Ditadura e Democracia no Brasil: do Golpe de 1964 à Constituição de 1988 | Daniel Aarão Reis Filho

RC Destaque post 2 11 Ditadura e Democracia no Brasil: do Golpe de 1964 à Constituição de 1988

Daniel Aarão Reis é professor titular de História Contemporânea na UFF. Suas principais pesquisas são sobre a ditadura no Brasil e as experiências das esquerdas no Brasil e no mundo [1]. Além disso, foi ativo na resistência à ditadura civil-militar brasileira, especificamente no Movimento Revolucionário 8 de Outubro, um dos grupos que organizou a captura do embaixador do EUA Charles Burke Elbrick em 1969.

Ditadura e Democracia no Brasil se insere em uma série de obras lançadas em 2014 que, no marco dos 50 anos do golpe de 1964 procuram apresentar novos olhares sobre o período. O livro em questão é constituído por sete capítulos e um posfácio.

O primeiro capítulo serve de introdução ao livro e são as páginas nas quais Reis apresenta alguns dos princípios através do quais ele pretende diferenciar sua obra da historiografia anterior sobre o tema, especialmente aquela produzida nos primeiros anos de redemocratização. Segundo o autor, construiu-se uma memória de que os valores democráticos sempre teriam feito parte da consciência nacional. Assim, o país teria sido

subjugado e reprimido por um regime ditatorial denunciado agora como uma espécie de força estranha e externa […] Assim, em vez de abrir amplo debate sobre as bases sociais da ditadura, escolheu-se um outro caminho, mais tranquilo e seguro, avaliado politicamente mais eficaz, o de valorizar versões memoriais apaziguadoras onde todos possam encontrar um lugar [2].

Essa visão procuraria uma conciliação nacional após a ditadura, como se esta não houvesse contado com apoio de setores civis da sociedade:

Entretanto, essas versões, saturadas de memória, não explicam nem conseguem compreender as raízes, as bases e os fundamentos históricos da ditadura, as complexas relações que se estabeleceram entre ela e a sociedade e, em contraponto, o papel desempenhado pelas esquerdas no período. Também não explicam, nem conseguem compreender, a ditadura no contexto das relações internacionais e na história mais ampla deste país – as tradições em que se apoiou e o legado de seus feitos e realizações que perdura até hoje [3].

Nesse sentido, Reis se insere numa perspectiva que vem ganhando espaço na produção historiográfica, de procurar compreender o regime autoritário observando também as bases sociais que o constituíam. A título de exemplo, a coletânea organizada por Denise Rollemberg e Samantha Quadrat, A construção social dos regimes autoritários [4], é outra obra que procura analisar os mecanismos de legitimação social desses regimes. É nessa direção que também argumenta a defesa de que se chame o período de ditadura civil-militar, e não somente militar.

Nos capítulos seguintes, Reis procura elucidar o desenrolar dos acontecimentos do período. Ele destaca que o período 1945-64 foi de democracia limitada. O autoritarismo se manifestava em muitos aspectos que remontam à primeira república e principalmente à ditadura varguista. É nesta que ele localiza um importante elemento para compreender a ditadura que se seguiu: o nacional-estatismo, caracterizado por um Estado forte tanto no que diz respeito ao desenvolvimento econômico (ainda que não necessariamente na distribuição de renda) como no controle social. Apesar de ter perdido fôlego na década de 1950 o nacional-estatismo ainda tinha adeptos tanto à esquerda como à direita.

Ao assumir o poder, João Goulart “poderia […] numa frente popular que se esboçara na resistência ao golpe [do parlamentarismo], dispor de condições para retomar o nacional-estatismo popular já entrevisto no último governo Vargas” [5]. As greves e movimentações populares que haviam crescido na campanha legalista (movimento para assegurar o direito de Goulart assumir a presidência) incorporavam ao nacional-estatismo uma até então inédita participação popular – o que também radicalizou o discurso, exigindo reformas mais profundas e deixando mais de lado o tom conciliatório varguista.

Reis descreve, contudo, que Jango estava nos primeiros meses de governo apegado à tradição conciliatória, mantendo a desconfiança da direita e ao mesmo tempo decepcionando a esquerda. “Depois de longos meses de hesitação, armadilhando no impasse de uma correlação de forças equilibrada, Jango [em março de 64] resolveu aceitar os conselhos de partir para a ofensiva” [6], em meio ao aumento da pressão pelas reformas de base. A resposta conservadora não tardou com as marchas da Família com Deus pela liberdade e finalmente com o golpe de Estado.

O autor então lança uma ideia polêmica, contestando a tese da inevitabilidade da resistência ao golpe. Segundo ele, Jango era bastante popular e as forças de que dispunham as esquerdas, nas instituições, sindicatos, movimentos populares e nas próprias Forças Armadas não eram desprezíveis. Para ele, a esquerda que apoiava Jango se rendeu por não saber o que fazer quando a tática conciliatória não funcionou mais. No capítulo seguinte, o autor inclusive aponta que essa paralisia poderia ser motivada por até parte das lideranças reformistas estarem contaminadas pelo medo de uma revolução. Por isso também que Reis observa que ainda que de fato tenha havido apoio dos EUA ao golpe, não se deve superestimar sua participação sob risco de minimizar a importância das forças golpistas internas. A influência externa se dava, de acordo com o autor, mais no sentido de um medo por parte das forças golpistas de que os recentes movimentos socialistas e nacionalistas na África, Ásia e principalmente em Cuba pudessem inspirar ações mais radicais dentro do Brasil.

Dando prosseguimento, Reis descreve como nos primeiros anos da ditadura procurou-se romper com o nacional-estatismo, estratégia que fracassou, indicando que este elemento da cultura política perpassava todo o espectro político.

No campo da oposição começaram a se formar três grandes correntes: a moderada, formada pelo MDB, apoiada pelo PCB clandestino e setores golpistas agora insatisfeitos, defendendo uma transição pacífica à democracia nos moldes pré-64; movimento estudantil, mais radical, queria o fim imediato da ditadura, mas sem maiores definições; organizações revolucionárias clandestinas, se entrelaçavam com os estudantes, viam a luta armada como a única saída e não queriam só a derrubada da ditadura, mas do capitalismo.

Porém, Reis destaca que se houve de fato resistência, também houve muita indiferença ou até apoio ao regime, de modo que a oposição não era, para ele, de fato tão poderosa. Ainda assim, para evitar que se organizassem, o governo emitiu em 1968 o AI-5.

Assim, chega-se ao quarto capítulo. Com a repressão a níveis extremos, a esquerda revolucionária considerou que se concretizava o que Reis denominou “utopia do impasse”, chegando a hora de radicalizar a luta. De acordo com essa lógica, o impasse se refere à uma situação na qual políticas conciliatórias não seriam mais uma opção viável, restando às esquerdas somente a revolução – por isso, segundo o autor, muitos desses grupos revolucionários viam até com certo otimismo a conjuntura, pois teria eliminado a via conciliatória. Reis, contudo, apesar de ter sido em sua juventude parte dessas organizações, as critica por estarem distantes da população e se mostrarem incapazes de fazer uma leitura mais precisa da sociedade. Esta “assistiu a todo esse processo como se fosse uma plateia de jogo de futebol” [7]. Podiam até torcer para um ou para outro lado, mas não eram participantes. Efetivamente, o crescimento econômico do que viria a ser o chamado “milagre econômico” aliado a propaganda, fazia do governo muito popular junto a população, especialmente no interior. Por isso ele destaca que, se de fato a primeira metade da década de 1970 pode ser descrita como os “anos de chumbo”, foi para muitos também os “anos de ouro” [8]. Ainda que o crescimento tenha sido desigual, ele agradava a setores médios influentes suficientes para amortecer uma possível insatisfação popular. A maioria da população parecia disposta a ignorar a tortura, desde que que ela atingisse somente àqueles que considerassem marginais e ocorresse longe da vista da sociedade.

Nem todos, certamente, apreciavam a ditadura e seus métodos truculentos, considerados “excessivos”, e muitos deles tomariam parte, em momentos seguintes, da onda oposicionista que varreria as metrópoles. Mas é provável que considerassem uma exigência alta demais arriscar suas posições num enfrentamento de vida ou morte com o regime, como queriam as esquerdas radicais [9].

O quinto capítulo do livro analisa o governo Geisel (1974-79). No plano econômico, apesar da crise do petróleo, não seria ainda o momento do abandono do nacional-estatismo. “Já no plano político, haveria afinidades com os propósitos do primeiro governo castelista, materializadas na perspectiva de restabelecer um estado de direito autoritário. Tratava-se de institucionalizar e superar o estado de exceção, o regime ditatorial vigente”[10], ação tomada também em função da pressão internacional, ainda que “no interior do bloco que sustentava a ditadura, forças conservadoras e sua expressão mais radical, os aparelhos de segurança, não viam com bons olhos a distensão e se prepararam para combatê-la”[11].

Como resultado, foi um período marcado por ambiguidades. A gradual abertura, (a qual culminaria na revogação do AI-5 na passagem de 1978 para 1979) conviveu com uma brutal repressão ao PCB e PC do B e o emblemático assassinato de Vladmir Herzog.

A segunda metade da década de 1970 também marcou o início da rearticulação dos movimentos sociais, ainda que de início tentassem passar a imagem de reivindicações apolíticas. Essa rearticulação também se deve ao fato da economia já não apresentar resultados tão satisfatórios, com inflação e desvalorização salarial.

Ao final deste capítulo, Reis indica outra ideia controversa. Para ele, com o fim do AI-5 estava revogado o estado de exceção, não constituindo-se mais uma ditadura; “conformara-se um estado de direito autoritário”[12]. Assim, para Reis a ditadura iniciada em 1964 termina em 1979, havendo então um período de transição para um regime democrático que se inaugura com a constituição de 1988. Ele explica melhor os motivos para essa escolha no capítulo seguinte, dedicado à essa transição:

formou-se ampla coligação de interesses e vontades a favor da ideia de que a ditadura teria se encerrado em 1985. Na base dessa verdadeira frente social, política e acadêmica, estava uma ideia – força de modo nenhum respaldada pelas evidências – a de que a ditadura fora obra apenas dos militares [13].

Esse marco, 1985, o momento em que um civil assume a presidência, esconderia, portanto, as bases sociais civis da ditadura. Para Reis, a construção dessa memória que procura esconder o caráter civil da ditadura se deu justamente nesse período.

Aparentemente, a transição lenta e sem rupturas levada pela própria ditadura surtiu o efeito por ela desejada. Nas primeiras eleições diretas para governadores, o PDS (originada da ARENA) venceu em mais estados e teve mais deputados eleitos também, seguido do PMDB, que era a oposição consentida pela ditadura. “Depois de longos anos de ditadura, o país tornara-se mais conservador ainda do que antes. Um banho da água fria na fervura dos que imaginavam possível a existência de hipóteses de ruptura revolucionária. Pelo menos a curto prazo elas não se realizariam”[14]. Talvez nada ilustre melhor o caráter conservador da transição e a construção de uma memória que isente as bases civis do que a chegada a presidência de José Sarney (até pouco antes importante quadro do PDS) concorrendo, ainda que como vice, como opositor ao antigo partido da ditadura.

No sétimo capítulo, Reis descreve sucintamente as discussões em torno da constituição de 1988, destacando como, apesar da pressão contrárias de forças liberais-conservadoras, mesmo nela persistiriam muitas características do nacional-estatismo.

Finalmente, no posfácio, Reis retoma uma de suas teses centrais já apresentadas no início do livro: sem minimizar as diferenças que houveram entre os regimes, há no nacional-estatismo, seja de tendência esquerdista ou direitista, um aspecto de continuidade.

Criaram-se na primeira [estado novo] e se consolidaram na segunda [civil-militar]: o Estado hipertrofiado, a cultura política nacional-estatista, o corporativismo estatal, as concepções produtivistas, a tortura como política de Estado. Quanto à tutela das Forças Armadas, vem de antes, desde a gênese da República, mas as ditaduras, sem dúvida, confirmaram e reforçaram.

O livro de Daniel Aarão Reis procura apresentar um novo olhar sobre a ditadura civil-militar brasileira. Cada capítulo da obra poderia ser expandido ele próprio em um livro. De fato, o livro não entra em muitos detalhes. Tampouco se utiliza de muitas fontes primárias como fundamentação, tratando-se mais de uma obra de síntese. Ainda assim, é de grande valia por apresentar ao menos duas ideias centrais que o diferenciam de ao menos parte da historiografia, e certamente da memória socialmente construída para fora da academia. A primeira, por apontar no nacional-estatismo um elemento de continuidade surgido antes do golpe de 1964 e perdurando durante e para além da ditadura. Isso não significa negar que tenha se tratado de um estado de exceção, mas apontar que a ditadura civil-militar infelizmente não foi um desvio num curso “natural” e “positivo” da história do Brasil, mas se insere perfeitamente em aspectos que transcendem esse período específico. A outra ideia é a de observar a importância das bases sociais civis da ditadura. Desde o golpe, o regime autoritário somente pôde sobreviver por que contou com apoio principalmente de setores empresariais, mas também suporte, consentimento ou no mínimo indiferença de amplos setores sociais. Enfrentar a memória construída da natureza democrática da sociedade brasileira é um desafio difícil e que pode soar inconveniente, mas é importantíssimo para poder lidar com as continuidades autoritárias que ainda persistem hoje.

Conforme já salientado, o livro aqui resenhado se trata de uma obra de síntese. Mas talvez justamente por isso tenha um duplo valor, podendo ser utilizado como material introdutório para historiadores ao mesmo tempo em que também se mostra acessível ao grande público.

Notas

1. Entre suas principais obras se encontram A revolução faltou ao encontro – Os comunistas no Brasil; A Aventura Socialista no Século XX; e Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade.

2. REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, pp. 7-8.

3. Ibid., p. 14

4. ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha (orgs). A Construção Social dos Regimes autoritários: Brasil e América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

5. REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 32.

6. Ibid., p. 39.

7. Ibid., p.77.

8. Ibid., p.91.

9. Ibid., p.88.

10. Ibid., p.98.

11. Ibid., p.101.

12. Ibid., p.123.

13. Ibid., p.127.

14. Ibid., p.140.

Michel Ehrlich – Graduando em História pela UFPR, bolsista do PET-História. E-mail: [email protected]


REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e Democracia no Brasil: do Golpe de 1964 à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. Resenha de: EHRLICH, Michel. Ditadura e democracia no Brasil. Cantareira. Niterói, n.25, p. 230 – 234, jul./dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

Poder e desaparecimento: os campos de concentração na Argentina | Pilar Calveiro

Pilar Calveiro nasceu na Argentina em 1953. Envolvida em militâncias sociais e políticas, foi presa pela ditadura civil-militar que governou o país no período de 1976 a 1983. No prelúdio do livro, o poeta Juan Gelman, descreve:

“Em 7 de maio de 1977, um comando da Aeronáutica sequestrou Pilar Calveiro em plena rua e a levou ao que ficou conhecido como “Mansão Seré” […]Naquele dia começou seu percurso de um ano e meio num inferno que continuou em outros campos de concentração” (p.19)

Ao contrário da enorme maioria dos detidos em campos de concentração argentinos (cerca de 90% dos 15 a 20 mil pessoas que por isso passaram, segundo a própria autora), Pilar Calveiro sobrevive. Mais tarde, realiza doutorado em ciência política pela Universidade Nacional do México, parte da qual resulta nesse livro, lançado na Argentina em 2001. Atualmente, é professora e pesquisadora na Universidade Autônoma de Puebla (México).

Apesar dessa vivência, Calveiro não baseia seu livro unicamente no seu depoimento. Suas principais fontes são o testemunho de cinco outros sobreviventes. De acordo com ela

“Cada depoimento é um universo completo, um homem completo falando de si e dos outros. Seria suficiente tomar apenas um deles para abarcar os fenômenos aos quais quero me referir. Ainda assim, para mostrar a vivência a partir de diferentes sexos, sensibilidades, militâncias, lugares geográficos e capturadores, e mesmo fazendo referência a outros depoimentos, tomarei basicamente os seguintes: Graciela Geuna (sequestrada no campo de concentração de La Perla, Córdoba, correspondente ao III Corpo do Exército), Martín Gras (sequestrado na Esma, Capital Federal, correspondente à Marinha da República Argentina), Juan Carlos Scarpatti (sequestrado e foragido de Campo de Mayo, província de Buenos Airese, campo de concentração correspondente ao I Corpo do Exército), Claudio Tamburrini (sequestrado e foragido da Mansão Seré, província de Buenos Aires, correspondente à Força Aérea) e Ana María Careaga (sequestrada em El Atlético, Capital Federal, correspondente à Polícia Federal)”. (p.42)

O livro de Pilar Calveiro não se resume, contudo, à transmissão desses testemunhos, mas à, a partir deles, refletir sobre os desaparecimentos na ditadura argentina e sobre o fenômeno repressivo em si. Retomando o prelúdio de Gelman “este livro é uma façanha. Pilar Calveiro atravessou a situação mais extrema do horror e teve a difícil capacidade de pensar a experiência” (p.20). Ao fazê-lo, “Sua leitura contribui para a reflexão sobre a história não só da Argentina, mas dos outros países do Cone Sul, que não pode ser relegada ao esquecimento”, escreve a historiadora da USP Maria Helena Capelato, na orelha do livro.

A edição brasileira do livro tem apresentação da pesquisadora de pós-doutorado em História Social da USP Janaína de Almeida Teles intitulada “Ditadura e repressão no Brasil e na Argentina: paralelos e distinções”. Nesta, aponta algumas semelhanças e diferenças entre os processos ocorridos nos dois países. Se em ambos os casos havia uma noção de que os militares estariam salvando o país de uma ameaça inimiga, o “poder desaparecedor” descrito por Calveiro para a Argentina seria no Brasil mais um “poder torturador”. Em alguns casos, em especial no combate a guerrilha do Araguaia, a ditadura brasileira também usou a tática de eliminação total do “inimigo”. Porém, em geral, se caracterizava por “seu caráter centralizado e seletivo, permeado por preocupações com sua legitimidade institucional” (p. 14). Assim, no Brasil, o governo se preocupava em dar um ar de legitimação legal, mesmo que manipulada, às suas ações, enquanto na Argentina estava mais cristalizada a ideia de que diante de um inimigo tão perigoso, métodos excepcionais poderiam ser utilizados. Portanto, na Argentina

“o eixo do mecanismo desaparecedor era a obtenção de informação necessária para multiplicar os desaparecimentos até acabar com o ‘inimigo’”. No modelo brasileiro, por sua vez, o foco era a seletividade e a obtenção de informações para desestruturar grupos oposicionistas.” (p. 17)

Pilar Calveiro divide o livro em duas partes. A primeira, mais curta, “Considerações Preliminares”, fornece um panorama do contexto prévio ao golpe que levou o general Jorge Videla ao governo em 1976. A segunda parte, “Os campos de concentração” descreve e discute o funcionamento, a lógica e o significado dos campos de concentração argentinos.

“Considerações Preliminares” apresenta primeiramente a ascensão das forças armadas, e depois a situação das guerrilhas, vistas pela ditadura como o principal inimigo interno. Desde a década de 1930, as forças armadas cresciam em peso político e autonomia.

“Assim, ao longo de 45 anos os militares reiteradamente “salvaram” o país – ou melhor, os grupos dominantes do país. Por outro lado, setores importantes da sociedade civil também reclamaram e exigiram essa salvação. Em 1976, não havia nenhum partido político na Argentina que não tivesse apoiado algum dos numerosos golpes militares ou dele participado.” (p. 25)

Assim, o apelo às forças armadas ao reestabelecimento da ordem (e as características fundamentais de um governo militarizado) não era inédito na Argentina de 1976, quando a crise do peronismo fazia em especial as classes médias clamarem por serem “salvas”.

As guerrilhas, cujos membros formariam grande parte da população sequestrada proliferaram nos anos 1970, sejam de caráter guevarista ou peronista. Calveiro, porém, tece críticas ao autoritarismo interno a elas, o que teria colaborado, junto à repressão por parte do peronismo de direita a partir de 1974, para que já estivessem bastante enfraquecidas em 1976.

A segunda e mais extensa parte do livro inicia-se com uma ideia fundamental do texto: “Sempre o poder mostra e esconde, e se revela tanto no que exibe quanto no que oculta” (p. 38). Portanto, os mecanismos de desaparecimentos deviam ser escondidos (já que não eram legais), mas somente parcialmente. Para Calveiro, “para disseminar o terror, cujo efeito imediato é o silêncio e a inação, é preciso mostrar uma fração daquilo que permanece oculto”. (p. 53). A autora então esclarece que o sequestro, a tortura e o desaparecimento já eram prática corrente ao menos desde 1966, mas a partir de 1976, o desaparecimento deixa de ser uma das formas para se tornar a própria definição da repressão na ditadura argentina.

Uma característica importante é que os campos de concentração não eram operados por um grupo seleto. Pelo contrário, havia um esforço em incluir grande número de oficiais, de modo a implicar a todos no processo, em cumplicidade geral. O resultado disso era, além de evitar delações, que seres humanos sem “natureza assassina” participassem ativamente de “um maquinário, construído por eles mesmos, cujo mecanismo os levou a uma dinâmica de burocratização, rotineirização e naturalização da morte” (p. 45). O relato de Calveiro nos remete, ao conceito de banalidade do mal, desenvolvido por Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém, autora com cuja obra o livro de Pilar Calveiro está em constante diálogo.

Nas páginas seguintes, Calveiro descreve os procedimentos do desaparecimento. A iniciar pelo sequestro, realizado por grupos que geralmente desconheciam o motivo da operação e a tortura (choques elétricos e abusos sexuais eram comuns). Cabe salientar que a missão principal da tortura (que começava antes mesmo da inserção do prisioneiro no campo) era “”alimentar” o campo com novos sequestrados” (p. 67). Seguidas as primeiras seções de tortura, ocorria o confinamento no campo (novamente, os guardas geralmente não sabiam quem eram os prisioneiros, somente sabiam que eram “perigosos”), período no qual podiam ocorrer novas torturas, e finalmente o assassinato e desaparecimento dos corpos. Esta é a parte menos conhecida. Um dos métodos envolvia a aplicação de soníferos e o despejo dos corpos (ainda vivos) no mar. Ao longo de todo o processo, imperava a burocracia, a impessoalidade e a divisão de tarefas. Em Modernidade e Holocausto, Zygmunt Bauman afirma que

“O uso da violência é mais eficiente e menos dispendioso quando os meios são submetidos a critérios instrumentais e racionais e, assim dissociados da avaliação moral dos fins. […] A dissociação é, de modo geral, resultado de dois processos paralelos, ambos centrais ao modelo burocrático de ação. O primeiro é a meticulosa divisão funcional do trabalho […] o segundo é a substituição da responsabilidade moral pela técnica.” (BAUMAN, 1998, p. 122)

Atenta a essas semelhanças, Calveiro afirma que isso não se deveria a uma cópia ou inspiração nos campos nazistas ou stalinistas mas consequência de serem poderes totalizantes.

Outra característica apontada pela autora que reforça esse caráter totalizante é a auto-representação de muitos torturadores como deuses, ao ponto de impedirem o suicídio mesmo de prisioneiros cujo destino (morte) já estava selado. Havia uma necessidade de reafirmar o poder da repressão sobre cada mínimo aspecto da vida (e da morte) dos sequestrados.

O aspecto fragmentário do processo, com diferentes grupos operativos trabalhando em paralelo e até concorrendo entre si causava uma sensação de completa ausência de lógica (por exemplo, na escolha de quem iria morrer e quando) e desarmava tentativas de resistência. No entanto, “O fragmentário não se opõe ao totalizante; pelo contrário, eles se combinam e se sobrepõe, sem encontrar nenhuma consistência ou coerência.” (p. 82). Tal afirmação é reforçada por Hannah Arendt, quando afirma, sobre a burocracia nazista que “todos esses organismos, enormemente poderosos, competiam ferozmente uns com os outros – o que em nada ajudava suas vítimas” (ARENDT, 1999, p. 85).

Analisado o funcionamento concreto do “poder desaparecedor”, Pilar Calveiro se dedica ao componente ideológico que o sustenta, ao qual chama de “Um universo binário”.

“As lógicas totalitárias são lógicas binárias, que concebem o mundo como dois grandes campos contrários: o próprio e o alheio. […] entende que o diferente constitui um perigo iminente ou latente, que deve ser extirpado. [..,] pretende, em última instância, eliminar as diversidades e impor uma realidade única e total representada pelo núcleo duro do poder, o Estado.” (p. 88) “Na concepção militar, a Argentina estava em guerra: uma guerra contra a subversão, travada dentro e fora das fronteiras nacionais. Os militares se apressaram a declará-la, e a guerrilha aceitou o desafio.” (p, 89)

Assim, na ótica militar, não desapareciam pessoas, mas sim subversivos, que seriam sempre: guerrilheiros, servindo interesses estrangeiros, perigosos, imorais; se mulheres, cruéis e sem moral sexual. No caso dos mais perigosos não só sem religião, mas judeus. “Reduzidos, como todos os outros objetos de gerenciamento burocrático, a meros números desprovidos de qualidade, os objetos humanos perdem sua identidade.”(BAUMAN, 1998, p. 127)

Portanto, os campos de concentração procuravam retirar por completo a humanidade do prisioneiro. Calveiro, porém, defende que “apesar da eficiência da técnica concentratória, quase sempre há uma parte do homem que é devastada e outras que resistem; essas são as partículas que escapam” (p. 102). Isso permite problematizar o universo binário e mais, possibilita formas de resistência e fuga. Em relação a esses mecanismos, Calveiro afirma que

“É preciso acrescentar que existiram diversas formas de fugir do dispositivo concentracionário, não apenas a fuga física, sendo que todas elas estiveram associadas à preservação da dignidade, à ruptura da disciplina e à transgressão da normatividade, sabotando os objetivos do campo.” (p. 108)

Assim, a autora descreve várias formas de fuga e resistência, desde a fuga concreta, a colaboração falsa ou parcial, a solidariedade interna, até o riso como reafirmação da vida.

Aproximando-se da parte final do livro, Calveiro reafirma, tal como Hannah Arendt teve que fazer no caso Eichmann, que “Ao encarar os desaparecedores como parte do cotidiano social, sua responsabilidade não se esfuma; apenas os situa num lugar que envolve e questiona toda a sociedade.” (p.134). Arendt completaria que “essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas” (ARENDT, 1999, p. 299).

Essa reflexão faz com que a análise não possa se prender somente aos que participaram diretamente nos desaparecimentos, devendo se estender a sociedade toda: “O campo de concentração, […], só pode existir numa sociedade que escolhe não ver, por sua própria impotência; uma sociedade “desaparecida”, tão siderada como os próprios sequestrados.” (p. 135). Calveiro descreve como o golpe teve respaldo social. “Se havia algo que não tinha como ser alegado naquele momento era o desconhecimento” (p. 136). A tortura, os sequestros e a necessidade de eliminação do Outro não eram novidade e já estavam até certo ponto naturalizadas. “A noção do Outro, perigoso, que deve ser destruído, estava profundamente enraizada nas representações e práticas políticas.” (p. 138).

Poder e desaparecimento, portanto, está muito distante de ser somente um testemunho da ditadura (o que já seria válido). Tampouco se limita a uma análise do “poder desaparecedor” na Argentina no período 1976-1983, o que realiza brilhantemente. Pilar Calveiro é capaz, apesar ou talvez justamente por ter sido vítima da repressão autoritária de analisar, a partir da experiência argentina, o fenômeno do autoritarismo totalizante, o que, levando em conta seus paralelos e particularidades, colabora para a compreensão das ditaduras civis-militares que assolaram o Cone Sul nas décadas de 1960,70 e 80.

Ao final do livro, Calveiro afirma:

“a melhor forma para desconhecer que a realidade dos campos de concentração esteve estreitamente relacionada com a sociedade de então e com a atual é esquecê-los, decidir que o mundo e o país deram voltas suficientes a ponto de chegar a outro lugar. Anistia, como amnésia, vem de a-mnses-is, “esquecimento”” (p. 151).

A mensagem não poderia ser mais evidente para um Brasil que ainda se debate em relação à memória e aos aspectos ainda hoje remanescentes da sua ditadura mais recente.

Referências

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

CALVEIRO, Pilar. Poder e desaparecimento: os campos de concentração na Argentina. Tradução Fernando Correa Prado. São Paulo: Boitempo, 2013.

Michel Ehrlich –  Estudante de graduação em História (bacharelado e licenciatura) pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).


CALVEIRO, Pilar. Poder e desaparecimento: os campos de concentração na Argentina. Tradução Fernando Correa Prado. São Paulo: Boitempo, 2013. Resenha de: EHRLICH, Michel. Cadernos de Clio. Curitiba, v.6, n.1, p.197-206, 2015. Acessar publicação original [DR]