirene, cisheteropatriarcado é a noção conceitual que compreende a relação do patriarcado e as expectativas de gênero construídas em torno de um corpo pautado nas diferenças biológicas binárias, que, junto às imposições, diante da identidade estética de pessoas cisgêneras como desejadas, exclui as pessoas que escapam a esse padrão (AKOTIRENE, 2018).

Referências

AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte (MG): Letramento: Justificando, 2018.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CARNEIRO, Aparecida Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. (Org.). Pensamento Feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.

CRENSHAW, Kimberlé. A intersecionalidade na discriminação de raça e gênero. VV. AA. Cruzamento: raça e gênero. Brasília: Unifem, 2004.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. S. Paulo: Boitempo, 2016.

GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem políticoeconômica. In: RODRIGUES, Carla; BORGES, Luciana; RAMOS, Tania R. O. (Org.). Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Funarte, 2016. p. 399-416.

HOOKS, bell. Olhares negros: raça e representação. Trad. Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2019.

LORDE, Audre. Age, Race, Class and Sex: Women Redefining Difference. In: LORDE, Audre. Sister Outsider: Essays and Speeches. Freedom, CA: Crossing Press, 1984.

PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Trad. Viviane Ribeiro. São Paulo: Edusc, 2005.

SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul. / dez. 1995, pp. 71-99.

SMITH, Bonnie G. Gênero e História: homens, mulheres e a prática histórica. Ed. EDUSC: São Paulo, 2003.

SOIHET, Rachel; PEDRO, Joana Maria. A Emergência da Pesquisa da História das Mulheres e das Relações de Gênero. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 27 nº 54, 2007.p. 287.

Joelma Ferreira dos Santos – Doutoranda pelo PPGH / UDESC – Florianópolis-SC. E-mail: [email protected]

Jorge Luiz Zaluski – Doutorando pelo PPGH / UDESC – Florianópolis-SC. E-mail: [email protected]


SANTOS, Joelma Ferreira dos; ZALUSKI, Jorge Luiz. Apresentação. Revista Discente Ofícios de Clio, Pelotas -RS, v. 4, n. 7, jul./dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Tensões, disputas e diversidades, 1968-1988-2018 / Projeto História / 2018

Tensões – Disputas – Diversidades: 1968-1988-2018 / Projeto História / 2018

A história dos últimos 50 anos tem se revelado um complexo conjunto de forças políticas, econômicas e culturais em constante tensão. O surgimento de novos atores sociais (jovens, mulheres, negros, trabalhadores, dentre outros) tornou a cena pública um campo de tensão permanente, revelando-se em momentos icônicos, como em maio de 1968. As particularidades daquele tempo não se esgotam nas cenas parisienses. Vislumbramos grandes agitações nas ruas de Praga, em diferentes cidades do México, nos Estados Unidos ou mesmo nas ruas das cidades brasileiras.

O Ato Institucional Número 5, de 1968, inaugura a fase mais violenta e mesmo sanguinária da ditadura brasileira, contra a qual se levanta parte da sociedade civil brasileira. Vinte anos depois, o Brasil era outro. A nova conjuntura culmina na Constituição de 1988. A Carta mais democrática de nossa história não deixa de apresentar forte resistência dos setores mais conservadores.

A legitimidade do historiador para inventariar o passado, num momento em que o acesso aos documentos deixou de ser privilegio de seu ofício, para ser transferido a incontroláveis grupos de “saber” e “interesses” – que buscam construir ou fabricar uma versão oficial da história, a fim de convalidar no presente as atitudes contraditórias e muitas vezes suspeitas do passado – precisa ser retomada e novamente valorizada em suas bases epistemológicas, sob risco de vermos a história ser editada e reeditada em torno apenas de sua já conhecida e “infantil” obsessão pelas origens.

O ano de 2018, compreendido não como ano-calendário, mas como o tempo do agora, apresenta grande agitação política, marcada por discursos conservadores, como o golpe parlamentar de 2016, no Brasil, a eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, o Brexit, na Inglaterra. No Brasil, é justamente a Constituição de 1988 que se encontra sob ataque. Os ataques a direitos fundamentais, o descaso com as regras democráticas, invasões de universidades, com censura a cursos e perseguições a professores, indicam que temos o dever de alertar sobre os riscos à jovem democracia brasileira.

O presente dossiê da Revista Projeto História busca justamente abrir espaço para esses três momentos políticos, certamente diversos e tensos, ora conservadores, ora críticos ao status quo. Com este dossiê, a revista do Programa de Estudos Pós-graduados da Universidade Católica de São Paulo almeja contribuir na divulgação de pesquisas de alto nível que enriqueçam o debate contemporâneo.

Nesse sentido é que se optou por abrir o Dossiê com o trabalho de Sheila Alice Gomes da Silva, que, ao se debruçar sobre as experiências e vivências das comunidades africanas na cidade de São Paulo, propôs uma série de reflexões acerca da exclusão e estigmatização das populações negras, resultantes da violência e do racismo. O trabalho de Sheila, a quem prestamos homenagem pelo seu precoce falecimento, busca valorizar os grupos sociais que relembravam a elite paulistana de seu passado escravista.

O segundo artigo, assinado pela professora do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Carla Reis Longhi, analisa a documentação de comunicação SNI-DEOPS / SP buscando refletir acerca do contexto político do ano de 1968 no Brasil. Partindo dos conceitos de política e cultura política, o artigo discute as lógicas autoritárias e estratégias discursivas empregadas pelo regime para a manutenção do poder e do autoritarismo.

Em seguida, o professor de Teoria da História da Universidade Federal do Amazonas, Gláuber Cícero Ferreira Biazo, em diálogo com a hermenêutica de Paul Ricoeur, analisa como documento uma entrevista de história oral de vida acadêmica realizada com a professora Dra. Leyla Perrone-Moisés, na qual sustenta que a teoria do conhecimento em história oral contribui para problematizações em torno da memória narrativa, pois esta é entendida como resultante do engajamento de um sujeito na experiência histórica e em suas relações com o outro e com o tempo.

O próximo artigo do Dossiê é assinado pelo professor de sociologia do Instituto Federal Fluminense, André Pizzeta Altoé, que toma como objeto de suas análises a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), fundada em 26 de julho de 1960. Nesse trabalho, Altoé discute como a manutenção da misoginia nos moldes medievais foi um dos traços marcantes do catolicismo ultraconservador e de direita do período, resultando numa total falta de capacidade de atuar na sociedade, uma vez que negligenciou a adoção de valores modernos como a incorporação de mulheres em seus quadros.

Na sequência, Sérgio Luiz Santos de Oliveira, pós-doutorando em História Social pela FFLCH-USP, busca discutir a formação da Mocidade Trabalhista do PTB (1957-61), conferindo especial destaque à cidade de Belo Horizonte. De lá formou-se uma geração de ativistas que, anos mais tarde, acabaram se engajando em organizações como a ORM-POLOP e a AP, como Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra e Herbert de Souza, o Betinho, todos com destaque na esquerda brasileira na década seguinte.

Da Universidade Estadual de Ponta Grossa, o professor Névio de Campos e o Dr. Eliezer Felix de Souza propõem discutir o Maio de 1968 na Universidade Federal do Paraná. Partindo da documentação arquivada no DOPS e das atas do Conselho Universitário da UFPR, os autores privilegiam a análise do movimento estudantil e sua correlação com acontecimentos antecedentes, bem como as expectativas que agitavam os estudantes. Como resultado explicitam-se as ações levadas à cabo pelos estudantes e as formas repressivas colocadas em prática pelas autoridades universitárias e policiais.

O Dossiê desta edição se encerra com o artigo da professora do Departamento de Sociologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Léa Guimarães Souki, o qual discute as permanências da cultura libertária de Barcelona – onde se teve a única experiência histórica do anarquismo como governo –, como característica marcante de experiências cooperativas e assembleístas dos bairros numa mescla com a Confederação Nacional do Tralbalho (CNT).

Esta edição conta ainda com três artigos livres. O primeiro, intitulado “Engels e a igualdade jurídica: notas acerca da questão da secularização da visão de mundo teológica no Direito”, o professor Dr. Vitor Bartoletti Sartori trata da questão da igualdade em Friedrich Engels, buscando explicitar as rupturas e permanências entre a visão de mundo teológica e a jurídica na obra do referido autor germânico. Já o segundo artigo, de autoria da professora Dra. Maria Izabel de Azevedo Marques Birolli, analisa os usos [e abusos] que se fez de dispositivos legais para dar suporte à prática, antiquíssima, da tutela de filhos alheios como criados domésticos, propondo uma interpretação de como a rede de criadagem que se formou no Brasil desde o período colonial entrou em crise nos anos 1920. Por fim, o terceiro artigo, assinado pelo professor Dr. Linderval Augusto Monteiro, da Universidade Federal de Grande Dourados, traz uma narrativa do primeiro caso de linchamento ocorrido na Baixada Fluminense após o período que ele denominou de “colonização proletária”, em 1970, no intuito de relacionar esse caso com as formas populares de colonização da Baixada e, também, refletir sobre as representações dos periódicos cariocas acerca dessa região na década de 1970.

Assim, espera-se que os leitores possam apreciar os trabalhos selecionados, levando em conta que os editores buscaram organizar um panorama variado capaz de problematizar questões de nosso passado (e de nosso presente) que apontam para um cotidiano de grande agitação política no Brasil e no mundo, esperando que tais reflexões possam nos servir como um alerta para os riscos à democracia brasileira.

Luiz Antonio Dias – Departamento de História PUC-SP

Alberto Luiz Schneider – Departamento de História PUC-SP


DIAS, Luiz Antonio; SCHNEIDER, Alberto Luiz. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.63, 2018. Acessar publicação original [DR]

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História: identidades, diversidades e alteridades / Revista Trilhas da História / 2015

A presente edição da revista Trilhas da História é, em parte, resultado da XVI Semana de História e II Jornada de História Antiga e Medieval, trazendo algumas colaborações de autores que participaram do evento, ocorrido em agosto de 2015.

Neste sentido, a pluralística de temas e temporalidades na divisão dos artigos é evidente ao observarmos textos que discutem no seio da Antiguidade Tardia a imagem dos cristãos e sua identidade entre si e os outros, uma abordagem sobre propaganda no Brasil na segunda metade do século XX, um olhar sobre o ensino de História e a constituição de sujeitos leitores, uma exímia reflexão acerca dos temas da ruralidade e festa na Grécia Clássica e, por fim, uma problematização sobre a questão do trabalho docente entre dominação e resistência.

Em continuidade, como resultado do evento, há o Ensaio de Graduação do acadêmico Fernando Lucas Garcia de Souza, que discute de forma interdisciplinar a questão da tatuagem no município de Três Lagoas, evocando importantes questões culturais acerca dessa arte de desenhos corporais.

Na última parte da edição, seguem os artigos de fluxo contínuo, discutindo o espaço do distrito industrial de Jupiá junto a ideia problematizada de progresso e o artigo que busca mostrar a percepção da divisão do estado do Mato Grosso através do periódico Folha de São Paulo.

Cabe, ao lançamento desta edição, evidenciar a importância que a Revista Trilhas da História soma aos meios de divulgação de conhecimento científico no estado do Mato Grosso do Sul e sua perseverança ao continuar existindo mesmo diante dos entraves classificatórios que são colocados aos periódicos no Brasil frente as suas formas de avaliação. Por isso, a revista Trilhas da História agradece aos seus colaboradores pelo interesse e disposição em contribuir com a divulgação de suas pesquisas nesta casa.

Leandro Hecko

Caio Vinicius dos Santos

Organizadores da Edição

Setembro de 2015


HECKO, Leandro; SANTOS, Caio Vinicius dos. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.5, n.9, jul. / dez., 2015. Acessar publicação original [DR]

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