Bram Stoker e a Questão Racial. Literatura de horror e degenerescência no final do século XIX | Evander Ruthieri da Silva

Proponho analisar o livro Bram Stoker e a Questão Racial. Literatura de horror e degenerescência no final do século XIX (2017), livro de estreia do jovem historiador Evander Ruthieri da Silva, e que teve como base sua dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Nele Ruthieri faz um trabalho primoroso de história social dos intelectuais, nos mostrando as redes de sociabilidade em que Bram Stoker circulava, a articulação entre seu projeto literário e o seu projeto intelectual.

Queremos com essa análise colocar em evidência essas categorias (redes de sociabilidade, circulação e projeto literário), apontando como hipótese o uso intuitivo delas, em outras palavras, evidencia que seu intento será ir além das simples verbalizações que dará novas possibilidades de ver o mundo literário. Gostaríamos de apontar nesse texto os caminhos escolhido pelo autor como uma possibilidade de pensar a história dos intelectuais a partir da relação autor-obra-leitor. Isto me permitirá, com mais liberdade, imaginar e compreender as formações discursivas que circulam nesse período, bem como aferir o movimento das categorias mencionadas acima. Leia Mais

Angola: história, nação e literatura (1975-1985) / Silvio A. Carvalho Filho

Lembro-me que, por volta de 2008, pude assistir a uma comunicação sobre a relação entre a escrita literária de Pepetela e a história de Angola, proferida por Silvio de Almeida Carvalho Filho, no âmbito dos encontros realizados pelo Núcleo de Estudos Africanos, da Universidade Federal Fluminense. Passados oito anos, com o lançamento do livro Angola: história, nação e literatura (1975-1985), Silvio Carvalho Filho consolida-se como um dos mais importantes pesquisadores no que tange à análise da construção identitária do que veio a se tornar a nação angolana independente.

A oralidade foi e continua sendo explorada como um fator importante para diferentes sociedades africanas espalhadas pelo continente. No entanto, Silvio Carvalho Filho consegue demonstrar como, dependendo do contexto, nesse caso o do processo de independência angolana das amarras coloniais portuguesas, existe uma África que vai para além da oralidade. Propondo diferentes demandas políticas por meio de uma literatura escrita, aqueles que conseguiram publicar e publicitar suas obras entre o período de 1975 e 1985 são o destaque no livro.

Dando um enfoque na análise para essa comunidade imaginada existente nas obras literárias selecionadas, mas sem deixar de lado a atuação desses literatos durante a guerra de independência e a ocupação de cargos no novo Estado que emergiu pós-1975, Silvio Carvalho Filho posiciona-se defendendo uma abordagem do “[…] literato como arauto de um imaginário coletivo ou como parcela do mesmo”2. Nesse sentido, com um extenso levantamento de fontes, elegendo 56 livros, dentro de um universo de 129 publicações existentes para o período analisado, cartas, entrevistas, comentários e diversos periódicos, como o jornal Diário de Angola (1975-76) e as revistas Novembro (1976-86) e Lavra & Oficina (1979-83), Silvio Carvalho Filho conseguiu produzir um panorama a respeito da nação angolana imaginada e produzida na e pela literatura/literários. Percebendo-a como fortemente influenciada pelo seu meio social e agindo também como interventora nesse ambiente, o autor demonstra a íntima relação entre as ações pela independência de Angola, a construção de um projeto de nação profundamente ligado ao Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e as ações dos literários, principalmente por meio de sua escrita, em prol desse projeto específico.

No entanto, o título do livro de Silvio Carvalho Filho pode enganar alguns leitores, especialmente no que diz respeito ao recorte cronológico referenciado. Aqueles que adquirirem o livro em busca de uma análise dos dez anos posteriores à independência de Angola não conseguirão encontrar ali muitas respostas. Os anos entre 1975 e 1985 fazem referência ao período de publicação das fontes analisadas, mas não necessariamente aos assuntos abordados tanto pelos autores da documentação consultada como pelo próprio Silvio Carvalho Filho. Dos dez capítulos existentes, encontramos várias ponderações a respeito desse período anunciado. Porém, em apenas dois o autor aborda de maneira direta a relação entre uma consciência crítica dos literários e de suas obras enquanto ferramentas políticas de atuação, um discurso engrandecedor do projeto socialista defendido pelo MPLA, assim como, posteriormente, do sistema que se tentou implementar em seguida à vitória sobre Portugal e as desilusões e desesperanças com a percepção de um Estado independente marcado pela ascensão de “[…] burocráticos despóticos, corruptos e nepotistas […].”3

Esse descompasso entre anunciação do recorte cronológico do livro e a atenção a um tempo histórico diferente nas análises pode ser explicado pelas características que o próprio Silvio Carvalho Filho elenca ao buscar compreender a construção da identidade nacional angolana a partir das obras de literatos como Manuel Rui, Uanhenga Xitu, Pacavira, Pepetela e tantos outros. Apesar de uma parte significativa da obra desses autores ter sido publicada apenas no pós-independência, muitas foram confeccionadas ainda durante o período colonial, acabando, por inúmeros motivos, tendo como destino o fundo das gavetas. Talvez a principal causa para a incapacidade desses autores de publicarem seus escritos antes de 1975 tenha sido, justamente, a maneira como viam sua literatura como um entrelaçamento entre a ação política e partidária de maneira engajada na formação da nação angolana.

Ao detalhar os diferentes fatores elencados pelos personagens e pelas narrativas das obras literárias analisadas, Silvio Carvalho Filho acaba por retornar para um passado marcado brutalmente pelas ações violentas da repressão colonial portuguesa. Nesse sentido, mais do que falar sobre os dez anos posteriores à independência angolana, no livro Angola: história, nação e literatura (1975-1985) temos contato com processos de elaboração e disseminação de uma memória sobre um passado existente previamente a esse período, com objetivos políticos marcados pelas experiências e pelas referências ideológicas, predominantemente marxistas, dos literários angolanos vinculados ao projeto nacionalista do MPLA. Portanto, um suposto empobrecimento estético existente em determinados trabalhos desses autores é abordado por Silvio Carvalho Filho dentro de um contexto onde existiu um esforço político em direção a tornar a literatura mais como uma ferramenta de transformação por meio de seu posicionamento político ante a sociedade, do que uma valorização de uma possível noção do sublime estético das rimas poéticas e/ou da prosa narrativa.

Aos poucos, ao longo do livro Angola: história, nação e literatura (1975-1985), somos apresentados às bases do projeto nacionalista angolano vitorioso na guerra de independência, sua relação com a literatura e com a atuação dos literários na sua escrita. Nesse sentido, Silvio Carvalho Filho demonstra a existência de um campo literário angolano que se consolida como hegemônico após a independência, que de maneira comum ao longo do período da guerra contra o regime colonial concebeu uma nação que desejavam ver quando livres da opressão portuguesa muito próxima do MPLA e bastante distante dos demais movimentos independentistas. Esse campo não necessariamente condizia com uma realidade ampla das experiências dos futuros cidadãos angolanos. Tendo a cidade de Luanda como cidade-símbolo da nacionalidade imaginada pelo MPLA e “[…] as populações de cultura crioula […]” estabelecendo a “[…] matriz básica da cultura nacional a ser engendrada […]”4, existiu um esforço de, por um lado, aglutinar a pluralidade sociocultural dentro de marcos nacionalistas de uma angolanidade almejada. Por outro lado, essa angolanidade encontrava-se em disputa com essa pluralidade quando a mesma não se coadunasse “[…] com a racionalidade ocidental, da qual o socialismo revolucionário era uma das vertentes […]”5. A nacionalidade angolana que emergiu dos literários analisados era estritamente vinculada ao MPLA. Nas obras literárias, ser angolano, em 1975, era entendido como ser adepto das propostas desse movimento. Com o decorrer dos anos, as desilusões e desesperanças com o socialismo levaram a mudanças que encerram a proposta analítica do livro.

Porém, o que era ser angolano? Talvez essa tenha sido a pergunta primordial que os literários analisados por Silvio Carvalho Filho tentaram responder. Como o autor aponta, esse processo de construção do projeto de nação imaginado pelos literários angolanos em suas obras remeteu constantemente a um passado. Buscar retratar um passado de uma determinada forma, mesmo que sendo através da ficção, era fortalecer premissas políticas do momento presente à produção dessas obras. Foi no embate a uma narrativa sobre o passado produzida nos marcos do colonialismo português que a literatura angolana construiu a si e a nação que almejava. Nesse sentido, ao invés de tentarem buscar no passado que construíam em suas obras uma essência nacionalista angolana atemporal, elaboraram uma identidade angolana baseada numa noção de experiência compartilhada entre a maioria da população. Essa experiência, que funcionaria como uma ferramenta agregadora da diversidade capaz de produzir uma unidade nacional, seria a da resistência contra a exploração e a repressão colonial.

O exercício literário desses escritores na tentativa de elaborar um passado comum, marcado pelas experiências de resistência ao colonialismo português, que buscou produzir um sentido de “nós angolanos”, por vezes parece ter seduzido algumas das abordagens de Silvio Carvalho Filho. O colonialismo foi uma forma de exploração altamente devastadora e violenta. Porém, o tom de denúncia das atrocidades coloniais adotado pelos literários angolanos, por mais importantes que tenham sido no contexto da descolonização, passou ao largo das complexidades dos contextos históricos que os mesmos tentaram recriar. Esse embaralhar entre história, memórias, literatura e os projetos políticos ensejados pelos literários da geração independentista, faz com que em determinados momentos Silvio Carvalho Filho adote uma abordagem que enxerga as narrativas literárias como uma espécie de testemunhos da verdade, sobretudo quando os textos literários dizem respeito às relações estabelecidas entre setores do mundo colonial como grupos estanques divididos entre, de um lado, o colonizador e, do outro diametralmente oposto, o colonizado.

Para concluir, no temeroso cenário acadêmico brasileiro de 2016, o livro Angola: história, nação e literatura (1975-1985), de Silvio de Almeida Correio Filho é um importante contributo para os estudos africanos. Sua expansão no Brasil, acompanhada pela proliferação do ingresso de professores especialistas nas universidades e do crescimento da obrigatoriedade da História da África nos currículos disciplinares acadêmicos, encontra aqui uma importante ferramenta. O capítulo “A Nação, os Escritores e a Literatura” merece destaque especial. A apresentação panorâmica que Silvio Carvalho Filho produz no capítulo fornece aos professores universitários, sempre em busca de produções historiográficas de qualidade e em língua portuguesa, um importante texto para ser trabalhado nas salas de aula de graduação de todo o país. Além disso, a grandeza do livro recai na sua capacidade de realizar análises vastas e ricas, mas, ainda assim, deixar inúmeras outras possibilidades de pesquisa a serem exploradas. Abrindo caminhos para novas gerações, Silvio Carvalho Filho consegue brindar-nos com uma obra que acende pistas para futuras pesquisas e que poderão ampliar de maneira qualitativa os estudos africanos produzidos em solo brasileiro.

Notas

  1. CARVALHO FILHO, Silvio de Almeida. Angola: história, nação e literatura (1975-1985). Curitiba: Editora Prisma, 2016. p. 24.
  2. Ibid., p. 346.
  3. Ibid., p. 236-237.
  4. Ibid., p. 276.

Matheus Serva Pereira – Doutorando em História Social da África – Unicamp. Bolsista Fapesp. E-mail: [email protected].


CARVALHO FILHO, Silvio de Almeida. Angola: história, nação e literatura (1975-1985). Curitiba: Editora Prisma, 2016. Resenha de: PEREIRA, Matheus Serva. Literatura, memória e a construção de uma perspectiva nacional angolana. Outros Tempos, São Luís, v.13, n.22, p.219-223, 2016. Acessar publicação original. [IF].

Sensível ao cuidado: uma perspectiva ética ecofeminista – ROSENDO (RTF)

ROSENDO, Daniela. Sensível ao cuidado: uma perspectiva ética ecofeminista. Curitiba: Editora Prisma, 2015. Resenha de: COSTA, Laís Dias Souza da. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 8, n. 2, jul.-dez., 2015.

Nature is a feminist issue ou em uma tradução livre: a natureza é uma questão feminista. Essa frase, de acordo com a filósofa estadunidense Karen J. Warren, pode ser considerada o lema do ecofeminismo, definido por Daniela Rosendo em sua dissertação de mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), como […] uma posição que leva em consideração a perspectiva feminista e as teorias ambientais, com o objetivo de conjugar ambas e superar o sistema de opressão caracterizado pela relação de subordinação às quais as mulheres a natureza são submetidas pelos homens.1 Warren se dedica a filosofia ecofeminista há mais de 30 anos, sendo uma das referências quando se fala no tema, especialmente após a publicação de sua obra Ecofeminist philosophy, no ano 2000, onde apresenta sua versão de ética. Nela, a filósofa rejeita teorias baseadas em direitos e argumentos racionais que negam as emoções e são universalisantes, enquanto a ética sensível ao cuidado reconhece a pluralidade e os interesses morais e heterogêneos entre os humanos e os não-humanos, de acordo com o contexto em que se dão essas relações.

Mas é a partir da dissertação de mestrado de Daniela Rosendo com o mesmo título do livro que a filosofia ecofeminista warreniana é apresentada detalhadamente, no Brasil, já que, ainda, nenhuma obra da estadunidense foi traduzida e publicada em português, restringindo o acesso de pesquisadoras e pesquisadores interessados no tema.

Atualmente cursando doutorado em Filosofia na UFSC, Rosendo também é professora e integrante do Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos daMulher (CLADEM Brasil) e assina duas colunas sobre ecofeminismo, uma no portal Justificando e outra publicada pela Agência de Notícias de Direitos Animais (ANDA).

“Sensível ao cuidado: uma perspectiva ética ecofeminista” foi publicado em 2015 pela Editora Prismas e tem como objetivo “[…] analisar se a ética sensível ao cuidado é factível para a superação da discriminação sofrida pelas mulheres e pela natureza, e se ela se constitui como uma ética ambiental genuína”.2 Para a filósofa e professora doutora da UFSC, Sônia T. Felipe, que apresenta o livro de Rosendo aos leitores, a doutoranda realiza quatro movimentos para “entrever seu método de investigação. […] Primeiro, o da visita à caverna. Como resultado dessa visita, somos apresentadas ao que resultou de visitas feitas por Warren às concepções ambientais e animais que ela julga não terem superado os limites da dominação machista”.3 No segundo, de acordo com Felipe, Daniela Rosendo […] nos apresenta às visitantes admitidas por Warren em sua proposta ética, às teses, conceitos e teorias recebidos por Warren de outras feministas, incorporados por ela em sua própria concepção, ensejando a nós, leitoras e leitores, a compreensão da estratégia de argumentação da feminista.

No terceiro movimento, temos uma primeira saída da caverna, quando nos são apresentadas por Rosendo as visitantes que, antes dela, também já fizeram o percurso investigativo e crítico da concepção ecofeminista de Warren.4 Sônia T. Felipe explica, por fim, que ela […] elabora sua crítica ao alcance aos limites da concepção da ética sensível ao cuidado de Warren, apontando falhas que sequer foram percebidas por outras feministas que a antecederam em suas visitas ao texto de Warren, especialmente as relativas ao silêncio dela sobre suas escolhas dietéticas (grifo da autora).5 A lógica da dominação como premissa moral Utilizando o gênero como uma categoria de análise, o ecofeminismo questiona os sistemas de dominação que oprimem diferentes grupos, entre eles, de afrodescendentes, pobres, idosos, crianças e de mulheres, considerados por Warren os “Outros humanos” (human Others), além dos “Outros terrestres” (earth Others), grupos constituídos por animais e florestas, todos discriminados injustificadamente. Citando a ecofeminista indiana Vandana Shiva, uma das referências presentes na obra de Warren, Rosendo explica que para Shiva, “[…] o desenvolvimento ocidental é na verdade um ‘subdesenvolvimento’ (maldevelopment), um desenvolvimento destituído do feminino, que vê todo trabalho que não gera lucro e capital como improdutivo”.6 De acordo com Rosendo (2015), para Warren “[…] há interconexões entre a dominação das mulheres e a dominação da natureza, cujo conceito compreende animais não-humanos, plantas e ecossistemas”,7 justificando, assim, a existência de uma teoria que considere moralmente a natureza e consiga abolir essa discriminação.

Ela apresenta a existência de dez tipos de interconexões na teoria de Warren: histórica, conceitual, empírica, socioeconômica, linguística, simbólica e literária, espiritual e religiosa, epistemológica, política e ética. Cada uma delas descreve diferentes formas de opressão social das mulheres e de exploração da natureza, mas Warren destaca a conexão conceitual como o elemento central da filosofia ecofeminista que apresenta diversas correntes.

Estruturas conceituais não são intrinsecamente opressoras. Contudo, a partir do momento em que passam a ser afetadas por fatores como gênero, raça, classe, idade, orientação afetiva, nacionalidade, formação religiosa etc., elas passam a ser opressoras, ou seja, elas são usadas para explicar, manter e “justificar” as relações de dominação e subordinação injustificadas. Assim, uma estrutura conceitual opressora de viés machista “justifica” a subordinação das mulheres pelos homens.8 A partir da estrutura conceitual, Warren identifica cinco características: pensamento de valor hierárquico (up-down), “[…] no qual se valoriza, confere mais status ou prestigia mais os ‘de cima” (up) e menos os ‘de baixo’ (down)”;9 dualismos de valor opostos (oppositional value dualisms), “[…] marcados por características opositoras e excludentes, ao invés de complementares e inclusivas, valorizando mais uma característica em detrimento da outra”;10 “[…] poder entendido e exercido como poder de dominação […]; […] criação, manutenção ou perpetuação da concepção e prática de privilégio concedido aos ‘de cima’ (ups) e negado aos ‘de baixo’ (downs)” e, por fim, “uma estrutura de argumentação que visa justificar a subordinação (lógica da dominação)”.11 Quando Warren fala sobre as pessoas e grupos “de baixo”, ela faz associação às mulheres, afrodescendentes, natureza e corpo, já os “de cima” são relacionados aos homens, brancos, a cultura e a mente (racionalidade). Para Rosendo (2015), “[…] Warren afirma que esse pensamento de valor hierárquico legitima a desigualdade ao invés de afirmar somente que existe a diversidade”.12 Com menos poder e privilégio institucional que os homens, as mulheres se mantêm na parte “de baixo” dessa hierarquia, já que os “[…] benefícios criados, mantidos e sancionados institucionalmente refletem o poder e o privilégio dos ‘de cima’ sobre os ‘de baixo’ e perpetuam os ‘ismos de dominação’ (sexismo, racismo, classicismo, heterossexismo, etnocentrismo)”.13 Essa lógica de dominação é apontada pela autora, a partir da teoria warreniana, como a premissa moral utilizada enquanto justificativa ética para perpetuar “[…] a subordinação dos ‘de baixo’, nas relações de dominação e subordinação, pelos ‘de cima’, ela é basilar para as estruturas conceituais opressoras”.14 Para Warren, as mulheres foram falsamente conceituadas como inferiores, em relação aos homens, baseando-se em três equívocos: o determinismo biológico, essencialismo conceitual e universalismo. A existência de uma “natureza” feminina e de características que ligam biologicamente as mulheres à natureza, por conta de sua capacidade reprodutiva, são difundidas pelos deterministas como atributos inerentes a existência das mulheres.

O essencialismo conceitual pressupõe erroneamente que o conceito de mulher é unívoco, que capta condições essenciais da mulher ou da feminilidade. O universalismo supõe incorretamente que todas as mulheres compartilham um conjunto de experiências simplesmente pelo fato de serem mulheres.15 Ao longo do livro Ecofeminist Philosophy, traduzido e apresentado por Rosendo em sua dissertação, Warren diferencia a opressão da dominação e afirma que a primeira sempre “[…] ‘envolve dominação. Em contrapartida, nem toda dominação envolve opressão’. A opressão implica em tolher a liberdade de fazer escolhas e opções. Portanto, não-humanos, por não terem tal liberdade, não podem ser ‘oprimidos’, apenas ‘dominados’”.

16 Ao considerar os não-humanos, Rosendo explica a proposta de Warren para reformular o feminismo, a filosofia feminista e a ética ambiental, por meio de outro argumento, onde o feminismo tradicional poderia incorporar o feminismo ecológico ou ecofeminismo, visando a consideração moral dos humanos para os não-humanos e a abolição do naturismo (dominação injustificada na natureza). “(1) O feminismo é, minimamente, um movimento para pôr fim ao sexismo. (2) O sexismo é conceitualmente ligado ao naturismo. (3) O feminismo é (também) um movimento para pôr fim ao naturismo”.17 Cuidado como fundamento ético Apesar de não formular uma ética ambiental inédita, de acordo com Rosendo, a proposta de Warren incorpora elementos existentes em outras teorias com um viés crítico que rejeita a faceta masculina da ética baseada em direitos, regras e princípios porque esses elementos não consideram outros conceitos defendidos pelas ecofeministas como a “singularidade” e a “vulnerabilidade”. Rosendo cita a ecofeminista e filósofa Sônia T. Felipe, precursora do tema no Brasil, que defende esses conceitos como sendo os “únicos que permitem considerar interesses naturais animais com a mesma seriedade com a qual consideramos interesses naturais humanos, semelhantes aos deles”.18 Para elaborar sua ética, Warren relacionou a teoria feminista à teoria da hierarquia, considerada a principal sobre a ecologia dos ecossistemas, e à ética da terra, elaborada por Aldo Leopold, que tem como princípio moral constitutivo o amor e o respeito a terra.

Warren conjuga essas duas teorias e afirma que, juntas, elas fornecem a base para considerar a filosofia ecofeminista uma posição ecológica. Por outro lado, ela argumenta que a filosofia ecofeminista pode contribuir tanto para a ecologia quanto para a ética da terra. O elo entre as três perspectivas (teoria da hierarquia, ética da terra e filosofia ecofeminista) é a orientação ecológica para o mundo, sobre a qual cada um contribui à sua maneira.

A ética sensível ao cuidado é caracterizada por três elementos: capacidade para o cuidado; universalismo situado e práticas do cuidado. Sobre a primeira característica, a filósofa faz referência à inteligência emocional que compreende entre as habilidades básicas a capacidade de cuidar. “Cuidar do outro, expressa uma capacidade cognitiva, uma atitude em direção àquele que está sendo cuidado, que merece tratamento respeitoso e independe de ter sentimentos positivos em direção a ele”.20 Quanto ao universalismo situado, a segunda característica da ética sensível ao cuidado, Warren desenvolve a ideia de que existem princípios éticos universais, mas que essa universalidade não consiste em eles serem princípios abstratos, transcendentais e essencialistas, guiados somente pela razão. O princípio orientador do universalismo situado é: “a universalidade reside na particularidade”.21 Sobre as práticas do cuidado, elas são responsáveis por manter, elevar ou promover a saúde, provocando bem-estar, e entre essas práticas estaria o vegetarianismo moral contextual. Para Warren, uma dieta vegetariana é uma “[…] atitude moralmente correta que se tem com relação aos animais”22 porque os não-humanos também são considerados membros de uma comunidade ecológica.

Rosendo apresenta os limites e os alcances da teoria warreniana, considerando entre os aspectos limitadores os momentos em que Warren não avança, “[…]seja por silenciar ou fazer propostas sem coerência com sua teoria ou uma ética genuína”.23 Um desses limites diz respeito ao vegetarianismo moral contextual que estaria ligado apenas a abstenção de comer carne, excluindo da lista outros produtos de origem animal como o couro utilizado em roupas e sapatos. Para Sônia T. Felipe (2012), Warren silencia o consumo humano de bilhões de seres sencientes, além dos produtos derivados como os laticínios, e acredita que a transformação proposta pela estadunidense só pode ser feita por meio do abolicionismo vegano.

Entre os alcances da ética sensível ao cuidado, Rosendo destaca o caráter político do cuidado “[…] com a ‘saúde’ das instituições, que, ‘adoecidas’, oprimem”.24 Além disso, ela reafirma o distanciamento de Warren da concepção essencialista da mulher, apesar das críticas de algumas ecofeministas, e, ainda, que “[…] a estratégia de argumentação é clara e mostra que os sistemas de opressão estão interligados, sendo necessário superar todas as formas de discriminação”.25 A perspectiva filosófica apresentada por Rosendo torna-se referência imediata para os “feminismos” discutidos e problematizados dentro e fora das universidades brasileiras com destaque para o caráter inédito da obra que se insere em um contexto onde as normativas essencialistas estão sendo debatidas. Assim, a natureza continua sendo uma questão feminista para Karen J. Warren, Daniela Rosendo, Sônia T. Felipe, mulheres e homens que consideram pertinente confrontar noções essencialistas nas quais o “Homem” ainda é considerado o sujeito universal, e a natureza, assim como as mulheres tentam ser invisibilizadas. Ao dedicar o livro “Sensível ao cuidado: uma perspectiva ética ecofeminista” às vozes dissidentes, Rosendo “escuta” os ecos de Warren e “fala” aos humanos e não-humanos sobre uma outra possibilidade de se colocar no mundo e se relacionar com todos os seres que o habitam.

Sobre a autora: Laís Dias Souza da Costa Mestre e doutoranda em História pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Jornalista.

1 ROSENDO, Daniela. Sensível ao cuidado: uma perspectiva ética ecofeminista. Curitiba: Prismas, 2015, p. 23.

2 ROSENDO, Daniela. Sensível ao cuidado, Op. cit., p. 191.

3 Ibidem, p. 16.

4 Idem.

5 Ibidem, p. 17.

6 ROSENDO, Daniela. Sensível ao cuidado, Op. cit., p.37.

7 Ibidem, p. 34.

8 Ibidem, p. 47.

9 Ibidem, p. 48.

10 Idem.

11 ROSENDO, Daniela. Sensível ao cuidado, Op. cit., p. 48.

12 Ibidem, p. 49.

13 Ibidem, p. 50.

14 Ibidem, p. 51.

15 Ibidem, p. 56.

16 ROSENDO, Daniela. Sensível ao cuidado, Op. cit., p. 58.

17 Ibidem, p. 61.

18 Ibidem, p. 77.

19 Ibidem, p. 79.

20 ROSENDO, Daniela. Sensível ao cuidado, Op. cit., p. 101.

21 Ibidem, p. 103.

22 Ibidem, p. 108.

23 Ibidem, p. 169.

24 Ibidem, p. 195.

Laís Dias Souza da Costa – Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Correspondência: Programa de Pós-graduação em História – Universidade Federal de Mato Grosso Av. Fernando Corrêa da Costa, 2367 – Boa Esperança Cuiabá – MT – Brasil. CEP: 78060-900 E-mail : [email protected].