O espaço da prisão e suas práticas educativas: enfoques e perspectivas contemporâneas | A. S. Lourenço e E. M. C. Onofre

Educação na prisão? Podem essas duas palavras, carregadas de concepções tão distintas, serem postas lado a lado? Os doze artigos que compõem o livro O espaço da prisão e suas práticas educativas: enfoques e perspectivas contemporâneas (LOURENÇO; ONOFRE, 2011) nos ajudam a compreender como, apesar dos limites impostos pela cultura prisional, a educação permanece nesse espaço como possibilidade e potência.

A partir de diferentes experiências e enfoques, reconhecendo os desafios postos e defendendo a importância de compreender o contexto prisional, os autores nos convidam a pensar a prisão sob perspectivas menos exploradas, buscando visibilizar as possibilidades de humanização desencadeadas por processos educativos em espaços onde historicamente predomina a desumanização. Leia Mais

Imprensa italiana no Brasil, séculos XIX-XX – TRENTO (RBH)

TRENTO, Angelo. Imprensa italiana no Brasil, séculos XIX-XX. São Carlos: Ed. UFScar, 2013. Zaidan, Roberto. 276p. Resenha de: BIONDI, Luigi. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.35, n.70, jul./dez. 2015.

Décadas de pesquisa sobre o tema da imigração italiana, que renderam algumas das obras mais referenciais nesse âmbito historiográfico, levaram Angelo Trento, da Universidade de Nápoles “Istituto Orientale”, a aprofundar um dos aspectos centrais para a compreensão do mundo dos imigrantes no Brasil no livro Imprensa Italiana no Brasil, séculos XIX-XX, tradução para o português da edição italiana La costruzione di un’identità collettiva. Storia del giornalismo in lingua italiana in Brasile (Viterbo: Archivio Storico dell’Emigrazione Italiana, 2011).

Na sua obra La dov’è la raccolta del caffè, publicada no Brasil com o título Do outro lado do Atlântico (São Paulo: Studio Nobel, 1989), ainda hoje a obra mais completa sobre a história dos italianos no Brasil, na qual a imprensa produzida por eles tomava um espaço temático próprio em alguns capítulos embora atravessasse o livro inteiro como fonte principal, Trento inseriu um apêndice com mais de quatrocentos periódicos italianos publicados no país. Esses foram o ponto de partida para pesquisas sucessivas que levaram Trento, nos últimos anos, a centrar a análise sobre a história dos impressos periódicos em língua italiana no Brasil, durante o século XIX e até a década de 1960. Aquela antiga lista se enriqueceu de mais títulos, encontrados nos arquivos do Brasil, Itália, Holanda e França, e se tornou o corpus documental que fundamenta agora, no seu livro Imprensa italiana no Brasil, uma história exaustiva da expressão escrita, em jornais, pelos imigrantes italianos.

Trento não se limita a tratar essa imprensa como formadora de representações de uma coletividade de imigrantes, indaga sobre os fundamentos sociais dos impressos periódicos e de seus grupos editores e sobre a relação destes com as redes de assinantes, os leitores e a comunidade italiana imigrada em geral. O jornal, além de ser o veículo intencional de transmissão de informações, configura-se como porta-voz e ao mesmo tempo articulador de grupos específicos, utilizando e forjando redes de imigrantes, polo agregador de sua intervenção na nova sociedade. A imprensa étnica como mediadora da transnacionalidade, na qual Trento enfatiza, na melhor tradição historiográfica italiana, suas dinâmicas políticas.

Essa imprensa é estudada também como construtora e expressão de identidades: a nacional – a italianidade – e as regionais, políticas e de classe, todas em suas diferentes e muitas vezes conflitantes versões, todas passando pela via da comum origem num Estado-nação de recente formação. O ser e sentir-se italiano numa experiência de migração por meio da imprensa, declinado em uma miríade de identificações complementares, parece ser o fio condutor de uma trajetória que o autor concentra entre o período da “grande imigração” (1885-1915 aproximadamente) e meados dos anos 1960, quando o longo processo de integração e os fluxos migratórios dos italianos terminam.

Trento dedica mais de metade da obra ao período entre 1880 e a Primeira Guerra Mundial, com dois capítulos iniciais: o primeiro para a imprensa como um todo e o segundo para a imprensa operária. É nessa época que o periódico impresso se configura não somente como órgão de informação, mas também como polo agregador dos próprios imigrantes italianos que chegam em massa ao Brasil. É o período do protagonismo político, comercial e industrial do Brasil urbano, quando o diário em língua italiana Fanfulla, a “joia da coroa” da então colônia ítalo-paulista, narra as vicissitudes da experiência migratória de cerca de um milhão de italianos – e não somente os de São Paulo, pois esse diário, assim como outros periódicos étnicos, era lido para além das fronteiras estaduais. Trento não se limita a estudar o fenômeno migratório nas suas amplas dimensões paulistas, também lança um olhar para as coletividades nos outros estados, para a imprensa italiana desde o Pará até os centros gaúchos e sulinos em geral, nestes bastante difusa.

Nesses dois capítulos, Trento explica a difusão extraordinária de alguns jornais, como os diários Fanfulla e La Tribuna Italiana, e das publicações explicitamente políticas como La Battaglia (anarquista) e Avanti! (socialista), e ao mesmo tempo analisa os vários periódicos que tiveram uma vida difícil, mas que, tomados em conjunto, tornam a expressão escrita da imprensa dos ítalo-brasileiros nesse período importante e significativa, a par de outras como as da Argentina ou dos Estados Unidos.

A separação dessa fase da “grande imigração” em duas esferas temáticas, ao longo de dois capítulos, pretende destacar o papel político da imprensa. No capítulo 1, a grande imprensa e os periódicos culturais, de notícias e multitemáticos, são analisados não somente nos seus aspectos gerais estruturais e representativos, supostamente neutros, mas também nas suas atenções ao mundo da grande massa dos imigrantes, incluindo o surgimento de um jornalismo investigativo étnico, que indaga sobre as condições materiais da coletividade, seus anseios e suas expressões políticas. O subcapítulo final introduz uma pesquisa pioneira sobre a imprensa de língua italiana durante a Primeira Guerra Mundial, num momento em que o nacionalismo italiano e a construção da identidade nacional no exterior vivenciam, por causa da guerra, uma intensificação extraordinária, enquanto os imigrantes experimentam novas tensões derivadas da radicalização das lutas operárias.

A “Outra Itália” de esquerda é o tema do capítulo 2, onde o foco é completamente voltado para entender a vida da imprensa em língua italiana que foi expressão de tendências e grupos políticos específicos, ligados ao mundo do trabalho urbano. Sobretudo em São Paulo, mas não somente ali, essa imprensa conseguiu frequentemente se tornar o polo agregador de anarquistas, socialistas, republicanos, radicais e sindicalistas, bem como de trabalhadores em geral. Um protagonismo conhecido na historiografia da história social e política dos trabalhadores no Brasil, que Trento, pela primeira vez após muitos anos, analisa num único capítulo de forma conjunta, coerente e renovada, incorporando as novas pesquisas suas e de outros colegas sobre o tema.

Temos um olhar completo para essa história, sem privilegiar a análise de uma ou de outra tendência, mas as conexões entre elas e o panorama dessa trajetória em sua complexidade, desde as origens, passando pelo auge dos anos 1900-1917, até o declínio no período posterior à Primeira Guerra Mundial, quando a imprensa reflete a diluição dos elementos étnicos da classe operária. Por isso, o autor dedica parte importante desse capítulo ao debate “identidade étnica versus identidade de classe” na imprensa política de língua italiana, tema ainda central nos estudos migratórios e da formação da classe trabalhadora nas Américas.

Na segunda parte do livro, o autor enfrenta a questão da penetração do fascismo na imprensa italiana, sua gradual conquista das redações, sua eliminação em outras, o surgimento e declínio, nas décadas de 1920 e 1930, da imprensa antifascista que viu no Brasil o episódio interessante e multipartidário do jornal La Difesa, enquanto o diário Fanfulla se dobrava aos interesses do governo italiano e ao mesmo tempo continuava se propondo como o porta-voz da italianidade no país. Trento se dedica ao exame de uma imprensa étnica ainda consistente, mas cada vez menor, não comparável em número, qualidade e variedade com a dos primeiros 30 anos republicanos. Uma imprensa que progressivamente se fecha em torno das questões ligadas à colônia, mediadora cultural de uma Itália cada vez mais distante e menos frequentada.

A imprensa é estudada para entender a capacidade de adaptação à nova situação brasileira, o equilíbrio entre as influências do fascismo italiano e as tensões derivadas desse posicionamento frente à política nacionalista do Estado Novo e à guerra.

A nova fase que se abre com o pós-guerra se ressente dessa história, de um passado não falado que Angelo Trento analisa no último capítulo, no contexto migratório mais recente, da segunda metade do século XX.

Entre a retomada no Brasil de posições políticas proibidas na nova Itália republicana (o neofascismo no exílio) e a narração da experiência migratória dos anos 1950 e 1960 (até 1965, quando o Fanfulla encerra sua publicação diária), o autor examina o conjunto muito menor de uma imprensa étnica testemunha de uma coletividade italiana imigrada, renovada sim pelos fluxos migratórios do pós-guerra, mas excepcionalmente reduzida.

Trento interpreta a função histórica da imprensa italiana no exterior como expressão viva do mundo dos imigrantes. Ao desaparecer a condição de migrantes, ao sumir gradualmente a operatividade das relações, das redes e das circularidades transnacionais, também essa imprensa deixa de existir. Apesar das dificuldades objetivas na prática da leitura de uma massa imigrante mediamente iletrada, o trabalho de Angelo Trento destaca que foi no período áureo da “grande imigração” que a imprensa étnica italiana mais se desenvolveu, âncora de uma transnacionalidade em ação.

Finalmente, é importante sinalizar que, além do valor da obra como o mais recente e mais aprofundado estudo sobre a história da imprensa italiana no Brasil, o livro se constitui como um recurso de pesquisa fundamental, terminando com um inventário cronológico completo e classificado por estado de mais de oitocentos periódicos em língua italiana publicados no país, onde se indica também a colocação arquivística de cada jornal.

Luigi Biondi – Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH), Departamento de História. Guarulhos, SP, Brasil. E-mail: [email protected]

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O que é um autor? Revisão de uma genealogia / Roger Chartier

A obra Objeto gritante de Clarice Lispector foi pauta de debates na Comissão de Leitura do Instituto Nacional do Livro em 1972. A discussão colocava em xeque a qualidade do texto da autora e o peso da representação de sua autoria. Decisão complicada para os avaliadores envolvidos, mas ao que parece, Adonias Filho [3], principal parecerista, pendeu para o valor da autoria de Clarice e deixou em segundo plano os atributos “duvidosos” do livro [4]. Aqui e em outras situações, a tradição do nome e a noção de autoria foram evocadas, não só para legitimar a obra, como também para identificar os discursos. E é justamente a respeito da noção de autoria que este texto retoma e apresenta a obra de Roger Chartier publicada em 2012 pela EdUSFCar, intitulada O que é um autor? Revisão de uma genealogia [5].

No final da década de 1960, Michel Foucault proferiu a célebre conferência intitulada “O que é um autor?” [6] abordando a polêmica em torno do desaparecimento da figura autor. Ao contrário das principais teses em voga que reforçavam o ocultamento dessa personagem, dentre as quais se sobressaiam as de Roland Barthes, Foucault destaca as condições que possibilitaram o nascimento do sistema de autoria e traça as regras históricas e culturais de seu funcionamento na sociedade ocidental. Procurando refletir a respeito dos dispositivos através dos quais se tornou importante saber “quem fala”, Foucault ressalta os diferentes mecanismos no tempo e no espaço que legitimaram a atribuição de um nome próprio a certos textos. Além disso, destacou a filiação de certos discursos a um grupo específico, estabelecendo aos indivíduos a noção de autoria e ao conjunto de seus feitos, o conceito de obra.

Cerca de trinta anos depois da palestra de origem, o historiador Roger Chartier fora convidado a proferir, também para a Sociedade Francesa de Filosofia, uma palestra na qual revisita a famosa conferência de Foucault. Nesta fala, Chartier evidencia as limitações da análise do filósofo, tais como: a incorreção na genealogia cronológica da noção de autoria e a atribuição incorreta de características próprias das obras pertencentes às auctoritates a obras em linguagem vulgar. Nesse sentido e na tentativa de reforçar a relevância da questão apresentada por Foucault em 1969, Chartier propõe uma revisão da tese do filósofo.

No pequeno resumo da proposta da revisão, Roger Chartier afirma reavaliar a análise de Foucault através da associação da crítica textual dedicada a tratar da interpretação dos textos e das operações de historicidade dos discursos e da História Cultural que se ocupa da história dos objetos e das práticas sociais. A intenção do historiador é pensar não só na ordem dos discursos, mas também na própria ordem dos livros. Para tanto, retoma em Foucault a intenção de analisar a construção da “função autor”, isto é, considerar o autor como um agente dotado de uma função complexa e variável no discurso, e não apenas como uma evidência puramente individual. Daí decorre a tese fundamental de Foucault que consiste na constatação de que a “função autor” é característica do modo de existência de determinados discursos no interior de uma sociedade. Além disso, essa mesma função é marcadamente definida pelo nome próprio que, de início, possibilita o mecanismo de classificação dos discursos. Nesse sentido, a autoria é criadora da noção de obra e da existência de um estilo de escrita particular de determinados grupos.

O primeiro problema na análise de Foucault, destacado por Chartier, é o que se refere à distinção entre o “eu” empírico e a função discursiva, tal qual, apresentado por Borges, em 1960, na coleção El hacedor. O jogo narrativo proposto pelo argentino e retomado por Chartier tenciona entre aprisionamento do “Eu” pelo nome próprio e a invenção de uma escrita desvencilhada do autor. De acordo com Chartier, Foucault retoma essa utopia do discurso sem nome, no entanto, a considera apenas uma função discursiva e não um instrumento que oferece existência a uma ausência essencial. [7]

O segundo problema identificado na análise foucaultiana refere-se ao esboço de cronologia esquematizado na conferência de 1969. Esta cronologia compõe-se de três principais momentos que podem ser assim descritos: o primeiro aborda a questão da inscrição da “função autor” no sistema de propriedade característico das sociedades contemporâneas, compreendido por Foucault como uma relação que esteve diretamente ligada à própria concepção burguesa sobre o tema; o segundo se detém no fato de que essa mesma “função autor” esteve relacionada à censura dos textos e à punição dos escritores em decorrência de uma circulação de discursos considerados transgressores; e, por fim, a terceira e principal consideração de Foucault que trata do entrecruzamento dos enunciados científicos e as regras de identificação do texto literário datados entre o século XVII ou XVIII.

Sobre essa genealogia foucaultiana, Chartier tece algumas ponderações. A primeira delas é sobre o questionamento feito pelo filósofo a respeito da divisão entre literatura e ciência. Roger Chartier chama atenção para o fato de que a utilização de expressões imprecisas [8] é um indício da incerteza de Foucault na ocasião das genealogias que ele mesmo apontou. Um segundo aspecto inexplorado pelo filósofo é o que trata do momento de elaboração da “função autor”. Conforme indica o historiador, a construção dessa função reside na disseminação da noção de autoria entre os escritos de língua vulgar, algo que antes pertencia apenas aos escritores cristãos e aos da Antiguidade submetidos ao regime de auctoritates.

O terceiro ponto e o mais enfatizado por Chartier é a identificação da ausência da “função autor” para os textos ficcionais anteriores aos séculos XVII e XVIII, e o consequente desaparecimento dessa mesma função para os discursos científicos a partir desse período. Nas próximas páginas do livro e até o fim da conferência, Roger Chartier explora detalhadamente a história do copyright (direito sobre a obra) na Inglaterra em paralelo à cronologia imprecisa apresentada por Foucault.

A história do copyright foi profundamente modificada na Inglaterra do século XVIII. Em decisão tomada a partir de 1709, os autores ingleses passaram a ter o direito de registro sobre suas obras, ou seja, obtiveram desta data em diante o copyright por, pelo menos, 14 anos, mais 14 suplementares caso o autor estivesse vivo. Paralelamente, buscando a defesa do direito pessoal, os livreiros impressores londrinos inventaram a propriedade literária consistindo no princípio de posse sobre os textos, a partir daquela época, garantido por lei aos autores. E é embasado neste argumento que Chartier crítica a genealogia foucaultiana. De acordo com o historiador, é no interior desse processo judicial e com o propósito de resguardar o privilégio tradicional, que se “inventa” o autor proprietário de sua obra. A justificativa fundamental para a lei reside na teoria do direito natural que compreende o homem como sendo o proprietário intransferível de seu corpo e, consequentemente, dos produtos de seu trabalho. Além disso, fundamenta-se também na justificativa de ordem estética ancorada na categoria de originalidade, esta última em alta no século XVIII. É a partir desse ponto que Chartier repensa a cronologia proposta por Foucault ao defender que não fora em fins do século XVIII, mas sim em seus primórdios que emergiu a concepção do autor como proprietário de sua obra e a noção de propriedade literária. Além disso, esta emergência não pode ser considerada como fruto do direito burguês, mas advinda da perpetuação de um antigo sistema de privilégios.

Outro aspecto que recebe atenção do historiador é o referente à desmaterialização das obras, isto é, ao fato de que as consideramos apenas como o produto estético e intelectual dos autores, independentemente das suas formas materiais e das condições sociais de sua produção. A partir do século XVIII na Inglaterra se produz uma distinção entre os principais elementos do universo da produção e da circulação dos textos: a property e propriety. A primeira é a possibilidade de transformação de um escrito num bem negociável de mercado; e a segunda refere-se a um possível controle sobre os escritos, ou seja, a forma de preservação da moral, da honra e da reputação. No século XVIII, ambas as noções começaram a relacionar-se e culminaram no que conhecemos atualmente como propriedade literária: a interlocução entre o direito moral e o direito econômico dos autores sobre as obras.

O terceiro e último ponto da cronologia esboçada por Foucault é sobre a circulação dos enunciados científicos em regime de anonimato durante os séculos XVII-XVIII. Sobre este aspecto, Roger Chartier defende que, ao contrário do que propõe a análise foucaultiana, justamente nesse momento acontece uma reviravolta provocada pela revolução científica, tornando essencial a difusão do nome, ou seja, da autoridade competente para enunciar o que é verdadeiro numa sociedade cuja hierarquia define o jogo das posições sociais e a credibilidade da palavra. É no cerne dessas discussões que se molda a noção de autoria e, principalmente, a ideia do autor enquanto a autoridade do erudito, distante do universo comercial dos textos. Nesse sentido, o interesse tácito dos autores é a garantia de veracidade nos enunciados do saber que proferem [9].

Sobre a “função autor” e as apropriações penais destacadas por Foucault, Chartier também apresenta considerações. O historiador argumenta que os livros não só funcionavam como provas incriminatórias dos autores, mas a prospecção de todas as obras que esses mesmos autores condenados poderiam escrever e/ou publicar também servia como mecanismos de condenação. É inegável que o nome próprio funcionava como um meio de identificação, de criação e de transgressão, mas além dele, as obras publicadas em anonimato eram consideradas como suficientemente condenáveis, pois os livros deveriam trazer o nome de seu autor e de seu impressor. No entanto, apesar de estar diretamente ligada à censura, à repressão e à proibição, a “função autor” também esteve entrelaçada à própria passagem do manuscrito ao impresso, pois desde as primeiras versões, os livros contêm os mecanismos de identificação da “função autor”, dentre os quais podem ser citados a simbologia das impressões e até mesmo a disposição do retrato do autor.

Por todas essas nuances, a genealogia rediscutida por Chartier apresenta-se numa duração mais longa do que a sugerida por Foucault e coloca em questão não unicamente a ordem dos discursos, mas a dos livros. A proposta de Roger Chartier é a introdução de uma análise que considera as condições materiais de produção dos discursos e a noção de autoria, tal como a postulada por Donald MacKenzie em sua sociologia dos textos, promovendo, assim, o estudo dos escritos inscritos em sua materialidade. Para Chartier, a construção do autor é indissociável da materialidade e não é função exclusiva dos discursos conforme propunha Foucault.

Em 1972, a justificativa para a publicação da obra de Clarice Lispector não estava inscrita apenas na tradição de seu nome, mas nas próprias tramas intelectuais e editoriais que compunham o mercado editorial brasileiro e que definiam, acima de tudo, a materialidade dos textos e a construção da figura autor. Nesse sentido, para encerrar, é possível retomar as palavras de Herberto Sales, diretor do Instituto em 1974, ao afirmar que “uma coisa é escrever livros, e outra é entender deles, do seu comércio, de suas transas”. [10]

Notas

  1. Adonias Filho (1915-1990) foi jornalista, crítico literário, ensaísta e romancista. Mudou-se para a cidade do Rio de Janeiro onde colaborou para os jornais Correio da Manhã (1944-45), Jornal das Letras (1955-1960) e do Diário de Notícias (1958-1960). Esteve à frente da direção da editora A Noite (1946-1950), diretor do Serviço Nacional de Teatro (1954) e da Biblioteca Nacional (1961-1971). Esteve na direção do INL entre os anos 1954-55 ingressando mais tarde nos quadro da direção da Biblioteca Nacional. Durante os anos 1970 e principalmente no período de coedições do INL pertenceu ao setor dos pareceristas da Instituição.
  2. Sobre esta produção de Clarice Lispector é necessária uma observação. Apesar dos pareceres favoráveis à publicação de Objeto gritante, esta obra nunca foi editada. Ela foi revisada, reduzida a metade e acabou sendo lançada anos mais tarde com outro título: Água viva. Para maiores detalhes ver: ANDRADE, Maria das Graças. Da escrita da si à escrita fora de si: uma leitura de Objeto gritante e Água viva de Clarice Lispector. 2007. 225 f. Tese (Doutorado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, 2007.
  3. CHARTIER, Roger. O que é um autor? Revisão de uma genealogia. Tradução de Luzmara Curcino; Carlos Eduardo de Oliveira Bezerra. São Carlos: EdUFSCar, 2012.
  4. “Qu’est-ce qu’un auteur?” foi publicado inicialmente em 1969 no Bulletin de La Société Française de Philosophie e posteriormente alterado para ser lançado na revista Textual Strategies, sendo relançado em 1994 em Dits et écrits. Na versão traduzida para o português foi publicado com o título “O que é um autor?” em Ditos e Escritos, vol.III. Estética: literatura e pintura, música e cinema.
  1. CHARTIER, op cit., p. 35
  2. Chartier destaca como expressões imprecisas as seguintes frases: “textos que hoje chamaríamos de literários” e “textos que chamaríamos de científicos”.
  3. CHARTIER, op cit., p. 55
  4. Carta de Herberto Sales a Lygia Fagundes Telles. Rio de Janeiro, 6 de novembro de 1979.

Mariana Rodrigues Tavares – Mestranda em História Social pelo PPGH-UFF. Rio de Janeiro/Brasil. [email protected].


CHARTIER, Roger. O que é um autor? Revisão de uma genealogia. Tradução de Luzmara Curcino; Carlos Eduardo de Oliveira Bezerra. São Carlos: EdUFSCar, 2012. 90p. Resenha de: TAVARES, Mariana Rodrigues. Redes intelectuais e noção de autoria: breve análise sobre a revisão de Roger Chartier para a Genealogia de Foucault. Outros Tempos, São Luís, v.11, n18, p.312-314, 2014. Acessar publicação original. [IF].

 O que é um autor? Revisão de uma genealogia – CHARTIER (RBH)

CHARTIER, Roger. O que é um autor? Revisão de uma genealogia. São Carlos (SP): Ed. UFScar, 2012. 90p. Resenha de: MORAES, Kleiton de Sousa. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.33, n.65, 2013.

Retornar aos clássicos é sempre um risco, ainda mais quando se pretende fazer uma revisão crítica do clássico. Lançar-se a essa árdua tarefa é colocar-se diante de um desafio que pode resultar, não raras vezes, frustrante. Assumindo esse risco o historiador francês Roger Chartier, professor da cátedra Écrit et cultures dans l’Europe Moderne no Collège de France desde 2007, retorna à clássica conferência do filósofo Michel Foucault, pronunciada em fevereiro de 1969 sob o título “O que é um autor?”. Na esteira dela, Roger Chartier propõe-se em O que é um autor? Revisão de uma genealogia a revisitar as reflexões do filósofo na sua análise do funcionamento do que ele chamara de ‘função autor’ no mundo da escrita ocidental.

Fruto de uma conferência realizada na Sorbonne no ano 2000, e apresentada para a mesma Société Française de Philosophie que promoveu a conferência homônima de Foucault, O que é um autor? é o desdobramento de um diálogo profícuo do historiador com o filósofo esboçado já há alguns anos. Historiador especialista na cultura escrita, Chartier, em A Ordem dos livros (publicado em 1994), já havia visitado a famosa conferência de Foucault para analisar as representações dadas à figura do autor e fazer uma primeira correção nas reflexões do filósofo francês. Já naquela ocasião, Chartier buscava dialogar com Foucault, fundamentalmente no que tange à periodicidade do aparecimento do autor em textos ‘científicos’ e ‘literários’, tema que retomará neste novo livro.

Aqui, Chartier reitera a originalidade do filósofo ao chamar atenção para a pertinência de seu questionamento sobre o funcionamento do mecanismo segundo o qual um texto ou uma obra são identificados a um nome próprio. Reafirmando a tese central da conferência de Foucault, Chartier desenvolve uma análise histórica das distintas maneiras pelas quais foi acionada a ‘função autor’ no tempo. Para tanto, inicia com uma revisão da cronologia esboçada pelo filósofo francês a fim de corrigir algumas imprecisões em suas assertivas, renovando, assim, sua força interpretativa.

Nesse empreendimento, Chartier evoca outro frequente interlocutor em seus livros, o escritor argentino Jorge Luís Borges. No conto Borges e eu, que faz parte do volume O Fazedor, Borges conta, mediante um humor profundo, da não identidade entre o indivíduo que escreve e o autor, embora reitere a complementaridade fenomenológica inescapável entre ambos: “Seria exagerado afirmar que nossas relações são hostis. Eu vivo e deixo-me viver, para que Borges possa urdir sua literatura, e essa literatura justifica-me” (p.32-33).

A citação do conto borgiano não é gratuita. Trata-se de afirmar, com Foucault, que o funcionamento da ‘função autor’ não se inscreve no momento de uma prática de escrita, mas se insere dentro de uma ordem do discurso específica que a engloba. É essa adesão à tese foucaultiana o ponto de partida do qual Chartier empreende sua revisão crítica, evocando daí a vaga cronologia em três tempos esboçada por Michel Foucault na famosa conferência.

A primeira seria a do nascimento da concepção burguesa da propriedade literária, que Foucault localiza entre o final do século XVII e o início do século XVIII. Embora reafirme a importância desse momento como fundamental na construção de uma ‘função autor’, Chartier chama atenção para o fato de que a propriedade literária do autor nasce na Inglaterra não tanto no interesse do autor, mas do livreiro-editor londrino que, na iminência de perder seus direitos sobre determinada obra – direito exclusivo de reprodução adquirido pelos velhos estatutos e revogado por nova lei –, em inícios do século XVII e não no final, cria, ou faz criar, a propriedade do autor sobre seu texto. Chartier afirma que essa conquista do autor encobriria o verdadeiro objetivo que seria dar ao autor o direito de, ao repassar sua propriedade para determinado livreiro-editor, também transmitir os mesmos direitos de perpetuidade e imprescritibilidade da obra.

Avançando na reflexão, o historiador observa que a justificativa para a criação do copyright ainda nesse período fundou-se tanto no direito natural – segundo o qual o homem é proprietário de seu corpo e dos produtos do seu trabalho – quanto numa justificativa estética, fundada na originalidade daquele que produz, gerando, nessa esteira, a figura do indivíduo criador único e original. Isso significa, nos alerta Chartier, não só uma reivindicação econômica do direito do autor, mas a existência de uma antiga reivindicação que se baseava numa propriedade moral, segundo a qual o controle de uma obra poderia ser pedido em nome da honra de um autor.

A outra cronologia, aquela em que o historiador segue mais de perto Foucault, relaciona-se à distinção do processo de anonimato que caracterizaria os textos literários e científicos entre os séculos XVII e XVIII. Pensa Chartier que talvez a aporia existente nas reflexões de Foucault seria resultado de três problemas: o primeiro, uma inércia linguística, criada pela impossibilidade de definir-se prudentemente uma divisão entre ciência e literatura em períodos específicos; o segundo se referia à necessidade de se pensar a evocação de autoridades (Hipócrates, Plínio etc.), procedimentos comum antes dos séculos XVII ou XVIII, e essa relação com os autores de determinada época; e o terceiro, a ausência da ‘função autor’ em textos literários anteriores ao século XVII ou XVIII e a mesma ausência para enunciados científicos após essa mesma data, hipótese que Chartier rejeita.

Embora concorde em parte com Foucault, quando este salienta a necessidade da referência a um autor bem antes do século XVII para textos identificados como ‘científicos’, Roger Chartier não concorda quando nessa distinção acusa o anonimato em textos literários. Para Foucault, entre os séculos XVII ou XVIII, há uma mudança entre o aparecimento da figura do autor em textos literários e, inversamente, o seu desaparecimento em textos científicos. Para o historiador, mesmo depois do século XVII, uma descoberta ou um enunciado científico só tinham validação pela evocação de um nome próprio, não necessariamente o erudito, técnico ou profissional. Chartier identifica esse procedimento como um método de validação aristocrático, em que vale mais, para aceitação de um enunciado, aquele que tem o poder de dizer uma verdade – um poderoso, um príncipe ou um ministro. Em contrapartida, o desinteresse de um autor, representado pela não relação de propriedade por seus enunciados, é fundamental para que o erudito seja reconhecido como o autor ou autoridade nesse regime. Tal procedimento, ao contrário do que pensava Foucault, encontrava-se presente até mesmo nos textos literários posteriores a esse momento de ruptura que teria sido o século XVII, no qual, em prólogos, prefácios ou dedicatórias, o desinteresse do autor é evocado como fator de credibilidade para textos. Por fim, Chartier afirma, diferentemente do que Foucault pensava, que alguns textos com valor de verdade circulavam em anonimato desde a Idade Média, sem necessidade da referência a uma autoridade – os livros de segredos e os manuais técnicos, por exemplo.

Se o século XVIII revela a construção do autor-proprietário, a figura do autor é bem anterior a ela. A última cronologia esboçada por Foucault remete à ligação do autor a uma função ligada à identificação de um indivíduo com determinado texto para fins punitivos, notadamente os de censura. Chartier concorda com essa proposição citando fontes inquisitoriais do século XVII, onde o anonimato de um texto impresso já era motivo de sua censura, sendo os títulos de obras vinculadas a um nome próprio uma fórmula essencial de melhor vigilância para as autoridades.

Essa investigação levou alguns historiadores a concluir que a ‘função autor’ nasce com o livro impresso, a partir do aparecimento do nome de um indivíduo no impresso, com os processos acionados por escritores que tiveram seus textos publicados sem seu consentimento desde inícios do século XVI e com o aparecimento de um retrato do indivíduo autor. Mas Chartier julga errônea essa precipitação. Em primeiro lugar, seguindo a mudança lexical que se dá com os termos auctor e actor quando ainda o regime de circulação de textos era fundamentalmente manuscrito, no século XIV e no começo do século XV, com o primeiro designando uma autoridade e o segundo um compilador. Chartier aponta a conquista progressiva da autoridade dos auctores pelos actores e, já no final do século XIV e em inícios do XV, a existência da designação acteur valendo tanto para autoridades quanto para certos textos publicados em língua vulgar, nascendo daí a figura do escritor, não apenas como aquele que copia, mas aquele que compõe e inventa.

Essa forte presença da representação – palavra-chave em Chartier – do autor como criador em contraste com o decifrador, glosador ou compilador, impõe uma reflexão em torno da historicidade da identificação do nome à obra e à própria materialidade do objeto. Para Chartier, se desde a alta Idade Média a forma mais conhecida do livro era aquela da miscelânea, ou seja, de diferentes textos reunidos num objeto-livro, o que parece existir é uma suposta ‘função leitor’ – aquele que desejou que fossem reunidos textos distintos em um só objeto – e uma ‘função copista’ – o que copiou o texto num único livro. Mas, se a miscelânea é a característica desse tipo de livro, já no século XIV, quando a circulação de textos ainda se fazia em livros manuscritos, é possível identificar a ‘função autor’ a um indivíduo, ligando-o a uma obra ou livro. Aí reside para Roger Chartier a incontornável recomendação de que à genealogia da ‘função autor’ imersa na ordem do discurso deve-se acrescentar, concomitantemente, uma ordem dos livros. A consequência disso residiria na maneira de tratamento dada à investigação dos impressos, que não poderia prescindir também da investigação dos suportes que veiculam os textos como forma de identificar os seus sentidos.

Ao corrigir algumas imprecisões expostas na famosa conferência de Michel Foucault, Roger Chartier em O que é um autor? enfatiza a força interpretativa do filósofo francês incorporando alguns questionamentos advindos das pesquisas recentes sobre impressos, notadamente oriundos da História Cultural. Essa démarche não o conduz à negação da questão proposta por Foucault. O retorno visa reforçar o quanto sua reflexão crítica continua expressa em questionamentos atuais sobre o funcionamento de um determinado mecanismo de autoridade sobre os textos. Essa reflexão não finda na investigação da ordem do discurso, mas incorpora, de maneira fundamental, a dimensão da materialidade desse mesmo discurso. E isso porque, respondendo às questões ao final do livro, Chartier afirma que um leitor nunca encontra um texto a não ser por meio de uma forma específica, sendo a ordem do discurso sempre uma ordem de materialidade.

Por fim, cabe reiterar que tal visita a Michel Foucault como parte de um movimento que busca dialogar com um clássico se funda num espaço de tensão em que o interlocutor se apropria das ideias de outrem contribuindo de forma a torná-las vivas. Chartier não parece em seu O que é um autor querer cair nas armadilhas que pudessem confrontá-lo com o filósofo. Ele vai ao encontro do risco inevitável de, ao se apropriar das ideias de Foucault, tornar-se também ele um autor dessas ideias, aprofundado-as de forma crítica. Mas os sentidos que os leitores vão dar a essa apropriação respeitosa podem não ser tão compatíveis com os desejos do historiador. Esta última proposição Chartier assume como parte incontornável de uma prática de leitura que é também, sabe ele, espaço de imprevisíveis criações.

Kleiton de Sousa Moraes – Doutorando em História Social. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), IFCS – Programa de Pós-Graduação em História Social. Largo de São Francisco, 1, sala 205, Centro. 20051-070 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. E-mail: [email protected]

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